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Saindo do culto trans

Texto publicado originalmente no blog Purple Sage; traduzido com permissão da autora.

Quando saí do armário como lésbica, foi durante a época da inclusão, quando mais e mais letras foram adicionadasà sopa de letrinhas LGBTQ porque cada minoria sexual precisava de representação. Parecia óbvio que deveríamos incluir a todos — uma vez que nós mesmos sofríamos ostracismo e sabíamos o quão ruim era ser excluído. Queríamos justiça social, queríamos amor e respeito a todas as minorias. Não importa que outra letra fosse adicionada ao acrônimo “queer”, a incluíamos sem questionar. Conheci pessoas de todos os tipos durante minha época na universidade — homens gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, assexuais, pessoas de gênero fluído, etc. Eu acreditava que estávamos trabalhando juntos e ganhando aceitação das pessoas hétero. Durante esse tempo também comecei a aprender sobre o feminismo. A princípio, as várias blogueiras feministas que eu estava lendo não pareciam divergir muito entre si. Mas nos últimos anos, um grande golfo começou a nos dividir. Os assuntos que nos separavam era a indústria do sexo e as políticas transgêneras. Nunca comprei a idéia de que a prostituição era um trabalho que precisava ser sindicalizado — eu era capaz de ver prontamente que se tratava de violência. Mas comprei a idéia da transgeneridade por um bom tempo. Eu acreditava, como éramos ensinados a acreditar, que as pessoas trangêneras eram apenas outra minoria sexual que, como os gays e as lésbicas, precisavam lutar contra a discriminação. Eu queria muito ajudar qualquer grupo minoritário a superar a opressão. Fui ensinada que as pessoas transgêneras tinham nascido no corpo errado e precisavam modificar seus corpos para que correspondessem à imagem interna que tinham de si mesmos. Sou uma pessoa de mente aberta e não tinha nenhum problema em acreditar nisso. Mas um monte de irmãs feministas não estavam abertas a essa idéia. Comecei a entrar em brigas com outras feministas. Queria que elas enxergassem que estavam sendo violentas com uma minoria perseguida, e que isso não era compatível com o feminismo. Eu era contra as “TERFs”. Fui ensinada que estava fazendo a coisa certa.

Foi impossível não fazer pesquisas sobre a transgeneridade porque foi impossível conter as muitas perguntas que continuavam surgindo e eram difíceis de responder. Feministas me desafiavam em discussões perguntando “O que é uma mulher?”. Descobri que não conseguiria responder essa questão. Li livros sobre transgeneridade e finalmente me decidi que “mulher” era uma categoria social, mas isso nunca foi fácil de explicar. Entrei em brigas amargas em comentários de tópicos. Chamei outras mulheres de transfóbicas. Isso me fazia sentir muito, muito mal. Nós mulheres deveríamos estar trabalhando juntas e em vez disso estávamos nos rasgando umas às outras em pedaços. Achei que as coisas que o feminismo radical falava eram exageradas. Não parecia possível que mulheres trans estivessem tentando invadir os espaços das mulheres para nos machucar porque pensei que eram apenas outra minoria sexual perseguida, como os gays e as lésbicas. Pensei que eram apenas mulheres que aconteceu de nascerem com as partes erradas. Qualquer ataque a qualquer uma das letras do acrônimo GLBTQ parecia um ataque a mim, porque eu estava naquele acrônimo também. Achei que todas as pessoas representadas sob o guarda-chuva queer eram iguais — pessoas inocentes enfrentando discriminação.

Transativistas estão constantemente à procura de qualquer coisa que possam condenar como transfóbica. A princípio eram coisas óbvias. Pessoas trans têm direito à emprego, moradia e cuidados médicos, e não deveriam ser vítimas de violência. Claro! Mas as coisas que eram condenadas como transfóbicas comecaram a ficar menos óbvias. Chamar alguém pelo pronome errado se tornou fóbico também. E então, não colocar pessoas trans no centro de todas as conversas se tornou fóbico. Daí, falar sobre biologia e anatomia também se tornou fóbico. Eu era contra as “TERFs” até que um dia li no Twitter que insinuar que mulheres menstruam é transfóbico, e percebi — segundo esse princípio, sou uma TERF. Eu sei que mulheres menstruam e que quem menstrua é mulher, e isso é suficiente para ser uma TERF. A coisa toda começou a degringolar aí. Se todo mundo que tem consciência de que mulheres menstruam são TERF, então todo mundo é TERF. Tudo mundo no mundo inteiro. Isso não faz sentido, uma vez que a maioria das pessoas não é feminista radical.

Sabendo que qualquer uma pode ser chamada de TERF por qualquer coisinha, e que não precisa sequer ser feminista radical para ser caluniada dessa maneira, me fez levar o acrônimo muito menos a sério. Comecei a ficar cada vez mais curiosa pelo que as então chamadas TERFs estavam falando. Os transativistas dizem que as feministas radicais sentem ódio pelas pessoas trans, mas toda vez que eu lia um post de blog de uma feminista radical ele era bem fundamentado, claramente explicado, baseado em fatos, destacava nuances e era compassivo. Nunca encontrei de fato a tal fobia que os escritos das feministas radicais supostamente deveriam conter. O que muitas feministas radicais estão dizendo na verdade é que não concordam com as políticas transgêneras porque as políticas transgêneras em geral são prejudiciais às mulheres, mas elas não desejam que nenhum mal aconteça a quem é transgênero. Elas estão apenas se preocupando com as mulheres, o que é algo que as feministas sempre fizeram.

Quando eu brigava com as chamadas “TERFs” online, elas me mandavam artigos de jornal sobre mulheres trans que cometeram crimes contra mulheres. Eu ignorava isso no começo, pensando que eram histórias exageradas ou que eram casos isolados. Mas com o tempo, os casos isolados começaram a se acumular. Começaram a formar um padrão. Depois de um tempo eu simplesmente não poderia negar que mulheres trans podiam ser violentas com mulheres, da mesma forma que os homens são. Então, lendo as palavras das próprias mulheres trans, no Twitter ou em outras redes sociais, uma coisa se mostrou muito clara: mulheres trans se comportam exatamente como homens. Algumas delas não fazem qualquer tentativa de se comportar da forma que as mulheres se comportam ou de sequer tentar entendê-las, e são abertamente hostis à elas.

O fato de que algumas “mulheres trans” são homens violentos e misóginos que tentam se misturar entre outras mulheres realmente destrói a teoria do “sexo cerebral” e a de “nascido no corpo errado”. Estes homens claramente não são mulheres. Não faz qualquer sentido que tais homens tentem convencer a todos de que são mulheres. A única explicação possível para homens violentos e misóginos alegarem que são mulheres é para que possam entrar nos espaços das mulheres para nos perseguir e conseguir mimos e atenção. É óbvio que seu real objetivo é se infiltrar quando se olha pro ativismo deles. Eles não fazem qualquer tentativa de criar espaços para mulheres trans, ou de defender que elas tenham abrigos, empregos e moradia. Tudo o que tentam fazer é entrar nos espaços exclusivos para mulheres. E estão de fato conseguindo muita atenção da mídia, dos profissionais de medicina, e dos ativistas de gênero.

Tenho visto pessoas entrarem na ideologia trans e perderem a cabeça completamente. Cruzei com pessoas que realmente acreditavam que sexo biológico não existe e que não podiam ter acesso a cuidados médicos a menos que um doutor validasse sua identidade de gênero. Imagine, estar em um país rico com sistema de saúde disponível, e recusá-lo só porque o médico quer tratar seu corpo físico baseado em sua real biologia, em vez de tratá-lo baseado em seus sentimentos? O quão ridículo e absurdo é dizer que você não tem assistência médica quando na realidade tem, e quando há pessoas em países pobres que realmente não têm? Cruzei com homens que serviram no exército, tiveram carreiras fantásticas nas Exatas, foram pais de muitos filhos, e então decidiram que eram mulheres durante esse tempo todo. O quê?! E tenho visto lésbicas que fazem ativismo lésbico, participam da comunidade lésbica, fazem casamentos lésbicos, e de repente dizem que eram homens o tempo todo. Muito disso é puro nonsense, mas se você questionar será chamada de TERF e dirão que você está oprimindo pessoas. É como o criacionismo: inventam falsas evidências que não se sustentam quando verificadas, dizem que a ciência é intolerante com suas crenças, dizem que são perseguidos quando não conseguem forçar suas crenças a outras pessoas, e tentam silenciar e destruir os incréus. Transativismo é um culto religioso.

O efeito que o transativismo tem causado no feminismo é como o de um cavalo de Tróia. Ele entrou silenciosamente ao longo dos anos e então explodiu nos anos 2010, e agora as feministas estão divididas e brigando entre si. Gastamos metade do tempo discutindo se mulheres trans são mulheres e se tal pedacinho do feminismo é “transfóbico”, e isso significa que não estamos mais lutando pela libertação das mulheres. O feminismo deveria libertar as fêmeas humanas da opressão. Não deveríamos estar gastando tempo algum preocupadas com os sentimentos de gênero de homens abusivos. E o fato de que os transativistas geralmente são pró-prostituição deveria nos dizer alguma coisa. Essas pessoas estão lutando pelos direitos dos HOMENS. Agora que vi o que vi, voltei para o verdadeiro feminismo, aquele que luta por mulheres. Não estou mais confusa sobre o que é uma mulher. Uma mulher é uma fêmea humana adulta, como sempre foi. Aprendi algo muito importante: minhas irmãs sempre devem vir em primeiro lugar. Realmente sinto muito pela hostilidade que usei para me expressar com mulheres que têm noção de que mulheres trans são homens. Gostaria de voltar no tempo. Tenho usado uma tag em alguns posts chamada “auge trans”. Auge trans é o ponto em que os transativistas finalmente ficam tão ridículos que até mesmo seus antigos aliados não podem mais apoiá-los. Isso foi o que aconteceu comigo e sei que vai acontecer com mais gente.

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O Ideal de Beleza

Trecho de “A Dialética do Sexo”, de Shulamith Firestone.

Toda sociedade promoveu um certo ideal de beleza acima de todos os outros. Qual seja este ideal não importa, porque todo ideal exclui a maioria. Os ideais, por definição, são moldados em qualidades raras. Por exemplo, na América, a moda atual de modelos franceses, ou o ideal erótico da Loura Voluptuosa, são moldados a partir de qualidades verdadeiramente raras. Poucas americanas são de origem francesa, a maioria não parece, nem nunca parecerá francesa. Morenas voluptuosas podem descorar o cabelo (como fez Marilyn Monroe, a rainha da sexualidade), mas as louras não podem aumentar suas curvas à vontade — e a maioria delas, anglo-saxã, simplesmente não tem essa conformação. Se e quando, através de métodos artificiais, a maioria consegue espremer-se dentro da forma ideal, o ideal muda. Se ele fosse atingível, como poderia ser bom?

A exclusividade do ideal de beleza serve a uma função política clara. Alguém — na maioria mulheres — ficará de fora. E ficarão disputando, porque, como vimos, só foi permitido às mulheres alcançar a individualidade, através da aparência — atributos definidos como “bons”, não por amor à detentora deles, mas por causa de sua maior ou menor aproximação de um padrão externo. Essa imagem, definida pelos homens (e comumente por homens homossexuais, em geral misóginos da pior espécie), torna-se o ideal. O que acontece? As mulheres, em todo lugar, se apressam em comprimir-se no sapatinho de cristal, forçando e mutilando o corpo com dietas e programas de beleza, roupas e maquiagem, qualquer coisa para se tornarem a garota sonhada do príncipe joão-ninguém. Mas elas não têm escolha. Se não conseguem amoldar-se, os castigos são enormes. Sua legitimidade social está em perigo.

Assim, as mulheres tornam-se cada vez mais parecidas. Mas, ao mesmo tempo, espera-se que elas expressem sua individualidade, através da aparência física. Assim, elas ficam oscilando, tentando, ao mesmo tempo, expressar sua semelhança e sua singularidade. s exigências da privatização Sexual contradizem as exigências do Ideal de Beleza, provocando intensa neurose feminina, em torno da aparência pessoal.

Mas, mesmo esse conflito tem uma função política importante. Quando as mulheres começam a ficar cada vez mais parecidas, diferentes apenas pelo grau em que elas se distinguem de um papel ideal, elas podem ser mais facilmente estereotipadas como classe. Elas se parecem, pensam similarmente, e, pior ainda, são tão burras, que acreditam não serem parecidas.

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Feministas brasileiras

Patriarcado-Racismo-Capitalismo

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. p. 60-63.

Já se viu que, historicamente, o patriarcado é o mais antigo sistema de dominação-exploração. Posteriormente, aparece o racismo, quando certos povos se lançam na conquista de outros, menos preparados para a guerra. Em muitas destas conquistas, o sistema de dominação-exploração do homem sobre a mulher foi estendido aos povos vencidos. Com freqüência, mulheres de povos vencidos eram transformadas em parceiras sexuais de guerreiros vitoriosos ou por estes violentadas. Ainda na época atual isto ocorre. Quando um país é ocupado militarmente por tropas de outra nação, os soldados servem-se sexualmente de mulheres do povo que combatem. Este fenômeno aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, dele resultando muitos filhos de soldados norte-americanos com mulheres japonesas. O mesmo se passou durante a guerra do Vietnã, havendo lá deixado os soldados norte-americanos muitos frutos destas uniões sexuais esporádicas e sem compromisso.

Desta sorte, não foi o capitalismo, sistema de dominação-exploração muitíssimo mais jovem que os outros dois, que “inventou” o patriarcado e o racismo. Para não recuar demasiadamente na história, estes já existiam na Grécia e na Roma antigas, sociedades nas quais se fundiram com o sistema escravocrata. Da mesma maneira, também se fundiram com o sistema feudal. Com a emergência do capitalismo, houve a simbiose, a fusão, entre os três sistemas de dominação-exploração, acima analisados separadamente. Só mesmo para tentar tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno, podem-se separar estes três sistemas. Na realidade concreta, eles são inseparáveis, pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denomi­nado patriarcado-racismo-capitalismo.

Há quem use expressões como capitalismo patriarcal, patriarcado capitalista, capitalismo racial, racismo capitalista. Neste livro, rejeitam-se estes conceitos pelas razões a seguir expostas.

Quando se usa um destes sistemas de dominação-exploração na forma substantiva e outro na forma adjetiva, como, por exemplo, na expressão capitalista patriarcal, está-se atribuindo maior importância ao capitalismo, deixando em plano secundário o patriarcado. O mesmo se passa com a expressão capitalismo racista. No primeiro caso, o patriarcado apenas qualifica o capitalismo, assim como no segundo o racismo exerce esta função de qualificação. Há também quem tome o patriarcado, o mais antigo sistema de dominação-exploração, e o qualifique com os sistemas de produção surgidos ao longo da história. Nesta linha de raciocínio, tem-se o patriarcado escravista, o patriarcado feudal e, finalmente, o patriarcado capitalista. Neste caso, privilegia-se o patriarcado, em prejuízo dos sistemas produtivos com os quais ele foi-se fundindo através dos tempos. Como se verá mais adiante, o ato de atribuir prioridade a um dos três sistemas mencionados tem sérias conseqüências do ponto de vista das estratégias de luta dos contingentes humanos oprimidos, dominados, explorados.

Há uma razão muito forte para que não se proceda pelo raciocínio da priorização, do privilegiamento de um sistema de dominação-exploração. É que, na realidade concreta, observa-se, de fato, uma simbiose entre eles. Esta fusão ocorreu em tal profundidade, que é praticamente impossível afirmar que tal discriminação provém do patriarcado, ao passe que outras se vinculam ao sistema de classes sociais e ou ao racismo.

Se o patriarcado fosse regido por leis específicas, independentes das leis capitalistas, o homem continuaria a ser o único provedor das necessidades da família, não havendo mulher trabalhando remuneradamente. Pelo menos, não haveria mulher trabalhando fora do lar, podendo ganhar algum dinheiro com trabalho no domicílio. Ora, foi o capitalismo que, com a separação entre o local de moradia e o local de trabalho, criou a possibilidade de as mulheres saírem de casa para trabalhar. Isto não significa que as mulheres, antes do advento do capitalismo, fossem ociosas. Ao contrário, trabalhavam na produção e conservação dos alimentos, teciam, confeccionavam roupas, enfim, realizavam atividades hoje executadas pela indústria. À medida que estas atividades foram sendo industrializadas, as mulheres tiveram necessidade de sair de casa para ganhar seu sustento e o de seus dependentes, ou, então, para colaborar no orçamento doméstico.

Assim, é correto afirmar-se que as mulheres se transformam, crescentemente, em trabalhadoras extralar. Não é correto dizer-se que as mulheres penetraram no mundo do trabalho a partir do ad­vento do capitalismo, pois isto significaria que elas não exerciam tarefas produtivas em outros regimes. Nestes, que precederam historicamente o capitalismo, não apenas as mulheres, mas também os homens desenvolviam muitas atividades-trabalho no interior da casa e em seus arredores. Além das atividades desenvolvidas no seio da família, há que se mencionar o trabalho agrícola, realizado, na época, nas imediações da casa, uma vez que as sociedades de então eram eminentemente agrárias.

Por outro lado, se as leis capitalistas vigorassem independente­mente do patriarcado e do racismo, o desemprego dentre os homens seria muito mais alto que dentre as mulheres. Para provar a vali­dade deste argumento, nem se necessita recorrer ao fato de que as mulheres aceitam trabalhar em péssimas condições e por salários aviltados. Basta pensar que, dado o treinamento que recebem para a execução de tarefas tidas como exclusivamente femininas, as mulheres tem maior agilidade nos dedos. Em virtude disto, são muito requisitadas para o desempenho de atividades nas quais o rendimen­to do trabalho aumenta em função da mencionada agilidade. Pode-se lembrar, também, que a atividade de educar, na medida em que é entendida como um prolongamento da função de socializar os filhos, absorve grandes contingentes de mulheres. O mesmo se passa no setor da saúde. Não fora, pois, a forte ideologia que situa o ho­mem como o chefe da família e seu provedor, os interesses empre­sariais na contratação de trabalhadoras teriam grandes probabilida­des de se realizar. Tal conduta deixaria à margem do mercado de trabalho um gigantesco contingente masculino. Há que se ponderar, porém, que as vantagens oferecidas por mulheres no desempenho de certas atividades não derivam nem de sua anatomia, nem de sua fisiologia. São, ao contrário, vantagens adquiridas ao longo do processo de socialização a que são submetidas.

Estes comentários revelam como é impossível isolar a responsabilidade de cada um dos sistemas de dominação-exploração fundidos no patriarcado-racismo-capitalismo pelas discriminações diariamente praticadas contra mulheres. De outra parte, convém notar que a referida simbiose não é harmônica, não é pacifica. Ao contrário, trata-se de uma unidade contraditória. Se o patriarcado e o racismo contém elementos capazes de permitir a maximização dos lucros capitalistas, estes mesmos elementos contém o consumo das classes trabalhadoras dentro de limites bastante estreitos. Ora, so­bretudo num país de economia dependente como o Brasil, a comercialização de produtos industriais realiza-se, principalmente, no mercado interno. Para dar escoamento a estes produtos é, pois, necessário elevar a capacidade aquisitiva, o poder de compra das classes trabalhadoras.

Ao exaltar as qualidades sexuais das mulheres negras, o branco não apenas transformou-as em objeto da satisfação de seus desejos, mas também produziu o mulato. Este produto híbrido, que atualmente constitui cerca de 39% da população brasileira, introduziu cunhas na supremacia do branco sobre o negro. Ele constitui a lembrança permanente de que o branco acasalou-se com negras, o que debilita muitíssimo as justificativas para as discriminações contra não-brancos. O mulato mostra, assim, uma violenta contradição do patriarcado-racismo-capitalismo. Não obstante sua lógica contraditória, este sistema simbiótico de dominação-exploração continua vivo. Cabe, pois, indagar sobre as forças de sua conservação.

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Feministas brasileiras

A “inferioridade” da mulher

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. p. 12-16.

Presume-se que, originariamente, o homem tenha dominado a mulher pela força física. Via de regra, esta é maior nos elementos masculinos do que nos femininos. Mas, como se sabe, há exceções a esta regra. Variando a força em função da altura, do peso, da estrutura ossea da pessoa, há mulheres detentoras de maior força física que certos homens.

Em sociedades de tecnologia rudimentar, ser detentor de grande força física constitui, inegavelmente, uma vantagem. Em sociedades onde as máquinas desempenham as funções mais brutas, que reque­rem grande força, a relativa incapacidade de levantar pesos e realizar movimentos violentos não impede qualquer ser humano de ganhar seu sustento, assim como o de seus dependentes. Rigorosamente, pore tanto, a menor força física da mulher em relação ao homem não deveria ser motivo de discriminação. Todavia, recorre-se, com fre­qüência, a este tipo de argumento, a fim de se justificarem as dis­criminações praticadas contra as mulheres.

A força desta ideologia da “inferioridade” da mulher é tão gran­de que até as mulheres que trabalham na enxada, apresentando maior produtividade que os homens, admitem sua “fraqueza”. Estão de tal maneira imbuídas desta idéia de sua “inferioridade”, que se assumem como seres inferiores aos homens.

O mero fato de a mulher deter, em geral, menos força física que o homem seria suficiente para “decretar” sua inferioridade? Os fatos históricos indicam que não. Somente para ilustrar esta questão, evoca-se o fato de que em todos os momentos de engajamento de um povo em uma guerra, via de regra, os homens são destinados ao com­bate, enquanto as mulheres assumem as funções antes desempenhadas pelos elementos masculinos. Por que são elas capazes de trabalhar em qualquer atividade para substituir os homens-guerreiros, devendo retornar ao cuidado do lar uma vez cessadas as ações bélicas? Ade­mais, nos últimos anos, vêm-se assistindo a uma participação cres­cente de mulheres em atividades bélicas. Contingentes femininos apreciáveis têm participado não apenas de guerrilhas, mas também têm assumido funções em exercitos convencionais.

A Nicarágua ilustra bem este fato. Tendo participado da guer­rilha que levou o atual regime ao poder em julho de 1979, muitas mulheres integram as tropas regulares daquele país. No exército nicaragüense não há mulheres somente nas patentes mais baixas. Muitas ostentam o título de comandante, comandando efetivamente tropas formadas majoritariamente por homens.

Desta sorte, até na guerra a mulher provou sua capacidade. La­mentavelmente, esta parece ser a atividade que trabalha mais veloz­mente para minar a idéia de que a mulher e “inferior” ao homem. É lamentavel, repita-se, que o ser humano, no caso o homem, só venha a reconhecer na mulher um seu igual através da atividade guerreira, quando há milhares de outros setores de atuação humana em que as mulheres se mostram capazes.

Do ponto de vista biológico, o organismo feminino é muito mais diferenciado que o masculino, estando já provada sua maior resis­tência. Tanto assim e que as mulheres, estatisticamente falando, vi­vem mais que os homens. A sobrevida feminina em relação aos homens já alcançou oito anos nos Estados Unidos, estando entre cinco e seis no Brasil. É bem verdade que à medida que se intro­duzem fatores de risco — tabagismo, tensão nervosa provocada pela competição no trabalho e ou pelo pesado tráfego das grandes cida­des, pela duplicação da jornada de trabalho (no lar e fora dele) ­as vantagens femininas ficam reduzidas.

Permanece, porém, a defesa natural, orgânicamente oferecida pe­los hormônios femininos contra, por exemplo, as doenças das coro­narias, causa numero um dos óbitos masculinos. Esta proteção perdura até a menopausa, quando os ovários deixam de produzir hormônios, o que ocorre no intervalo entre os 45 e os 50 anos. Como a incidência de enfartos e muito maior antes dos 50 anos que posteriormente, esta defesa hormonal representa uma notável vantagem para a mulher, em termos de longevidade.

Não se trata, contudo, de desejar provar qualquer superioridade da mulher em relação ao homem. O argumento biológico so foi uti­lizado a fim de mostrar a ausência de fundamentação científica da ideologia da “inferioridade” feminina. Por outro lado, este argumento serve também para revelar, mais uma vez, a elaboração social de fe­nômenos orgânicos, portanto, naturais. Ademais, a elaboração ideo­lógica caminha em sentido oposto ao das evidências orgânicas, pois as tábuas de vida da maioria esmagadora dos países mostram que as mulheres são mais longevas que os homens.

São necessários fatores muito específicos para inverter esta ten­dência. Exemplo disto está em certas regiões da Índia, onde as mu­lheres, ao se casarem, são obrigadas a se mudar para a comunidade do marido, devendo aprender uma nova cultura que, via de regra, agride profundamente condutas adquiridas na comunidade de origem.

Como o casamento ocorre na fase adulta da vida, os hábitos anterior­mente aprendidos por estas mulheres já estão solidamente estrutura­dos, constituindo uma verdadeira violência a obrigação de esquecê-los e substitui-los por novos costumes, típicos da comunidade do marido. Dados estatísticos revelam que mulheres sujeitas a este traumatismo tendem a viver menos que os homens. Trata-se, porém, de um caso muito específico, pois a Índia comporta diferenciações culturais gi­gantescas, capazes de produzir profundos conflitos, agravados pela existência da família patrilocal.

A patrilocalidade da família define-se pela obrigatoriedade de a mulher passar a integrar a comunidade do marido. Se as diferenças culturais não fossem tão pronunciadas naquele país, certamente as dificuldades seriam menores, podendo não repercurtir negativamente na expectativa de vida das mulheres.

Na tentativa de inculcar nos seres humanos a ideologia da “infe­rioridade” feminina, recorre-se, freqüentemente, ao argumento de que as mulheres são menos inteligentes que os homens. Ora, a Ciência já mostrou suficientemente que a inteligência constitui um potencial ca­paz de se desenvolver com maior ou menor intensidade, dependendo do grau de estimulação que recebe. Dado o pequeno número de estímulos que recebem, crianças que vivem em instituições destinadas a recolher menores abandonados desenvolvem muito pouco esta poten­cialidade, a qual se convencionou chamar inteligência.

Isto posto, não é dificil concluir sobre as maiores probabilidades de se desenvolver a inteligência de uma pessoa que freqüenta muitos ambientes, o que caracteriza a vida de homem, em relação a pessoas encerradas em casa durante grande parte do tempo, especificidade da vida de mulher. Aliás, o dito popular lugar de mulher é em casa é eloqüente em termos de imposição da ideologia dominante. Em fi­cando em casa todo ou quase todo o tempo, a mulher tem menor número de possibilidades de ser estimulada a desenvolver suas poten­cialidades. E dentre estas encontra-se a inteligência.

O argumento de que há muito poucas mulheres dentre os grandes cientistas, grandes artistas, até grandes cozinheiros, tenta provar que também em termos de inteligência a mulher é inferior ao homem. Os portadores e divulgadores desta ideologia esquecem-se de medir as oportunidades que foram oferecidas, ou melhor, negadas às mulhe­res. Ao se atribuir a elas a responsabilidade praticamente exclusiva pela prole e pela casa, já se lhes está, automaticamente, reduzindo as probabilidades de desenvolvimento de outras potencialidades de que são portadoras.

Desta forma, a igualdade de oportunidades pressupõe a partilha de responsabilidades por homens e mulheres, em qualquer campo de atividade, aí incluso o espaço doméstico. Não se trata de ensinar os homens a auxiliarem a mulher no cuidado com os filhos e a casa, pois sempre que a atividade de alguem se configurar como ajuda, a responsabilidade é do outro. Trata-se de partilhar a vida doméstica, assim como o lazer e as atividades garantidoras do sustento da família. Nada mais injusto do que tentar disfarçar a dominação dos ho­mens sobre as mulheres através da “ajuda” que os primeiros podem oferecer as últimas.

Esta forma de raciocinar é exatamente igual aquela que consi­der o trabalho extralar da mulher como “ajuda” ao marido. Na qualidade de mera “ajudante”, à mulher se oferece um salário me­nor, ainda que ela desempenhe as mesmas funções que o homem. A própria mulher, admitindo seu trabalho tão-somente como “ajuda”, aceita como natural um salário inferior.

Pode-se, pois, detectar, ainda uma vez, o processo de naturali­zação de uma discriminação exclusivamente sociocultural. A com­preensão deste processo poderá promover enormes avanços na cami­nhada da conscientização quer de mulheres, quer de homens, a fim de que se possa desmistificar o pretenso caráter natural das discri­minações praticadas contra os elementos femininos.

Do exposto pode-se facilmente concluir que a inferioridade fe­minina é exclusivamente social. E não é senão pela igualdade social que se luta: entre homens e mulheres, entre brancos e não-brancos, entre católicos e não-católicos, entre conservadores e progressistas. Afinal, travam-se, cotidianamente, lutas para fazer cumprir um pre­ceito já consagrado na Constituição brasileira. Efetivamente, desde a primeira Constituição republicana, de 24 de fevereiro de 1891, “To­dos são iguais perante a lei” (§ 2.° do artigo 72). Esta igualdade legal, que passou a ser minuciosamente especificada a partir da Constituição de 1934, assim consta da Constituição vigente desde 17 de outubro de 1969: “Todos são iguais perante a lei, sem distin­ção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas” (§ 1.0 do artigo 153).

Estruturas de dominação não se transformam meramente através da legislação. Esta é importante, na medida em que permite a qual­quer cidadão prejudicado pelas práticas discriminatórias recorrer à justiça. Todavia, enquanto perdurarem discriminações legitimadas pela ideologia dominante, especialmente contra a mulher, os próprios agen­tes da justiça tenderão a interpretar as ocorrências que devem julgar à luz do sistema de idéias justificador do presente estado de coisas. O poder esta concentrado em mãos masculinas há milênios. E os homens temem perder privilégios que asseguram sua supremacia sobre as mulheres.

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As mulheres como incapazes: a ciência enviesada pela cultura

Em “Profissões para mulheres e outros artigos feministas”, Virginia Woolf escreve:

Para explicar a ausência completa não só de boas, mas também de más escritoras, não consigo conceber nenhuma razão a não ser alguma restrição externa de suas capacidades. […] Por que, a não ser que estivessem forçosamente proibidas, não expressaram seus talentos na literatura, na música ou na pintura?

[…] [Pode-se] apontar um único nome entre os grandes gênios da história que tenha surgido entre um povo privado de educação e mantido na submissão […]? Parece-me inquestionável que Shakespeare pode existir porque tem predecessores em sua arte, porque faz parte de um grupo que discute e pratica a arte em liberdade de ação e experiência. [1]

Quando Woolf escreveu estas palavras, não havia nenhuma evidência empírica para sustentar a hipótese de que mulheres eram naturalmente incapazes de grandes feitos intelectuais. Seus defensores, munidos de balanças e fitas métricas para medir e pesar crânios —, não se deixavam intimidar por resultados inconclusivos: as mulheres eram, em sua visão, tão obviamente diferente dos homens em suas capacidades e realizações que sua inferioridade já estava atestada, bastava buscar as origens dessas diferenças. Hoje ferramentas como a ressonância magnética possibilitam uma aproximação maior dos cientistas com seu objeto de estudo, mas ainda não permitem tirar conclusões definitivas. Mas, como na época em que os métodos da frenologia e ideais da eugenia estavam em voga, alguns cientistas continuam tecendo conclusões precipitadas: ainda se discute atualmente, com especial vigor nas ciências naturais e em campos interdisciplinares como a psicologia evolutiva e a neurociência, se homens e mulheres possuem de fato diferenças biológicas, genéticas e neurológicas determinantes que possam explicar o “sucesso” daqueles e o “fracasso” destas em suas realizações intelectuais ao longo da história.

A teoria dominante atualmente na neurociência e, principalmente, na psicologia evolutiva, conforme meta-análises realizadas por Rebecca M. Jordan-Young [2], Cordelia Fine [3] e Anne Fausto-Sterling [4] é a seguinte: por causa de diferentes dosagens dos hormônios sexuais [5] em diferentes fases da vida (intra-uterina, adolescência etc), homens e mulheres possuem diferenças fundamentais em seus cérebros. Essas diferentes dosagens hormonais não afetariam tão somente suas preferências sexuais, mas também sua atuação na sociedade e suas performances de gênero. Essas diferenças seriam, portanto, solidamente enraizadas no cérebro e, consequentemente, imutáveis. Parte-se nestes estudos do pressuposto que as diferenças de oportunidades entre homens e mulheres — e, consequentemente, entre héteros e pessoas cuja sexualidade e padrões de comportamento “desviam” da “norma” — não possuem causas sociais [6]; são, portanto, explicadas por essas diferenças inatas na cognição e pelos interesses naturalmente divergentes nas muitas esferas de atuação na sociedade.

O uso do termo “diferenças” no parágrafo anterior não foi por acaso. Esses estudos em geral se empenham em detectar diferenças muito mais do que semelhanças, de modo que qualquer mínima anomalia é recebida e apontada efusivamente, enquanto que as semelhanças detectadas entre os componentes das amostras são imediatamente descartadas. Este fenômeno é conhecido no meio acadêmico como “efeito gaveta” [7].

A ideia de que existam diferenças congênitas e irreconciliáveis firmemente atreladas aos cérebros de homens e mulheres e que é praticamente impossível se desvencilhar delas é, por definição, uma ideia determinista. Se biologia é destino, então as diferenças inatas entre os sexos encontradas pelos cientistas que diligentemente as buscam devem ser aceitas, e as mulheres, conformarem-se com seu papel subalterno na sociedade. Entretanto, um olhar atento na forma como esses estudos vêm sendo feitos — não apenas na época das fitas métricas, mas na da moderna neurociência — encontra erros de metodologia e condução se não grotescos, no mínimo preocupantes, mesmo quando não se consideram variáveis sociais e atentando-se somente à lógica interna dos estudos em si.

Devido às dificuldades operacionais e éticas em se medir diretamente as influências dos hormônios no comportamento humano, os estudos que visam comprovar diferenças cerebrais entre homens e mulheres são sempre quase-experimentos. Neste modelo de estudo empírico, mede-se o impacto de um elemento (que não pode ser administrado diretamente, seja por questões éticas ou devido à natureza do objeto de estudo) numa amostra, de modo que a amostra é selecionada a partir da presença deste elemento e não aleatoriamente, como em estudos empíricos tradicionais. São quase-experimentos clássicos os estudos que verificam taxa de incidência de câncer em populações fumantes. Quase-experimentos normalmente possuem amostras menores dada a dificuldade de se encontrar indivíduos afetados pelo que se busca estudar e, em geral, quase-experimentos de uma mesma área de estudo devem se validar mutuamente para consolidar, sustentar e também validar externamente suas hipóteses [8].

Os métodos de coleta de dados especificamente dos estudos que visam encontrar variações de desempenho baseadas em sexo são, portanto, quase-experimentos, e envolvem: medições indiretas de níveis hormonais de vários tipos (da mãe durante a gravidez, da criança através de coleta de sangue pelo cordão umbilical, através de medição da proporção dos dedos das mãos, entre outros métodos), questionários quantitativos a respeito do desempenho em variadas atividades ou padrões de comportamento, entrevistas, e exames de ressonância magnética comparando a atividade cerebral sob determinados contextos e em repouso. As pessoas selecionadas para fazerem parte das amostras destes estudos em geral pertencem a grupos considerados “normais”, ou com padrões biológicos e genéticos ou de comportamento atípicos (como por exemplo meninas com hiperplasia adrenal congênita).

Porém, as evidências que corroboram as conclusões dos estudos neste meio são, em geral, desconexas e bastante duvidosas, justamente o oposto do que deveriam ser para se validarem: incorporam preconceitos e vieses dos próprios pesquisadores; possuem definições bastante diversas (e por vezes contraditórias) a respeito de padrões de normalidade esperados de homens e mulheres — e, portanto, não podem ser comparados entre si para se mutuamente sustentar, como se espera de quase-experimentos; partem para conclusões apressadas e generalizantes usando amostras pouco significativas; por vezes não são possíveis de serem replicados; nem sempre utilizam grupos de controle, isso quando não utilizam a mesma amostra em vários estudos; e não levam em consideração o contexto social da amostra, raramente dando nota de que esses fatores podem ter papel significativo e até mesmo determinante nos padrões e resultados encontrados.

Os sérios problemas metodológicos encontrados e apontados por Rebecca Jordan-Young, Cordelia Fine e também Anne Fausto-Sterling em seus relatórios e meta-análises, e os próprios resultados desencontrados destes estudos facilmente levam a crer que as áreas do conhecimento humano que se propõem a investigar as possíveis diferenças cognitivas e cerebrais entre homens e mulheres até o momento não encontraram nenhuma evidência que comprove a idéia de inabilidades (ou habilidades) inatas a partir das diferenças biológicas, ou até mesmo que cérebros de homens e mulheres possuam diferenças drásticas que determinem seus comportamentos, idéia bastante enraizada no senso comum e também em alguns campos de pesquisa. O que se sabe, entretanto, é que cérebros se desenvolvem conforme o meio e as oportunidades oferecidas aos seus donos[9].

A busca incessante por explicações científicas com o intuito de “provar” diferenças cerebrais entre homens e mulheres e, consequentemente, a incapacidade intelectual das mulheres, é sintomática e deve ser vista com desconfiança crítica. Desconsideram-se as variáveis culturais e contextuais, como o fato de que ainda muito recentemente às mulheres foi permitido — com muita luta por parte delas — o acesso ao estudo da maioria das ciências e, mesmo hoje, o fato de esse atraso ter-se feito presente nas estatísticas. Ainda que a igualdade, pela letra da lei, tenha sido atingida ou se pareça estar próximo disso, mudanças culturais levam tempo.


1. WOOLF, Virginia. Profissões para Mulheres e Outros Artigos Feministas. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 47-49.

2. JORDAN-YOUNG, Rebecca M. Brain Storm: The Flaws in the Science of Sex Differences. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2010.

3. FINE, Cordelia. Delusions of Gender: The Real Science Behind Sex Differences. Nova York: Icon Books, 2005.

4. FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the Body: gender politics and the construction of sexuality. Nova York: Basic Books, 2000.

5. Aos chamados “hormônios sexuais” são atribuídas funções em geral relacionadas ao sexo biológico e seus processos e ciclos, sendo cada um deles (estrogênio e testosterona) ligados a cada sexo (feminino e masculino, respectivamente). Essa visão dualística e oposta é errônea principalmente porque ambos são importantes no desenvolvimento biológico tanto de homens quanto de mulheres, e não estão relacionados apenas às funções reprodutivas, mas a uma bem variada lista de propósitos, não ainda totalmente bem compreendidos. Seus níveis e efeitos no organismo também podem mudar drasticamente conforme o meio em que se encontra o indivíduo (JORDAN-YOUNG, 2010. p. 16,
p. 280-285).

6. JORDAN-YOUNG, 2010. p. 139.

7. “File drawer effect”; SCARGLE, Jeffrey D. “Publication Bias: The ‘File-Drawer’ Problem in Scientific Inference”. Journal of Scientific Exploration. Society for Scientific Exploration. v. 14. n. 1. 2000. p. 91-106.

8. JORDAN-YOUNG, 2010. p. 3.

9. FAUSTO-STERLING, 2000. s.p.