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Artigos inéditos

Corpo, alma e a mulher como vaso

Nos anos 1940, em uma crítica ao cartesianismo da divisão entre o corpo e a mente, o filósofo Gilbert Ryle denominou esse dualismo de “dogma do fantasma na máquina”. Essa ideia, adotada por vezes em algumas obras do cyberpunk, ilustra o dualismo como um espectro (a alma) que preenche o vazio de uma concha (a matéria). Ryle criticou esse pensamento no sentido de que compara mente e corpo como se fizessem parte da mesma categoria, filosoficamente errado por princípio.

Essa crítica, não por acaso, se aplica também a uma compreensão rasa e determinista da técnica, que enxerga artefatos produzidos pelos seres humanos de forma independente das forças conscientes que os produziram. Essa interpretação das “forças conscientes” como entes separados no reino do espírito tem origem em uma compreensão de mundo fundamentalmente cristã, ainda que iluminista (ou anti-iluminista, como era o caso de Descartes). Este tipo de visão enxerga deus como uma pré-consciência que cria os corpos humanos e os presenteia com uma consciência — o sopro da vida. Se esse corpo deixa de existir e morre, a consciência que o habita permanece, mas seu destino vai depender da interpretação teológica ou metafísica do freguês.

Uma vez que o eixo de análise feminista comprometida com o desmantelamento da dominação masculina precisa ser o sexo, o feminismo é, filosoficamente, materialista. Ainda que em suas discussões se abarque a “natureza da mulheridade”, muitas vezes essas discussões acarretam em desvios dualistas (ou que tendem ao dualismo). Sendo esses desvios deliberados ou não, eles têm como consequência justamente a retirada do sexo como eixo central da análise e ponto de partida feminista [1]. O sexo fêmea é a expressão material da existência das mulheres.

Se tivesse uma compreensão dualista, o feminismo entenderia a mulher como uma entidade mental que habita um corpo fêmea. A compreensão materialista e verdadeiramente feminista, no entanto, é necessária para que não haja essa ruptura entre o ser e o existir. Não existe uma alma-mulher que habita no corpo fêmea. Seu corpo fêmea é parte fundamental do que significa ser um ser humano mulher.

Sendo um corpo fêmea, as mulheres estão sujeitas às particularidades de se existir nesse tipo de corpo específico, com as suas especificidades. Ser uma fêmea é experienciar o mundo de forma qualitativa e materialmente diferente de experienciá-lo em um corpo macho. O tipo de corpo macho, biologicamente, existe em relação reprodutiva da espécie humana com as fêmeas, mas de nenhum modo esse aspecto material tem relação expressa com a existência do corpo fêmea [2], da mesma forma que um ser humano qualquer não tem, a priori, qualquer relação com outro ser humano qualquer para além do fato de que ambos são humanos. A espécie humana é dimórfica, o que significa dizer que podemos vir ao mundo de duas formas distintas de ser humano, macho ou fêmea. O que o feminismo defende, nos termos mais crus possíveis e sem modificadores externos, é que estar em um ou outro tipo de categoria sexual não pressupõe maior ou menor valor social.

Reconhecer a existência de fêmeas e machos e suas diferentes dinâmicas de relação com o mundo não é essencialismo, é materialismo. O contrário, não reconhecer essas dinâmicas, é medir a existência das mulheres pelas réguas e regras dos homens. É assumir que homens são o padrão da existência humana e que mulheres são um Outro desviante da norma, em um sentido bizarro de “minoria” que compõe mais da metade. É evitar que mulheres falem de si, interditando o debate antes mesmo que ele possa começar utilizando pressupostos de análise que sequer consideram a existência da mulher como uma coisa real, enxergando a dimensão sexual e reprodutiva como pertencente ao reino separado da matéria, uma concha vazia carente de alma. É interpretar a existência dos corpos fêmeas das mulheres como fora da dimensão do “humano”.

Uma visão materialista no feminismo enxerga as mulheres como seres humanos adultos do sexo feminino. Uma visão dualista enxerga as mulheres como úteros (no sentido físico) e como receptáculos (no sentido simbólico). Uma vez que a visão dualista tende ao espiritualismo, em uma visão patriarcal a mulher é o receptáculo, o vaso da Vontade do Pai. Conforme o domínio masculino vai se afrouxando, os dominadores encontram formas de se manter, cedendo aqui e ali, enxergando as mulheres não como iguais — como isso poderia ser possível? —, mas como instrumentos dos seus objetivos, depositárias de suas bênçãos e conhecimentos [3]. No sentido mais pejorativo desse mesmo patriarcado cambaleante, mulheres são “depósitos de porra”.

As mulheres não são fantasmas na máquina. Seu corpo fêmea não é um aparato. Melhor ainda seria dizer que o corpo das mulheres não é uma chocadeira para gerar novos seres humanos (ou mesmo filhos menos literais), à disposição dos propósitos dos homens, sejam eles quais forem. O corpo fêmea é uma pré-condição da existência da mulher. Que ele possa gerar novos seres humanos é uma capacidade própria sua explorada pela dominação masculina, e que ainda que não circunscreva a existência completa do ser humano mulher, é com um corpo fêmea que a existência dela acontece. Negar essa realidade não é uma postura que centre mulheres e, muito menos, uma postura feminista.


Notas

[1] Outros desvios com tendências dualistas podem incluir compreensões ginocêntricas emprestadas de visões de mundo religiosas, ou ainda uma compreensão “ecológica” mística ou quase.

[2] Muito pelo contrário. Pela ciência da embriologia, sabemos que a forma base do feto só se desenvolve em uma forma fenotípica masculina caso receba instruções genéticas e hormonais para tal. As críticas ao feminismo que evidenciam a existência de anomalias nesse processo falham em enxergar que se tratam, justamente, de anomalias e não de outros sexos diferenciados.

[3] Todos eles desenvolvidos por homens, que tão bondosamente presenteiam as mulheres para que frutifiquem a partir de seus saberes.