À medida que a menina se torna mulher, ao longo de sua vida, suas chances de serem assujeitadas ao trauma se tornam maiores. A maior parte das mulheres adultas se lembra de terem sido assediadas a caminho da escola, de sofrerem bullying, sofrerem tentativas de estupro ou estupros de fato, de terem sido ameaçadas, de terem testemunhado violência doméstica ou de terem perdido alguém que amam – o trauma é prevalente na maior parte das vidas de mulheres e meninas.
Não apenas sofremos estes traumas individuais, mas existimos enquanto mulheres em um patriarcado – um mundo que nos definiu como “menores do que”, desde nosso nascimento. Somos definidas como menos inteligentes, menos capazes, menos confiantes, menos bem sucedidas, menos importantes. Quando e se transpusermos o limite do “menores do que”, somos frequentemente punidas pela sociedade e por nossas redes de apoio. É por isso que garotas que são confidentes demais, que têm opiniões fortes demais, que têm sucesso ou inteligência demais são, via de regra, rotuladas como problemáticas e perturbadoras.
“A síndrome da papoula mais alta”, uma mulher me disse certa vez. O fenômeno cultural de podarmos e eliminarmos alguém considerado inteligente demais, bem sucedido demais ou inconformado. No Japão, o conceito é descrito como “o prego que está pra cima é martelado para baixo”.
Para compreender a experiência feminina no patriarcado é necessário reconhecermos que meninas e mulheres estão submetidas a angústia, discriminação e trauma no curso integral de suas vidas. Seja por comentários casuais, como “você arremessa que nem uma garotinha”, ou um hobby que “não é para garotinhas”, ou o assédio sexual constante vindo dos homens que berram das janelas dos ônibus, meninas em idade de crescimento vão aprendendo a estar no mundo que as sexualiza e degrada. Todas estas experiências traumatizam – tanto quanto qualquer forma de opressão e discriminação.
É difícil lidar com tal tratamento diariamente, por anos, e depois por décadas. É difícil viver em um mundo que fala com você no diminutivo, como se fosse uma criança estúpida – mas, ironicamente, reconhece nossa maturidade quando decide foder com a gente. E mesmo assim, isso acaba acontecendo conosco enquanto somos meninas, antes de sermos adultas que podem consentir.
De um ponto de vista trauma-informed, faz completo sentido que meninas e mulheres desenvolvam comportamentos, pensamentos e sentimentos que podem parecer estranhos, prejudiciais, anormais e até extremos. O que pode vir a ser considerado um problema ou uma questão de saúde mental parece absolutamente racional e normal quando consideramos as circunstâncias colocadas contra meninas e mulheres.
Por isso é crucial que não redefinamos os traumas das mulheres como doenças mentais, distúrbios de personalidades ou formas de psicose. Do meu ponto de vista, reconhecer que meninas e mulheres existem em um patriarcado onde estão majoritariamente sujeitas a traumas e violações reiterados, e depois são convencidas de que suas reações naturais e racionais são questões de saúde mental, termos como psicose e distúrbios de personalidade são formas poderosas de culpabilização da vítima, são insultuosos e insidiosos.
Essas definições não apenas condenam todas as respostas de mulheres e meninas como doenças ou pensamentos ilógicos, mas os sistemas, a mídia e a sociedade reforçam tais estereótipos aliciando mulheres e meninas, fazendo-nos acreditar que é vantajoso para nós que acreditem estar padecendo de quadros mentais incuráveis, em vez de validar nossas respostas, ouvindo nossos traumas e experiências. É uma jogada genial.
Eu sei que esta seção será uma das mais controversas neste livro, por isso desejo apresentar exemplos reais para analisar e explorar: você acredita nas mulheres que foram diagnosticadas e tratadas como doentes mentais ou você acredita que, de alguma forma, havia algo errado com elas?
DEPRESSÃO PÓS-PARTO
Enquanto escrevia o livro, ouvi muitas mulheres que haviam sido diagnosticadas com depressão pós-parto ou psicose pós-parto enquanto estavam submetidas a abuso doméstico, abuso sexual e controle por coerção. Isto é particularmente importante, pois já sabemos há décadas que a violência masculina contra mulheres aumenta durante a gravidez.
Estatisticamente, estar sujeita à violência doméstica durante a gestação é mais comum do que quaisquer complicações biológicas da gravidez (UCSF, 2021). Simplificando a questão, existem mais chances de você ser espancada e abusada durante a gestação do que de desenvolver complicações médicas por conta do seu corpo ou do seu bebê.
Em 2013, uma meta-análise de 67 estudos, publicada por Howard et al., revelou que mulheres vítimas de violência durante a gravidez tinham três vezes mais chances de serem diagnosticadas com estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e outros distúrbios mentais.
À primeira vista, isso faz muito sentido (a não ser pela patologização desnecessária e pela insistência em que, de algum jeito, trata-se de uma doença mental estar traumatizada pelos abusos sofridos na gravidez). Entretanto, faz sentido encontrarmos mais respostas ao trauma e ao sofrimento em mulheres que foram abusadas durante a gestação – e, mesmo assim, ainda existe um esforço organizado para sugerir que elas estão doentes, e que suas respostas são anormais. Não apenas anormais, mas perigosas para o bebê, que é apresentado como “vítima” da situação – não vítima de violência doméstica, mas vítima da mãe doente.
Uma das mulheres com quem eu conversei teve de sair de uma das minhas palestras em 2019, visivelmente perturbada. A palestra versava sobre o mesmo tópico deste livro: a patologização de mulheres e meninas que foram sobreviventes de abuso. Ela era uma profissional brilhante da área de justiça criminal, com experiência no assunto, e estava em um assento ao fundo da plateia com uma amiga. Repentinamente, ela se levantou, escondendo o rosto, e saiu rapidamente do salão. Fiquei aliviada ao vê-la novamente, uma hora depois, para falar comigo após o evento.
Jenny me disse que, ao ouvir meu discurso, a ficha caiu, à medida em que foi lembrando que tinha sido diagnosticada com depressão pós-parto, medicada, patologizada e ignorada, ao invés de ter sua situação de abuso doméstico resolvida.
Quando Jenny tinha vinte e um anos de idade, engravidou de um homem de trinta, com quem estava se relacionando havia seis meses. Ele não era fisicamente violento, mas fazia muito gaslighting e controlava Jenny psicologicamente. Ele fazia bastante sexo com outras mulheres e quando elas contatavam Jenny para alertá-la sobre as traições, ele a acusava de ser doente mental, dizendo que sua mente não funcionava adequadamente, que ela estava alucinando. Com o tempo, ela começou a acreditar.
Quando o bebê nasceu, foi hospitalizado com uma complicação séria e foi submetido a uma cirurgia. O pai da criança desapareceu, alegando que não podia ir ao hospital por estar de luto pela morte do pai. Jenny aceitou a explicação a princípio, mas soube depois que ele estava fazendo sexo com uma mulher que, mais tarde, entrou em contato com ela.
O abuso continuou; Jenny tentou sair do relacionamento várias vezes, com muita dificuldade. Ela parou de comer e de dormir, perdeu 38kg em semanas, deixando-a com 44kg. Ela me contou que não estava deprimida, ela estava traumatizada pelo abuso, achando que tudo era alucinação. Ao menos uma vez, ele a atacou sexualmente a fim de “saber se ela estava se relacionando sexualmente com outros homens”.
Após mais quatro meses de abuso, Jenny foi ao seu ginecologista e contou toda a situação, incluindo o ex-companheiro abusivo e o que ele vinha fazendo com ela (ele a deixou quando o bebê completou seis meses). A esta altura, seus hábitos alimentares e sono haviam sido muito impactados, ela estava fisicamente debilitada e tinha desenvolvido gagueira. Ela disse ao médico que sentia medo constante, especialmente em relação aos homens. O médico ouviu e a diagnosticou com depressão pós-parto.
Jenny me disse o quanto isso incrementou a violência de seu ex, que passou a usar o diagnóstico para fortalecer o gaslighting, confirmando que ela era, afinal, doente mental e instável. Ela também me contou que o diagnóstico solidificou a culpa que sentia, aumentou suas dúvidas sobre si mesma e sua crença de que tudo se resumia a alucinações, concluindo assim que seu ex estava certo, e que ela tinha um distúrbio.
Prescreveram Citalopram e, sem suas palavras, “foi isso aí”. Mesmo anos depois, quando teve seu segundo filho, ela foi avaliada e monitorada de perto por um profissional, em função de sua “doença mental” e tendência à “depressão pós-parto”.
Ela me disse que meu discurso, em 2019, foi a primeira vez em que tinha se apercebido de que ela não tivera depressão pós-parto, e que o abuso sofrido em casa tinha sido completamente ignorado por profissionais que, ao invés de abordar a situação, haviam-na diagnosticado e medicado.
De longe, um dos diagnósticos mais comuns em mulheres e meninas que passaram por violência sexual masculina é o de borderline, ou transtorno de personalidade emocionalmente instável. Qualquer pessoa que trabalhe em abrigos de meninas e mulheres, centros para vítimas de estupro, serviços voltados para mulheres, serviços de apoio às vítimas de violência doméstica ou de apoio às vítimas de exploração sexual sabem que a atenderão a um público majoritariamente diagnosticado assim. De acordo com o DSM-V, 75% de todos os diagnósticos de borderline são mulheres.
O NHS3 descreve os transtornos de personalidade como “distorções de personalidade persistentes e de longa duração que interferem na capacidade do sujeito de sustentar relacionamentos” (NHS, 2004). Isto sempre me pareceu pouco plausível, mesmo antes de eu ter conhecimento e prática no assunto. Eu não conseguia imaginar como alguém podia ter uma personalidade “transtornada” quando a personalidade, em si, é um conceito tão contestável. Por décadas, psicólogos e psiquiatras tentaram classificar “tipos de personalidade”, com frequência usando medidas psicométricas altamente falhas.
A personalidade é, em geral, teorizada como um traço estável de nós mesmos que permanece ao longo de nossas vidas. Contudo, mesmo evidências anedóticas apontam que a maior parte das pessoas muda consideravelmente ao longo da vida. Você tem a mesma personalidade que tinha dez anos atrás? Você espera ter a mesma personalidade e caráter em vinte anos?
E quanto às perguntas que caracterizam as avaliações psicométricas?
Você as responderia da mesma forma no dia em que foi demitida e em um lindo feriado em que não tivesse que trabalhar? Você responderia da mesma maneira se seu relacionamento estivesse chegando ao fim e se estivesse na fase inicial de um relacionamento envolvente? Você sequer responderia da mesma maneira em um dia e no dia seguinte?
É provável que “personalidade” seja algo flexível, dinâmico, com nuances e complicado – e virtualmente impossível de se fixar em categorias. E isso não implicaria dizer que distúrbios de personalidade são a mesma coisa – escorregadios e difíceis de categorizar?
Uma das coisas que mais me deixam perplexa sobre personalidades e “distúrbios” é o quanto são brancos ocidentais, e o quanto a disciplina sempre foi elitista, a maneira como ignora a diversidade em personalidades, normas e caráteres em diferentes culturas, tempos históricos e línguas. O que pode ser considerado “normal” para uma personalidade nos EUA ou na Grã-Bretanha poderia ser considerado anormal e desequilibrado em outros lugares.
Se tomarmos a mim mesma como exemplo, sou em geral introvertida, mas também sou assertiva, confiante, analítica, lógica, crítica a ponto de ser cínica, honesta, persistente, independente e determinada. Estou comprometida com um propósito, e tendo a estreitar meu foco na direção de meus objetivos ou sonhos. Não tenho conexões emocionais fortes com pessoas, mas aquelas com quem tenho são extremamente importantes para mim. Não tenho interesse em conversa fiada, assuntos frívolos ou em ser educada sem razão. Não sou muito diplomática e posso soar fria e desinteressada nos outros. Não sou necessariamente boa em trabalhos em equipe, mas sou uma líder forte e um tipo de “lobo solitário” natural. Tenho um senso de humor afiado. Não sigo regras que não acho éticas e que não funcionem a favor dos interesses da humanidade. Não gosto de burocracia. Sou cética em relação à natureza humana e ao estado do mundo. Não sacrifico meus valores, não importam os riscos. Sou uma perfeccionista, e ao contrário de como as pessoas me “veem”, sou muito reservada, e só me deixo conhecer por uma ou duas pessoas.
Esta é uma janelinha para a minha “personalidade” – que, se estivéssemos falando em termos psicológicos, seria classificada como INTJ pelo Indicador de Myers-Briggs (por hoje – quem sabe onde estarei em algumas décadas?). De acordo com o MBTI, tenho um dos tipos de personalidade mais difíceis de se encontrar entre as mulheres. Este tipo é descrito pelo Indicador como bem-sucedido, composto de traços desejáveis. O INTJ ocorre, aparentemente, muito mais em homens do que em mulheres, provavelmente porque muitos de seus “traços” são atribuídos à masculinidade, mas não à feminilidade.
Todavia, este modelo é específico de uma sociedade misógina e capitalista. Minha personalidade seria reverenciada e celebrada em culturas coletivistas? Ou eu seria vista como doente mental? Seria expulsa, punida, torturada? Castigada como uma bruxa? Seccionada e medicada? Se eu fosse morar em outro país, seria percebida como sociopata? Considerada emocionalmente instável e inacessível? E se eu fosse negra, que percepção teriam de mim? E se eu me masculinizar mais? E se eu fosse um homem?
A personalidade, bem como aquilo que a torna equilibrada ou não, é, afinal, social, cultural e historicamente situada?
São perguntas amplas, estou ciente disso. Ainda assim, se estamos nos propondo a diagnosticar dezenas de milhares de meninas e mulheres com desequilíbrios em suas personalidades, impactando-as pelo resto de suas vidas, não deveríamos, primeiro, responder a estas perguntas?
Eu estava administrando um centro de atendimento a vítimas de estupros em 2013 quando ficou patente que a maior parte delas havia sido diagnosticada com borderline, nos meses subsequentes à violência sofrida. Muitas delas foram submetidas a coquetéis de diferentes medicações e sujeitas a todo tipo de descaso e discriminação enquanto pacientes com borderline.
Em 2021, o NHS usou o seguinte questionário para diagnosticar borderline. O diagnóstico é positivo se as mulheres responderem cinco ou mais perguntas afirmativamente:
Você tem um medo intenso de ser deixada sozinha, de modo a agir de maneiras incomuns ou extremas, como telefonar constantemente para as pessoas (excluindo comportamentos de automutilação)?
Você tem um padrão de relacionamentos intensos e instáveis com outras pessoas, que variam entre acreditar que as ama e que são maravilhosas, odiá-las e achá-las terríveis?
Você se envolve em atividades impulsivas em duas áreas potencialmente danosas, como sexo desprotegido, uso de drogas sem prescrição, aposta, abuso de bebida alcoólica e consumismo desenfreado (excluindo automutilação e comportamento suicida)?
Você tem oscilações de humor severas, sentindo-se intensamente deprimida, ansiosa e irritadiça, podendo durar algumas horas ou alguns dias?
Você tem sentimentos de vazio e solidão de longa duração?
Você tem sentimentos repentinos de raiva e agressividade que considera difíceis de controlar?
Quando você se vê em situações estressantes, tem sentimentos de paranoia, ou sente que está desconectada do mundo e do próprio corpo, dos próprios sentimentos e do próprio comportamento?
O questionário e critérios de diagnóstico são tão amplos que a maioria das pessoas traumatizadas ou em sofrimento poderiam responder positivamente a cinco ou mais destes itens. É muito comum entre meninas e mulheres que buscam apoio em situações de violência sexual apresentar a maior parte dos itens da lista – não porque elas tenham um transtorno de personalidade, mas porque elas foram violadas e traumatizadas pela violência masculina. Comumente, esse abuso, violência e controle se estende por períodos de meses ou anos.
Infelizmente, o diagnóstico de borderline é um dos mais prejudiciais para mulheres, na medida em que ela será tratada como manipuladora, mentirosa e instável (Timoclea, 2020). É por isso que mulheres com borderline são assinaladas com o diagnóstico para serviços de atendimento emergencial sem que saibam disso. Muitos cirurgiões gerais assinalam a paciente com borderline como uma paciente de risco, assim como ambulâncias, bombeiros, policiais e os serviços sociais.
Isto significa concretamente que as mulheres e meninas com este diagnóstico podem ser tratadas como instáveis, não confiáveis e exageradas quando acessam serviços emergenciais solicitando atendimento.
Em 2017, uma jovem chamada Keira* entrou em contato comigo e perguntou se eu tinha ciência de que os serviços emergenciais estavam sinalizando meninas e mulheres como borderline em seus sistemas internos. Ela me contou que recebeu o diagnóstico depois de denunciar exploração sexual e tráfico de pessoas para a polícia. Ela estava envolvida em um julgamento que determinou que vários homens eram, de fato, culpados, e mesmo assim, ela foi diagnosticada e medicada como se tivera um transtorno de personalidade.
Poucos anos depois, Keira observou que o médico a tratava como se ela estivesse louca. Ele ignorou todas as queixas físicas, desde as dores de cabeça até a menstruação irregular. Quando ela entrou em contato com a política por conta de uma mulher que a estava assediando, quatro policiais apareceram em sua porta, ao invés de um ou dois, que é a praxe. Quando ela se tornou mãe, foi tratada como uma ameaça para os próprios filhos. Quando chamou uma ambulância, diante de uma emergência certa noite, o veículo que chegou à sua casa foi um carro de polícia. Quando um de seus filhos adoeceu, o hospital a encaminhou para um centro de serviços sociais. Ela não entendia por que estava sempre sendo tratada com a camisa de força – até que um profissional lhe contou que este era o procedimento padrão, já que ela estava assinalada com um transtorno de personalidade.
Transtornos de personalidade são notoriamente difíceis de se remover do histórico das mulheres – mesmo na presença de evidências substanciais de serem diagnósticos nocivos ou incorretos. É amplamente acordado que transtornos de personalidade duram a vida toda e não têm cura. Estranhamente, porém, um estudo com centenas de pessoas diagnosticadas com borderline concluiu que 85% dos pacientes estavam em remissão há mais de dez anos, e que 12% tinham apresentado recaídas no mesmo período (Gunderson et al. 2011). O que nos interessa neste quadro é que, apesar de apresentar evidências de que os sintomas são temporários, a linguagem e a conceptualização do transtorno de personalidade significa que os profissionais jamais os considerarão “curados”, apenas “em remissão”, até que a inevitável “recaída” aconteça, devido ao transtorno.
Deveríamos parar e considerar, por um momento, quão importante é a linguagem medicalizante. Uma vez diagnosticada com um transtorno de personalidade, você apenas está em “remissão”, mas nunca “curada”. Quando e se você se vir em outra situação traumática, tal situação será encarada como uma “recaída”. Como escapar ao diagnóstico quando a linguagem e a teoria são tão circulares?
Uma abordagem trauma-informed simplesmente argumentaria que as mulheres são propensas a períodos em que suas capacidades de lidar com o trauma não interferem no seu dia-a-dia. Contudo, ter seus gatilhos disparados em novas situações traumáticas é comum e altamente provável. Nada disso sugere a presença de um transtorno de personalidade duradouro.
O borderline de hoje está para a antiga “histeria”. Meninas e mulheres conformam a maior parte dos diagnósticos, os critérios são tão vagos quanto o profissional da saúde desejar, e os resultados são anos de medicamentos, discriminação e tratamentos. Ussher (2013) o explica muito bem ao dizer que as mesmas mulheres que um dia foram queimadas como bruxas tornaram-se as histéricas trancadas em manicômios, e que hoje estão sendo diagnosticadas com borderline e medicadas para o resto da vida.
TRAUMAS DO ESTUPRO
Em 2018, eu trabalhei junto a um time de assistentes sociais britânicos que procuravam tornar sua prática com meninas adolescentes mais trauma-informed. Eles trabalhavam com crianças que haviam sido traficadas e exploradas sexualmente, de forma que a maioria dos casos eram meninas entre onze e dezessete anos que haviam sido aliciadas, estupradas, abusadas e traficadas por homens que moravam perto delas.
Um assistente social estava trabalhando com Jayden, uma menina de dezesseis anos que havia sido violentada por inúmeros homens em estacionamentos e hotéis em uma cidade vizinha. A princípio, a assistente descreveu Jayden como difícil, preguiçosa, avessa à escola e desconectada. Todavia, durante meu treinamento, discutimos questões acerca da patologização das adolescentes e ela me perguntou sobre a medicalização de meninas estupradas.
As atuais normas da NICE deixam claro que crianças abaixo de dezoito anos não devem ser medicadas para depressão e ansiedade – a pesquisa clínica demonstra que o uso de antipsicóticos gera uma gama de complicações médicas em crianças, incluindo ganho de peso, diabetes e letargia. Tal risco é de tamanha profundidade que as diretrizes lançadas em 2003, alertando médicos, pais e responsáveis acerca dos perigos da diabetes infantil causada pelos antipsicóticos, instruem a monitorar a criança continuamente, à procura de sintomas. A despeito de não haver testes que confirmem a segurança e a eficiência dessas drogas, em 2011 as prescrições de antipsicóticos para crianças sobraram e quintuplicaram para as idades pré-escolares (Harrison et al., 2012). Além disso, a maior parte das crianças a quem se prescreveram os medicamentos foram ensinadas que tinham “síndromes” ou “transtornos” que não requeriam medicação. Resumindo, médicos estão usando equivocada e propositalmente medicamentos para lidar com crianças cujos comportamentos são considerados problemáticos, como agressão, irritabilidade, humor depressivo e trauma (Harrison et al., 2012).
Eu e os assistentes discutimos a falta de evidências para medicar crianças traumatizadas por abuso, negligência e estupro. Discutimos que a maneira como estão sendo medicadas é muito mais barata, como um band-aid, do que meses de apoio e terapia.
Ao fim da sessão, a assistente falou que Jayden havia sido medicada com doses cada vez maiores por dois anos, entre os quatorze e os dezesseis, a partir do momento que fizera a denúncia à polícia, Os médicos começaram dando-lhe 20mg de sertralina por dia para tratar a ansiedade (um antidepressivo usado principalmente para adultos e crianças diagnosticados com TOC ou depressão profunda), mas não haviam observado melhora em seu comportamento e humor. Depois de algum tempo, a medicação chegou a 200mg por dia, e neste ponto a assistente descreveu que a menina “parecia um zumbi que dormia vinte horas por dia e era incapaz de sustentar um diálogo”. Ela deixou de ir à escola e não tinha sido capaz de completar o ensino médio. Ela reclamava, constantemente, de se sentir mal, ter sintomas incomuns e não conseguir se concentrar. Tornou-se reclusa e quase não saía do quarto.
Perguntei se Jayden recebera qualquer suporte ou terapia desde os estupros, e a assistente me contou que não havia nada disponível, pois a menina era “muito transtornada”. A assistente se inquietou e começou a chorar comigo, ao passo em que se deu conta de que ela, e diversos outros profissionais, haviam iniciado um processo que resultou em intensa medicalização e sedação de uma adolescente que estava sofrendo o trauma de múltiplos estupros.
Eu gostaria de que esta fosse a exceção. Mas existem hoje nos EUA e na Grã-Bretanha muitos casos exatamente como este.
Em 2020, trabalhei com outro time de especialistas em meninas que haviam sido sexualmente abusadas e exploradas. Uma das assistentes estava auxiliando uma menina de doze anos chamada Molly que não conseguia dormir depois de ter sido estuprada pelo pai. Neste caso, a profissional havia rejeitado o diagnóstico e a medicalização por meses, mas foi ignorada, pois não era médica. Assim, Molly foi diagnosticada com depressão profunda e distúrbio de sono, recebendo uma prescrição de melatonina.
No começo, o tratamento não teve impacto, e a menina reclamou de ataques de pânico, flashbacks e falta de sono. A prescrição de melatonina foi então redobrada, o que fez com que Molly dormisse mais à noite, mas ocasionou também episódios de sonambulismo, terrores noturnos, sudorese noturna, e episódios em que dormia em sala de aula, acordando aos berros. Molly atribuiu tais sintomas à melatonina e começou a recusá-la, o que fez com que fosse reenviada a especialistas da saúde mental e proteção à criança, que marcaram encontros entre a menina e os pais como forma de encorajá-la a tomar a medicação.
Molly contra-argumentou, dizendo que havia lido na internet que a melatonina pode causar efeitos colaterais e que não queria mais tomar; esta decisão foi encorajada pela profissional que então trabalhava com a menina. Ao invés de ser ouvida, Molly foi instruída a não acreditar em tudo que lê na internet; ninguém deu ouvidos à assistente que acompanhava o caso. A medicação continuou sendo administrada, apesar dos efeitos colaterais. Os pais foram, então pressionados a administrar a medicação. Molly, é claro, apesar de ter apenas 12 anos de idade, estava absolutamente certa. É muito provável que os sintomas estivessem sendo causados pela alta dosagem de melatonina combinada com o desprezo pelo trauma advindo do abuso paterno.
Temas recorrentes em exemplos como este incluem o desprezo crônico ao trauma advindo do abuso, ignorância sobre o tema, negligência aos danos causados às meninas e mulheres super-medicadas até se tornarem dóceis, cansadas e tão submissas quanto possível. Na maior parte dos casos como estes, as meninas e mulheres são submetidas a doses cada vez maiores de medicamentos em acabam por deixá-las letárgicas, confusas, assustadas, cansadas e com problemas de memorização. Por outro lado, elas passam a ser descritas como “mais calmas”, “capazes de dormir”, “menos controvertidas” e “mais fáceis de manejar”.
A situação tem similaridades notáveis com a maneira como os médicos descreviam as mulheres melancólicas: “é o tipo de dama com quem se gostaria de relacionar”, por estarem quietas e submissas na medida certa (Ussher, 2013).
Pode-se concluir, então, que ao invés de abordarmos os traumas das mulheres, enormes e complexos, há uma cultura de diagnosticá-las com transtornos mentais que as encoraja a se medicarem diariamente. Uma dos impactos mais prejudiciais desta prática é a subsequente internalização da culpabilização da vítima, as dúvidas a próprio respeito, frutos da descredibilização dos mecanismos e respostas das mulheres aos seus traumas reais, reputados como inválidos e irrelevantes. Pelo contrário, elas são tratadas como doentes mentais, em função de um “transtorno”, “desequilíbrio” ou “determinação genética”.
TRANSTORNOS RELACIONAIS
Não era suficiente patologizar os traumas, as personalidades e as reações das mulheres ao ter filhos em ambientes profundamente estressantes. Meninas e mulheres também precisam ser patologizadas e diagnosticadas com “transtornos relacionais” por décadas.
“Transtornos relacionais” dizem respeito à teoria das relações em geral; e a teoria das relações é uma daquelas teorias que gozam de longevidade, sem serem contestadas ou submetidas a pensamento crítico.
Nos anos 1930, John Bowlby estava atuando como psiquiatra (onde tratava de crianças com “transtornos emocionais” aplicando diversos tratamentos) quando começou a teorizar que as relações mais primárias que os bebês têm com suas cuidadoras (as mães) deixam uma marca duradoura nos filhos que pode alterá-los por toda a vida. Esta sugestão desencadeou milhares de estudos e inúmeras teorias sobre as relações humanas que foram denominadas teoria desenvolvimentista, trabalho social, psicoterapia e estudos do desenvolvimento infantil por décadas.
Bowlby argumentou que os bebês desenvolviam uma forma primária de se relacionarem com a pessoa que respondesse exata e rapidamente a suas demandas, e de o vínculo assim construído se tornaria uma fonte de segurança para explorar e compreender o mundo, desenvolvendo, a partir daí, relações com outras pessoas. Se este vínculo inicial não obtivesse sucesso por algum motivo (muitas teorias sobre as relações culpam as mães), acredita-se que a falta de segurança no vínculo primário terá consequências como menos inteligência ou mais agressão. Portanto, o vínculo primordial que o bebê desenvolve com a mãe é o protótipo para todas as outras relações e vínculos do sujeito para o resto da vida (Bowlby, 1969).
Em algum momento, isto resultou em um conjunto de teorias e modelos chamados “estilos de apego”. Pesquisadores sugerem que bebês desenvolvem um modelo interno e duradouro de apego, que serão usados para relacionamentos futuros ao longo da infância e da idade adulta (e inclusive quando se tornam pais e mães).
Estilos de apego
Apego seguro
Bowlby (1988) descreve o apego seguro como a capacidade de se conectar bem e com segurança em relacionamentos com outros e, ao mesmo tempo, ter a capacidade de agir autonomamente quando a situação é apropriada. O apego seguro é caracterizado pela confiança, uma resposta adaptativa ao abandono, e à crença de que se merece amor. As pesquisas mostram que 50% das crianças desenvolvem “apegos seguros”. (Moulin et al. 2014)
Apego evitativo
Crianças com apego evitativo tendem a evitar interação com cuidadores e mostram sofrimento durante separações. Isto pode ocorrer em consequência de os pais terem ignorado tentativas da criança de estabelecer intimidade, e a criança pode ter internalizado a crença de que não podem depender intimidade para esta ou qualquer outra relação. Pesquisas mostram que 20% das crianças têm apegos inseguros – ou evitativos. (Moulin et al. 2014)
Apego ambivalente
O apego ambivalente é caracterizado por uma preocupação de que os outros não corresponderão aos desejos do sujeito por intimidade. Isto pode ser causado quando a criança aprende que seus cuidadores ou pais não são confiáveis e não podem ofertar, de maneira consistente, reciprocidade afetiva ou respostas às suas necessidades. Pesquisas mostram que 25% das crianças têm apegos inseguros – ambivalentes e ansiosos.(Moulin et al. 2014)
Apego desorganizado
Main e Solomon (1986) descobriram que uma proporção considerável de crianças na verdade não se enquadrava nas três categorias supracitadas. Eles categorizam os divergentes como tendo um apego desorganizado. O apego desorganizado é classificado quando as crianças demonstram sequências de comportamentos que não possuem objetivos ou intenções observáveis, incluindo, obviamente, comportamentos contraditórios em seus apegos.Pesquisas mostram que 5% das crianças possuem apegos desorganizados. (Moulin et al. 2014)
Enquanto graduanda, profissional trabalhando com crianças, e depois como estudante de PhD, fui ensinada que o apego era um comportamento sólido, duradouro e imutável. Quando eu era bem mais jovem e isto me foi ensinado com autoridade, não questionei nada. Foi apenas trabalhando com mulheres de meninas e mulheres que comecei a questionar se a noção de um protótipo de apego vitalício era verdade.
Mas e as meninas que tiveram pais brilhantes, amorosos e seguros, e foram abusadas por seus namorados na adolescência, desenvolvendo medo de intimidade que dura por décadas?
E as meninas que foram estupradas e espancadas pelos pais, mas seguiram em frente e desenvolveram relações amorosas, estáveis e felizes com futuros companheiros?
E as meninas que foram traficadas e abusadas por ambos os pais, mas seguiram para famílias adotivas com quem tiveram apegos seguros, felizes?
E as mulheres que eu conheci que tiveram apego seguro com um companheiro, mas apego ansioso com outro? E as mulheres que demonstraram múltiplos tipos de apego de uma vez só?
E as meninas e mulheres que eram, por exemplo, seguramente apegadas à mãe, mas evitativas em relação ao pai, seguramente apegadas às amigas, mas ansiosamente apegadas aos namorados, e depois seguramente apegadas ao companheiro/a de vida?
Nada disso fazia mais sentido para mim. Certamente, o apego é dinâmico, fluido, mutável e influenciado ao longo de toda a vida? Certamente o “apego” depende de você já ter sido, ou não, aliciada e abusada? Algumas mulheres e meninas apresentam vínculos absolutamente seguros com o abusador que as prejudica e amedronta com frequência – o que a teoria diria sobre essas meninas?
Obtive minha resposta depois de anos trabalhando com essas meninas e mulheres – elas frequentemente eram diagnosticadas com transtornos de apego na adolescência ou na infância, e ouviam que seus transtornos as impactariam por toda a vida.
Transtornos de apego são definidos pelo DSM-V como “efeitos de perturbações significantes em vínculos, especialmente vínculos sociais, causados por abuso, negligência ou maus tratos prolongados durante a primeira infância. Os efeitos das perturbações são o oposto de um apego seguro”.
Essencialmente, o DSM diagnostica apegos inseguros como transtornos mentais que demandam tratamento. Enquanto a maior parte das crianças e adolescentes são encaminhados para a terapia, muitas outras recebem medicação, sugerida para “controlar questões comportamentais ligadas ao transtorno de apego”.
Transtorno de apego têm tantas comorbidades que a apresentação o quadro pode ser complexa e confusa. Medicação antipsicótica atípica e estabilizadores de humor, que não são tradicionalmente prescritos nestas situações, parecem o tratamento adequado para crianças com transtorno de apego e suas comorbidades.
Alston, J. The Psychiatric Times, 2007.
Muitas meninas que foram estupradas, abusadas sexualmente por familiares ou exploradas sexualmente e traficadas são diagnosticadas com transtornos de apego (entre outros). Isto se vê com frequência nos trabalhos de assistência social, proteção da infância e outros serviços que oferecem suporte às meninas e suas famílias. Meu trabalho em centros para vítimas de estupro, justiça criminal e tráfico significa que me deparei inúmeras vezes com esta afirmativa: todas essas milhares de meninas e mulheres tinham transtornos de apego que as afetariam para sempre. Os profissionais falavam delas como se elas estivessem quebradas e condenadas a relacionamentos falidos e a maternidades mal-sucedidas.
Conheci Holly alguns anos atrás quando ela estava trabalhando com Diana*. Diana tinha catorze anos e tinha recentemente tinha sido alocada em um programa de proteção após ter sido traficada pela mãe, pelo pai e outros membros da família para exploração sexual. Holly era uma profissional experiente e exausta, que sabia que Diana estava traumatizada, e rejeitou qualquer sugestão de que a menina estivesse mentalmente desequilibrada ou doente.
Diana tinha onze anos quando um grupo de adultos da família começou a abusar dela em encontros familiares. Fizeram vídeos e fotos do abuso que foram compartilhados on-line em redes de pedófilos. À medida em que crescia, a família levou Diana para hoteis e estacionamentos onde pessoas dos círculos on-line pagavam a família para abusar dela e estuprá-la.
Aos quinze anos, Diana foi tutelada pelas autoridades locais, que moveram uma ação contra os pais e a família. No abrigo, Diana não confiava em ninguém. Quando os profissionais demonstraram cuidado, atenção e respeito, ela os rejeitava e ficava na defensiva. Ela se recusava a ficar sozinha com quaisquer funcionários do local e parecia incapaz de formar vínculos saudáveis com eles. Na escola e no abrigo, Diana tinha dificuldades em manter amizades e outros relacionamentos. Se qualquer pessoa se aproximasse demais dela, ela os afastaria ou alegaria qualquer coisa sobre qualquer um, só para se manter sozinha.
Decorridos alguns meses, a equipe requisitou que Diana fosse encaminhada ao CAMHS, que a diagnosticou com borderline e transtorno de apego.
Holly me abordou e solicitou ajuda, falando de Diana eloquentemente. Ela me contou que, em seu entendimento, Diana estava respondendo com naturalidade a um trauma sério, e que nenhum de seus comportamentos era irracional ou transtornado. Eu concordei. Diana estava mostrando alguns sinais muito claros e óbvios de trauma, tentando se proteger, mas nenhum desses sinais era anormal ou desequilibrado. Na verdade, eram respostas inteligentes e racionais.
Ela se protegia cortando todos os acessos a ela. Ela se recusava a ser tragada por outra relação com um adulto que diz amá-la. Ela tirava de sua vida as pessoas que diziam se importar com ela e que diziam poder mantê-la em segurança. Ela usava acusações para manter a equipe longe dela.
O que ela estava fazendo era genial. Ela estava usando cada pedacinho do poder que lhe restara para se proteger a todo custo. Ela era uma jovem de quinze anos em uma unidade de segurança que a isolava de toda a sua família e de todos os seus amigos. Seus pais estavam sendo processados e ela havia sido estuprada e vendida milhares de vezes, ela esta a quilômetros e quilômetros de casa e de sua escola – e agora esses adultos desconhecidos estavam falando que ela era especial, que se importam com ela, que a amavam e que ela estava segura.
Os instintos de Diana estavam certíssimos. Ela estava fazendo a coisa certa. Ela usou todas as evidências de que dispunha sobre adultos que haviam mentido para ela, prejudicando-a, e agora estava usando tais evidências para se proteger de danos futuros. Isto não caracteriza transtorno de nenhuma natureza – as respostas dela eram racionais, justificáveis, passíveis de explicação, normais e naturais.
Eu iria mais longe, dizendo que medicar Diana e colocá-la numa terapia designada para “administrar” e “melhorar” seus apegos seria, em si, um abuso. Precisamos nos perguntar por que profissionais que desejam quebrar sua última barreira protetora. Por que gostaríamos de fazer com que ela desaprendesse tudo o que comprovou sobre os adultos que a aliciaram. Por que gostaríamos de pisar em seus instintos para que ela confie em adultos novamente.
É óbvio que esse tratamento nunca foi sobre Diana. É sempre em benefício dos profissionais e instituições. Eu vi casos de meninas tratadas como ela inúmeras vezes, o que me fez pensar por que gostaríamos tanto de extinguir sua resposta ao trauma de um jeito tão definitivo, e se esse tipo de tratamento não poderia ser considerado uma forma de gaslighting. Meninas que sabiam que os adultos estavam mentindo para elas, dizendo-lhes que estariam seguras e queridas, e que então as exploraram e prejudicaram – agora estamos dizendo a elas que têm transtornos mentais? Um transtorno mental que as impede de construir vínculos saudáveis, que precisa de medicamento e terapia? Estamos falando a elas que precisam “trabalhar isso”?
Essas meninas estão corretas em não confiar em nós. Eu jamais diminuiria esse instinto. Dada a horrenda história e presença da misoginia em nossas profissões, prefiro mesmo que não confiem em nós, que continuem críticas e que se protejam.
OS ARGUMENTOS POR TRÁS DE “TRAUMA CAUSA TRANSTORNOS MENTAIS”
Uma das respostas mais comuns que recebo ao dar aulas, palestras ou escrever sobre esses exemplos são pessoas que me escrevem para dizer que estou errada, e que alguém que elas conhecem tem, ou elas mesmas têm, diversos diagnósticos de transtornos psiquiátricos, mas que nunca foram “traumatizadas”. Eu recebo demais essa resposta. As pessoas genuinamente acreditam que elas nunca foram submetidas a uma única experiência traumática ou estressante, e que não há nada (ou ninguém) em seu convívio que as está machucando, e que seus transtornos mentais são apenas desequilíbrios químicos anormais em seus cérebros, e que ninguém as pode explicar ou curar.
Em minha experiência profissional, menos de uma hora na presença de uma pessoa assim me fará descobrir anos de lutas, preocupações, medos, raiva, perdas, injustiça, trauma, sofrimento, discriminação e abuso que elas nunca ligaram a seus sentimentos e pensamentos. É, na verdade, muito comum que as pessoas comecem a procurar serviços de apoio ou terapia seguras de que sabem o que as incomoda e como resolvê-lo, e acabam concluindo que há algo muito mais complexo, enterrado no fundo delas mesmas e que nunca recebeu reconhecimento ou suporte.
Algumas, por sua vez, irão descartar grande parte de meus argumentos e o conteúdo deste livro, dizendo que o trauma causa psicose, transtornos de personalidade e questões de saúde mental – e essas duas são são mutuamente excludentes. Algumas pessoas argumentarão que o jeito de separar transtornos psiquiátricos de traumas como a raíz dos transtornos emocionais e comportamentais é útil e não é profissional. E alguns, ainda, dirão que esse tipo de distinção é prejudicial.
Porém, como este livro demonstra, você não pode divorciar a opressão e o abuso da psiquiatria das raízes dos transtornos, critérios diagnósticos e tratamentos. A tradição inteira e a disciplina da psiquiatria jaz sobre a criação de vítimas e no convencimento destas de que elas são doentes mentais necessitadas de meses ou anos de tratamento.
A mensagem moderna que encoraja a “desestigmatizar a saúde mental” é, por isso, um oxímoro. É impossível “desestigmatizar” pessoas que estão sendo estigmatizadas por diagnósticos psiquiátricos que as denomina anormais e transtornadas. A definição de “estigma” é “a percepção de que certo atributo de uma pessoa faz dela alguém inaceitavelmente diferente ou anormal em relação às outras, levando à discriminação e ao preconceito”. Esta não seria toda a estrutura da psiquiatria? Não seria a psiquiatria apenas um meio legitimado de estigmatizar e isolar pessoas que são profundamente diferentes?
Não se pode mitigar um estigma se o sistema se baseia na estigmatização.
Não podemos normalizar as condições que o sistema determina que são anormais e que precisam de intervenção médica.
O processo de diagnosticar um paciente com um quadro psiquiátrico retirado do DSM consiste em diagnosticá-lo com um “transtorno” que o secciona em relação ao resto da sociedade como sendo mentalmente doente, em necessidade de tratamento, supervisão, controle, acompanhamento médico. São diagnosticados e, por isso, estigmatizados. A única maneira de se acabar com o estigma é cessar a fabricação de diagnósticos e focar mais em abordagens humanísticas, centradas na pessoa, não-patologizantes.
Trauma é trauma. As respostas ao trauma são naturais, normais, racionais e justificáveis. O trauma constitui uma função física, social e psicológica importante. O trauma não causa transtornos de personalidade. Não causa problemas psiquiátricos. Não causa criminalidade. Não causa transtornos de apego.
Em 1998, as pesquisadoras Felitti et al. se propuseram a estudar as experiências adversas na infância (ACEs) a fim de saber se estas poderiam indicar consequências futuras no estilo de vida, saúde e morte. Em uma amostra de 9.500 adultos, encontraram que aqueles que foram sujeitos a abusos na infância estavam mais propensos a cometer crimes, morrer de câncer ou diabetes, serem mães na adolescência, abusarem sexualmente dos próprios filhos, fumar, beber em excesso, tornarem-se desempregados e ter doenças crônicas.
Ou é assim que se acredita.
Falo em “acreditar” pois é nisto que os ACEs se transformaram. Uma crença. Uma lenda. Um mito. Um pacote de mentiras.
Em um prazo curtíssimo, os estudos e achados se tornaram folclore. A grande imprensa, websites, conferências, pessoas públicas, influenciadores digitais, treinadores de cowboys e oportunistas se tornaram autoridades em ACEs e, da noite para o dia, havia uma indústria inteira de pessoas que sequer haviam lido as sugestões experimentais da relação entre abuso na infância e saúde física em nível populacional.
Os ACEs se baseiam em milhares de profissionais predominantemente brancos, de classe média, trabalhando para a Kaiser-Permanente nos EUA na década de 1990. Nasceram de alguns achados interessantes na década de 1980 que ligavam obesidade a outros problemas de saúde e fatores sócio-econômicos. Ela uma amostra muito específica, extraída em um momento específico. A análise dos dados não foi baseada em indivíduos, mas em tendências de distribuição em uma amostra grande de pessoas (que é a definição de um estudo epidemiológico). O objetivo do estudo não era prever desfechos, nem fazer inferências sobre crianças ou adultos específicos. Na verdade, os estudos nunca incluíram crianças nas amostras, uma vez que a premissa para participação no estudo era de que todos os participantes fossem adultos.
O estudo só continha dez experiências adversas possíveis, porque, de acordo com os autores, o objetivo não era rastrear os traumas, nem se destinava a ser aplicado em indivíduos – tratava-se apenas de uma seleção de dez formas possíveis de abuso e negligência para explorar os dados em uma escala populacional a fim de investigar as relações entre traumas na infância e complicações de saúde ulteriores.
As dez experiências adversas são limitadas e falhas de muitas maneiras. Elas incluem abuso sexual, físico, verbal, negligência, encarceramento do pai ou mãe, divórcio dos pais, adicção ou dependência química de um dos pais, e um familiar com “transtorno mental”.
Por exemplo: os pesquisadores incluíram abuso sexual apenas se o violador dosse cinco anos mais velho que a vítima, ou mais. Incluíram violência doméstica apenas se a mãe fosse a vítima. Os únicos impactos rastreados se circunscrevem ao lar. Reputar a mesma importância para o abuso sexual e o divórcio dos pais, e equipararam o encarceramento de um dos pais a negligência.
Não foram incluídas adversidades como pobreza, racismo, homofobia, sexismo, bullying, exílio, a condição de refugiado, doença crônica, pessoas em situação de rua, acidentes ou ferimentos sérios, deslocamento populacional compulsório ou outras formas de crime e iniquidade.
Não se trata de dizer que o estudo seja de baixa qualidade, mas que estava interessado em apenas dez adversidades específicas para sua investigação em escala populacional. O estudo não era exaustivo sobre as formas de trauma, nem se pretendia a explorar as diferentes maneiras pelas quais as crianças podem ser abusadas e oprimidas. Isto quer dizer que os questionários de ACE excluíram algumas das adversidades mais comuns do mundo – não se destinando a ser instrumentos de investigação e mensuração do trauma.
Foi ficando mais claro com o tempo que os profissionais não tinham lido o estudo e não tinham entendido se tratar de uma análise epidemiológica. Os profissionais e políticos, porém, inventaram diversos achados que nunca foram reportados por quaisquer pesquisadores.
Um dos mais notáveis é o vídeo do Departamento de Saúde do País de Gales sobre conscientização acerca dos ACEs. No desenho, que alcançou mais de um milhão de visualizações das redes sociais, repete-se a afirmação de que meninas vítimas de adversidades vão se tornar mães na adolescência ou são filhas de mães adolescentes. Não apenas o vídeo retrata uma família pobre e vulnerabilizada, mas produz um retrato que esconde o óbvio: meninas que se tornam mães antes dos dezesseis foram vítimas de estupro.
Ao invés de abordar o problema (violência masculina contra meninas), mas mães adolescentes são colocadas no centro do problema como multiplicadoras de ACEs – um ciclo que não pode ser quebrado. É um trauma intergeracional, genético e determinístico do qual não conseguirão escapar. Como se suas gravidezes fossem o resultado de uma concepção milagrosa causada pelo próprio trauma.
E esta não é a única informação equivocada no vídeo, que eu critiquei em meu canal no Youtube em 2020. O vídeo afirma que as adversidades na infância causam danos cerebrais irreversíveis em crianças, tornando-as raivosas e incapazes de controlar emoções. Isso sugere que crianças que passaram por “adversidades” se tornarão criminosos, alunos relapsos, fumantes, alcoólatras, perpetradores de abuso doméstico e desempregados.
A culpabilização das mães no vídeo é, ainda, algo a ser pontuado.
Ao longo da animação, cujo título é “Experiências adversas na infância – País de Gales”, o personagem masculino conta a história ds ACEs, nas quais ele é submetido a abuso e negligência quando criança, tornando-se um adolescente violento, abusivo e mau aluno, tornando-se um obeso, fumante, alcoólatra, careca, ignorante, desempregado e criminoso que morre de falência cardíaca e câncer.
A mãe de seus filhos – e sua própria mãe, na história – é apresentada como depressiva, incapaz, alguém que precisava de ajuda para lidar com o abuso que sofria do marido, e que precisava de ter lido mais histórias para o filho e lhe comprado mais brinquedos. Isto o teria consertado. O personagem conta que a polícia teve de ir a sua casa “ter uma palavrinha” com sua mãe, exortando-a a protegê-lo melhor do pai abusivo, bem como ensinando-lhe que ela precisava aprender a lidar com a situação quando ficasse “pesada demais”.
A desinformação sobre as ACEs se espalhou com sucesso no Reino Unido, EUA, Nova Zelândia, Suécia, Canadá e outros países por quase uma década.
Isto não se deu porque os autores tivessem obscurecido seus achados ou se precipitado a conclusões que só seriam viáveis mediante uma ginástica mental. Eles não deram informações errôneas, nem encorajaram esse alastramento de presunções e patologizações das pessoas que passaram por experiências adversas na infância.
Na verdade, em julho de 2020, os autores do estudo original conduzido em 1998 se pronunciaram no American Journal of Preventive Medicine para esclarecer a situação: seu trabalho estava sendo deturpado para patologizar e antecipar os diagnósticos de crianças e adultos vitimizados por abuso e negligência.
Ainda assim, enquanto escrevo isto em 2021, o uso das ACEs ainda goza de uma reputação positiva crescente como se tivesse sido baseado em evidências, como se fosse trauma-informed, útil para mulheres e meninas vítimas de violência sexual e abuso na infância.
As “pontuações” de ACEs (de zero a dez, baseadas no original, plagiadas do trabalho de Felitti et al. 1998), são usadas para “pontuar” adultos e crianças numa escala de ACEs, mensurando a quanta adversidade foram expostos. Os pontos são utilizados para prever possíveis comportamentos das vítimas ou mudar os serviços aos quais têm direitos. Em geral, “é sabido” que uma pontuação acima de 4/10 resultará em saúde e educação precárias, criminalidade, transtorno mental e dependência.
Por favor, observem que “é sabido” foi usado aqui para denotar a presunção generalizada entre os profissionais de que isto seja verdade, apesar da ausência de evidências – e apesar de toda a premissa ser a má interpretação de um estudo que nunca se propôs a induzir tal pontuação iy categorizar indivíduos dessa forma.
Tais pontuações causaram e ainda causam danos não relatados. Para aqueles grupos cujos traumas foram historicamente marginalizados e minimizados, o mau uso das ACEs e suas pontuações apenas incrementou a marginalização, ignorando a opressão, o trauma racial e a perseguição.
A PATOLOGIZAÇÃO DE MULHERES E MENINAS VIA ACEs
Em 2016 participei de uma reunião no norte da Inglaterra para discutir como fazer a autoridade legal fornecendo serviços sociais ser mais trauma-informed. Um administrador começou a descrever o novo programa piloto que eles tinham desenvolvido, pegando as pontuações ACEs de mulheres grávidas que faziam exames a cada doze semanas. Olhei por detrás do meu computador. Me perguntei aonde estávamos indo com aquela conversa. Eles estavam monitorando mulheres grávidas para conhecer seus traumas de infância, para lhes oferecer um suporte adequado? Para oferecer planos de parto trauma-informed? Para nos assegurarmos de que teriam apoio adequado caso os procedimentos médicos disparasse seus traumas?
Nada disso.
Eles estavam rastreando as mulheres e meninas grávidas, pontuando seus ACEs, como parte de um programa piloto que colocaria milhares de bebês ainda por nascer em uma lista de “gravidezes de risco”, e começariam a investigar se as mães eram ou não capazes de manter seus filhos.
Aqui, a presunção precisa ficar clara: mulheres que foram abusadas na infância não se tornam mães adequadas e seus bebês estão em risco.
Eu não tenho uma “cara de paisagem”, então provavelmente ficou claro que eu estava chocada e abalada diante dessa intervenção. Passei algum tempo explicando por que esta abordagem não era trauma-informed, e na verdade era bem o oposto: era patologizador e traumático. Depois de minha persuasão, o piloto foi encerrado, e meu contrato foi igualmente encurtado – mas, durante a escrita deste livro, não consegui saber quantos bebês foram colocados na lista, quantos bebês entraram para o registro de crianças em situação de risco, quantos foram retirados de suas mães e não sei como acessar esses dados.
Existem inúmeros outros exemplos de como os ACEs são erroneamente usados para oprimir e patologizar mulheres.
Em 2020, recebi a mensagem de uma jovem de vinte e quatro anos que me relatou ter sido estuprada na adolescência e sofrido abuso na infância. Um assistente de caridade completou um questionário de ACEs com ela quando ela tinha dezessete anos, e sua pontuação foi de 8/10. O assistente informou-a de sua pontuação dizendo-lhe que isso acarretava altas chances de ter câncer, diabetes, obesidade, suicídio, criminalidade e desemprego.
Ela me disse por mensagem que havia desistido de cursar a universidade, aceitando que sua vida fora destruída pelo abuso na infância. Ela era boa aluna na escola, mas sua pontuação em ACEs fez com que se sentisse danificada para a vida toda.
Agora, aos vinte e quatro, ela me contactava dizendo que assistira alguns de meus vídeos sobre ACEs sendo usados erroneamente e conduzindo a resultados equivocados; e disse que eu fiz com que ela percebesse que poderia ter, afinal, ido para a universidade. Ela se candidatou, como uma aluna madura, naquele mesmo dia.
Embora esta possa soar como a história de sucesso de uma abordagem trauma-informed, capaz de informar a respeito de uma abordagem patologizante e superá-la, o que me chama atenção é o fato de que ela passou sete anos de sua vida achando que não era boa o suficiente para o ensino superior porque foi equivocadamente informada por um profissional que se julgou versado o suficiente para ensiná-la quão cedo ela morreria por conta de uma pontuação ACE.
Como foi que as ACEs ganharam a reputação de aliados das mulheres e meninas enquanto eram usados para oprimi-las e patologizá-las assim?
A resposta é tão simples quanto irritante: é um método sedutor, bem mais fácil do que validar anos de trauma.
Profissionais acreditaram genuinamente, entre suspiros e desinformações, que poderiam dar a meninas e mulheres uma “pontuação de trauma” de um a dez, que poderia prever seus futuros e informá-las sobre quais serviços procurar.
É rápido. É fácil. Requer pouco esforço intelectual ou compaixão. Reduz humanos a uma escala.
Ela é um dois. Vai se safar.
Ela é um cinco, precisa de terapia e medicação.
Ela é um sete, é melhor fazer uma triagem dos riscos que oferecerá ao bebê quando se tornar mãe.
Ela é um nove. Caramba, como é que ela ainda está viva?
Na Austrália, as ACEs já estão sendo usadas por companhias de seguro para rastrear as pessoas que contraem planos de saúde e seguros de vida. Diversas vezes por mês, recebo e-mails de australianas que foram recusadas por serviços de saúde vitais por conta de suas ACEs montarem alto demais.
Tenho alertado profissionais por muitos anos de que isso poderia vir a acontecer no Reino Unido, e de que as companhias de seguro começariam a usar adversidades na infância e traumas para impedir que mulheres acessassem planos de saúde – tudo baseado na presunção de que a “ciência” poderia prever seus riscos para doença, suicídio, automutilação e criminalidade.
No verão de 2021, a ativista e sobrevivente de Rotherham, Sammy Woodhouse, twittou publicamente que, de todas as companhias de seguro do Reino Unido, apenas uma estava disposta a lhe oferecer um seguro de vida, por conta de seus traumas e experiências sendo traficada na infância para exploração sexual.
Se a patologização de meninas e mulheres já não fosse problema suficiente gerado pelo uso equivocado de ACEs, percebi em 2019 que mais e mais criminosos estavam tentando se safar de suas penas reivindicando as ACEs. Vi isso acontecendo nas redes sociais, na imprensa, ouvi isso em discussões de caso entre profissionais. Oficiais trabalhando com criminosos em condicional demonstraram preocupação sobre as ACEs em seu serviço, pois está-se reivindicando que investiguem as pontuações em ACEs de estupradores e homens que espancam mulheres, oferecendo apoio a esses homens.
Se, por um lado, estou disposta a reconhecer que todos têm o direito humano ao apoio e à segurança, minha preocupação envolve a maneira como os ACEs estão sendo usados para explicar a violência masculina – homens afirmando que suas motivações para serem violentos e abusivos são suas experiências adversas na infância.
Em 2020, ouvi falar de um homem (se é que se pode chamar e-mails abusivos e repetitivos, por dias a fio, “ouvir falar”) que apoiava a ideia de ACEs. Ele vira uma de minhas palestras que se opunha a essas ideias e me escreveu para compartilhar o que achava de minha abordagem. Ele havia construído um negócio em torno das ACEs, oferecendo suporte e treinamento, e acreditava que as ACEs explicavam adequadamente seu próprio comportamento criminoso, seus relacionamentos turbulentos e seu tempo na prisão. Ele não tinha experiência prévia no campo da saúde mental, sua experiência profissional era a de um comerciante.
Quando respondi afirmando que as experiências adversas na infância não levam adultos a tomar a decisão de abusar, prejudicar ou violentar outro ser humano, ele ficou, obviamente, raivoso, e me mandou quase cem mensagens em todas as redes sociais, uma vez que me recusei a levar a conversa adiante. A verdade doi. Milhões de meninas e mulheres são estupradas, abusadas, traficadas, prejudicadas, violadas e discriminadas na infância e, ainda assim, elas perfazem um ou dois por cento de todos os criminosos violentos ao redor do globo. Estatisticamente, portanto, isto sugere que não existe relação entre experiências adversas na infância e criminalidade, a não ser que estejamos falando de violência masculina.
Meninas e mulheres são significativamente mais propensas a serem abusadas e traumatizadas na infância, de forma que elas deveriam representar a maior parte dos criminosos violentos, superando homens e meninos numericamente no mundo todo. E mesmo assim, elas conformam uma fração mínima de criminosos violentos em escala mundial. O folclore em torno das ACEs em torno de crianças abusadas se tornarem criminosos violentos não sobrevive à matemática básica e à lógica.
Abusar, violentar, prejudicar, oprimir, estuprar e agredir pessoas é uma escolha ativa – não um resultado predeterminado de uma infância adversa.
A história das ACEs é a história de um questionário roubado, usado equivocadamente, hoje aplicado para dar pontuações arbitrárias sobre adversidades na infância, usado para patologizar meninas e mulheres e expiar a culpa de homens e meninos violentos.
TAYLOR, Jessica. “Reframing women’s trauma as mental illness”. Sexy but psycho. London: Constable, 2022. Tradução: @taticafeminista ↩︎
Transtorno de personalidade emocionalmente instável (N da T). ↩︎
NHS, National Health Service, é a rede de prestação de serviços em saúde oferecidos gratuitamente pelo governo da Grã-Bretanha em território nacional. (N da T) ↩︎
Adverse childhood experiences, em português experiências adversas na infância. A sigla será mantida em seu original anglófono, visto que é desta forma que os profissionais da saúde o utilizam em publicações científicas no Brasil. ↩︎
REFERÊNCIAS
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Bowlby, J. (1988) A Secure Base: Parent-Child Attachment and Healthy Human Development, New York, Basic Books.
Felitti, V. J., Anda, R. F., Nordenberg, D., Williamson, D. F., Spitz, A. M., Edwards, V., Koss, M. P. & Marks, J. S. (1998) ‘Relationship of childhood abuse and household dysfunction to many of the leading causes of death in adults. The Adverse Childhood Experiences (ACE) Study’. American Journal of Preventive Medicine, 14(4), 245–258. https://doi.org/10.1016/s0749-3797(98)00017-8
Gunderson, J. G., Stout, R. L., McGlashan, T. H., Shea, M. T., Morey, L. C., Grilo, C. M., Zanarini, M. C., Yen, S., Markowitz, J. C., Sanislow, C., Ansell, E., Pinto, A. & Skodol, A. E. (2011) ‘Ten-year course of borderline personality disorder: psychopathology and function from the Collaborative Longitudinal Personality Disorders study’. Archives of General Psychiatry, 68(8), 827–837. https://doi.org/10.1001/archgenpsychiatry.2011.37
Harrison, J. N., Cluxton-Keller, F. & Gross, D. (2012) ‘Antipsychotic medication prescribing trends in children and adolescents’. Journal of Pediatric Health Care: official publication of National Association of Pediatric Nurse Associates & Practitioners, 26(2), 139–145. https://doi.org/10.1016/j.pedhc.2011.10.009
Main, M., & Solomon, J. (1986) ‘Discovery of an insecuredisorganized/disoriented attachment pattern’. In T. B. Brazelton & M. W. Yogman (Eds.), Affective Development in Infancy (pp. 95–124). Ablex Publishing.
Moulin et al. (2014) Baby Bonds: Parenting, Attachment, and a Secure Base for Children, University of Bristol.
Timoclea, R. (2020) ‘Demonic Little Mini-skirted Machiavelli’: Expert conceptualisations of complex post traumatic stress disorder (CPTSD) and borderline personality disorder (BPD) in female forensic populations, VictimFocus, UK.
De Janice Raymond, traduzido livremente de A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection.1
Para colocar de forma direta e simples, a Segunda vinda da Caça às Bruxas empregará métodos diferentes. Desta vez, as mulheres são treinadas e legitimadas a fazê-lo umas às outras.
Mary Daly, Pure Lust
A amizade não elimina a distância entre as pessoas, mas a torna vibrante.
Walter Benjamin, Understanding Brecht
Se eu não estou por mim mesma, então quem está por mim? Se eu estou apenas por mim mesma, então quem sou eu?
Rabbi Hillel, Ditos de pais judeus [sic]
Existem diversos impedimentos para a amizade feminina. Um trabalho sobre amizades femininas deve evitar a romantização do assunto, expondo tais obstáculos a uma consideração severa. Tais obstáculos estão presentes entre diferentes tipos de mulher – aquelas que são feministas e aquelas que não se definem como feministas. Na verdade, entre os dois grupos de mulheres, os obstáculos têm sido surpreendentemente semelhantes em seus padrões.
O mais flagrante obstáculo à amizade feminina é o popular adágio patriarcal de que “as mulheres são, elas próprias, suas piores inimigas”. Tal tema possui muitas variações, e um refrão de vozes masculinas através dos séculos ecoou nas palavras de Jonathan Swift: “Eu nunca conheci uma mulher tolerável que apreciasse suas iguais”. Seria fácil desmantelar tal refrão sublinhando o sexo de quem o elaborou, ou enfatizando a inadvertida pista dada por Given: de que mulheres que os homens definem como “toleráveis” não admiram suas semelhantes. Logo, mulheres se desidentificam umas com as outras com a intenção de se tornarem “toleráveis” aos homens.
Todavia, mulheres reproduzem palavras semelhantes. Um estudo elencando atitudes de mulheres em relação à amizade feminina revelaram o seguinte. De uma secretária: atribuir muita importância a um vínculo com outra mulher é pueril; de uma programadora, “será visto como lesbianismo latente”.2 Seria fácil ignorar essas vozes dizendo que mulheres internalizam atitudes dos homens sobre elas mesmas, e sobre suas relações com outras mulheres. O problema está em que, embora isso possa ser considerado por um lado pela causa antifeminista, isso não atenua a terrível realidade de mulheres-odiando-mulheres quando isso se abate sobre suas próprias vidas. É sobre a materialidade desse comportamento que este capítulo tratará.
Bradando a mensagem hetero-relacional de que “as mulheres são, elas próprias, suas piores inimigas”, homens têm garantido que muitas mulheres se tornem, efetivamente, as piores inimigas umas das outras. Os obstáculos à amizade feminina têm grande repercussão. A mensagem funciona como uma constante poluição sonora nas vidas das mulheres e pode ser ouvida em diferentes lugares. Esse constante barulho sobre mulheres odiando mulheres é suplementado pelo silêncio histórico que cerca as mulheres que sempre amaram mulheres. Trata-se de uma dupla mensagem que estrangula o crescimento do ginoafeto. Mulheres precisam estar alertas sobre os contextos nos quais essa dupla mensagem surge, assim como acerca dos mecanismos do funcionamento dessa mensagem para blindar a evolução da amizade feminina.
Enquanto eu escrevia este livro, pedi a estudantes, amigas e várias outras mulheres que fizessem uma lista do que consideravam as barreiras básicas do ginoafeto. Tais listas foram longas, embora mulheres tendessem a caracterizar os mesmos obstáculos com matizes diferentes. O que, contudo, pude concluir é que apesar de os obstáculos materiais variarem nos diferentes grupos de mulheres, os contextos de onde surgem são bastante comuns a todas as mulheres. Logo, se é verdade que contextualizar o objeto o ilumina, então falar sobre os contextos em que os obstáculos ao ginoafeto surgem é um passo importante na direção da erradicação mesma dos obstáculos.
A amizade dá às mulheres um porto seguro para se localizarem no mundo. Ela dá forma, feições, uma localização concreta para mulheres que não têm um Estado ou uma origem geográfica e, de fato, nenhum gueto territorial ou diáspora como ponto de partida para ação. A amizade dá às mulheres um mundo comum que se torna um ponto de referência para localizarem-se num mundo maior. O compartilhamento de visões em comum, atrações e energias dá às mulheres a conexão com o mundo de forma que não perdem seu prumo. Assim, o compartilhamento da vida pessoal é ao mesmo tempo a base para uma existência política. Pelo mesmo emblema, qualquer iniciativa que milite contra o Ser da mulher no mundo – contra um internacionalismo feminino – subjuga as fortes amizades femininas que têm consequências políticas, leia-se, ginoafeto.
Infelizmente, os contextos nos quais cada mulher vive sua vida realçam nosso estado de “expatriadas” mais do que nosso internacionalismo. Nenhum internacionalismo feminino ou amizade feminina pode prosperar ou aprofundar-se nos contextos onde somos dissociadas do mundo, assimiladas pelo mundo ou vitimizadas pelo mundo. A partir do momento em que tais contextos prevalecem sobre as vidas de diversas mulheres, os obstáculos ao ginoafeto igualmente se expandem. Nossa falta de internacionalismo produz nossa falta de amizade.
Dissociação do mundo
Uma vez que mulheres têm sido eternas vítimas da tirania masculina, uma vez que a sobrevivência se tornou o foco da existência feminina e das políticas feministas, uma vez que mulheres, em quase todo lugar, estão alienadas da participação política, e porque o mundo foi feito por homens, muitas mulheres desenvolvem um sentimento de dissociação do mundo. Hannah Arendt, mais do que a maior parte dos filósofos, discutiu o conceito de “sem-mundo”.3 Ainda que, originalmente, tal conceito tenha sido pensado e desenvolvido no contexto histórico dos judeus e do judaísmo, tal conceito possui grande relevância para mulheres e para o feminismo hoje.4
Mulheres, em geral, têm tomado para si a condição de “sem-mundo” como a regra, isto é, em virtude da posição derivada e passiva na qual têm sido forçadas através da história e em quase todas as culturas. A dificuldade em ambos os casos é que, quando a dissociação em relação ao mundo se torna o próprio modo de existir – como no exemplo anterior, no qual mulheres extraem muito de seu significado a partir da realidade de maridos, amantes, pais ou chefes, raramente experimentando o mundo de maneira direta, ou como no caso de algumas separatistas, que fazem da dissociação a base da afinidade com outras mulheres – a existência feminina se tornou segregada do resto do mundo. Filosoficamente, isto pode tornar as mulheres estreitas em sua visão de mundo; politicamente, pode torná-las vulneráveis.
Em um mundo que vê a mulher como supérflua, isto é, desnecessária, marginal, sem importância e dispensável, as mulheres acabam por adicionar a dissociação a essa condição. Quanto mais as mulheres se dissociam, mais catastróficos são os efeitos dessa dissociação – quanto mais afastadas as mulheres estão de uma participação definitiva, plena, naquilo que deveria ser um mundo compartilhado por todos.
É importante ressaltar que não estou identificando a dissociação com a necessidade que as mulheres têm de viver à margem de uma sociedade heterorrelacional.5 Mulheres sempre serão “estrangeiras” nessa cultura, como Virginia Woolf, entre outras, já sabia. No entanto, existe uma dissociação, uma sensação de estar sem-mundo em relação ao patriarcado. E essa sensação é sentida mundialmente. A dissociação que critico não é aquela das mulheres que se associam à parte para depois afetarem o mundo dito real. É, na verdade, a dissociação que proclama a remoção das mulheres deste mundo. Ela é geralmente acompanhada de uma “mobilidade para baixo”, seja em termos financeiros, seja em termos mentais.
Essa dissociação cria, comumente, uma apatia em relação à existência política, intelectual e financeira, bem como uma apatia em relação à aparência física, que se torna o símbolo de abandono para o mundo feito pelo homem. Ela se comporta como se dinheiro e status fossem coisas que as mulheres já possuem ou que poderiam possuir se assim desejassem, e que pudessem, por isso, ser descartadas e facilmente readquiridas. Essa atitude acaba tornando o patriarcado uma “desculpa” para racionalizar a inação de não procurar emprego, não ir à escola e não tomar iniciativas no âmbito econômico ou profissional, que colocariam a mulher em um lugar no mundo “real”.
A dissociação exclui as mulheres do acesso ao mundo. Consequentemente, as mulheres são privadas do poder, do dinheiro, da interação com outras pessoas e das condições mais básicas de uma participação plena no mundo. A dissociação ilude as mulheres, fazendo-as acreditar que podem se retrair para um lugar tranquilo onde preservam uma aparência de liberdade. No entanto, como apontado por Arendt, essa instância leva à “liberdade e inalcançabilidade dos excluídos”.6
Uma feminista politicamente dissociada pode desempenhar um papel revolucionário entre outras feministas que pensam de forma semelhante, mas que não ameaçam efetivamente o ethos do macho dominante. Ela permanece uma excluída do mundo, e não uma rebelde à margem dele.
Por outro lado, a dissociação do mundo que não é escolhida por razões feministas, conscientemente definidas – isto é, uma interpretação do mundo que venha para as mulheres filtrada pelo olhar masculino – é reforçada pelo fato de que as mulheres não se compreendem como um povo. Diferentemente de outros grupos oprimidos, as mulheres não possuem um passado que sirva como elemento de coesão e consciência de comunidade, com suas próprias tradições políticas, filosóficas e históricas – ou será possível dizer que tal passado é algo sobre o qual as mulheres sabem pouco, mas que existe? A condição da mulher, sem raízes intrínsecas em seu próprio grupo identitário enquanto mulheres, contribui mais do que tudo para a nossa condição de sem-mundo e para a percepção irrealista e apolítica que a maior parte das mulheres têm do mundo. Essa falta de raízes também é a causa da falta de amizade entre mulheres, a amizade que seja verdadeiramente um ginoafeto, uma virtude política.
O ginoafeto não pode ser sustentado onde as mulheres estejam livres do fardo de carregar o mundo nas costas7, pois o ginoafeto é uma virtude política com um efeito político. A existência feminina, especialmente a existência feminista, não pode ocorrer fora da esfera política da sociedade.
Uma verdadeira amizade feminina, forte e crítica, que busque retomar o poder de intervir no mundo e modificar a realidade, não pode ser construída entre mulheres que estão dissociadas e têm pouca compreensão ou interesse no mundo exterior. Qualquer comunidade que se dissocie do mundo maior não pode participar plenamente desse mundo.
A dissociação do mundo leva à dissociação das mulheres. Isso limita o ginoafeto a comunidades separadas que se retiram do mundo. Como resultado, ele perde seu poder político e se torna uma escolha individual. Embora as mulheres possam ganhar força através de uma dissociação radicalmente escolhida e sustentada, como Hannah Arendt nos lembra, “a força não é o mesmo que poder político. O poder surge apenas quando as pessoas agem em conjunto, não quando se fortalecem individualmente. Nenhuma força é forte o suficiente para substituir o poder; quando a força é confrontada pelo poder, ela cederá”.8
A dissociação como uma escolha radical é tentadora, uma vez que as mulheres enfrentam constantemente um mundo criado por homens. Ignorar a Babel que sustenta uma Babilônia feita por homens pode ser ainda mais tentador. No entanto, muitas mulheres optam por fazer isso, assumindo os riscos que essa decisão traz.
Mulheres que se dissociam do mundo, seja por uma escolha política consciente ou por uma sensação de alienação em relação ao mundo dos homens, precisam encontrar algo para substituir esse mundo. Muitas vezes, elas recorrem à terapia como uma forma de buscar apoio, compreensão e significado.
1.1. Terapismo: a tirania dos sentimentos
O termo terapismo é aquilo que já descrevi antes como “terapia como um estilo de vida”.9 O fenômeno do terapismo tal como se manifesta entre mulheres e no seio de comunidades femininas, inclui não apenas frequentar a terapia, o que inclui frequentá-la por anos, mas relacionar-se com outras mulheres em contextos terapêuticos. Terapismo é uma supervalorização dos sentimentos. Pensando de maneira materialista, é a tirania dos sentimentos, na qual as mulheres vêm a acreditar que, o que realmente conta sobre elas e sobre suas realidades, é sua “psicologia”. E a partir do momento em que elas não sabem o que de fato significa “psicologia”, elas passam a se submeter a outros que dizem saber – o psiquiatra, conselheiro ou analista. Neste sentido, podemos afirmar que o terapismo promove uma hipocondria psicológica entre mulheres, que acabam por se tornar a maior parte da demanda de saúde emocional.
Existem, é claro, circunstâncias nas quais as mulheres buscam a ajuda psicológica necessária de fato. Não critico o uso genuíno da terapia. Todavia, parece haver pouco reconhecimento em torno do fato de que a terapia está se tornando um estilo de vida entre mulheres, e que se faz necessário traçar uma linha divisória onde acaba a real necessidade de ajuda psicológica, e onde começa uma tirania dos sentimentos. Salta aos olhos que mulheres que lamentam sua falta de dinheiro para livros, eventos culturais, mas que, de alguma maneira, conseguem dinheiro para sessões semanais de terapia, e até para mais de uma sessão por semana. A terapia feminista está se tornando um negócio. Muitos restaurantes feministas, livrarias, centros de saúde, fundos financeiros, tenham falido por completo, ou vivam à margem da falência. Ainda assim,a terapia feminista prospera. Em última instância, mulheres deveriam investigar as causas desse fenômeno.
Uma das razões para isso é o lugar privilegiado dado ao processo de “descortinamento do self” na terapia. O descortinamento do self se tornou a prioridade central da terapia, e é uma forma específica de descoberta que se baseia na modelagem, construção, ajustes e reparos do self, como se fosse algo externo à pessoa que precisa ser consertado. É um modelo fixo de descortinamento que confunde a genuína auto-descoberta com uma perpétua manifestação de sentimentos íntimos. A recusa em revelar tudo é vista como repressão, como negação de um eu profundo. Como resultado, o movimento das mulheres, assim como a sociedade em geral, tornou-se focado na autoexposição, de seus aspectos mais importantes. Mulheres são encorajadas a dizer e mostrar tudo, com poucos aspectos do corpo ou da mente permanecendo um mistério. Esse contexto leva as mulheres a se envolverem em uma espécie de “strip-tease psicológico em massa”, que fragmenta e explora a vida interior. E cada vez mais, enfrentar a perda de emprego, problemas de saúde ou rompimentos amorosos sem se engajar em terapia se torna uma tarefa difícil.
Certamente, as pessoas precisam ser aptas a se libertarem de sentimentos opressivos, emoções reprimidas, e caminhos tortuosos. Pode haver momentos em que mulheres procurem terapeutas para obter ajuda. Assim como existe uma necessidade genuína de compartilhar tais sentimentos, existe também a necessidade de protegê-los e resguardá-los. E o contexto da terapia pode não ser o melhor lugar para compartilhar esses sentimentos. A autorrevelação genuína não deve ser confundida com a perpétua manifestação terapêutica.
Manifestações terapêuticas têm consequências para além do contexto terapêutico em si. Michel Foucault o coloca dessa maneira:
… nós nos tornamos uma sociedade singularmente confessional. A confissão desempenha um papel na justiça, medicina, educação, relações familiares, relações amorosas, nas relações mais ordinárias de nosso dia a dia, e também nos ritos mais solenes; alguém confessa seus crimes, seus pecados, pensamentos e desejos, doenças e problemas; contamos com grande precisão, em meio à maior dificuldade de contar.10
Tais palavras deixam claro que a psicologia criou um novo tipo de sujeito – o humano, animal confessional. “A obrigatoriedade de confessar é tão profundamente incutida em nós, que não a percebemos mais como um efeito do poder que nos limita; pelo contrário, parece que a verdade, alocada em nossa natureza secreta, ‘demanda’ ser trazida à superfície”.11 A autodescoberta se torna sinônimo de liberdade. Neste sentido, terapia se torna um estilo de vida que afeta a maneira como falamos, como pensamos, a maneira como nos relacionamos com as outras pessoas. Como um estilo de vida, a expressão dos sentimentos se torna uma espécie de ritual, proclamando que a mera expressão independente das consequências, produz uma mudança nas pessoas. Expressão, por si só, exonera, purifica, redime.
Neste contexto, Sara Scott e Tracey Payne, ao escreverem para a revista britânica de feminismo radical Trouble and Strife, chamaram a terapia de “laxante mental”. Enfatizando a preocupação das terapias com o passado, sustentam que terapias “nos deixam permanentemente olhando para trás, para dentro de nossos passados, em vez de nos apontarem horizontes vindos da experiência de outras mulheres, para encontrarmos explicação para nossas vidas. Uma vez que as mulheres encontram e expressam esses ‘bloqueios’, supostamente se tornam ‘completas’ e ‘felizes’.”12
A ironia de tudo isso está em que uma era obcecada pela revelação do self, a verdadeira e profunda subjetividade é difícil de ser encontrada. Hannah Arendt sublinhou duas razões para tal. Em primeiro lugar, a introspecção filosófica aniquila a situação atual, dissolvendo-a no que chamamos de humor. Ao mesmo tempo, empresta uma aura de objetividade a tudo o que é subjetivo.13 Portanto, a vida íntima é reduzida a um exercício terapêutico. O terapismo reifica a subjetividade, isto é, a coisifica, externalizando e esgarçando a vida íntima de dentro de seus subterrâneos. Muito facilmente, a vida íntima se torna a vida pública.
Em segundo lugar, uma autodescoberta introspectiva, as fronteiras entre o que é íntimo e o que é público ficam borradas. Intimidades são transformadas em coisas públicas, e aquelas que se recusam a publicizar sua intimidade são vistas como pudicas e reprimidas, necessitadas de uma limpeza psicológica. A importância de conhecer os sentimentos das pessoas se torna a norma. A vida adquire realidade majoritariamente através da confissão, sendo constantemente submetida a uma provação psicológica. Não as emoções em si, mas o contar das emoções se torna a realidade.
E o que tudo isso tem a ver com amizade entre mulheres? Para muitas, a terapia feminista se tornou um substituto para a amizade feminina. Muitas pessoas já observaram o que uma emigrante russa disse certa vez: mulheres estadunidenses vão ao psicólogo movidas pela necessidade de ter amigas”.14 É senso comum que a recorrência, contínua, das mulheres à terapia se trata de uma compra de amizade. Frequentemente essas mulheres têm, sim, amigas com quem discutem sua vida íntima. Contudo, dizem que existe algo de “diferente” quando se trata de falar com o/a terapeuta.
Por exemplo, uma mulher certa vez relatou que sua amiga estava passando pelo fim de um relacionamento que durara 10 anos. Esse término foi muito sofrido, e por um mês, minha amiga ouviu a cada detalhe dessa história, oferecendo conselho, conforto, e sua própria presença e amizade. Um dia, a amiga lhe disse que procuraria a ajuda de um terapeuta. Minha amiga perguntou sobre a necessidade de fazê-lo. A amiga respondeu que estava indo à terapia para ouvir alguns conselhos. “Mas o que é que pode ter de diferente entre meus conselhos e os de um terapeuta?”. A amiga ponderou por um tempo, e respondeu: “… mas a ela, eu pago!”. E minha amiga respondeu: então, pague a mim!
Como Tracey Payne relata acerca de sua própria experiência com terapia: “olhando hoje para essa experiência, eu vejo que havia muito pouco que eu não poderia ter obtido de amigas próximas, ou de um grupo de consciência, mas naquele tempo a terapia também oferecia ‘liberdade’. Em particular, a libertação do passado. Eu sentia que se eu mantivesse ‘desenterrando a merda’ rápido o suficiente, eu poderia alcançá-la e me tornar livre dela… Eu também acreditava que ‘botar tudo pra fora’ era uma coisa boa em si mesma”.15
Na sociedade confessional, a amizade frequentemente se reduz a um “colocar tudo para fora” e/ou um grupo de co-aconselhamento – literalmente, quando duas mulheres montam um arranjo extremamente formal, ou quando mulheres tornam seus relacionamentos umas com as outras lugares de constante descortinamento umas com as outras. Sentimentos se tornam fatos. Sentimentos tornam-se, para além disso, assunto de provações e preocupação. Como Pat Haynes descreveu, as mulheres se tornam “hiper-especializadas em sentimentos”.16 Questões políticas são largamente exploradas nos quesitos em que se relacionam com esses sentimentos. Em última instância, amizades de tal natureza se tornam uma forma de fofoca – a fofoca da vida de uma das envolvidas.
No terapismo, o que falta é uma paixão pela mudança. O compartilhamento de sentimentos triunfa sobre a verdade apaixonada. Mary Daly nos fez uma distinção crucial desse tipo de sentimento e a paixão. Ela chama as antigas paixões de paixões plásticas ou pseudo-paixões:
Em contraste com as paixões reais, as paixões plásticas são sentimentos flutuantes resultantes de uma crescente dissociação/fragmentação. Uma vez que são caracterizadas pela falta de causas específicas e nomeáveis, ou “objetos”, o que nos resta é “lidar com elas” infinitamente, de maneira descontextualizada, ou no interior de um pseudo-contexto.17
Em um exemplo contrastando paixão plástica e paixão verdadeira, Daly compara a realização à alegria. Daly vê a realização como “uma perversão terapeutizada da paixão da alegria”.18 Realização é uma espécie de preenchimento ou mesmo enchimento por uma fonte externa. Alegria é um movimento que começa internamente à pessoa. Uma mulher realizada é “completada” ou “finalizada” em outro lugar. Uma mulher alegre se engaja em um movimento consistente, autodirecionado, cada vez mais profundamente em seu Self e de suas amigas.
A terapia como estilo de vida filtra a paixão, deixando-a de fora, deixando passar apenas os sentimentos. É como se as profundezas da mulher ficassem de fora, restando apenas os sentimentos difusos. Terapeutas promovem níveis baixos de intensidade. Nesse sentido, “sentimento” é o que podemos identificar como a banalidade da paixão. A “terapeutização” da amizade é baseada numa perda particular do Eu, na perda do Eu apaixonado, na perda do Eu original, da amiga original. Perdendo essa originalidade, as mulheres continuam a se relacionar umas com as outras, mas não de maneira original. O exame e exploração dos sentimentos se tornam um substituto para uma intimidade mais e mais apaixonada. Existe uma perda de profundidade e intensidade das amizades femininas. Os padrões heterorrelacionais florescem diante da perda do ginoafeto original.
Em amizades estreitas, existe uma fome de verdade, começando pela verdade das próprias amigas. Terapismo substitui a verdade com uma overdose de adoração ao próprio umbigo e autodescoberta, borrando a diferença entre os dois – verdade e culto ao ego – de modo que a Verdade passa a ser equacionada com manifestações egóicas. Descontextualiza a autorrevelação, que é, sim, uma importante parte de qualquer amizade, afastando-a da revelação apaixonada da vida da mulher tal como foi vivida. O terapismo finge que tal revelação só pode ocorrer no interior do contexto de uma relação terapeuta-cliente ou em amizades que emulam essa relação.
O solo fértil onde o terapismo prospera é o contexto dissociativo no qual muitas mulheres vivem. Quando uma mulher se torna dissociada do mundo real, mesmo que esse mundo seja de fato feito por machos, mesmo que esse mundo seja corrupto, eventos e pessoas podem acabar tomando uma dimensão desproporcional ao que são na realidade. Por exemplo, o ser da mulher – não o seu Ser profundo, mas o seu ser que sente e se sente sentindo – toma uma proporção aumentada. Quando isso acontece, a expressão dos sentimentos pode se tornar igual ou até maior do que, por exemplo, a expressão de ideias e ações políticas. Tomando de empréstimo as palavras de Virginia Woolf em um diferente contexto, as mulheres se tornam “espelhos de aumento”19, refletindo a si mesmas de volta em um tamanho maior, egocêntrico.
O contexto dissociativo das mulheres em geral, ou aquele escolhido por algumas feministas separatistas, cria uma comunidade dissociada totalizante na qual as mulheres que habitam compartilham de normas e valores homogêneos. Como analisa Robert J. Lifton, ambientes totalizantes geralmente são bem sucedidos em reivindicar “a posse total de cada indivíduo que o habita. A posse privada da mente e seus produtos – imaginação e memória – se torna altamente imoral”.20 A dissociação, seja no caso de mulheres em geral, seja no caso de feministas separatistas, cria ambientes totalizantes que funcionam como sutis aparatos para restringir a verdade e incentivar comportamentos “corretos”, tornando a exposição/expressão total uma regra. Mulheres que não se engajarem na perpétua externalização dos sentimentos, seja num chá de dona de casa, seja em uma comunidade de mulheres, acabam sendo julgadas. No interior de tal sistema, uma mulher fica privada tanto de informações mais amplas sobre o mundo, quanto de reflexão interna, ambas necessárias para se manter conectada ao mundo real, bem como para manter o Self independente dele. No interior de um contexto dissociado, a vida se torna “real” mais fácil quando se expõe a privacidade dos sentimentos compartilhados nos termos mais místicos. Confissões se tornam uma forma de comunicação constante com outras mulheres. O terapismo substitui a amizade.
Embora o terapismo exista em outros contextos para além da dissociação das mulheres, as mulheres em tal condição se tornaram vítimas singulares desse estilo de vida, pois a maior parte de nós, em virtude de nosso estereótipo sexual, que nos separa da política de maneira geral; já somos afetadas pela dissociação. Se acrescentarmos ainda mais camadas a essa dissociação, por exemplo justificativas feministas para tal postura, cria-se um contexto ainda mais favorável à exploração da vida subjetiva das mulheres.
O movimento feminista não apenas ajudou a criar uma nova classe de conselheiras profissionais, conhecidas como terapeutas feministas, mas criou também contextos para que muitas relações entre mulheres se tornassem um mundo sem muros. Sustento que tal fenômeno de relacionamentos “show and tell”21 do Eu são uma nova forma de violência horizontal. Tal fenômeno é violento para o Eu original e profundo das mulheres, é violento para as amizades entre mulheres, mantendo as mulheres numa posição de confronto perene, a posição de alguém que escolhe se sentir sentindo-se a si própria o tempo todo, retirando, portanto, a atenção do uso ativo de recursos internos e dissipando energias em constantes manifestações do Eu. Em vez de se tornarem amigas profundas, mulheres estão se tornando “técnicas em relações humanas”.
1.2. Relacionismo
O que estou apelidando aqui de “relacionismo” costuma acompanhar o terapismo. O relacionismo é a redução das amizades a relações que frequentemente se limitam à autoanálise, a DRs, de maneira muito similar ao que o terapismo faz em relação aos sentimentos.
O relacionismo conta, também, com a sua própria classe de profissionais expertos. Chamam-se “teóricos da atração”, pois são capazes de tomar conta do “campo da amizade”; eles podem, entre outras coisas, explicar tecnicamente a diferença entre um “amor companheiro” e um “amor apaixonado”. Tal como os “teóricos da atração”, as mulheres “em relacionamentos” frequentemente transformam tais relacionamentos em empreendimentos técnicos, eternamente discutindo a relação até que não haja nada a ser discutido. Estilo, variedades eróticas, gestos, expressões faciais, tudo se torna matéria prima da qual um significado precisa ser extraído. Tal tipo de relacionismo objetifica as mulheres e suas relações de maneira muito semelhante à objetificação em contextos heterorrelacionais. O relacionismo faz uma definição da mulher a partir de um referente que é exterior a ela.
O relacionismo materializa a etimologia da palavra “relacionar” tornando as mulheres seres “relacionáveis”, isto é, uma classe que se “relaciona” com algo ou alguém – que está sempre a relacionar-se com algo externo a seu Ser. Esse foco reiterado em lidar com relações nas quais tantas mulheres estão imersas reforça a dissociação de um mundo de significados muito maiores. Tal relacionismo bloqueia o desenvolvimento de um ginoafeto profundo.
O relacionismo existe em vários contextos. Em contextos heterorrelacionais, nos quais as mulheres extraem o sentido de sua existência dos homens de suas vidas, o relacionismo se materializa na constante preocupação feminina em torno dos homens. Os homens de suas vidas se tornam, geralmente, o foco das discussões quando as amigas se encontram. Tal tipo de relação entre mulheres dá margem para amizades frívolas, majoritariamente caracterizadas por mulheres falando sobre homens, praticando um escambo de narrativas sobre “os bons homens”, “os homens de verdade”, “os cavalheiros”, ou os outros vários tipos masculinos de consorte. Muitas lésbicas, por outro lado, especialmente em contextos separatistas dissociativos, caem em paradigmas semelhantes em relação às mulheres de suas vidas. A hesitação em falar sobre suas vidas pessoais é vista, nos contextos separatistas, como uma herança patriarcal, uma repressão política à integração social entre mulheres. Portanto, a dissociação, nestas duas formas, conduzem as mulheres a um novo ofício, que não passa de uma velha profissão – os relacionamentos humanos profissionalizados.
Nas condições de “relacionistas profissionais”, as lésbicas com frequência canalizam o grosso de suas energias em relações, frequentemente movendo-se de uma relação erótica para outra. Lésbicas têm sido críticas ao imperativo heterorrelacional que torna mulheres seres que se pautam e se referenciam em homens. Todavia, “viver pelas mulheres” em um sentido estrito, onde as vidas das mulheres está estreitamente ligado a seus relacionamentos com elas, se torna um análogo a “viver pelos homens”.22 O relacionismo lésbico não é muito diferente do heterorrelacionalismo, já que as lésbicas neste contexto precisam constantemente encontrar-se namorando. No cerne desta “febre relacional”, parece que as lésbicas têm, em um certo sentido, substituído os homens pelas mulheres enquanto objetos relacionais. O adágio heterorrelacional “você, enquanto mulher, precisa se juntar a um homem” é modificado para “você, enquanto mulher, precisa se juntar a uma mulher”. A falta de um relacionamento erótico se transforma na falta de sentido para o Eu.
O fato de que a vida de muitas mulheres esteja centrada em relacionamentos amorosos, sejam heterossexuais ou lésbicos, torna as outras pessoas o centro da vida da mulher. Isto necessariamente desloca o autocentramento e frequentemente nega o trabalho de autocentrar-se, uma vez que, quando o relacionamento falha, tudo à sua volta falha também. As mulheres ficam deprimidas, paralisadas, inaptas a continuar seus compromissos, especialmente suas vidas profissionais. O relacionismo, ou o centralismo das relações amorosas, é portanto um obstáculo à amizade feminina, uma vez que drena a energia das mulheres de seus Eus, suas amigas primárias, para outrem. Nenhum ginoafeto genuíno pode ser criado se não partir de um Eu fortalecido. O relacionismo promove uma rendição do Eu, destruindo um autocentramento positivo e necessário.
1.3. Perversões do adágio “o pessoal é político”
A proliferação do relacionismo e do terapismo promove uma ampliação da vida privada feminina. No princípio da presente onda feminista [segunda], havia uma grande ênfase na ideia de que “o pessoal é político”. Este era e anda é um insight feminista crucial. Ele assinala que tudo aquilo que foi relegado ao domínio da vida pessoal das mulheres – áreas como a sexualidade e a família – eram consequências políticas de outras áreas, O adágio “o pessoal é político” encapsulava a verdade de que essas áreas, pretensamente resguardadas como da vida privada, e que eram largamente habitadas por mulheres, não poderiam mais ser segregadas da arena política. Na verdade, áreas como família e sexualidade passaram a ser vistas, a partir daí, como bastiões do poder patriarcal e como pilares centrais das políticas sexuais.
Têm havido muitas perversões desse insight original. “O pessoal é político” foi submetido a reduções e interpretações equivocadas. Por exemplo, muitas mulheres interpretam a frase como “o que é pessoal deve ser publicamente compartilhado”. Sob esta perspectiva, tudo o que é íntimo, privado ou pessoal se torna objeto de domínio público. Uma das mais novas versões dessa tendência, o BDSM lésbico, que Kathleen Barry compreende como a versão mais avançada da perversão de “o pessoal é político”.
Quaisquer que sejam seus “sentimentos” e “desejos”, porque você é mulher, lésbica, feminista, não torna legítimo reivindicá-los como direitos políticos… É esse tipo de pensamento que amplia o conceito de opressão até torná-lo vazio de significado… Se quisermos conectar nossa experiência pessoal enquanto oprimidas a estratégias políticas, tais estratégias precisam ser baseadas em determinados valores compartilhados que promovam a humanização da vida, e não sua objetificação.23
Aquilo a que se tem chamado BDSM lésbico possui similaridades com o terapismo no sentido de que também surge em um contexto onde a expressão dos sentimentos é a norma, e neste caso, até uma norma política. A negação de tais sentimentos é encarada como uma repressão política. Portanto, a liberação se torna sinônimo não só de liberdade de seguir seus próprios sentimentos, como também uma campanha política de publicização de sentimentos.
Houve outras pessoas a criticarem o princípio de que o pessoal é político. Mas nem todas foram tão astutas quanto a de Barry. O trabalho de Jean Bethke Elshtain pode ser tomado como exemplo de uma crítica tangencial – uma crítica que não tem um foco preciso – ao que entende por “política do deslocamento”. Elshtain defende que “nada do que é pessoal está isento , portanto, da definição, direção e manipulação – nem intimidade sexual, amor ou personalidade… se política é poder e o poder está em todo lugar, a política não está, afinal, em lugar nenhum”.24
O problema, a meu ver, não está em politizar a vida pessoal, mas em publicizá-la. Nada do que é pessoal pode ser privado. Nada do que é pessoal pode ser resguardado do escrutínio público. A distorção reside no fato de que tudo que é pessoal passa a ser publicamente exibido sob a retórica de que “o pessoal é político”. Portanto, assinalar a tudo como “político” gera uma urgência de tornar tudo pessoal, objeto de julgamento público e coletivo nas comunidades de mulheres.
No contexto de certos grupos que se reivindicam separatistas, para os quais as políticas passam a se basear na dissociação do mundo, o “pessoal é político” se tornou um fenômeno consolidado. O que acontece grande parte das vezes é a racionalização da necessidade de uma existência coletiva através da destruição de toda a ordem privada. Como uma crítica já apontou, “primeiro vão-se as roupas; depois os sentimentos superficiais, a seguir os profundos, então virão os segredos verdadeiros, e finalmente todo o seu Eu interior. Supostamente, depois dessa orgia de desnudamento da alma, experimentaremos uma nova liberdade, uma verdadeira abertura, ou algo assim”.25 Relacionamentos, em particular, são uma fértil área para discussões. Uma de minhas ex-estudantes expressou sua exasperação com a mentalidade “pessoal é político” da seguinte forma: “torna-se um imperativo categórico para todo e qualquer um que tenhamos uma opinião sobre o que todo e qualquer um está fazendo. Eu ODEIO ISSO”.26
Nenhum ginoafeto genuíno pode advir disso. Mesmo quando as mulheres não estão atentas para a interpretação equivocada de “o pessoal é político”, por sinceramente acreditarem no compartilhamento público da vida privada, temos de nos perguntar o que está, de fato, sendo compartilhado nessas circunstâncias. Estamos mesmo compartilhando uma vida interior profunda? Estamos compartilhando os frutos de uma existência reflexiva e criativa?
O ginoafeto precisa de um tempo e um espaço reservados. Tal privacidade é um tanto quanto diferente da dissociação sobre a qual o terapismo e o relacionismo prosperam, abrigando a ilusão de um tempo intocado e de um espaço separado do mundo ao qual apenas as “relações” têm acesso. Mais do que isso, a privacidade abriga o envolvimento com o mundo, porque adiciona a reflexão de qualidade à vida e à seleção das amigas – o que Alice Walker chamou de “rigor do discernimento”. O discernimento nos ajuda a recuperar a perspectiva sobre nossos Eus, e sobre os das outras. Sem o hábito da reflexão, perdemos a percepção de nosso Ser, o senso de integridade que nos faz ser quem somos.
2. Assimilação ao mundo
O oposto da dissociação é a assimilação ao mundo. Mulheres assimilacionistas desejam ter sucesso no mundo dos homens apagando o fato de sua feminilidade. A assimilacionista se esforça para perder sua identidade feminina, ir além dela, ser considerada uma pessoa em um mundo que concede o status de pessoa apenas aos homens. Ela faz isso assimilando-se ao mundo dominado pelos homens em seus próprios termos.
Não estou defendendo que as mulheres constantemente proclamem “Eu sou mulher” no trabalho ou em qualquer outro ambiente em que estejam. No entanto, uma mulher assimilacionista constantemente se desidentifica com as mulheres. Por exemplo, ela pode ignorar ou, pior, aceitar atitudes e ações opressivas, como assédio sexual ou a denigração de outras mulheres feitas na sua presença. Ela pode até iniciar discussões sobre temas antifeministas para provar que é “um dos caras”. Em outras palavras, quando ela é oprimida como mulher, ela não responde como mulher.
Em uma sociedade que não apenas é hostil às mulheres, mas também é permeada pelo que Andrea Dworkin chamou de ódio às mulheres, é possível assimilar apenas através da assimilação ao antifeminismo também. Explicitamente ou implicitamente, as assimilacionistas rompem os laços com outras mulheres, estejam elas na companhia de homens, mulheres ou ambos. A ironia disso é que tanto homens quanto mulheres sempre as perceberão em primeiro lugar como mulheres. É lamentável que as assimilacionistas não reconheçam ou ignorem essa percepção, desejando que ela desapareça, quando isso nunca acontecerá.
Uma forma comum em que as mulheres se assimilam é exagerando declarações de que não são feministas ou fazendo questão de proclamar que superaram o feminismo. As primeiras podem afirmar que acreditam na igualdade salarial para trabalho igual, mas rapidamente se dissociam de outras mulheres que acreditam nas mesmas coisas ou de mulheres que vão além. No último caso, muitas mulheres usam o termo “pós-feminista” como um distintivo de maturidade. Assim, a assimilação, em ambos os casos, torna-se uma forma de dissociar-se das mulheres.
Outra ironia dessa dissociação das mulheres, especialmente do feminismo, é que muitas vezes as mulheres assimilacionistas se envolvem em atividades bastante extraordinárias que são feministas no sentido de que essas empreitadas requerem habilidades não convencionais, coragem, determinação e persistência. Além disso, frequentemente são pioneiras em seus campos de atuação. Pode-se pensar em mulheres cientistas, motoristas de caminhão, soldadoras e presidentes de faculdades que não apenas são excelentes no que fazem, mas que frequentemente são mais perspicazes e humanas do que os homens nas mesmas áreas. No entanto, muitas dessas mulheres, quando questionadas, negariam qualquer tipo de identificação com o feminino. Penney Kane escreveu na revista Homemaker’s Magazine:
As mulheres parecem estar adotando princípios feministas, por um lado, e se dissociando do movimento, por outro… As cartas em resposta aos nossos artigos são comoventes, pessoais e solidárias. Muitas leitoras estão ansiosas para relatar discriminação ou contar como lidaram com tratamentos patronizadores ou superaram obstáculos. No entanto, quando me apresento como feminista, muitas mulheres reagem como se o termo fosse escatológico.27
No máximo, os assimilacionistas se identificam com o feminismo como “um estilo de vida ou uma atitude ou sentimento de simpatia vaga com as mulheres ou uma afirmação de modernidade.”28
A assimilação sinaliza o fim de qualquer realidade forte de amizade feminina antes mesmo de começar. Para a assimilacionista, homens e/ou estruturas definidas pelos homens são o que importa. Para se tornarem parte da sociedade dominada por homens, as mulheres precisam acreditar ou fingir que são pessoas e mulheres da maneira que os homens as definiram. O que é exigido das mulheres assimilacionistas pela cultura dominante masculina é que se comportem de maneiras que as distingam das mulheres comuns – por exemplo, são incentivadas a serem inteligentes, articuladas, profissionais em ascensão -, mas ao mesmo tempo devem exibir maneiras e modos de feminilidade criados pelo homem, como comportamento charmoso ou roupas femininas. A complicada psicologia aprendida pelas mulheres assimilacionistas é como ser e não ser mulher, ou como ser a mulher que os homens ainda reconhecem como uma deles, evitando a mulher que reconhece seu Eu e as mulheres que são auto-definidas.
A mulher assimilada é a nova andrógina. Frequentemente, ela combina papéis considerados “masculinos” e “femininos”, ou mistura uma carreira “masculina” com um casamento e/ou maternidade “feminina”. Ela é frequentemente chamada de “nova mulher”. Essa nova mulher é uma combinação das chamadas polaridades cósmicas de masculinidade e feminilidade, yin e yang. É como se ela superasse essas polaridades cósmicas dentro de sua própria pessoa e estilo de vida. Duas metades culturalmente fabricadas, masculinidade e feminilidade, foram coladas novamente para produzir a pessoa completa, a mulher que supostamente “tem tudo”. A mulher assimilacionista cria sua própria pessoa à imagem heterorrelacional, incorporando desta vez uma imagem de complementaridade dentro de si mesma. Assim, ela não vê necessidade de ginoafeto em uma vida que busca a definição masculina para a completude de várias maneiras.
2.1. Liberação sexual
O caminho para a assimilação é o caminho para o conformismo, desta vez o conformismo aos novos estereótipos que assumem forma sob o disfarce da retórica de “libertação” e “nova mulher”, mas, ainda assim, conformismo. Esse tipo de assimilação frequentemente exibe o discurso e o estilo de vida externo da liberação, especialmente a liberação sexual.
A liberação sexual pode assumir a forma de um casamento liberado, no qual ambos os parceiros têm carreiras e compartilham as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, embora os homens raramente assumam uma parte justa dessas últimas duas responsabilidades.29 Ou pode assumir a forma de uma “independência” na qual uma mulher tem múltiplos parceiros sexuais de sua escolha e em seu próprio tempo, mas não se compromete com nenhum deles. A liberação das mulheres, lésbicas ou heterossexuais, como definida pelos costumes da revolução sexual, muitas vezes se refere a libertar-se do sexo “pecaminoso” ou, em uma linguagem mais moderna, do sexo repressor, em favor da expressão do eu através do “sexo livre”. Como Shulamith Firestone escreveu há muito tempo, “sua sexualidade eventualmente se torna sinônimo de sua individualidade.”30 A sexualidade se torna não apenas uma “perversidade polimorfa”, mas uma “rebelião polimorfa” contra tudo o que é percebido como repressivo. Swing, sexo gay, bissexualidade, BDSM – a lista é interminável – tudo se torna substituições superficiais para a intimidade sexual.
O que a mulher tradicional considerava como escravidão sexual, a “nova mulher” encara como libertação sexual. É uma libertação sexual que assimila seus valores do pensamento masculino de esquerda ou do movimento gay masculino. Uma de suas manifestações mais recentes é, novamente, o chamado sadomasoquismo lésbico, no qual feministas e lésbicas auto-definidas exibem um novo aspecto de assimilação – a assimilação à ética e ao estilo de vida de “o que conta é o sexo genital”. Isso se torna “refinado” para “o tipo de sexo genital é o que conta”.
Firestone foi premonitória em “A Dialética do Sexo”, onde, ao escrever sobre a libertação sexual, ela antecipou os argumentos das sadomasoquistas lésbicas modernas muito antes de existir tal movimento. “Ser apenas necessitada de afeto torna alguém chata, precisar de um beijo é embaraçoso, a menos que seja um beijo erótico; apenas o ‘sexo’ está tudo bem, de fato prova sua força”.31 As chamadas sadomasoquistas lésbicas iriam além e diriam que apenas certos tipos de sexo “provam sua força” e, brincando com o significado obsoleto dessa palavra, a “força” sexual de alguém é comprovada pelo “metal” (leia-se “metal” como colares, correntes, espinhos e outros acessórios “exóticos”). Elas afirmam isso sob o pretexto de “liberar” as mulheres de seu papel tradicional de “sexualidade afetuosa” que, segundo elas, carece de vigor e é realmente “fracote”. O sadomasoquismo lésbico limita a sexualidade a atos sexuais altamente carregados, substituindo apresentações sexuais fortes e muitas vezes violentas pela ardência e intensa paixão.
Embora o sadomasoquismo lésbico possa surgir em um contexto onde as mulheres estejam politicamente dissociadas do mundo mais amplo, ao mesmo tempo ele assimila as mulheres de forma muito intensa ao mundo da sexualidade dirigido pela esquerda e pelos homens gays. O S&M faz parte de uma “política de assimilação” na medida em que seus valores e estilo derivam dos mundos da esquerda e dos homens gays. Em seu artigo “Sadomasochism: The New Backlash to Feminism”, Kathleen Barry apontou que as promotoras do sadomasoquismo lésbico são mulheres identificadas com a esquerda que se tornaram aliadas das mulheres esquerdistas heterossexuais. Juntas, elas estão no cerne do chamado movimento feminista pró-pornografia. A partir de suas perspectivas esquerdistas, as defensoras do S&M, como Gayle Rubin, minimizam questões feministas radicais, como assédio sexual, estupro e pornografia, considerando-as insignificantes em comparação com questões “reais”, como a opressão econômica das mulheres.
A mentalidade e o movimento sadomasoquista assimilam as mulheres a uma libertação sexual que não é nada mais do que a expressão desenfreada do comportamento sexual definido pelos homens, onde a libertação sexual é equivalente a fazer o que se “sente” vontade de fazer. Confrontamos novamente a tirania dos sentimentos, onde os sentimentos são retratados quase como impulsos sexuais deterministas que devem ser expressos a todo custo. Essa mentalidade é muito reacionária, pois em certo sentido replica a concepção cultural da sexualidade masculina. Os homens sempre foram retratados como “necessitando” expressar seus impulsos sexuais “naturais”. O chamado sadomasoquismo lésbico permite que as mulheres expressem impulsos sexuais semelhantemente concebidos como “naturais”, conferindo às mulheres plena “igualdade” de expressão sexual irrestrita.
Em outra frente, os promotores do sadomasoquismo lésbico assimilam filosofias e atividades do movimento de homens gays. Os homens gays, como “formadores de estilo” na indústria da moda feminina, popularizaram roupas e maquiagem para mulheres que promovem a aparência masoquista. Além de manter a moda de couro preto dos anos 1950, muitos homens gays adicionaram chicotes, correntes, pulseiras com espinhos, coleiras com tachas e suásticas ao seu guarda-roupa, criando um verdadeiro arsenal de estilo sadomasoquista. As chamadas sadomasoquistas lésbicas foram rápidas em assimilar e copiar esse estilo.
John Stoltenberg apontou que “estamos testemunhando a convergência do que antes era considerado uma ‘sensibilidade gay’ com o que antes era considerado uma ‘sensibilidade heterossexual’. Essa convergência é claramente uma sensibilidade masculina e agora se revela plenamente como florescendo na degradação feminina”.32
No sadomasoquismo masculino gay, um dos parceiros “imita temporariamente a impotência”. Stoltenberg ilustra como,
fiel ao seu status privilegiado como homens genitais na sociedade, os parceiros têm a liberdade de trocar de papéis em particular sem prejudicar seu status na cultura de forma alguma. Entre dois homens homossexuais, então, existe a possibilidade de que o “consentimento” no sadomasoquismo possa ser significativo: o seu significado está em seu acordo prévio de reificar a masculinidade um do outro.33
As mulheres não são “pares fálicos”. Seu “consentimento” ao chamado sadomasoquismo lésbico pode derivar seu “significado” apenas de seu status como pares vitimizados, em que uma delas simplesmente representa o papel de poderosa. A lésbica sádica finge em particular ter mais poder do que realmente tem na cultura…
Um homem homossexual pode simular impotência em relação a outro homem homossexual, talvez mais violento; uma lésbica pode simular fraqueza em relação a outra mulher, mais masoquista. Nenhum disfarce altera a realidade objetiva de que, na sociedade em geral, os homens detêm poder sobre as mulheres através da força, e ambos os disfarces são manifestações eróticas dessa realidade.34
Os homens gays transmitem a mensagem de que o sadomasoquismo é uma libertação sexual que “transcende o estereótipo sexual”. Como muitas outras versões definidas por homens de transcendência, é uma transcendência por enxerto. Apenas enxerta em um relacionamento entre mulheres, um modo de “fazer sexo” que foi desenvolvido para homens e continua orientado para eles.
As mulheres não são “pares fálicos”. Seu “consentimento” ao chamado sadomasoquismo lésbico pode derivar seu “significado” apenas de seu status como pares vitimizados, em que uma delas simplesmente representa o papel de poderosa.
O Oxford English Dictionary fornece como definição primária de assimilação “a ação de tornar-se semelhante; o estado de ser semelhante; similaridade, semelhança”. Outras definições subsidiárias fornecem mais esclarecimentos: “o processo de se conformar a; conformidade com… conversão em uma substância similar”. Ao assimilar a objetificação masculina das mulheres, as mulheres se conformam a tratar umas às outras como objetos.
O ginoafeto forte e amoroso quebra o sistema sexual sujeito-objeto. A chamada pornografia lésbica – ou seja, pornografia desenvolvida por homens na qual mulheres são retratadas em posturas supostamente lésbicas – reduz as mulheres a uma interação objeto-objeto. Da mesma forma, o sadomasoquismo lésbico é mais uma forma de colocar as mulheres de volta no lugar de objetos sexuais. Desta vez, as mulheres se objetificam mutuamente.
Sob a bandeira da libertação sexual, é reivindicado o banimento da sexualidade repressiva. Surge então a tolerância repressiva!
2.2. A tirania da tolerância
Os defensores do S&M têm acusado seus adversários de promulgar um dogmatismo sobre o que é certo e errado para as feministas. Mais frequentemente, a acusação é de que aqueles que se opõem ao sadomasoquismo fomentam valores rígidos de correção política. Há uma curiosa inversão aqui. Afinal, onde reside o dogmatismo?
Um dogmatismo de tolerância infectou o movimento feminista. Como dogma, a tolerância afirma que não devem ser feitos julgamentos de valor sobre nada. Usando a retórica de não impor valores aos outros, as mulheres adotam uma filosofia perigosa na qual se despojam da capacidade de julgamento moral. O que elas não percebem é que os valores sempre se afirmarão. Quando as mulheres não assumem a responsabilidade por gerar e representar seus valores acordados, elas se tornam vulneráveis à tirania dos valores alheios. É a tirania da tolerância que fomenta a perda da vontade feminista – a vontade de moldar a história de forma definida por valores.
Assim como “a tirania da ausência de estrutura”, a tirania da tolerância promoveu uma ética de liberdade de valores que foi permitida a permanecer como um princípio não examinado entre certos grupos de mulheres. De um princípio não examinado, é uma curta distância para uma vida não examinada.
As fontes dessa ética de liberdade de valores são várias: a reação natural das mulheres à tirania dos valores patriarcais que são absolutistas e inflexíveis; a resistência ao tipo de controle que isso deu aos homens sobre a vida das mulheres; a aceitação acrítica dos valores esquerdistas de falta de valor; e a equiparação da moralidade ao moralismo. O moralismo, um território tradicional das mulheres, é justamente evitado pelas feministas. Como Andrea Dworkin o definiu, “o moralismo é o conjunto de regras aprendidas mecanicamente que mantém as mulheres aprisionadas, impedindo que a inteligência se encontre de frente com o mundo.”35 O moralismo restringe valores e impede que as mulheres se engajem em atividades éticas significativas e tomem decisões genuinamente morais. Em contraste, o que Dworkin chama de “inteligência moral” constrói valores. “A inteligência moral é ativa; ela só pode ser desenvolvida e aprimorada sendo usada no reino da experiência real e direta. A atividade moral é o uso dessa inteligência, o exercício do discernimento moral.”36
A assimilação da liberdade de valores como princípio orientador aprisionou muitas mulheres em um novo dogmatismo, tão rígido em suas próprias formas quanto o antigo – o dogma de que o julgamento moral ou ético em si é opressivo, contrarrevolucionário e antitético à política. Comprometidas com a liberdade de valores, muitos grupos feministas encontraram dificuldades em estabelecer prioridades, articular metas e definir a base para qualquer ação política que se opusesse e criticasse as prioridades e metas de outras mulheres. As mulheres acharam fácil fazer julgamentos que se opunham aos valores dominantes claramente aceitos pelos homens. A paralisia se instaurou quando os julgamentos e ações entraram em conflito com os de outras mulheres, especialmente aquelas que supostamente estavam comprometidas com a mesma causa.
Em nome de uma comunidade feminista vagamente definida, julgamentos de valor e a vontade de promovê-los em oposição a outras mulheres são vistos como divisivos. No entanto, que tipo de consenso pode ser construído na falta de vontade de fazer julgamentos? A vida social e política advém de valores, escolhas e atividades definidas com clareza e exercidas com comprometimento. Por exemplo, muitas mulheres sentem vagamente que o chamado sadomasoquismo lésbico é errado, mas hesitam em traduzir esse “sentimento” em uma posição articulada e ação de oposição. Ninguém, dizem elas, têm o direito de julgar o comportamento dos outros ou impor seus próprios valores.
A filósofa Hilde Hein disse:
Nós nos tornamos relutantes em ser rotuladas como cruzadas morais em uma época em que o potencial humano degenerou para “faça o que quiser”. Somos condicionadas a fazer observações banais e piadas cínicas em resposta a obscenidades de escala nacional e perversidade de magnitude universal. Estamos entorpecidas a ponto de nos sentirmos à vontade com a crueldade e o desespero. O sadomasoquismo é apenas mais um absurdo a ser saudado com um olhar vazio. Mas fazer isso é ceder a mais um ataque contra a nossa própria decência… Não podemos capitular ao dogma liberal que trata como normal e neutra a degradação e humilhação voluntária de um ser humano por outro.37
A tirania da tolerância desencoraja as mulheres de pensar com rigor, de assumir a responsabilidade por discordar dos outros e de agir. Pior ainda, permite que valores opressivos surjam sem serem refutados.
Em uma era de relativismo ético, as mulheres esquecem que, embora uma verdade possa ser relativa, ela é relativa a algum conjunto específico de valores. Mesmo a liberdade de valores é uma declaração de valores. Não existe algo como relativismo puro. Tudo é visto pelo olhar do observador, a partir de um de muitos ângulos ou quadros de referência. O fato de que a verdade pode ser relativa não deve levar ao julgamento de que todos os valores estão na mesma escala. De que ponto de vista puramente relativista esse julgamento poderia ser feito, já que ele é, de fato, um julgamento e não é mais puramente relativista do que qualquer outro julgamento.
A tirania da tolerância priva não apenas indivíduos, mas também um movimento político, de sua capacidade de discernimento. Ela esgota a paixão e propósito moral da política feminista. Ela retira questões de poder do âmbito ético, de modo que as decisões muitas vezes são tomadas a partir de uma análise puramente consequencialista ou de custo-benefício. Quando a política é dissociada da ética, ela frequentemente se reduz a políticas superficiais. A hostilidade em relação aos valores e a fachada de tolerância esvaziam o movimento feminista de seu radicalismo. Uma ousadia ativa é domesticada em uma tolerância passiva.
A tolerância é essencialmente uma posição passiva.38 Marcuse a denominou de “tolerância repressiva” porque, ao neutralizar os valores, ela serve principalmente para proteger o tecido pelo qual a sociedade se mantém unida. O que é definido como liberdade de valores pode parecer sensível e respeitoso com os outros, mas na realidade torna as pessoas passivas e acríticas. “A tolerância é transformada de um estado ativo para um estado passivo, de prática para não-prática.”39
A tirania da tolerância afeta negativamente o ginoafeto de forma significativa. Ela vaporiza “a rigidez do discernimento.” A passividade e a mentalidade acrítica que se desenvolve nas mulheres as levam a aplicar a mesma falta de critérios na escolha de amizades. Mulheres que carecem da “rigidez do discernimento” formam amizades indiferenciadas.
O discernimento, do ponto de vista da tirania da tolerância, é frequentemente visto como uma forma de elitismo. Como a escritora e fotógrafa Joreen observa em seu ensaio clássico “A Tirania da Estruturalidade”, “Elitista é provavelmente a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência e pelos mesmos motivos que ‘rosa’ foi usada nos anos cinquenta.” As mulheres abandonam seus poderes de discernimento porque são intimidadas pelo medo de serem rotuladas como “elitistas”.40 A tirania da tolerância equipara o discernimento ao elitismo e, ao fazer isso, promove um estado mental e um contexto social em que as distinções são niveladas e a uniformidade prevalece.
A tolerância é essencialmente uma posição passiva. Marcuse a denominou de “tolerância repressiva” porque, ao neutralizar os valores, ela serve principalmente para proteger o tecido pelo qual a sociedade se mantém unida. O que é definido como liberdade de valores pode parecer sensível e respeitoso com os outros, mas na realidade torna as pessoas passivas e acríticas. “A tolerância é transformada de um estado ativo para um estado passivo, de prática para não-prática.”
A tirania da tolerância afeta negativamente o Ginoafeto de forma significativa. Ela vaporiza “a rigidez do discernimento.” A passividade e a mentalidade acrítica que desenvolve nas mulheres as levam a aplicar a mesma falta de critérios na escolha de amizades. Mulheres que carecem da “rigidez do discernimento” formam amizades indiferenciadas.
O discernimento, do ponto de vista da tirania da tolerância, é frequentemente visto como uma forma de elitismo. Como a escritora e fotógrafa Joreen observa em seu ensaio clássico “A Tirania da Estruturalidade”, “Elitista é provavelmente a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência e pelos mesmos motivos que ‘rosa’ foi usada nos anos cinquenta.” As mulheres abandonam seus poderes de discernimento porque são intimidadas pelo medo de serem rotuladas como “elitistas”. A tirania da tolerância equipara o discernimento ao elitismo e, ao fazer isso, promove um estado mental e um contexto social em que as distinções são niveladas e a uniformidade prevalece.
No notável ensaio “One Child of One’s Own,” Alice Walker oferece este conselho para as mulheres negras:
O que era exigido das mulheres de cor era aprender a distinguir quem era a verdadeira feminista e quem não era, e investir energia em colaborações feministas apenas quando houvesse pouco risco de desperdiçá-la. Os rigores deste discernimento inevitavelmente levarão as mulheres de cor de volta a si mesmas, onde há, de fato, tanto trabalho, de natureza feminista, a ser feito.41
Muitas dessas palavras podem ser parafraseadas e aplicadas à formação das amizades entre mulheres. Poderíamos então dizer:
O que é exigido das amigas é que aprendam a distinguir entre aquelas que são verdadeiras amigas e aquelas que não são, e investir energia no desenvolvimento de amizades apenas quando houver pouco risco de desperdiçá-la. Os rigores deste discernimento inevitavelmente levarão as mulheres de volta a si mesmas, onde encontrarão sua amiga original.
É significativo que Walker se refira aos rigores do discernimento. É uma palavra que evoca associações de estrito, severo, rigoroso, exato e minucioso – associações com as quais as mulheres não se identificam facilmente. No entanto, se pudermos pensar no discernimento como um hábito de mente e coração, especificamente um hábito de reflexão que é rigoroso no melhor sentido da palavra e que não é um hábito fácil ou passivo, como a tolerância é, teremos alcançado uma maior compreensão de nossas amizades. As palavras de Cícero são instrutivas nesse contexto: “você deve amar depois de ter feito um julgamento; você não deve formar o julgamento depois de ter amado.”42 Isso não quer dizer que o hábito de discernimento sempre garantirá as amizades certas. No entanto, ele promoverá um “bom senso” sobre as possibilidades e até mesmo as falhas das amizades entre mulheres.
A ausência dos “rigores do discernimento” tem fomentado a atitude de que o feminismo torna todas as mulheres amigas. Isso não é apenas falta de discernimento; viola todo o bom senso. Isso sentimentaliza a amizade entre mulheres, dando a elas a ilusão de que o feminismo pode proporcionar algo que nunca foi seu propósito. Se todas as mulheres podem ser amigas, então nenhuma mulher é realmente amiga. Muitas mulheres cometem o erro de esperar ser amigas de outras mulheres com base em certas coisas que têm em comum: flashes de ideias, genialidade analítica, energia erótica, interesses animados, compromissos políticos, metas profissionais. Todas essas qualidades podem fornecer possibilidades para a amizade, mas podem não gerar a realidade. O discernimento é um hábito e, como qualquer hábito, leva tempo e deve ser exercitado de tal forma que o todo que constitui uma amizade possa ser compreendido.
O hábito do discernimento nos ensina a sermos leais a nós mesmas, a ter fé em nossas próprias percepções e a reivindicá-las como um poder de escrutínio em nossas interações com os outros. O discernimento não é infalível, nem pode garantir que a amizade dure para sempre. O que ele oferece é perspicácia – até mesmo perspicácia sobre nossos erros.
2.3. A assimilação do silêncio
Uma forma comum pela qual as mulheres são assimiladas ao mundo dominante masculino é pelo simples silêncio que cerca a realidade do ginoafeto. No início deste capítulo, observei que o barulho constante sobre as mulheres não amarem mulheres existe em conjunto com o silêncio histórico sobre as mulheres sempre amarem as mulheres. O silêncio que prevalece apaga o fato de que as mulheres têm sido as melhores amigas umas das outras, parentes solidárias, amantes devotadas e companheiras constantes. O silêncio aqui vestiu um traje fúnebre que ostenta várias modas.
Talvez o maior silêncio seja o silenciamento da experiência direta de amizade feminina de muitas mulheres. Isso equivale a um silenciamento da amizade feminina antes que ela tenha a chance de começar. Para outras mulheres, a inabilitação da experiência direta da amizade é forjada jogando areia nos olhos das mulheres sobre a natureza da amizade feminina – ou seja, é retratada como adolescente, imatura e/ou potencialmente homossexual. A escritora e ativista feminista Julie Melrose sugeriu que isso equivale a “tornar a realidade vivencial (ou seja, ‘estar com outras mulheres de maneira positiva é bom’) secundária à realidade intelectual masculina (ou seja, as mulheres não podem/não devem ser amigas).”43 Assim, o encontro direto e positivo das mulheres com o gino/afeto é mediado por sua versão masculina. A participação feminina direta é assimilada pelo pronunciamento não participativo masculino.
É importante entender que o silêncio total nem sempre é o problema. Em vez disso, o silêncio assume formas mais sutis e muitas vezes parciais. As maneiras pelas quais os relacionamentos das mulheres entre si são categorizados constituem uma técnica dramática de silenciamento que desempenha seu papel fora do palco. A categorização muda a definição e a forma da realidade das mulheres, principalmente quando é feita profissionalmente. Por exemplo, quando a psicologia freudiana relegou as amizades femininas aos domínios da “doença”, “desenvolvimento interrompido” e “imaturidade”, silenciou a experiência direta da amizade feminina para muitas mulheres – literalmente extinguindo sua existência ou possibilidade de existência, e categoricamente ao nomear erroneamente a realidade. Conforme vivenciado e interpretado por mulheres na era pós-freudiana, a amizade feminina torna-se aberrante.
A categorização promove o reducionismo. Uma vez que uma mulher vê o Ginoafeto categorizado de forma reducionista, ela se vê reduzida. A categorização promove a dissociação e a assimilação ao mesmo tempo. Isso leva as mulheres a se dissociarem da categoria degradada enquanto são assimiladas em categorias hetero-relacionais mais aceitáveis.
Uma das maneiras pelas quais a amizade feminina é silenciada pela categorização é proclamá-la “excepcional”. Por exemplo, na biografia extensa e esclarecedora de Joseph Lash sobre Helen Keller e Annie Sullivan, a profunda amizade entre as duas mulheres é descrita como “excepcional”, ou seja, rara. Ao longo do livro, o autor e várias pessoas que aparecem nesta história extraordinária comentam sobre a singularidade absoluta da amizade entre as duas mulheres. “O laço entre você e nossa querida Annie é o mais próximo possível. Atrevo-me a dizer que muitas pessoas já lhe disseram que não há nada parecido na história ou na literatura.” Pode-se dizer razoavelmente que não havia nada como essa amizade “na história ou na literatura”.44 No entanto, o que havia de excepcional nessas duas mulheres não era a intensidade de sua amizade. Muitas mulheres tiveram o profundo afeto que elas experimentaram uma com a outra. O que foi único foi a maneira como Annie Sullivan se tornou um canal para o conhecimento e o sentimento de Helen Keller pelo mundo. Não se escreveu sobre muitas amizades femininas, e esta provavelmente veio a público por causa da extraordinária jornada de Helen Keller das trevas à luz, e do papel surpreendente de Annie Sullivan na “criação de uma alma.”45
As amizades femininas são, claro, excepcionais, se por excepcional se entende melhor que a média e desviando-se da norma, a norma das relações hetero. No entanto, quando o Ginoafeto é retratado como excepcional no sentido que estou criticando, geralmente significa que as amizades femininas são raras, ou seja, não prevalecem ou estão fora do curso normal e do alcance da vida da maioria das mulheres. Tantas mulheres que aprendem sobre o relacionamento profundo e emocionante entre Helen Keller e Annie Sullivan são levadas a acreditar que a maioria das mulheres não pode estar à altura de tal amizade. Assim, mesmo as mensagens mais maravilhosas de Ginoafeto são silenciadas por esse tipo de representação excepcional. A categoria “excepcional” funciona para afastar as mulheres do aprendizado de como essas amizades entre mulheres prevaleceram ao longo da história e em quase todas as culturas.
Da mesma forma, qualquer coisa que as mulheres façam fora do âmbito comum das relações hetero ou que se desvie dessas normas foi categorizada como excepcional. Trabalhadoras da construção civil, cientistas, levantadoras de peso, especialistas em caratê e lésbicas são categorizadas como excepcionais porque saem dos papéis prescritos relacionais hetero. Há muito mais mulheres levantadoras de peso e lésbicas (justaposição chocante de categorias pretendidas) do que homens e algumas mulheres imaginam! Porém, por não serem visíveis aos olhos das relações hetero, são classificadas como excepcionais. A lógica complicada das relações hetero fez até da categoria “excepcional” um elogio para as mulheres.
Outro modo de silenciar é colocar qualquer coisa fora do comum que as mulheres façam em uma categoria relacional hetero, privando-a assim de seu poder identificado e originado por mulheres. Assim, os homens criam a chamada pornografia lésbica usando poses e posturas heterossexuais. Ou as mulheres que levantam pesos são encorajadas a parecer e agir como Linda Evans, a Krystle da série de TV “Dynasty” – forte, mas contida pela feminilidade criada pelo homem. Muitos livros e brochuras de levantamento de peso mostram às mulheres como aumentar sua força – falando relativamente – sem desenvolver músculos “desagradáveis”. As mulheres não são encorajadas a ostentar seus músculos, mas a desenvolver uma figura firme e esguia que as torne mais atraentes para os homens.
Cada vez mais, quaisquer coisas fora do comum que as mulheres fazem tornam-se hetero-relacionadas. As mulheres e os atos das mulheres são então assimilados na categoria da relação hetero apropriada. O próprio feminismo foi sujeito a tal assimilação. Uma proeminente feminista foi apelidada de “a feminista que gosta de homens”. Como a maioria das feministas é retratada como não gostando de homens, a mensagem é que qualquer mulher de verdade, na verdade, qualquer feminista de verdade, gosta de homens. O feminismo definido pelas mulheres é silenciado para as mulheres que leem tais descrições.
Há também o silêncio sobre o qual Virginia Woolf escreveu tão claramente em Um Quarto Todo Seu. “Chloe gostava de Olivia… Não ruborize-se. As mulheres gostam de outras mulheres.”46 Muitas mulheres estão cientes de uma atração por outras mulheres. As mulheres geralmente reconhecem isso em algum nível, mesmo que esse nível esteja se afastando drasticamente da atração.
Outras mulheres ficam constrangidas com qualquer exibição explícita da atração. O constrangimento, o “rubor”, decorre do medo de que seu segredo mais bem guardado seja divulgado, e elas junto com ele. Para muitas mulheres, esse “rubor”, em uma era pós-freudiana, é o medo de que a amizade feminina seja interpretada como lesbianismo. Muitas mulheres fazem de tudo para evitar qualquer possibilidade dessa interpretação.
Acho, no entanto, que Mary Daly nomeou o que acontece em um nível mais profundo no coração e na mente de muitas mulheres quando ela se refere ao tabu contra “mulheres que tocam mulheres”. Daly cita Freud, que deu algumas introspecções sobre a natureza do “tabu”:
“A proibição não se aplica apenas ao contato físico imediato, mas tem uma extensão tão ampla quanto o uso metafórico da frase “entrar em contato com”. Qualquer coisa que direcione os pensamentos da paciente para o objeto proibido, qualquer coisa que a coloque [sic] em contato intelectual com ele, é tão proibido quanto o contato físico direto”. [Marcações da autora em itálico]47
Daly acrescenta: “Qualquer coisa que direcione os pensamentos de uma mulher para o objeto proibido, seu Eu, qualquer coisa que a coloque em contato intelectual com seus Poderes Tocantes Espirituais, é tão proibido quanto o contato físico direto com outro Eu Feminino. Essa extensão é inerente ao tabu total contra mulheres que tocam mulheres.”48 Embora o tabu contra “mulheres que tocam mulheres” seja de fato sexual, não é só isso. Mais plenamente, é um “tabu total” contra as mulheres que tocam o alcance estendido de nossos Eus originais e de outras mulheres.
Também é verdade que as mulheres não ficam necessariamente envergonhadas pela atração por outras mulheres, mas pelo simples fato da presença de outras mulheres ao seu redor. Por exemplo, uma mulher apontou que os homens ficam tímidos em abordar mulheres em duplas ou em grupos maiores. Um obstáculo para a amizade feminina, ela observa, remonta a eventos como bailes da escola secundária, onde as meninas se separavam “propositalmente de suas amigas porque os meninos eram muito medrosos para convidá-la para dançar se ela estivesse com outras meninas: mais provável se ela estivesse sozinha e, portanto, ‘acessível’.”49 Muitas mulheres, de muitas maneiras diferentes, evitam a amizade feminina para se tornarem “acessíveis” aos homens.
Esses cenários do “ensino fundamental” nos dizem muito sobre os impedimentos à amizade feminina. Mulheres juntas em quantidade, não considerando qualidade, servem para manter os homens afastados. Se as mulheres reunidas em grande número são vistas como inacessíveis aos homens, quão mais inacessíveis são as mulheres unidas por escolha e laços apaixonados. Se algumas mulheres renunciam à mera presença numérica de mulheres em prol de encontros hetero-relacionais com homens, mais mulheres irão renunciar a energia qualitativa do Ginoafeto quando temem o “Tabu Total” de “Mulheres que Tocam Mulheres”.
As mulheres evitam a companhia de mulheres, muitas vezes porque acreditam que as mulheres são entediantes. Dentre as maneiras que as relações hetero absorveram o espírito aventureiro das mulheres, é claro que as mulheres foram domesticadas pelo patriarcado. E, infelizmente, são chatas as mulheres cuja vivacidade foi contida pela “chatocracia” das relações hetero. Como apontou a estudante de comunicação Denice Yanni, essa opinião de que as mulheres são entediantes é reforçada pela mídia hetero-relacional que retrata as mulheres somente como personagens “unidimensionais”.50 Essa unidimensionalidade das mulheres, conforme retratada nas novelas diurnas e noturnas , especialmente nos personagens de mulheres como Sue Ellen e Pam de “Dallas”, é o de mulheres que existem para os homens. (Se Sue Ellen voltar para o J.R. mais uma vez!) “Cagney and Lacey” é provavelmente um dos poucos programas de televisão do horário nobre que se desvia desse retrato de mulheres unidimensionais, mas mesmo assim é cuidadoso em incluir nas aventuras de Cagney e Lacey as crises com o marido de Lacey, Harvey, e com o namorado do momento de Cagney. A mensagem é que, embora essas duas mulheres sejam policiais espetaculares e aventureiras, elas são de fato mulheres hetero-relacionais normais que são iguais às outras mulheres, ou seja, hetero-relacionais.
O silêncio sobre a aventura do Ginoafeto proíbe a nomeação da domesticação de muitas mulheres. O silêncio sobre a aventura do Ginoafeto abafa a verdade de que as mulheres estão entediadas apenas com o que os homens forçaram as mulheres a se tornarem. As mulheres ficam entediadas apenas consigo mesmas e com outras mulheres que não têm um Eu original e independente e que não têm nada próprio com o que excitar as mulheres.
Que as amigas excitam outras mulheres é uma verdade que as mulheres devem contar, pois foi sufocada pelo seu oposto. Diz-se que o homem é aquele que excita uma mulher de todas as maneiras. Assim, quando uma mulher original desperta outra mulher, ela é rotulada como “não uma mulher”. Dizem que ela é “masculina”. É importante entender, no entanto, que “masculina” neste contexto significa o que o homem reservou para si mesmo. Uma vez que os homens se apropriaram da excitação das mulheres para si mesmos, uma mulher que excita profundamente outras mulheres é definida como agindo “como um homem”, quando exatamente o oposto é verdadeiro. É ela quem age mais como uma mulher porque seu Eu original está desperto e capaz de provocar a mesma originalidade de outras mulheres. Se os homens negam dinheiro, criatividade e independência às mulheres, por que não deveriam negar o afeto das mulheres às mulheres? Se o homem decidir que só ele deve dar dinheiro às mulheres, migalhas criativas e os fios de uma vida quase independente, não devemos nos surpreender que ele também reserve a afeição das mulheres para si mesmo. As relações hetero domam a originalidade e a capacidade das mulheres de despertar a originalidade de si mesmas e de outras mulheres.
A domesticação começa cedo na vida de uma menina. As mães como “torturadoras simbólicas” muitas vezes funcionam como veículos de domesticação. Seja a mutilação real do corpo de uma jovem por clitoridectomia, a restrição do movimento físico ativo e da mobilidade, a substituição da linguagem corporal feminina forte por um treinamento de postura feminina fraca, ou o desencorajamento do desenvolvimento atlético, ou seja a subjugação do espírito aventureiro, da mente curiosa ou da busca independente pelo autoconhecimento de uma jovem, as mulheres que vivenciam a mãe ou outro parente feminino como “domadoras” geralmente seguem o caminho da dissociação das mulheres, não querendo mais ser domesticada ou mover-se no companhia das “domadas”.
A domesticação das mulheres também ocorre em um nível social e político generalizado. “Trinta e seis milhões de mulheres podem ser tranquilizadas em um ano e a nação não percebe, não sente falta de sua energia, criatividade, sagacidade, intelecto, paixão, comprometimento – tanto valem essas mulheres, tão importante é a contribuição delas… tão essencial é o vigor delas.”51 A ironia dessas palavras poderia ser multiplicada diversas vezes diante do estupro, da pornografia, da violência doméstica, das tecnologias reprodutivas (novas e antigas) e das formas pelas quais elas domesticam a existência auto-definida e autônoma das mulheres. No entanto, se o ideal heterorrelacional é o de uma mulher contida e domesticada, por que alguém notaria, comentaria ou se oporia? Mais importante ainda, por que no meio de uma população de mulheres domesticadas, as mulheres notariam, se oporiam ou sentiriam falta das possibilidades perdidas de uma amizade feminina vital e vibrante? A domesticação das mulheres garante que muitas mulheres prometerão não apenas “indiferença ao destino de outras mulheres”52, mas também indiferença à amizade de outras mulheres.
As mulheres são assimiladas pela ideologia heterorrelacional de que os homens são a maior aventura de uma mulher. As mulheres aprendem a não esperar um futuro animado com outras mulheres. Os homens se tornam o futuro – os salvadores escatológicos pelos quais as mulheres só precisam aguardar. “Sua juventude é consumida na espera, mais ou menos disfarçada. Ela está esperando o Homem.”53 O adolescente garoto avança de forma ativa e aventureira em direção à vida adulta. A jovem garota é treinada para esperar docilmente que o futuro aconteça com ela. (Talvez esta seja mais uma razão pela qual os homens sempre estiveram tão focados no “vir” das mulheres, como em “você chegou?”) Muitas vidas inteiras de mulheres são consumidas na espera não apenas pelo homem prometido, mas pela terra prometida da heterorrelação. “Telenovelas investem prazer exquisito na condição central na vida de uma mulher: a espera – seja pelo telefone tocar, pelo bebê tirar sua soneca, ou pela família se reunir logo após a novela do dia ter deixado sua família ainda lutando contra a dissolução.”54 As telenovelas nunca terminam. “Sintonize amanhã”, mas amanhã cria mais espera. Horace descobrirá que sua esposa está tendo um caso com sua ex-namorada? (De fato, tal enredo poderia, por um momento, tornar até as telenovelas interessantes!) As inúmeras maneiras pelas quais as mulheres esperam se somam a uma espécie de “doença da espera”.
As maneiras pelas quais as mulheres foram treinadas para esperar são obstáculos à formação de amizades femininas. Frequentemente, as mulheres esperam que outras mulheres iniciem o ginoafeto, sem tomarem a iniciativa por si mesmas. Elas têm medo de dar o primeiro passo. Aqui, as mulheres assimilam o modelo heterorrelacional no qual as mulheres esperam por uma ligação telefônica, um pedido de casamento, a expressão de uma preferência, a oferta de um contrato, um emprego, um futuro. No entanto, esperar pode ser fatal, pois gera passividade e desencoraja a tomada de riscos. No final das contas, convence as mulheres de que elas não são responsáveis por seus próprios futuros.
As mulheres devem superar esse grande obstáculo ao ginoafeto, iniciando todo tipo de atividades umas com as outras – afeto, reflexão e ação. O presente da amizade feminina é que ela inicia o automovimento. A mulher que faz amizade com seu Eu e outras mulheres percebe que não pode “livrar-se do fardo do tempo” esperando por um futuro em que alguém, desta vez uma mulher, lhe devolverá seu Eu perdido.
As relações heterossexuais se baseiam na ficção de que as mulheres devem esperar com “grandes expectativas” pelo homem prometido e sua terra prometida. O ginoafeto deve se basear na iniciativa ativa da amizade feminina. É um tipo de amizade que deve ser buscada ativamente, em vez de passivamente esperada. Muitas mulheres pensaram que, ao se tornarem feministas, a amizade com outras mulheres seguiria automaticamente. Assim, as mulheres esperaram, esperando que a amizade com outras mulheres fosse o resultado natural do compartilhamento de conscientização, objetivos políticos comuns e organização coletiva. Mas isso era apenas outra forma de espera.
Assim como todo movimento autêntico, a amizade feminina deve ser despertada ativamente. As mulheres precisam despertar umas às outras para as possibilidades de amizade, especialmente dentro do contexto de um mundo heterorrelacional onde as mulheres aprenderam que apenas os homens despertam e excitam as mulheres. Os homens transformaram as mulheres em propriedade “móvel”, mas não permitiram um movimento genuíno. O ginoafeto pode ensinar às mulheres que o que elas confundiram com movimento, dentro do quadro das heterorrelações, era apenas “toque”. Como Mary Daly observou, todas as mulheres no patriarcado são uma “casta tocável”.55 O ginoafeto promete um movimento profundo e uma agitação profunda ou, para reiterar a famosa frase de Virginia Woolf, “Somente as mulheres agitam minha imaginação”.
Desejando aventura, as mulheres muitas vezes são repelidas pela incapacidade das outras mulheres de correr riscos. Inerente ao argumento heterorrelacional de que as mulheres são entediantes é que todas as mulheres são iguais, iguais em timidez de viver. “É a aceitação do risco que lhe confere poder.”56 Embora Elizabeth Janeway não tenha aplicado essas palavras à percepção das mulheres sobre outras mulheres como tímidas, elas são importantes nesse contexto. No entanto, em “aventuras” heterorrelacionais, as mulheres frequentemente não distinguiram entre risco masculino e imprudência e as maneiras pelas quais os homens transformam o risco em comportamento imprudente, um comportamento que frequentemente disfarça a obsessão necrofílica.
O verdadeiro risco, o risco existencial, é assumido por aquelas mulheres que desafiam as heterorrelações e que têm a coragem de reivindicar seus Eus originais e suas amigas mulheres. A recusa ou a incapacidade de correr o risco do ginoafeto está no cerne da perda da amizade feminina. Não correr o risco da amizade feminina limita as possibilidades da vida e da existência feminina de todas as maneiras imagináveis. Isso fecha a imaginação mulherista. Ao assumirem o risco de criar o ginoafeto, as mulheres mudam os termos de nossa existência neste mundo. O ginoafeto destrói as heterorrelações, principalmente ao negar a crença nos homens e na existência definida pelos homens para as mulheres.
Com o aumento dos níveis de domesticação hetero-relacional, a capacidade das mulheres de experimentar o Eu e a aventura definida pelas mulheres diminui. Cada vez mais, nesta sociedade anestesiada, são necessários estímulos externos definidos pelos homens para proporcionar às mulheres uma sensação de estar viva. No entanto, a estimulação é uma forma de escape. Sem ter recurso ao Eu original definido pelas mulheres, as mulheres preenchem o vazio. Relações hetero-relacionais se tornam um transporte rápido para longe do Eu original próprio e do de outras mulheres. A diversão se torna um objetivo para mulheres que sofrem da doença de deficiência das hetero-relações. Infelizmente, para tais mulheres, a doença é confundida com a cura. As mulheres continuam buscando constantemente estímulos hetero-relacionais novos. Tal estimulação é, na melhor das hipóteses, de curta duração e, na pior, destrutiva para o Eu dela e das outras. Esse tipo de diversão anestesia a capacidade das mulheres de viver criativamente, fecha a imaginação e, em última instância, promove a assimilação das mulheres a um mundo que elas nunca criaram.
Muitos homens falaram sobre o medo de serem domados por mulheres. Tão forte é esse ditado hetero-relacional que ele se tornou um dogma da psicologia hetero-relacional – o medo de “castração pela mãe (mulher)”. Isso disfarça o real naufrágio das relações hetero-relacionais – que as mulheres foram castradas57 pelos homens e, além disso, que as mulheres são domadas por mulheres que foram domadas por homens. O silêncio por trás de todo esse barulho sobre o complexo de castração masculina é que as mulheres são domesticadas pela mulher hetero-relacional. Claro, as mães (mulheres) não iniciam a domesticação das filhas (outras mulheres). Os homens e as relações hetero-relacionais começaram a domesticação da mãe como mentora (consulte a seção “Mães e Filhas” nas páginas seguintes deste capítulo).
As mulheres anseiam por aventura, mas em um mundo hetero-relacional, elas se contentam com a estimulação. Estimulantes embotam a clareza de espírito de uma mulher, força de vontade, amplitude de visão e domínio do mundo. O maior estimulante de todos é a constante dose de relações hetero-relacionais.
3. Vitimização no mundo
O vitimismo proporciona um terceiro contexto no qual os obstáculos à amizade entre mulheres se enraízam. Uso o termo vitimismo para descrever um ambiente no qual a identidade primordial feminina ou feminista das mulheres parece estar fundamentada no estado compartilhado de terem sido vitimizadas por homens. Nas relações umas com as outras, tais mulheres enfatizam sua herança de dor compartilhada, embora as formas pelas quais diferentes mulheres foram vitimizadas diferem em idade, classe, raça e outros fatores.
Kathleen Barry descreveu como o vitimismo funciona ao criar um papel e um status a partir da realidade de ser uma vítima.
O status de “vítima” cria uma mentalidade que evoca pena e tristeza. O vitimismo… cria uma estrutura na qual os outros a conhecem não como uma pessoa, mas como uma vítima, alguém a quem foi infligida violência… O rótulo atribuído de “vítima”, que inicialmente tinha a intenção de conscientizar sobre a experiência de violência sexual, se transforma em um termo que expressa a identidade dessa pessoa.58
O vitimismo transforma a realidade histórica e intercultural da vitimização das mulheres pelos homens em uma identidade psicossocial na qual as mulheres assumem o status de vítima como uma autodefinição e papel primários. Uma vez que isso ocorre, as mulheres são retratadas como indefesas diante da tirania masculina. Tanto em um sentido político quanto pessoal, o vitimismo se torna a primeira e última palavra sobre as mulheres. O vitimismo promove a crença de que o eu de uma mulher e as mulheres como grupo estão para sempre em servidão à sua história de dor e opressão.
Nesse contexto, estou preocupada que o vitimismo não se torne a base da autodefinição e do enfraquecimento de uma mulher. Certos grupos feministas autodefinidos têm abusado gravemente desse tipo de crítica, e é importante dissociar minhas preocupações das deles. Por exemplo, a FACT (Força-Tarefa Feminista Contra a Censura) e outros atacaram a legislação de direitos civis contra a pornografia – elaborada pela escritora Andrea Dworkin e pela advogada Catharine MacKinnon e apoiada por uma multidão de grupos de bairros negros e pobres, grupos de mulheres negras, grupos de mulheres judias, lésbicas, prostitutas e ex-prostitutas, e centenas de mulheres que arriscaram exposição pública e assédio testemunhando em nome dessa legislação – alegando que ela promove o estereótipo da mulher como vítima.
…a regulamentação perpetua o estereótipo das mulheres como vítimas impotentes, incapazes de consentimento e necessitadas de proteção… Além disso, seus estereótipos das mulheres como vítimas impotentes minam a capacidade das mulheres de agir de forma afirmativa para se protegerem.
Não é a ordenança contra a pornografia que perpetua o estereótipo da mulher como vítima. É a pornografia em si e o apoio distorcido da FACT à pornografia, apelando para um estereótipo inexistente da mulher como vítima na lei. São eles que mantêm as mulheres como vítimas – amarradas e submissas.
Existem diferentes maneiras pelas quais o vitimismo é demonstrado por mulheres, algumas sutis e outras não tão sutis. De maneira mais sutil, as mulheres muitas vezes se relacionam umas com as outras como vítimas quando se reúnem por causa de uma dor compartilhada, enfatizando que o que têm em comum é apenas, ou principalmente, essa dor compartilhada.
O foco constante e unidimensional na partilha da dor pode afastar as mulheres de amizades fortes com outras mulheres, obscurecendo a realidade histórica de que as mulheres têm sido e podem ser para outras mulheres de formas que não envolvem apenas o sofrimento fraternal. A ênfase no vitimismo também reforça a convicção de que a amizade feminina só pode surgir por razões negativas: ou seja, porque os homens são tão ruins ou em reação às atrocidades promovidas por uma cultura misógina. Aqui, a amizade feminina parece ser gerada pelos resultados da opressão das mulheres. Assim, em um mundo melhor, presumivelmente um em que os homens “se comportem”, a amizade feminina talvez não seja necessária.
Mulheres que se unem como vítimas muitas vezes passam muito tempo imersas na narrativa de experiências de vitimização. Isso é necessário e proveitoso como catalisador para o compartilhamento de forças que muitas vezes podem emergir dos muitos estados de atrocidade aos quais as mulheres foram submetidas em um mundo que odeia as mulheres. E é um passo importante para afastar as mulheres do pensamento de que suas experiências horrendas têm sido peculiares a elas mesmas ou, pior, têm sido culpa delas. No entanto, “lidar” constantemente com a experiência de sofrimento, seja na terapia ou nos relacionamentos das mulheres umas com as outras, impede as mulheres de ir além do ciclo interminável não apenas de repetir a experiência, mas de repetir a experiência da experiência, frequentemente para outras que compartilham as mesmas ou experiências semelhantes.
Isso leva a um tipo peculiar de “relacionismo” em que as mulheres gastam uma quantidade desproporcional de energia “relacionando” tais atrocidades a outras mulheres e cultivando associações com mulheres que são construídas em sua condição compartilhada de vítimas. O vitimismo vai contra o ginoafeto porque o tipo de relacionamento em que as mulheres se envolvem é o de narrar constantemente a dor. Mulheres que se unem na vitimização estão, de maneiras reais, encorajando as mulheres a permanecerem vítimas para sustentar os laços.
De forma mais evidente, as mulheres se relacionam umas com as outras como vítimas quando cultuam o fracasso. Muitas mulheres podem ser maravilhosas na adversidade, mas não no sucesso. Aqui, não estou falando da chamada “síndrome do medo do sucesso” discutida originalmente por Matina Horner. Em vez disso, estou falando de uma desconfiança ou até mesmo ressentimento que frequentemente é expresso em grupos de mulheres quando uma delas tem sucesso de alguma maneira específica e notável. A reação muitas vezes é que, ao escapar do círculo dos oprimidos, ela se torna uma pária.
Alice Walker aborda essa questão em um ensaio, originalmente escrito para o Black Scholar em resposta ao artigo de Robert Staples que atacava as “feministas negras irritadas” Ntozake Shange e Michele Wallace.
Tente não pensar em quão bem-sucedidas elas são. Tente apagar o quanto de dinheiro Shange ganhou. Não fique chateado com o quão lindamente ela escreve, ou com que coragem e vulnerabilidade. Resista à tentação de culpá-la por todas essas plateias de Marin e Scarsdale. Lembre-se, se puder, de que ela não sabia que eles viriam. Pense grande.59
Essas palavras poderiam ser dirigidas a muitas mulheres que sucumbem à política de vitimismo ao considerar o fracasso no mundo masculino, ou a mobilidade descendente, como a única política feminista “pura”. Tais mulheres confundem o mundanismo com a assimilação ao mundo.
A ênfase unidimensionalmente sustentada no vitimismo reduz a história e a ligação das mulheres a um estado eterno de atrocidade sobre o qual as mulheres nunca exerceram nenhum contrapoder. Nessa visão, a história e a ligação das mulheres são moldadas por forças externas dominadas por homens que moldam a existência das mulheres. Isso é uma forma de teoria política behaviorista que enfatiza a onipotência determinista do ambiente, desta vez o ambiente sendo o patriarcado.
Embora seja necessário para as mulheres reconhecerem a prevalência e a longevidade do antifeminismo ao longo de épocas históricas e fronteiras culturais, o imperativo desse reconhecimento não deve levar as mulheres à conclusão de que a força do antifeminismo é quase natural e sem fim – tão avassaladora que qualquer vontade de ação feminista e amizade entre mulheres é perdida.
O vitimismo, em última instância, nega a autodefinição e a autorresponsabilidade no mundo. Quando as mulheres não se definem além do papel de sofredoras, elas se contentam com o mundo como os homens o fizeram. Haverá pouca inclinação para criar um mundo diferente. O vitimismo significa ser dominada pelo mundo. Isso faz com que as mulheres sejam sofredoras do mundo em vez de criadoras do mundo. Estabelece as mulheres no mundo de forma negativa. A comunidade das mulheres é reduzida à nossa opressão compartilhada. Há a premissa não declarada e, esperançosamente, não intencional, de que nós feministas poderiamos perder nossa identidade feminista se o antifeminismo desaparecesse do mundo. Embora um feminismo que destaque a opressão das mulheres como vítimas esteja orientado para questões e realidades muito reais que afetam as mulheres – como o aborto, abusos reprodutivos, estupro e coisas do tipo – ele é engolido pelo vitimismo quando seu ímpeto e propósito são contidos por essas atrocidades.
As mulheres, como povo, não podem se manter unidas e não podem se mover no mundo vinculadas principalmente por um inimigo comum ou por uma identidade negativa de vítima. Somente dentro do quadro da amizade entre mulheres uma mulher pode viver como mulher, trabalhando por um mundo reconstituído, sem se esgotar na luta contra o ódio às mulheres e sem desesperar diante da enormidade da tarefa.
3.1. Mães e filhas
Adrienne Rich escreveu: “Antes da irmandade, havia o conhecimento – transitório, fragmentado, talvez, mas original e crucial – da relação mãe-filha.”60 Nancy Richard acrescentou: “O primeiro relacionamento de uma mulher é com sua mãe. Aprendemos a nos relacionar com outras mulheres tanto a partir desse relacionamento quanto em reação a esse vínculo original.”61 Embora a relação mãe-filha não seja de forma alguma determinística para a formação de amizades entre mulheres, ela teve uma influência persuasiva no desenvolvimento do ginoafeto.
Muito já foi escrito sobre as relações mãe-filha, e não pretendo cobrir esse terreno novamente. No entanto, é importante examinar a relação mãe-filha na medida em que ela se mostrou um grande obstáculo para as mulheres formarem amizades próximas entre si e na medida em que infelizmente proporcionou o solo para o crescimento do vitimismo feminino. Minha intenção aqui não é mais uma vez culpar as mães, como é o procedimento habitual, mas analisar as formas pelas quais o vínculo mãe-filha, ou a falta dele, tem sido baseado no vitimismo – a vitimização da mãe por uma vida hetero-relacional e a vitimização da filha por mães que repassam às filhas uma tradição de dissociação das mulheres.
Sabemos sobre o peso da relação mãe-filha definida nos parâmetros das hetero-relações: a filha testemunha a mãe que não pode ou não quer ajudá-la; a mãe que pode ignorar não apenas o estupro literal da filha pelo pai ou figuras paternas, mas o “estupro” por uma cultura que odeia as mulheres; a mãe que incentiva a filha a se submeter, ficar em silêncio, se moldar; e a mãe que se rebela, mas que paga por sua resistência.62 Mesmo quando a mãe desafia as hetero-relações, a filha observa a vitimização da mãe por fazê-lo. O protótipo histórico disso são as filhas que foram forçadas a testemunhar mães literalmente queimadas como bruxas durante a Inquisição. Os exemplos históricos se multiplicam quando consideramos o preço que as filhas tiveram que pagar ao testemunhar mães “queimadas” por espancamentos, loucura, institucionalização, terapia, drogas e pela constante domesticação feminina do corpo e da mente.
Certamente, filhas são fortalecidas por mães que foram “queimadas” por desvios hetero-relacionais mais do que por mães que não desafiaram as hetero-relações. No entanto, em um nível prático, há pouco conforto, pois a deviança maternal muitas vezes pode privar a filha da presença da mãe. Em um nível existencial, no entanto, dá à filha alguma presença da mãe como mentora.
As mentoras proporcionam educação e conhecimento de mundo. A palavra “mentor” vem de uma raiz latina que significa “lembrar, pensar, aconselhar”. No entanto, a educação que as filhas recebem das mães, dentro dos limites das hetero-relações, não oferece o conhecimento de lembrança – lembrança da mulher original, aquela que cria a si mesma. Não é um conhecimento original ou definido pela mulher. Não transmite às filhas os conselhos e orientações da mundanidade e do poder do ginoafeto.
Dentro dos papéis das hetero-relações, não foi permitido que a mãe fosse mentora da filha. No máximo, ela é uma mentora equivocada; ou seja, o aconselhamento que ela pode dar é bem-intencionado, mas equivocado.
Em um mundo de hetero-relações, onde as mulheres existem principalmente para os homens, a maioria das mães ensina suas filhas a existirem para os homens. Ou seja, a viver “seguramente” no mundo das hetero-relações…
Ao ensinar suas filhas a existirem para os homens, as mães deixam de contar a elas a que custo. Nem elas próprias podem saber… As mães “protegem” suas filhas da violência no mundo que os homens “criaram”.63
Nancy Richard, que escreveu essas palavras, descreve a mãe como uma mulher que pode exercer a proteção sem ter o poder de proteção. Assim, as mulheres recorrem aos homens em busca do que pensam ser proteção “real”, conhecimento e poder.
Conhecer, conhecer verdadeiramente as formas pelas quais as mulheres são contidas pelas hetero-relações seria a educação definitiva do ginoafeto que as mães poderiam transmitir às filhas. Mas as mulheres com frequência se tornam “as filhas de homens educados”.
Hannah Arendt associa o conhecimento à busca da verdade.64 O conhecimento do ginoafeto ensinaria às mulheres a verdade sobre as hetero-relações e o que as mulheres precisam saber para viver de maneira verdadeira. Seria um conhecimento confiável que viria de um conselheiro experiente e confiável, um verdadeiro mentor. Poderia ser o tipo de conhecimento que Sido transmitiu a Colette.
O que Colette tanto amava em Sido era um tipo especial de força feminina. Ela amava o que sua mãe sabia sobre o mundo – de que direção o vento estava soprando, onde estava chovendo. Sido estava próxima da natureza e atenta aos presságios. Ela fazia barômetros com aveia e podia dizer se o inverno seria frio ou não com base no número de camadas de uma cebola. Essas eram as antigas artes femininas, os talentos de xamãs e bruxas, e eram praticados em uma cultura que nem as denegria nem as domava.
Sido não parece ter vivido no patriarcado. Ou Colette não a via dessa forma. Tanto mãe quanto filha tinham uma distância compartilhada e um benigno desprezo pela autoridade masculina.65
Essa é uma descrição profunda da mãe como mentora. No entanto, é em segunda mão. Temos as próprias palavras de Colette sobre a ausência de restrições hetero-relacionais na relação mãe-filha: “Nenhum macho meio-crescido em qualquer lugar, nenhum sinal de um homem… A profunda paz de um harém, sob os ninhos de maio, e a glicínia banhada de luz solar… e as mãos de minha mãe na parte de trás do meu pescoço, habilmente trançando meu cabelo.”66
A melhor educação que as mães podem dar às filhas é o exemplo de suas próprias vidas. Oxalá todas as filhas pudessem dizer de suas mães: “Eu sou filha de uma mulher… que ela mesma nunca deixou de florescer, incansavelmente, durante três quartos de século.”67 Isso é verdadeira mentoria.
A ideia de mentora como uma conselheira experiente e confiável quase desapareceu. A conselheira tornou-se a terapeuta, que tenta substituir o relacionamento autêntico onde a relação mãe/filha “fracassou” e a mentora não está disponível. Ele ou ela se torna o intermediário entre a mãe e a filha. As mulheres gastam tanto tempo, se não mais, com seus conselheiros, trabalhando para resolver – lidar com a confusão entre amar e odiar suas mães e entre sentir-se engolidas e, ao mesmo tempo, expulsas por suas mães do que jamais tiveram em um relacionamento autêntico com suas mães.68
Uma filha sem mentoria é uma filha sem nutrição, sem a nutrição da força que ela precisa para Sobreviver como uma mulher original neste mundo. As filhas, em comparação com os filhos em uma família hetero-relacional, são mais subnutridas de todas as formas pelas mães e pressionadas prematuramente a se tornarem nutridoras de outros — principalmente de homens. O que também acontece nesse contexto, como apontou Denice Yanni, é “um silenciamento das próprias necessidades de nutrição da mulher, tornando-a a principal nutridora.”69 Uma vez que nutrir é “o modo de comportamento mais aceitável para as mulheres, seu estilo de relacionamento mais aceito, as mulheres são mais propensas a se estenderem — e serem rejeitadas — como nutridoras.”70
Esse síndrome de nutrição afeta as mulheres de muitas maneiras diferentes, algumas bem sutis. Muitas vezes, observei que em aulas de Estudos Femininos, as estudantes têm grande dificuldade em discutir criticamente as opiniões e julgamentos umas das outras. Algumas estão hesitantes, inseguras e geralmente pouco familiares nesse novo e alienígena território de julgamento crítico. Outras conscientemente se abstêm do debate crítico porque o equiparam com um modo de interação adversarial masculino que é percebido como um ataque. Com muitas estudantes, a tentação é adotar um comportamento tradicional de nutrição umas com as outras e encobrir a troca crítica e análise em sala de aula com gestos de apoio e cuidado. Muitas vezes, as questões, bem como qualquer análise significativa e de pensamento rigoroso sobre elas, acabam sendo deixadas de lado. As estudantes não vão além da nutrição e do apoio, enquanto desejam desesperadamente ir além, tanto em um contexto intelectual quanto analítico. No entanto, elas não querem arriscar o que é necessário para encarar diretamente as interações críticas e às vezes desagradáveis com outras mulheres.
A falta de mentoria materna pode acompanhar uma mulher ao longo de sua vida. Presas na “rede de segurança” das hetero-relações, as mulheres passam para as filhas — filhas que se tornam mães, professoras, conselheiras e amigas de mulheres — um saco de sobrevivência de táticas. Essas táticas não fornecem o tipo de “Sobrevivência” que o ginoafeto proporciona, “não apenas no sentido de ‘continuar vivendo’, mas no sentido de viver além”71 — neste caso, além das hetero-relações. São as táticas de sobrevivência de mulheres que ainda são vítimas das hetero-relações. Elas dão às mulheres a capacidade de sofrer e resistir e/ou de manipular seu caminho com segurança e habilidade pelo mundo que os homens lhes deram. No entanto, elas geram negligência com relação às mulheres e a uma forte existência do ginoafeto. E frequentemente criam culpa em relação às coisas erradas.
3.2. A Política da culpa e da culpabilização
A culpa e a culpabilização frequentemente acompanham uma ideologia e estilo de vida de vitimismo. A culpa produz uma identificação com indivíduos e grupos oprimidos que muitas vezes é baseada em piedade e tristeza por suas situações difíceis. A culpa também é semelhante a uma reação automática quase pavloviana; ou seja, ela reage sem pensar e frequentemente sem crítica ao que é percebido como opressão. Às vezes, isso tem levado a exigências de algumas mulheres para a aceitação acrítica das ações de certos indivíduos e grupos porque eles são membros de uma classe oprimida. Kathleen Barry dá este exemplo:
Quando eu estava pesquisando sobre a escravidão sexual feminina na Europa e nos EUA, encontrei vários casos de cafetinas lésbicas – ou seja, mulheres lésbicas que escravizam sexualmente e exploram outras mulheres. Elas eram pelo menos tão cruéis, escravizadoras e exploradoras de suas próprias mulheres quanto quaisquer cafetões homens. Parecia haver apenas uma diferença: elas eram tratadas com mais severidade pelo sistema de justiça criminal, que se esforça muito para ignorar ou não interferir com os cafetões homens. Agora, é verdade que as cafetinas lésbicas não são típicas nem do lesbianismo nem do cafetinismo. Mas isso não significa que qualquer forma de cafetinagem deva ser ignorada ou que as cafetinas lésbicas devam receber consideração especial das feministas porque, como lésbicas, são tratadas com mais rigor pelo sistema de justiça criminal. Acredito que a mesma lógica se aplica à acusação de que o movimento de combate ao estupro é racista porque os homens negros são tratados com mais rigor pelo sistema. O fato do racismo patriarcal nem desculpa os homens negros por estuprar mulheres, nem exime as feministas da responsabilidade de garantir que mais homens brancos sejam detidos e levados a julgamento por estupro.72
Eu citei essas palavras em extensão porque elas fornecem uma boa análise não apenas de uma aceitação acrítica da opressão, mas também de uma conclusão seriamente equivocada que é um desdobramento de uma política de culpa. Aqui, as mulheres tiram conclusões sobre heterossexismo e racismo que são severamente limitadas pela falta de discernimento e de “rigor de discernimento”. Aqui, a culpa embota a percepção crítica e a capacidade de separar o racismo real, por exemplo, daquilo que é sentimentalizado como racismo.
A culpa também gera a culpabilização. Isso é evidente em grupos de mulheres onde algumas mulheres repreendem outras por racismo, classismo e/ou heterossexismo. Isso promove uma política e um estilo de consciência e comportamento antirracista, anticlasses e/ou antiheterossexista baseados em aterrorizar outras mulheres tanto de maneira intelectual quanto social. A culpabilização geralmente é expressa de forma negativa; por exemplo, uma mulher pode dizer que outra mulher “não tem análise sobre raça”, em vez de expressar uma posição educativa e afirmativa sobre raça.
As pessoas culpabilizadas, assim como aquelas que são culpadas, muitas vezes buscam segurança na invisibilidade; ou seja, muitas vezes confessam sua culpa em um fórum público. Como Nietzsche expressou, “falar sobre si mesmo também pode ser um meio de se esconder”.73 Escondendo-se entre os “opressores”, os culpados e os culpabilizados muitas vezes batem no próprio peito e confessam sua própria história de comportamento opressivo. Supostamente, se alguém se nomeia como opressor, não pode ser acusado de oprimir. Isso pode esconder o que é realmente uma necessidade de segurança, proteção e “perdão superficial”.
O que frequentemente se torna de importância primordial nos círculos de mulheres é que as mulheres reconheçam sua culpa. O reconhecimento da culpa muitas vezes se torna uma licença para julgar os outros.
A confissão entusiástica e agressiva se torna semelhante ao personagem de Camus, cuja confissão perpétua é seu meio de julgar os outros: “[Eu]… pratico a profissão de penitente para poder me tornar um juiz… quanto mais me acuso, mais tenho o direito de te julgar.”74
Essa identificação com o vitimismo também cria um padrão em que as mulheres aplacam os outros depreciando a si mesmas. É como um ritual onde a culpa não é realmente expulsa, como pelo menos era nos rituais religiosos de expiação, mas sim onde ela é redistribuída entre os culpados e os manipulados com culpa. Isso tem o efeito adicional de levar as mulheres a agirem como oprimidas ou se colocarem no papel de vítimas em outras circunstâncias da vida. Mulheres que agem de forma forte, que não estão deprimidas ou com aparência derrotada, são suspeitas. Muitas mulheres acham muito mais fácil criar laços umas com as outras na miséria, a partir de uma fraqueza compartilhada de espírito, e como vítimas.
Uma postura de contínua auto-humilhação e confessionalismo em relação a lésbicas, mulheres pobres, mulheres negras, mulheres com deficiência e/ou mulheres idosas não é corajosa nem produz mudanças. Em vez disso, ela amplia o círculo do vitimismo, com as mulheres, desta vez, impondo a identidade e o comportamento de vítima. Mulheres com discernimento deveriam ser tão céticas em relação a essa subserviência quanto seríamos se tal comportamento viesse dos homens. A política de culpa e de culpabilização não beneficia nenhuma mulher.
As energias investidas em carregar e reconhecer a culpa, bem como em culpabilizar os outros, não permitem uma ação construtiva contra a opressão. Em vez disso, elas produzem uma estagnação confessional que cria uma preocupação com a própria culpa. Quando as mulheres redistribuem a culpa entre si, e especialmente usam a culpabilização para fazer isso, acabam esquecendo do “inimigo principal”.75
O compartilhamento da culpa pode criar uma sensação ilusória de unidade por um tempo, mas não promove uma união mais forte que sobreviva ao compartilhamento da dor.
A humanidade dos insultados e feridos nunca sobreviveu à hora da libertação nem por um minuto sequer. Isso não significa que seja insignificante, pois na verdade torna o insulto e o sofrimento suportáveis; mas significa que, em termos políticos, é absolutamente irrelevante.76
Dito de forma diferente, o sofrimento, a resistência, a vitimização e a irmandade dos oprimidos não criam nada além de si mesmos. A política da culpa e da culpabilização de outras mulheres está sendo cada vez mais usada para conferir um tipo de status interno a certas mulheres que podem reivindicar uma história de múltiplas vítimas – ou seja, opressão por sexo, classe, raça e/ou outras formas infinitas de opressão produzidas por uma cultura patriarcal – ou que reconhecem sua história de ser uma opressora múltipla. Aquelas que não podem ou não querem reivindicar uma ou mais formas de múltiplas opressões são empurradas para o status de outsiders. Em um sentido muito real, as mulheres criam assim outra forma da “Sociedade de Outsiders” de Virginia Woolf entre nós mesmas. Em vez de usar a multiplicidade de opressões de forma positiva, ela se torna uma cunha negativa que divide as mulheres umas das outras.
Pat Hynes foi a primeira a apontar que o que também está surgindo nesse contexto é uma “aritmética da opressão… cuja correção é medida pelo fato de conter os fatores adequados de adição.”77 Esse método de adição nunca pode dar conta adequadamente da variedade infinita de opressões específicas, porque sempre haverá algum termo ausente. Em vez disso, Hynes vê que o “imperativo para o feminismo radical… é encontrar a linguagem e a teoria que descrevam em detalhes precisos todas as maneiras de suspeita e separação que têm enfraquecido a paixão por uma comunidade de mulheres.”78
É crucial reconhecer as condições de vitimização única e opressão múltipla na vida de muitas mulheres, seja por raça, classe e/ou orientação lésbica. Quando se é oprimida por condições distintas e variadas, é preciso responder não apenas como mulher, mas como mulher negra, mulher judia, mulher idosa e/ou mulher lésbica. Da mesma forma, as mulheres que não são oprimidas dessa maneira não podem se manter afastadas dessas condições nas vidas de outras mulheres. Não podemos agir levianamente como se todas fôssemos mulheres da mesma forma. Diferentes opressões devem ser avaliadas e tratadas de forma singular, não porque automaticamente conferem um “status especial”, mas porque trazem insights tanto para as diversas condições da opressão das mulheres quanto para as possibilidades de amizades diversas entre mulheres. Lucy Dawidowich coloca dessa forma, usando o Holocausto como exemplo:
Referir-se ao assassinato dos 6 milhões de judeus como distintivo, como único, não é uma tentativa de magnificar a catástrofe que lhes ocorreu, nem de implorar lágrimas e pena por eles. Não é pretendido minimizar as mortes dos milhões de não-judeus… [isso] fica à parte… não por causa de qualquer destino distintivo que as vítimas individuais suportaram, mas por causa da intenção diferenciadora dos assassinos e do efeito único dos assassinatos… A aniquilação dos 6 milhões de judeus pôs um fim com irrevogável finalidade na cultura e civilização milenar do judaísmo ashkenazi, destruindo a continuidade da história judaica.79
As feministas não podem se dar ao luxo de resumir qualquer condição opressiva sob a categoria ecumênica de sofrimento feminino. Não podemos turvar a distintividade da vitimização por raça, classe ou qualquer outra coisa, rejeitando assim a responsabilidade política e moral pelas consequências dessas condições opressivas distintamente diferentes na vida de muitas mulheres. No entanto, ao mesmo tempo, não podemos permitir que essas diferenças distintivas apaguem ou extingam nossa comunidade comum como mulheres que são oprimidas como mulheres e que se unem como mulheres.
Em última análise, o reconhecimento das diferenças e da responsabilidade por múltiplas formas de opressão deve proceder do que Bonnie Atkins chamou de “política de identidade”.80 Alice Walker dá um bom exemplo da “política de identidade”:
…na América, as mulheres brancas que são verdadeiramente feministas – para quem o racismo é inerentemente impossível – são em grande parte superadas pelas mulheres brancas americanas comuns, para quem o racismo, na medida em que assegura o privilégio branco, é uma forma de vida aceita. Naturalmente, muitas dessas mulheres aderiram ao movimento feminista para parecerem modernas, já que essa é a tendência do momento.81
Neste contexto, Walker defende o “rigoroso discernimento” que mencionei anteriormente neste capítulo. Esse discernimento, ela lembra às mulheres negras, permitirá que elas “coloquem energia em colaborações feministas apenas quando houver pouco risco de desperdiçá-la.”82 Walker acrescenta ainda mais:
Até o ponto em que as mulheres negras se dissociam do movimento feminista, elas abandonam suas responsabilidades com as mulheres em todo o mundo. Isso é uma abdicação séria e um uso inadequado da tradição da história das mulheres negras radicais: Harriet Tubman, Sojourner Truth, Ida B. Wells e Fannie Lou Hamer não teriam gostado. Nem eu.83
Andrea Dworkin nos ofereceu algumas das melhores análises antirracistas que derivam de uma “política de identidade” feminista. Ao analisar como as mulheres negras são retratadas na pornografia, ela diz:
Enquanto sua pele aparece, sua vulva aparece. Esse é o valor sexual específico da mulher negra na pornografia nos Estados Unidos, uma sociedade voltada fanaticamente para a desvalorização sexual da pele negra percebida como um órgão sexual e uma natureza sexual. Nenhuma mulher de outra raça carrega esse fardo específico neste país. Em nenhuma outra mulher a pele é sexo, a vulva por si só – sua essência, sua ofensa.84
Aqui, não há subordinação da raça sob a categoria universal do feminismo. Em vez disso, há uma análise aguçada das conexões que as mulheres como mulheres devem fazer se a análise e ação contra múltiplas formas de opressão devem ter integridade feminista. As obras de Alice Walker e Andrea Dworkin são excelentes exemplos de análises e ações antirracistas que derivam de uma “política de identidade”.
As feministas não podem ser culpadas ou serem alvo de tentativas de culpabilização por criarem o espectro de condições opressivas sob as quais muitas mulheres vivem. Em vez disso, devemos agir com responsabilidade, não com culpa. Devemos lutar para que as mulheres não assumam essa culpa que não lhes pertence, uma culpa tão corrosiva para o espírito feminino quanto a culpa de uma jovem vítima de incesto que se convence de que é responsável pelo crime de seu pai contra ela. As mulheres com frequência assumem a culpa que pertence corretamente aos Patriarcas.
Quando as mulheres são consumidas pela culpa e agem a partir dela, ou quando ocorre a culpabilização, as possibilidades de amizade entre mulheres são escassas. A política da culpa e da culpabilização reforça a noção de que as mulheres só podem se unir ao reconhecer uma dor compartilhada, assim reciclando novamente a dor entre nós mesmas. Se uma mulher assume a identidade primária de ser oprimida, ou de ser de alguma forma opressora, as mulheres se entregam ao sofrimento.
Uma “aritmética da opressão” incute nas mulheres a desconfiança em relação às mulheres que não são, por exemplo, da mesma raça, grupo étnico ou não têm o mesmo nível de capacidade. As mulheres então aprendem a confiar apenas nas mulheres de seu próprio tipo. Há, é claro, uma real necessidade de depositar confiança primordial em mulheres que compartilham uma história semelhante. As mulheres não podem simplificar a amizade feminina ou tornar a harmonia do ginoafeto em uma questão de “perdão superficial”. A amizade entre mulheres, especialmente a amizade que se forma através de linhas de diversidade e diferença, é um processo complexo, delicado e exigente. Não podemos nos dar ao luxo de romantizar a amizade feminina ou imaginar que podemos ultrapassar as fronteiras das diferenças para alcançar instantaneamente o ginoafeto. No entanto, podemos deixar a culpa e a culpabilização para trás, colocando as possibilidades de amizade à nossa frente.
3.3. Alienação das mulheres do poder pessoal e político
A vitimização cria uma relação complexa entre as mulheres e o poder. Por um lado, muitas mulheres tendem a encarar o poder de forma ambivalente, como algo a ser evitado, algo que corrompe e algo que é sempre usado sobre e contra os outros. Por outro lado, muitas mulheres que foram submetidas às perversidades do poder patriarcal se insurgiram contra ele e o tomaram para si e para outras mulheres. As mulheres têm uma relação dual com o poder. No entanto, é a primeira noção – de que o poder deve ser evitado – que tem se mostrado um obstáculo para o ginoafeto. Muitas mulheres, tendo sido vítimas do poder patriarcal, assumiram acriticamente que o poder em si corrompe. Isso muitas vezes é acompanhado por uma alienação de seu próprio senso de poder pessoal – o que Paul Tillich chamou de “poder de ser” – e das outras mulheres que afirmam seu poder individual de ser dentro dos grupos de mulheres.
O poder pode ser definido de muitas maneiras. Em tempos mais recentes, frequentemente tornou-se sinônimo de poder político. No entanto, se quisermos pensar no poder fora de suas nuances corrompidas, devemos começar com o poder de ser e falar sobre o fundamento ontológico de todas as outras formas de poder, especialmente do poder político.
A autoafirmação de um ser apesar do não-ser é a expressão de seu poder de ser. Aqui estamos nas raízes do conceito de poder. O poder é a possibilidade de autoafirmação apesar da negação interna e externa. É a possibilidade de superar o não-ser. O poder humano é a possibilidade do ser humano de superar infinitamente o não-ser.85
Na minha opinião, é na alienação das mulheres de seu próprio poder de ser que outros problemas femininos com o poder começam.
Existem diferentes formas pelas quais essa alienação se manifesta. Muitas vezes em grupos de mulheres, há uma aceitação automática e acrítica do coletivismo como a melhor maneira de estruturar um grupo. Junto com isso, surge uma insistência em estruturas “não hierárquicas”. Embora o desejo de se organizar coletivamente seja uma reação compreensível à experiência das mulheres com hierarquias opressivas, institucionais e patriarcais, isso pode tomar direções perturbadoras que desviam o desenvolvimento e o aprofundamento da amizade feminina.86
Por exemplo, essa insistência em estruturas coletivas muitas vezes nivelam as diferenças reais que as mulheres têm em competência, comprometimento e capacidades. Quando as diferenças de talento ou liderança são afirmadas, mulheres que se sentem menos poderosas são ameaçadas. Sherry McCoy e Maureen Hicks, em um artigo intitulado “Uma Retrospectiva Psicológica sobre o Poder na Comunidade Lésbica-Feminista Contemporânea”, dão um excelente exemplo disso:
Uma ética que foi aceita em muitos grupos feministas diz: “Se a mulher A exerce o poder de uma maneira que faz com que a mulher B se sinta menos poderosa, A cometeu um erro.” Isso deixa muito pouco espaço para o exercício de poder ou liderança, porque alguém deve estar constantemente em guarda para que os esforços de orientação e sugestão não sejam vistos como a usurpação do poder de uma mulher menos expressiva.87
A questão real aqui é: por que a mulher B e outras como ela não tomam o próprio poder em vez de acusar outras mulheres de privá-las disso?
Muitas mulheres não assumem o poder porque sua história de vitimização resultou em um poder pessoal gravemente diminuído. Diante da falta desse poder pessoal, tais mulheres tendem a desvalorizar aquelas que expressam um poder de ser. Mulheres que manifestam individualidade ou direcionamento podem ser duramente criticadas por se destacarem do grupo. Sob a retórica de “coletivo”, “não competitivo” e “igualitário”, mulheres que alcançam, que são ambiciosas e bem-sucedidas em suas atividades são relegadas ao status de párias. Não querendo ser “exiladas” do grupo, algumas mulheres fortes podem apaziguar as mais fracas depreciando ou diminuindo a si próprias e suas realizações. Ou podem optar por deixar o grupo e se desiludirem com outras mulheres. A alienação das mulheres do poder pessoal e político confere ao grupo coletivo ou à comunidade um falso poder.
Para muitas mulheres, a comunidade [das mulheres] se tornou uma entidade com vida própria. Como tal, detinha o poder de julgar e, como um lar recém-encontrado para os sem-teto, adquiriu uma significância poderosa… Tradicionalmente, as mulheres foram excluídas do acesso ao poder e à autoridade “legítimos” (masculinos)… Quando as mulheres atingem a idade adulta, muitas vezes têm pouco entendimento de como adquirir poder pessoal direto, e muito menos do que fazer com ele mesmo que o tivessem… Porque as mulheres não vivenciaram de primeira mão a agregação e a utilização do poder, nos foi deixado conceber nossos próprios conceitos sobre o que é o poder, o que deveria ser e como funciona. Conceitualizar a comunidade como uma fortaleza de onipotência reflete a imaturidade de nossa experiência em relação ao poder.88
Estruturas não hierárquicas frequentemente incentivam um tipo de pessoa parasitária que pode derivar seu próprio “poder” ao se alimentar do poder de outra pessoa. Tais mulheres frequentemente usam a retórica da igualdade como um meio de manipular emocionalmente outras mulheres que demonstram “a possibilidade de autoafirmação apesar da negação interna e externa”, para repetir as palavras de Tillich. Qualquer exibição de poder pessoal por outra pessoa é vista como uma crítica implícita de suas próprias inadequações. A reação hostil a qualquer demonstração de força ou conquista por parte de uma mulher muitas vezes é acompanhada por uma rejeição acrítica de qualquer forma de requisitos ou ordem do grupo. Todos os imperativos são considerados elitistas, repressivos e/ou ávidos por poder. É claro que, como Joreen demonstrou há muito tempo em “The Tyranny of Structurelessness”89 (A Tirania da Falta de Estrutura), não existe tal coisa como um grupo sem estrutura. As chamadas estruturas não hierárquicas frequentemente incentivam o surgimento de hierarquias mais informais – um jogo de poder velado e restrições – que acabam se tornando mais rígidas do que a maioria dos grupos explicitamente estruturados, uma vez que as pessoas no grupo “não hierárquico” não têm formas aceitas de contestar as hierarquias não estruturadas que inevitavelmente se formam.
O dogma não hierárquico pode prejudicar o poder do ginoafeto porque pode dar um foco equivocado à “igualdade de poder político” quando várias mulheres no grupo não têm um centro de poder individual a partir do qual construir. Assim, a situação frequentemente se torna uma na qual as mulheres drenam o poder comum do grupo ou dos indivíduos fortes no grupo ou descontam seus sentimentos inadequados sobre o poder em outras mulheres que o manifestam.
… igualar o poder pode não ser um objetivo apropriado em todo grupo. Uma insistência automática em estruturas “não hierárquicas” pode ser uma reação exagerada à nossa experiência com desequilíbrios de poder institucionalizados opressivos. Diferenças reais em competência, responsabilidade e compromisso exigem reconhecimento, e isso pode se manifestar na forma de delegar maior autoridade aos membros de um grupo que estão dispostos a aceitá-la.90
O imperativo acrítico de formar grupos baseados em princípios coletivistas pode funcionar como uma reação, isto é, como uma resposta ao nosso status como vítimas do poder patriarcal. “Nossas estruturas de poder precisam ser julgadas pelo fato de aumentarem ou não a capacidade dos indivíduos de alcançar seu próprio potencial, não pelo fato de, em determinado momento, algumas mulheres receberem maior autoridade.”91
Outro obstáculo do grupo não hierárquico é o hábito de poder indireto que ele encoraja as mulheres a cultivar. Mulheres em geral muitas vezes não usaram seu poder pessoal direto. Em vez disso, muitas recorreram ao poder indireto ao canalizar suas próprias ideias e desejos através de homens ou até manipulando homens para fazerem o que desejam. Esse uso indireto do poder muitas vezes é imitado em contextos coletivistas. Onde o poder direto do ser não é convocado pelos valores do grupo, a ética encorajada é a da indireção. As mulheres muitas vezes procuram influência por meio de indireção. Não projetar um sentido direto do Eu ou de seus valores é considerado “politicamente correto”. “Misturar-se” com o grupo é preferível a “se destacar”. As qualidades que distinguem uma mulher não são convocadas, e seu poder distintivo se torna invisível. No entanto, o grupo ainda pode ser manipulado por mulheres individuais dispostas a conquistar poder por meios indiretos.
A aceitação acrítica de um modelo não hierárquico pode gerar um conjunto completamente diferente de injustiças. Como muitas críticas observaram, o coletivismo leva as mulheres a buscar objetivos internos – o que poderíamos chamar de assuntos domésticos – em detrimento das tarefas externas necessárias, tarefas que se estendem para um grupo mais amplo. A dinâmica do processamento do grupo, as formas de inter-relação dentro do grupo e os problemas de comunicação entre os membros do grupo são tratados e às vezes arrastados indefinidamente. Tais assuntos internos podem ser “discutidos até a exaustão” ou, mais apropriadamente, receber uma falsa “vida”.
Falsa vida não é poder real. Dentro do enclave de tal grupo, as mulheres podem ter a ilusão de que estão desafiando as estruturas de poder patriarcal. No entanto, nenhum poder real surge de um grupo que silencia suas vozes mais competentes e brilhantes em prol de uma falsa sensação de igualdade do grupo. E certamente nenhuma amizade sólida pode ser formada entre mulheres que não têm o poder de ser. Se, como disse Aristóteles, “o amigo é outro eu”, esse Eu deve conhecer seu próprio poder de ser. Ela deve ser sua própria amiga.
3.4. A mulher como a suprema vitimizadora de mulheres
Tem havido traições reais de mulheres por outras mulheres – por mulheres que supostamente compartilhavam um espírito e visão feministas semelhantes e por mulheres que um dia chamamos de amigas. As mulheres também têm mantido expectativas irrealistas em relação a amigas mulheres, de tal forma que, quando essas expectativas não foram cumpridas, as mulheres se sentiram desiludidas e abandonadas. É importante distinguir entre as traições reais e as expectativas irrealistas, embora as duas frequentemente produzam os mesmos resultados – a falta de afinidade com outras mulheres.
A irmandade que foi criada na luta contra todas as formas de tirania masculina não significou que as mulheres automaticamente se tornaram amigas ou que compartilhavam um mundo comum além da luta. Muitas mulheres que lutaram arduamente pela causa comum do feminismo sentiram que isso lhes daria mais do que realmente deu. E quando não deu, elas se “queimaram”. Kate Stimpson observou que “burnout” (esgotamento) é realmente outra forma de raiva. Poderíamos então perguntar, Raiva com relação a quê? Eu responderia: Raiva contra as mulheres que desapontaram ou traíram. Raiva pelo investimento feito em outras mulheres. Raiva por dar mais do que recebeu. Raiva pela incapacidade de transcender diferenças e divisões inconciliáveis. Raiva pelo reconhecimento, respeito e consideração que as mulheres deixaram de dar umas às outras. Raiva pela perda de uma felicidade que as mulheres esperavam encontrar com outras mulheres.
Muitas mulheres que se tornaram feministas durante as décadas de 1960 e 1970 foram “desprezadas” por mulheres que elas tinham começado a considerar como amigas. O “desprezo” às vezes tomava a forma de uma denúncia pública em que as mulheres eram castigadas por alguma posição “politicamente incorreta”. Mais frequentemente, a ruptura ocorria em particular. Como as mulheres não estavam preparadas para confrontar traições e deslealdades de outras mulheres, especialmente mulheres nas quais tinham começado a confiar, muitas vezes a resposta era concluir que “as mulheres não eram melhores do que os homens”. Assim, muitas mulheres se afastaram de outras mulheres e voltaram atrás na identificação com mulheres. Na última década, muitas mulheres se alienaram de outras mulheres e do feminismo. Mary Daly se refere a isso como uma “crise de fé feminista”, onde as mulheres passaram a acreditar que a “ilusão” é o próprio feminismo.92
Existem muitas maneiras de analisar esse fenômeno. É instrutivo observar que as mulheres que se afastam das outras mulheres e da identificação com mulheres parecem estar dizendo que ser ferida por uma mulher é uma espécie de “vitimização definitiva”. Tendo conhecido a vitimização pelos homens e esperado que ela viesse desses lados, as mulheres não previram que isso pudesse vir de outras mulheres. No entanto, veio, e mais frequentemente do que muitos de nós gostariam de admitir.
No entanto, afastar-se das mulheres, diante da violência horizontal e da traição, é como proclamar que ninguém pode infligir golpes mais mortais nas mulheres do que outras mulheres. Claro, há um nível em que isso é verdade. Porque esperamos muito mais das mulheres, as mulheres ferem mais profundamente. No entanto, isso é apenas uma verdade parcial. Verdades parciais podem ser envolventes, mas o problema com as verdades parciais é que elas simplesmente não são verdades completas. A verdade completa é que, em um mundo que odeia as mulheres, as mulheres internalizarão e externalizarão valores e comportamentos anti-mulheres. O melhor que as mulheres podem fazer com isso é saber precisamente que esse comportamento ocorrerá, enfrentar esse conhecimento de frente (mas talvez mais importante, de coração) e agir de maneira mais gino afetiva por causa e apesar desse conhecimento da mente e do coração.
A força do nosso compromisso com as mulheres é finalmente testada nos momentos difíceis – mesmo quando as mulheres jogam a amizade feminina de volta em nossos rostos. Como mulheres da realidade, devemos conhecer todas as forças que estão contra nós, incluindo a terrível força das mulheres que traem outras mulheres. Devemos compreender esse conhecimento, senti-lo e depois seguir em frente – em direção a outras mulheres. Isso requer persistência e resistência – o poder de permanecer junto às mulheres.
Quando as mulheres se afastam das mulheres, elas escolhem um tipo diferente de vitimização. Elas estão dizendo, na verdade, que já estão muito feridas para serem feridas novamente, desta vez por outras mulheres. No entanto, essa atitude faz das mulheres as feridas supremas das mulheres. Também proclama que ser ferida por uma mulher é ser uma vítima definitiva, além da qual nada mais pode vitimar. Claro, as mulheres não estão conscientemente cientes de que estão se sujeitando a um tipo mais sutil de vitimismo feminino. No entanto, isso é o que acontece na realidade.
O afastamento entre mulheres gera uma atitude niilista em relação ao feminismo e à amizade entre mulheres. Durante meados do século XX, especialmente na era pós-Holocausto e pós-bomba atômica, poetas e filósofos homens tiveram uma fascinação prolongada pelo significado do nada. Andrea Dworkin disse sobre esse niilismo: “… eles romantizam essa alienação para evitar assumir a responsabilidade pelo que fazem e pelo que são.”93 Uma alienação semelhante infectou as mulheres, não ao ponto de romantizar o afastamento das mulheres, mas ao ponto de evitar a responsabilidade por expectativas irreais em relação às mulheres e por não reconhecer um certo sentimentalismo no vínculo feminino, que esperava demais e então recuava quando não era correspondido.
Esse sentimentalismo pode assumir a forma de depositar confiança acrítica nas mulheres em geral ou nas mulheres que se definem como feministas. A confiança categórica, assim como a verdade categórica, não pode se sustentar; não pode sustentar aqueles que a exercem, e certamente não pode sustentar a amizade entre mulheres. A confiança categórica torna a amizade, como disse Emerson, “boa demais para ser verdade”. Confiar acriticamente em alguém, mesmo em mulheres honrosas, é tolice.
Não está errado que as mulheres esperem muito umas das outras. Devemos esperar que as mulheres não se comportem como os homens. No entanto, ao esperar muito, não podemos esperar que as mulheres sejam mais de tudo – mais morais, mais confiáveis, mais generosas, mais inteligentes. E, especialmente, não podemos esperar que as mulheres sejam mais de tudo de uma maneira que as torne menos tolerantes com as mulheres que as decepcionam.
A desafeição niilista é a saída fácil. As vítimas mais seguras de nossa decepção e raiva são as de nosso próprio sexo. É simples negar os valores do feminismo e da amizade entre mulheres que foram anteriormente mantidos. É muito mais difícil confrontar o desencanto e decidir novamente optar pelas mulheres.
A desafeição das mulheres deve ser substituída por um ginoafeto mais realista. Devemos resistir à ideia de “que estamos condenadas a uma vitimização eterna pelo ‘outro’: primeiro o patriarcado – agora outras mulheres.”94
Conclusão
Os obstáculos à amizade entre mulheres finalmente nos lembram de que a amizade é contínua. Tornar-se amiga de mulheres significa continuar a ser amiga de outras, mesmo depois de amizades profundas serem perdidas, ou trabalhar através dos obstáculos na esperança de que uma amizade possa continuar.
A amizade é um processo de “atos repetidos”. Nesse sentido, a amizade é um hábito que reaparece diante de traições, rupturas e desafeição em relação às mulheres. É um hábito criativo que, para usar as palavras de Mary Daly e aplicá-las a outro contexto, “não acontece por meio de pensamentos fantasiosos, mas por meio de prática árdua, através de atos repetidos”.95 Atos repetidos de amizade devem enfrentar o “paraíso perdido” de amigas anteriores.
Há uma quantidade enorme de sabedoria prática sobre a amizade que pode surgir de seus fracassos, assim como de seus sucessos. No calor do fracasso, sempre há a tentação de perguntar: “Valeu a pena?” Valeu a pena o tempo, a energia, a intensidade de sentimentos e o compartilhamento do Eu? Se o ginoafeto é de fato uma virtude política com efeitos políticos, essas perguntas devem ser respondidas de um ponto de vista diferente, possivelmente com outras perguntas.
Quando uma amizade desperta uma mulher para as possibilidades de uma vida mais profunda e depois nega o cumprimento dessas possibilidades dentro da amizade, teria/terá valido a pena? Seria melhor ter sido deixada sem ser afetada por uma amizade específica, mesmo que essa aliança específica não tenha durado? Todos nós poderíamos nos inspirar nas palavras de Alice Walker, ditas no contexto do movimento pelos direitos civis, mas muito aplicáveis à crise da amizade entre mulheres:
Parte do que a existência significa para mim é saber a diferença entre o que sou agora e o que era então. É ser capaz de cuidar de mim mesma intelectualmente, bem como financeiramente. É ser capaz de perceber quando estou sendo prejudicada e por quem… Significa fazer parte da comunidade mundial, estar atenta a qual parte é que eu me juntei e saber como mudar para outra parte se essa parte não me convém. Saber é existir.96
Se a amizade entre mulheres fizer qualquer uma dessas coisas, apesar dos rasgos e fissuras em seu tecido, vale muito a pena.
Os obstáculos à amizade entre mulheres, para muitas, deu-lhes uma razão para se afastarem de outras mulheres porque sentem que se ganha muito pouco com o ginoafeto. Elas ignoram os presentes da amizade feminina que lhes foram dados. A amizade entre mulheres nos deu a experiência uma da outra, e nos deu o presente do Eu. Ela nos deu um propósito, e nos mostrou que podemos estar pelas mulheres. Ela demoliu a fachada das hetero-relações que nos afasta de nós mesmas e umas das outras. Ela nos deu uma história em que aprendemos que as mulheres sempre amaram outras mulheres. Ela nos deu uma compreensão de que uma vida de mera sobrevivência é insuficiente para o espírito. Ela nos deu a capacidade de expressar nosso amor pelas mulheres de diferentes maneiras. Ela nos deu vidas que são tocadas por mulheres, rompendo “o Tabu patriarcal universal contra o Toque entre Mulheres”. Ela nos deu aquilo que nos é “mais gravemente proibido”.
O fato de ela não nos ter dado isso para sempre, ou com as amigas com as quais começamos, não é a questão. Pois o que ela nos deu é a visão e a possibilidade de que isso se repita sempre.
Capítulo 4 de RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001. Tradução: @taticafeminista, @acordamenina e @pity ↩︎
Cited in Joel Block, Friendship (New York: Macmillan, 1980), p. 33. ↩︎
O conceito de sem-mundo é uma tradução aproximada do termo filosófico worldlessness, proposto pela autora. Por sem-mundo compreendemos a condição daquelas que não têm uma rede de saberes, arte, cultura, leis, Estados, territórios, próprios, isto é, a condição das mulheres – que, na história do feminismo, foi também descrita por Simone de Beauvoir como “dispersas entre os homens”. Seria talvez uma escolha mais estética manter o termo original, na língua inglesa, porém, desejamos atingir o maior número possível de mulheres, e para tanto, fez-se necessária a tradução. ↩︎
Estou profundamente endividada para com as tipologias de dissociação e assimilação do mundo, desenvolvidas por Hannah Arendt em seu trabalho sobre judeus e judaísmo. Ver, por exemplo, The Jew as Pariah, ed. e intro. Ron H. Feldman (Nova York: Grove, 1978). Inspirei-me em muitas de suas ideias, contidas neste capítulo. ↩︎
Virginia Woolf, A Room of One’s Own (New York: Harcourt, Brace & World, 1929), p. 35. ↩︎
Robert Jay Lifton, Thought Reform and the Psychology of Totalism (New York: Norton, 1961), p. 426. ↩︎
“show and tell” poderia ser traduzido como “mostrar e contar”. É uma prática pedagógica comum nos Estados Unidos. As crianças são encorajadas a trazerem à sala de aula objetos de seu convívio cotidiano, mostrá-los, e contar à turma uma história sobre eles. ↩︎
Na qualidade de tradutora e feminista, me oponho pessoalmente a essa comparação. Se acreditamos no aspecto compulsório e intrinsecamente violento que a heterossexualidade representa às mulheres, romantizando situações de abuso e mantendo laços de amor entre o povo dominado (mulheres) e a classe que conscientemente domina (homens), não existe comparação possível entre a dissociação vivida no interior do romantismo heterossexual e a vivência de mulheres que centram sua existência no amor a outras mulheres. ↩︎
Kathleen Barry, ’Sadomasochism’: The New Backlash to Feminism, Trivia: A Journal of Ideas 1 (Fall 1982): 86-87. ↩︎
Ver Jean Bethke Elshtain, “Feminists Against the Family”, The Nation, 17 de novembro de 1979, p.497. Cito Elshtain pois é de grande importância distinguirmos boas e más críticas a “o pessoal é político”, sendo a crítica de Elshtain deste último tipo. Sua crítica pode ser resumida em suas próprias palavras: Percebe-se que a reivindicação não é de que pessoal e político sejam interrelacionados de maneira importante e fascinante, que ainda não foram completamente explorados por terem sido encobertas pelo patriarcado; nem se trata de dizer que pessoal e político possam ser examinados de maneira frutífera enquanto análogos sob certos prismas de privilégio e poder, e sim quer dizer que o pessoal é o político. (p.497) Não é outra coisa, mas má fé criticar um adágio abreviado por não abarcar as complexidades que Elshtain procura esmiuçar. Será que Elshtain acredita seriamente que feministas que partem desse adágio para reflexões mais aprofundadas são simplórias reducionistas? É óbvio que muitas feministas compreendem a multidimensionalidade de “o pessoal é político”. Por anos, muitas de nós entendemos essa complexidade. E é exatamente porque entendemos que podemos partir para o tipo de análise particular que temos feito. A afirmação de que “o pessoal é político” pode ser comparada à metáfora que sugere uma análise, mas que não pode ser reduzida a isso. Ela é pensada para ser levada a sério, mas não de maneira reducionista. Quando alguém diz que ficou “na sarjeta”, nós não presumimos uma redução literal a essas palavras. Em vez disso, compreendemos que uma situação pode ser elucidada, através de palavras, pela comparação com outra. Não estou dizendo que “o pessoal é político” seja uma metáfora. Sustento, porém, que seja semelhante a uma metáfora pela analogia que possibilita, tanto para exprimir semelhança quanto para exprimir diferença entre situações reais, e pelo fato de que não podemos lê-la de maneira reducionista.
Como Anne Koedt escreveu em seu ensaio “Lesbianidade e Feminismo”, em uma clássica antologia feminsita radical: “a genial originalidade desta frase é a de ter aberto as vidas privadas das mulheres à análise política. Antes disso, o isolamento das mulheres umas das outras havia sido alcançado rotulando a experiência feminina como “pessoal”. As mulheres podiam, portanto, ser mantidas afastadas da possibilidade de verem a opressão comum causada pelos homens. Todavia, abrir as vidas das mulheres à análise política também resultou em um uso equivocado da frase. Se, por um lado, é verdade que há implicações políticas em todos os aspectos da vivência feminina, não deve ser consequência que a vida das mulheres se torne propriedade política do movimento feminista” (Anne Koedt, « Lesbianism and Feminism, » in Radical Feminism ed. Anne Koedt, Ellen Levine, and Anita Rapone [New York: Quadrangle/New York Times Book Co., 1973, p. 255) Koedt escreveu tais palavras em 1971, ainda que Elshtain não tenha qualquer familiaridade com elas. Poderia se pensar que Elshtain foi a primeira a imaginar que “o pessoal é político” poderia ser pervertido. ↩︎
Thomas J. Cottle, “Our Soul-Barig Orgy Destroys the Private Self”, Psychology Today (outubro de 1975): 22. ↩︎
Correspondência pessoal para Janice Raymond, 1978. ↩︎
Citado em Paula Caplan, Barriers Between Women (Nova York: SP Medical and Scientific Books, 1981), pp. 125-26. ↩︎
Andrea Dworkin, Right-Wing Women (Nova York: Perigee, 1983), p. 227. ↩︎
Judy Foreman, ”Men Are Resisting Sweeping Changes”, Boston Globe, 23 de dezembro de 1980. ‘Os maridos de hoje, de acordo com quatro novos estudos publicitários e algumas novas pesquisas acadêmicas, estão assumindo mais das tarefas domésticas do que costumavam – embora ainda menos da metade da carga de trabalho – e estão odiando cada minuto disso. Quando os maridos compartilham a carga de trabalho doméstico, quase sempre é apenas quando estão casados com mulheres que trabalham em tempo integral no mercado de trabalho remunerado. … Não é o mero número de horas dedicadas ao trabalho doméstico, mas sim a contínua desigualdade da carga que causa mais estresse para casais que trabalham’, diz o pesquisador de Wellesley, Joseph Pleck. … um novo estudo de Pleck mostra que ‘o tempo total de trabalho dos homens, combinando tanto o trabalho remunerado quanto o doméstico, (na verdade) diminui quando suas esposas estão empregadas’” (pp. 19, 21). ↩︎
Shulamith Firestone, A Dialética do Sexo (New York: Morrow, 1970), p. 168. ↩︎
John Stoltenberg, “Sadomasochism: Eroticized Violence, Eroticized Powerlessness,” in Against Sadomasochism, ed. Robin Ruth Linden et al. (East Palo Alto, Califórnia: Frog in the Well, 1982), p. 125. ↩︎
Hilde Hein, “Sadomasochism and the Liberal Tradition,” in Linden, Against Sadomasochism, p. 88. ↩︎
Ver Raymond, Transsexual Empire, esp. pp. 175–77 on “‘Repressive Tolerance’ and Sensitivity.”↩︎
Herbert Marcuse, “Repressive Tolerance,” in Robert Paul Wolff, Barrington Moore, Jr., and Herbert Marcuse, A Critique of Pure Tolerance (Boston: Beacon, 1965), p. 82. ↩︎
Joreen, “The Tyranny of Structurelessness,” in Koedt, Levine, and Rapone, Radical Feminism, p. 287. ↩︎
Alice Walker, “One Child of One’s Own,” in In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose (New York: Harcourt, 1983), p. 379. ↩︎
Cicero, De Amicitia (On Friendship) 1.85, trans. and intro. Harry G. Edinger (New York: Bobbs-Merrill, 1967), p. 73. ↩︎
Correspondência pessoal, Julie Melrose para Janice Raymond, 23 de Maio de 1984. ↩︎
Joseph P. Lash, Helen e a Professora: A História de Helen Keller e Anne Sullivan Macy (Nova York: Delacorte, 1980), p. 332. ↩︎
Elizabeth Janeway, The Powers of the Weak (New York: Knopf, 1980), p. 144. ↩︎
Como Mary Daly apontou há muito tempo, “castrar” essencialmente significa privar de poder, potência, criatividade e habilidade de comunicação. ↩︎
Barry, Female Sexual Slavery (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1979), p. 35. ↩︎
Alice Walker, “To the Black Scholar,” in In Search of Our Mothers’ Gardens, p. 322. ↩︎
Adrienne Rich, Of Woman Born (New York: Norton, 1976), p. 226. ↩︎
Nancy Richard, “Mothers and Daughters” (Advanced Seminar Paper in Women’s Studies. University of Massachusetts, Fall 1982), p. 1. ↩︎
Não estou dizendo que esse é o único legado que as mães deixam para as filhas. Existem muitas outras tradições fortalecedoras que todo tipo de mãe deixou para todo tipo de filha. Este ponto, espero, é óbvio em outros exemplos ao longo deste livro. Estou tentando retratar, neste capítulo, a interconexão mãe-filha no contexto de como ela funcionou como um obstáculo para a amizade feminina. Certamente, nem sempre, ou mesmo principalmente, funcionou dessa maneira. Mas aconteceu com frequência suficiente para justificar a análise. ↩︎
Esta é uma frase de Christine Delphy. Ver “The Main Enemy,” in Close to Home: A Materialist Analysis of Women’s Oppression, trans. and ed. Diana Leonard (Amherst: University of Massachusetts Press, 1984), pp. 57–77. ↩︎
Arendt, “On Humanity in Dark Times,” pp. 16–17. ↩︎
Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women (New York: Perigee, 1981), p. 217. ↩︎
Paul Tillich, Love, Power, and justice (London: Oxford University Press, 1954), p. 40. ↩︎
Não estou dizendo que não houve coletivos bem-sucedidos. Estou ciente de que alguns coletivos conseguiram evitar os problemas dos quais estou falando, mas esses são exceções, não a regra. Não há um padrão normativo, portanto, de coletivismo positivo que me faça acreditar que os coletivos sejam tudo o que se supõe que sejam, ou que sejam a alternativa para estruturas em que autoridade e responsabilidade são delineadas. ↩︎
Sherry McCoy and Maureen Hicks, “A Psychological Retrospective on Power in the Contemporary LesbianFeminist Community,” Frontiers: A Journal of Women’s Studies 4 (Fall 1976):68. ↩︎
McCoy and Hicks, “Psychological Retrospective,” pp. 66–67. ↩︎
Joreen, “The Tyranny of Structurelessness,” in Koedt, Levine, and Rapone, Radical Feminism. ↩︎
McCoy and Hicks, “Psychological Retrospective,” p. 68. ↩︎
McCoy and Hicks, “Psychological Retrospective,” p. 68. ↩︎
Fazer uma crítica feminista à terapia, assim como questionar a indústria da beleza, a heterossexualidade compulsória e a pornificação da cultura, frequentemente gera polêmica. Discutir essas questões em seu contexto coletivo é um desafio, muitas vezes resultando na personalização do debate e na culpabilização de quem traz à tona o assunto. Essas atitudes não apenas dificultam o diálogo, mas também impedem ações que poderiam advir dele.
Eu mesma já considerei a terapia uma ferramenta incrível. Cheguei a pensar que, se todos se dedicassem ao autoconhecimento com auxílio profissional, isso poderia transformar o mundo. Felizmente, temos à nossa disposição os escritos das feministas radicais notáveis que nos precederam. Elas deixaram não apenas suas pesquisas e reflexões registradas, mas também uma história de luta contra a patologização feminina, que não passa de uma abordagem patriarcal arcaica, convenientemente reembalada, que busca rotular as mulheres como “loucas”. Através disso, somos medicadas (no passado, até procedimentos como eletrochoque e lobotomia eram usados) ou então ficamos enredadas em reflexões dolorosas, enquanto os homens continuam a explorar, violentar e assegurar sua supremacia.
A teoria feminista se estabelece como o único espaço capaz de dar nome à vivência de ser um ser humano do sexo feminino em um mundo que odeia as mulheres. Isso é crucial para desmantelar a hierarquia social baseada no sexo. Entretanto, a teoria por si só não é suficiente.
Nos seis milênios de patriarcado, apesar de todos os esforços masculinos para apagar a História das Mulheres, muitas resistiram e lutaram incansavelmente contra a supremacia masculina. No início do século passado, as feministas não apenas batalhavam pelo direito ao voto, mas também enfrentavam a pedofilia, a objetificação das mulheres e buscavam proteger as mulheres da sífilis e gonorreia transmitidas por homens às suas esposas (Jeffreys, 1997). Mary Daly observa que a terapia surgiu como uma resposta direta à primeira onda do movimento feminista. De acordo com ela,
O objetivo [da terapia] não é curar no sentido mais profundo, mas impor violentamente o sistema de castas sexuais. O deus da terapia é a própria terapia. Além disso, como acontece com todas as religiões, há uma fixação no próprio ato de adoração, o qual tende a funcionar como um refúgio contra a falta de sentido. Por essa razão, qualquer crítica à terapia é vista como ameaça e causa terror naqueles que a seguem.
(Daly, 1978)
Além da psicologia, tanto a sexologia (que fundamenta a terapia sexual) quanto a psicanálise contribuíram significativamente para reforçar a subordinação feminina e a dominação masculina. Ambas categorizaram qualquer comportamento feminino que não estivesse relacionado a servir e amar os homens como patológico e desviante. A “frigidez” e o lesbianismo eram algumas dessas “doenças” (Jeffreys, 1990, 1997). Adicionalmente, através do mito do orgasmo vaginal (Koedt, 1970), do diagnóstico de “histeria” e da transformação dos relatos de incesto em uma teoria da sedução – onde afirmava que as meninas inventavam esses relatos devido a um suposto desejo pelo pai (Rush, 1980, 1996), Freud e sua psicanálise garantiram não apenas o silenciamento da violência sexual masculina, mas também a manutenção da heterossexualidade como uma instituição política.
Segundo Daly, o que precisamos é ter a coragem de enxergar e identificar a raiva que pode nos fortalecer e, assim, não mais bloquear nossa paixão e criatividade. Jeffreys reforça a importância de não menosprezar o que sentimos:
aquelas qualidades que nos tornam revolucionárias, raiva, ódio e medo, são nossas forças, não nossas fraquezas. Nossos sentimentos de paranoia são uma percepção clara da realidade; realmente vivemos em território ocupado, onde os homens estão tentando nos matar. Precisamos usar essas emoções, não suprimi-las.
(Jeffreys, 1978)
Isso é exatamente o que a terapia (e a análise) nos impede de fazer. Ao nos colocar individualmente sob a orientação de um terapeuta, é apagada a nossa tendência natural de buscar apoio entre iguais, compartilhar angústias, reconhecer que a raiz de nossos problemas reside na estrutura patriarcal e fazer algo para mudar essa realidade.
Os grupos de conscientização da segunda onda do feminismo proporcionaram esse espaço coletivo para as mulheres explorarem sua raiva. Foi neste contexto que surgiu o slogan “o pessoal é político” (Hanisch, 1970) pois elas perceberam que o que cada uma achava que acontecia apenas consigo – sobrecarga doméstica e estupro marital, por exemplo – na verdade estavam ocorrendo a todas as outras, com pequenas diferenças. A partir disso, surgiram marchas, manifestações, grupos de autodefesa e abrigos para mulheres vítimas de violência. O acesso das mulheres ao ensino superior permitiu o início de pesquisas e estudos sobre a classe feminina. Foi um período intenso de escrita, debates e refinamento da teoria feminista. Além disso, essas mulheres ocuparam imóveis abandonados para morar, acolher outras mulheres e também criaram livrarias e cafés feministas, locais de encontro para construir amizades e elaborar estratégias políticas (Jeffreys, 2018).
O contra-ataque masculino à segunda onda do feminismo não demorou a aparecer e veio com grande força. A promoção de fetiches como identidades socialmente aceitáveis, juntamente com o aumento expressivo da produção, distribuição e consumo de pornografia cada vez mais violenta, ambos sob a benção do neoliberalismo, contribuiu significativamente para o crescimento da violência masculina contra as mulheres, a desvalorização do feminismo e o apagamento da categoria mulher nas leis, na história e na cultura (Jeffreys, 2022).
Nesse contexto, a terapia ganhou ainda mais força, criando agora um nicho de “terapia feminista” que promete a “cura interior” ao auxiliar as mulheres a se conectarem com seus “verdadeiros eus” e a se empoderarem. Em situações extremas, talvez algumas mulheres necessitem de psicoterapia, mas considerando que a maioria dos nossos problemas deriva da estrutura social, investir em soluções individuais não resolverá nossas questões (Kitzinger, 1996). Mesmo que alcancemos certa autonomia individual, enquanto a dominação masculina persistir, nada estará verdadeiramente seguro e garantido, como demonstram os casos das meninas afegãs privadas do direito à educação e das americanas enfrentando restrições ao aborto.
A situação atual da classe feminina é crítica, e mais do que nunca, precisamos do engajamento de todas as mulheres possíveis na luta coletiva pela nossa emancipação. O patriarcado não cederá apenas com pedidos educados para que os homens cessem a violência. Cabe a todas nós recuperar o nosso arsenal de raiva, estudar a teoria e a história do movimento feminista e nos organizarmos com outras mulheres para revolucionar esse mundo. Faremos isso por nós mesmas, em honra àquelas que vieram antes de nós e para as que virão.
Referências
DALY, Mary. Gyn/ecology: The metaethics of radical feminism. Boston: Beacon, 1978.
JEFFREYS, Sheila. Therapy: Reform or Revolution. Reino Unido: Spare Rib, nº 69, abr/1978.
JEFFREYS, Sheila. Sexology and antifeminism. IN LEIDHOLDT, D; RAYMOND, J. (editors). The Sexual liberals and the attack on feminism. — 1st ed. p. cm. — (Athene series) 1990. pp. 14-27.
JEFFREYS, Sheila. The spinster and her enemies: feminism and sexuality 1880 – 1930. Melbourne: Spinifex, 1997.
JEFFREYS, Sheila. The Lesbian Revolution: Lesbian Feminism in the UK 1970–1990. Abingdon: Routledge, 2018.
JEFFREYS, Sheila. Penile Imperialism. The Male Sex Right and Women’s Subordination. North Geelong: Spinifex Press, 2022.
Por Celia Kitzinger, traduzido livremente de Radically Speaking.
Uma das grandes percepções do feminismo da segunda onda foi o reconhecimento de que “o pessoal é político”, uma frase cunhada pela primeira vez por Carol Hanisch em 1971. Com isso, queríamos dizer que todas as nossas atividades pequenas, pessoais e do dia a dia tinham um significado político, quer fosse intencional ou não. Aspectos de nossas vidas que antes eram vistos como puramente “pessoais” – trabalho doméstico, sexo, relacionamentos com filhos e pais, mães, irmãs e amantes – eram moldados e influenciados pelo contexto social mais amplo.
O slogan… significava, por exemplo, que quando uma mulher é obrigada a ter relações sexuais com o marido, isso é um ato político, pois reflete as dinâmicas de poder no relacionamento: as esposas são propriedade a que os maridos têm total acesso.
(Rowland: 1984, p. 5)
Uma compreensão feminista de “política” significava desafiar a definição masculina de política como algo externo (ligado a governos, leis, protestos com bandeiras e marchas) em direção a uma compreensão da política como algo central para nosso ser, afetando nossos pensamentos, emoções e as escolhas aparentemente triviais do dia a dia sobre como vivemos. O feminismo significava tratar o que havia sido percebido como questões meramente “pessoais” como preocupações políticas.
Este artigo explora a forma como o slogan “o pessoal é político” é utilizado na escrita psicológica feminista, com referência especial à terapia. O crescimento das terapias feministas (incluindo livros de autoajuda, co-aconselhamento, grupos de doze passos e assim por diante, bem como terapia individual) foi rápido e atraiu críticas de muitas feministas preocupadas com suas implicações políticas (Cardea: 1985; Hoagland: 1988; Tallen: 1990a e b; Perkins: 1991). No entanto, muitas psicólogas feministas (tanto pesquisadoras quanto profissionais) afirmam explicitamente sua crença de que “o pessoal é político”.
Esse princípio tem “prevalecido como um pilar fundamental da terapia feminista” (Gilbert: 1980), e metodologias qualitativas muitas vezes têm sido adotadas pelas feministas precisamente porque permitem acesso à experiência “pessoal”, cujas implicações “políticas” podem ser extraídas por meio da pesquisa. Seria incomum encontrar uma psicóloga feminista que negasse acreditar que “o pessoal é político”, apesar da existência de críticas feministas a algumas de suas implicações (como a universalização falsa da experiência das mulheres, por exemplo, veja hooks: 1984, e a tendência irônica de algumas mulheres de perceberem as categorias “pessoal” e “político” do slogan como polarizadas e em competição, veja David: 1992). No entanto, a concordância generalizada com esse slogan entre psicólogas feministas esconde uma variedade de interpretações. Este artigo ilustra quatro dessas interpretações psicológicas divergentes de “o pessoal é político” e argumenta que, longe de politizar o pessoal, a psicologia personaliza o político, concentra a atenção na “revolução interna”, foca em “validar a experiência das mulheres” em detrimento da análise política dessa experiência e busca “empoderar” as mulheres, em vez de conceder poder político real.
Duas ressalvas antes de entrar em meu argumento principal
Primeiro, este artigo não pretende apresentar uma visão abrangente de toda a psicologia feminista – uma área imensa e em crescimento. Além disso, ao contrário de outras críticas (por exemplo, Jackson: 1983; Sternhall: 1992; Tallen: 1990a e b), este artigo não é um ataque a uma marca específica de psicologia, nem uma discussão de dentro da disciplina (por exemplo, Burack: 1992). Pelo contrário, seu objetivo é estar fora do quadro disciplinar da psicologia e chamar a atenção para os problemas políticos inerentes ao próprio conceito de “psicologia feminista”.
Segundo, “não parece justo”, disse um árbitro, “zombar das instituições que ajudam as mulheres a viverem suas vidas com menos dor.” Muitas mulheres foram ajudadas pela terapia. Já ouvi mulheres o suficiente dizerem “ela salvou minha vida” para me sentir quase culpada por desafiar a psicologia. Muitas mulheres dizem que foi apenas com a ajuda da terapia que elas se tornaram capazes de sair de um relacionamento abusivo, livrar-se de medos incapacitantes e ansiedades, ou parar o abuso de drogas. Qualquer coisa que salve a vida das mulheres, qualquer coisa que as deixe mais felizes, deve ser feminista – não é mesmo? Bem, não. É possível remendar as mulheres e capacitá-las a fazer mudanças em suas vidas sem nunca abordar as questões políticas subjacentes que causam esses problemas pessoais em primeiro lugar. “Eu costumava reclamar com meu marido para fazer o trabalho doméstico e nada acontecia”, disse uma mulher de Minnesota a Harrit Lerner (1990, p. 15); “agora estou em um programa intensivo de tratamento para co-dependência e estou me afirmando muito. Meu marido está mais prestativo porque ele sabe que sou codependente e apoia minha recuperação”. Para essa mulher, a explicação psicológica (“sou codependente e preciso me recuperar”) foi mais bem-sucedida do que a explicação feminista (o trabalho das mulheres como trabalho doméstico não remunerado para os homens, Mainardi: 1970) em criar mudanças. Com a ideia de si mesma como doente, ela conseguiu fazê-lo fazer o trabalho doméstico. Como Carol Tavris (1992) diz,
as mulheres recebem muito mais simpatia e apoio quando definem seus problemas em termos médicos ou psicológicos do que em termos políticos.
A explicação da codependência esconde o que as feministas veem como a verdadeira causa de nossos problemas – a supremacia masculina. Em vez disso, somos informadas de que a causa está em nossa própria “codependência”. Isso não é feminismo. Embora seja claro que “muitas mulheres tenham sido ajudadas pela terapia”, também é claro que muitas mulheres foram ajudadas e se sentem melhores consigo mesmas como resultado de (por exemplo) fazer dieta, comprar roupas novas ou entrar em um culto religioso. Historicamente, como aponta Bette Tallen (1990a, p. 390), as mulheres têm “procurado refúgio em instituições como a igreja católica ou o exército. Mas isso significa que essas são instituições que devem ser plenamente abraçadas pelo feminismo?” As razões por trás da corrida para a psicologia e os benefícios que ela oferece (bem como o preço que ela exige) são discutidos com mais detalhes em outro lugar (Kitzinger e Perkins: 1993). Neste artigo, foco mais estreitamente nas interpretações psicológicas do slogan “o pessoal é político” e nas implicações disso para o feminismo.
A personalização do Político
Nessa interpretação de “o pessoal é político”, em vez de politizar o “pessoal”, o “político” é personalizado. Preocupações políticas, políticas nacionais e internacionais, e grandes desastres sociais, econômicos e ecológicos são reduzidos a questões psicológicas pessoais e individuais.
Essa tradução completa do político para o pessoal é característica não apenas da psicologia feminista, mas da psicologia em geral. Nos EUA, um grupo de vinte e dois profissionais gastou três anos e $73.500 para concluir que a falta de autoestima é a causa raiz de “muitos dos principais males sociais que nos afligem hoje” (The Guardian: 13 de abril de 1990). A violência sexual contra mulheres é abordada criando sessões de treinamento de habilidades sociais e gerenciamento da raiva para estupradores (agora disponíveis em sessenta prisões na Inglaterra e no País de Gales, The Guardian: 21 de maio de 1991), e o racismo se torna algo para desabafar em uma oficina de aconselhamento (Green: 1987). Muitas pessoas agora pensam em questões sociais e políticas importantes em termos psicológicos.
Na verdade, toda a vida pode ser vista como um grande exercício psicológico. Lá em 1977, Judi Chamberlin apontou que hospitais psiquiátricos tendem a usar o termo “terapia” para descrever absolutamente tudo o que acontece dentro deles:
… fazer as camas e varrer o chão podem ser chamados de “terapia industrial”, ir a uma dança ou filme é “terapia recreativa”, drogar os pacientes é “quimioterapia” e assim por diante. Hospitais mentais de custódia, que oferecem muito pouco tratamento, frequentemente fazem referência à “terapia de ambiente”, como se o próprio ar do hospital fosse de alguma forma curativo .
(1977, p. 131)
Uma década mais tarde, com a principal clientela da psicologia não mais nos hospitais mentais, mas na comunidade, tudo em nossas vidas é traduzido para a “terapia”. Ler livros se torna “biblioterapia”; escrever (Wenz: 1988), manter um diário (Hagan: 1988) e fazer arte são todos atribuídos a funções terapêuticas. Até mesmo tirar fotos é agora uma técnica psicológica: a “fototerapeuta” feminista Jo Spence se baseou nas teorias psicanalíticas de Alice Miller (1987) e defende a cura (entre outras “feridas”), “a ferida da vergonha de classe” por meio da fotografia. E embora a leitura, a escrita e a fotografia sejam atividades comuns, em sua manifestação terapêutica elas exigem orientação especializada: “Eu não acho que as pessoas possam fazer isso com amigos ou sozinhas… elas nunca terão a segurança de trabalhar sozinhas como terão trabalhando com um terapeuta, porque elas encontrarão seus próprios bloqueios e não conseguirão superá-los” (Spence: 1990, p. 39). Embora não queiramos negar que a leitura, a escrita, a arte, a fotografia, entre outros, possam fazer algumas pessoas se sentirem melhor consigo mesmas, é perturbador encontrar tais atividades sendo avaliadas em termos puramente psicológicos. Como feministas, costumávamos ler para aprender mais sobre a história e a cultura feministas; escrever e pintar para nos comunicarmos umas com as outras. Essas eram atividades sociais direcionadas para fora; agora elas são tratadas como explorações do eu. O sucesso do que fazemos é avaliado em termos de como nos faz sentir. Condições sociais são avaliadas em termos de como a vida interior dos indivíduos responde a elas. Compromissos políticos e éticos são julgados pelo grau em que melhoram ou prejudicam nosso senso individual de bem-estar.
As terapeutas feministas agora “prescrevem” atividades políticas para suas clientes – não por seu valor político inerente, mas como remédios milagrosos. As “Diretrizes para a Terapia Feminista” oferecidas pela terapeuta Marylou Butler no Manual de Terapia Feminista (1985) incluem a sugestão de que as terapeutas feministas devem “encaminhar para centros de mulheres, grupos de conscientização e organizações feministas, quando isso seria terapêutico para as clientes” (p. 37). A Conscientização – a prática de tornar o pessoal político – nunca foi destinada a ser “terapia” (Sarachild: 1978). Mulheres que participam do ativismo feminista com o objetivo de se sentirem melhores consigo mesmas provavelmente ficarão desapontadas. Ao enviar mulheres para grupos feministas, cujos objetivos primários são ativistas e não terapêuticos, as terapeutas estão fazendo um desserviço tanto à suas clientes quanto ao feminismo.
Nossos relacionamentos também são considerados não em termos de suas implicações políticas, mas sim em termos de suas funções terapêuticas. A terapia costumava nomear o que acontecia entre um terapeuta e um cliente. Agora, como Bonnie Mann aponta, isso descreve com precisão o que acontece entre muitas mulheres em interações diárias: “qualquer atividade organizada por mulheres é encaixada em uma estrutura terapêutica. Seu valor é determinado com base em se é ou não ‘curativo'”:
Eu frequentemente vi uma conversa honesta se transformar em uma interação terapêutica diante dos meus olhos. Por exemplo: eu menciono algo que me incomodou, machucou ou foi difícil para mim de alguma forma. Algo muda. Vejo a mulher com quem estou a assumir o papel de amiga de apoio. É como se uma fita se encaixasse em seu cérebro, sua voz muda, posso vê-la começar a me ver de maneira diferente, como uma vítima. Ela começa a recitar as frases: “Isso deve ter sido muito difícil para você”, ou “Isso deve ter sido tão invalidante” ou “O que você acha que precisa para se sentir melhor com isso?” Eu conheço muito bem a fita correspondente que supostamente deve se encaixar em meu próprio cérebro: “Acho que só precisava te dizer o que estava acontecendo comigo”, ou “Ajuda ouvir você dizer isso, parece muito validador”, ou “Acho que só preciso ficar sozinha e me cuidar um pouco”.
(1987, p. 47)
As formas psicológicas de pensamento saíram do consultório do terapeuta, dos grupos de AA e dos livros de autoajuda, dos workshops de experiência e das sessões de renascimento para invadir todos os aspectos de nossas vidas. O político foi completamente personalizado.
A revolução de Dentro para Fora
Outra interpretação comum da máxima “o pessoal é político” no contexto da psicologia feminista é algo assim:
A atividade supostamente “pessoal” da terapia é profundamente política, porque aprender a se sentir melhor sobre nós mesmas, elevar nossa autoestima, aceitar nossas sexualidades e nos reconciliarmos com quem realmente somos – tudo isso são atos políticos em um mundo heteropatriarcal. Com o ódio às mulheres ao nosso redor, é revolucionário nos amarmos, curarmos as feridas do patriarcado e superarmos a autossupressão. Se todos se amassem e se aceitassem, de modo que mulheres (e homens) não projetassem mais uns nos outros seus próprios ódios reprimidos, teríamos uma mudança social real.
Este é um argumento muito comum, recentemente reiterado no livro “Revolução de Dentro para Fora” de Gloria Steinem. Como aponta Carol Sternhall em uma análise crítica, “O objetivo de toda essa psicoterapia moderna e psicodélica não é simplesmente se sentir melhor consigo mesmo – ou melhor, é, porque se sentir melhor com todas as nossas partes agora é a chave para a revolução mundial” (1992, p. 5).
Neste modelo, o “eu” é naturalmente bom, mas precisa ser desenterrado de sob as camadas de opressão internalizada e curado das feridas infligidas por uma sociedade heteropatriarcal. Apesar de suas diferenças evidentes em outras áreas, a terapeuta feminista lésbica Laura Brown (1992) compartilha a noção de “verdadeiro eu” de Gloria Steinem. Ela escreve, por exemplo, sobre a “luta da cliente para recuperar seu eu das armadilhas do patriarcado” (pp. 241-42), ao “descascar as camadas do treinamento patriarcal” (p. 242) e “curar as feridas da infância” (p. 245); na terapia com Laura Brown, uma mulher é ajudada a “se conhecer” (p. 246), a ir além de seu “eu acomodado” (p. 243) e descobrir seu “verdadeiro eu” (p. 243) (ou “eu interior fingido” p. 245) e viver “em harmonia consigo mesma” (p. 243). Na maioria da psicologia feminista, esse eu interior é caracterizado como uma linda e espontânea menininha. Entrar em contato e nutri-la é o primeiro passo para criar uma mudança social: é uma “revolução de dentro para fora”.
Esse conjunto de ideias tem raízes no “movimento de crescimento” dos anos 1960, que enfatizava a liberação pessoal e o “potencial humano”. Naquela época, a imagem central era de uma “sociedade doente” vagamente definida.
“O Sistema” foi envenenado pelo seu materialismo, consumismo e falta de preocupação com o indivíduo. Essas coisas foram internalizadas pelas pessoas; mas sob as camadas de “porcaria” em cada pessoa repousava um “eu natural” essencial que poderia ser alcançado por meio de várias técnicas terapêuticas. O que isso sugere é que a mudança revolucionária não é algo que precisa ser construído, criado ou inventado com outras pessoas, mas que é de alguma forma natural, adormecido em cada um de nós individualmente e só precisa ser liberado.
(Scott e Payne: 1984, p. 22)
A absurdidade de levar esse argumento de “revolução de dentro para fora” a sua conclusão lógica é ilustrada por um projeto, descendente de um programa terapêutico popular, que propôs acabar com a fome. Não, como poderia parecer sensato, por meio da organização de cozinhas comunitárias, distribuição de pacotes de comida para os famintos, campanhas para que países empobrecidos fossem liberados de suas dívidas nacionais ou patrocínio de cooperativas agrícolas. Em vez disso, oferece o simples expediente de fazer indivíduos assinarem cartões dizendo que eles estão “dispostos a serem responsáveis por fazer do fim da fome uma ideia cujo tempo chegou.” Quando um número não revelado de pessoas tiver assinado esses cartões, um “contexto” terá sido criado em que a fome de alguma forma acabará (citado em Zilbergeld: 1983, pp. 5–6). Claro, Laura Brown, assim como muitas outras terapeutas feministas, provavelmente também quereria desafiar a obscenidade desse projeto. No entanto, a lógica de seus próprios argumentos permite precisamente esse tipo de interpretação.
Tais abordagens estão muito distantes da minha própria compreensão de “o pessoal é político”. Eu não acredito que a mudança social aconteça de dentro para fora. Não acredito que as pessoas tenham crianças interiores esperando para serem nutridas, reparentadas, e que sua bondade natural seja liberada para o mundo, sob as camadas de opressão internalizada. Pelo contrário, como argumentei em outros lugares (Kitzinger: 1987; Kitzinger e Perkins: 1993), nossos eu interiores são construídos pelos contextos sociais e políticos em que vivemos e, se quisermos alterar o comportamento das pessoas, é muito mais eficaz mudar o ambiente do que psicologizá-las individualmente. No entanto, como Sarah Scott e Tracey Payne (1984, p. 24) apontam, “quando se trata de fazer terapia, é essencial que cada técnica seja vista pelas mulheres como seus ‘verdadeiros’ e ‘sociais’ eus como distintos.” Isso significa que o processo de tomar decisões éticas e políticas sobre nossas vidas é reduzido à suposta “descoberta” de nossos verdadeiros eus, a honra de nossos “desejos do coração”. A compreensão política de nossos pensamentos e sentimentos é ocultada, e nossas escolhas éticas são moldadas em um quadro terapêutico em vez de político. Um conjunto de condições sociais repressivas tornou a vida difícil para mulheres e lésbicas. No entanto, a solução da “revolução de dentro para fora” é melhorar os indivíduos, em vez de mudar as condições.
A psicologia sugere que só depois de se curar você mesmo, você pode começar a curar o mundo. Discordo disso. As pessoas não precisam ser seres humanos perfeitamente funcionais e auto-realizados para criar mudanças sociais. Pense nas feministas que você conhece que foram influentes no mundo e que trabalharam com afinco e eficácia pela justiça social: Todas elas se amaram e se aceitaram? A grande maioria daqueles admirados por seu trabalho político continua lutando pela mudança não porque alcançaram a autorrealização (nem para atingi-la), mas por causa de seus compromissos éticos e políticos, e muitas vezes apesar de seus próprios medos, dúvidas pessoais, angústias pessoais e auto ódio. Aqueles que trabalham para uma “revolução externa” muitas vezes não estão mais “em contato com seus verdadeiros eu” do que aqueles fixados na mudança interna: essa observação não deve ser usada (como às vezes é) para desacreditar seu ativismo, mas sim para demonstrar que a ação política é uma opção para todos nós, independentemente do nosso estado de bem-estar psicológico. Espere até que seu mundo interno esteja resolvido antes de direcionar sua atenção para o externo, e você está, de fato, “esperando pela revolução” (Brown: 1992).
Validar a Experiência das Mulheres
Uma terceira versão psicológica de “o pessoal é político”, aplicada à terapia, é mais ou menos assim:
A política se desenvolve a partir da experiência pessoal. O feminismo deriva das próprias histórias de vida das mulheres e deve refletir e validar essas histórias. As realidades das mulheres sempre foram ignoradas, negadas ou invalidadas sob o heteropatriarcado; a terapia serve para testemunhar, afirmar e validar a experiência das mulheres. Como tal, ela torna o pessoal político.
A política da terapia, de acordo com essa abordagem, não envolve mais do que “validar”, “respeitar”, “honrar”, “celebrar”, “afirmar”, “prestar atenção” ou “testemunhar” (essas palavras são geralmente usadas de forma intercambiável) a “experiência” ou “realidade” de outra mulher.
Esse processo de “validação” supostamente tem enormes implicações: “Quando honramos nossos clientes, eles se transformam” (Hill: 1990, p. 56).
Obviamente, faz muito sentido nos ouvirmos e estarmos dispostas a entender o significado da experiência de outras mulheres. Costumávamos fazer isso em Grupos de Conscientização, e agora fazemos isso na terapia. Por ter sido transformada em uma atividade terapêutica, ela agora carrega todos os riscos de abuso de poder endêmicos ao empreendimento terapêutico (Kitzinger e Perkins: 1993, capítulo 3; Silveira: 1985). Em particular, os terapeutas são seletivos sobre quais experiências irão ou não validar na terapia. Aquelas emoções e crenças de uma cliente que são mais similares às do terapeuta são “validadas”; as outras são mais ou menos sutilmente “invalidadas”.
Poucas terapeutas feministas, por exemplo, irão validar sem críticas uma sobrevivente de abuso sexual infantil que fala sobre ser a culpada pelo estupro na infância devido ao seu comportamento sedutor; em vez disso, é provável que lhe seja oferecida uma análise sobre a forma como a culpabilização da vítima opera sob o heteropatriarcado. Da mesma forma, poucas terapeutas feministas validarão a experiência de uma mulher que diz estar doente e pervertida por ser lésbica: em vez disso, como a própria Laura Brown (1992) argumenta, seus “pensamentos disfuncionais” (p. 243) serão questionados e a terapia será direcionada para modificá-los para a crença de que “o patriarcado ensina que o lesbianismo é mal como um meio de controlar socialmente todas as mulheres e reservar recursos emocionais para homens e instituições dominantes (uma análise que ofereci, em várias formas, para mulheres que questionavam em voz alta em meu consultório por que se odeiam tanto por serem lésbicas)” (Brown: 1992, p. 249). Embora afirmem “validar” todas as realidades das mulheres, na verdade, apenas um subconjunto, consistindo das realidades com as quais o terapeuta concorda, é aceito como reflexão “verdadeira” da realidade. As outras são “invalidadas”, quer como “cognições defeituosas” (Padesky: 1989) ou como “distorções patriarcais” (Brown: 1992, p. 242).
Em outras palavras, toda essa conversa sobre “validar” e “honrar” a realidade das clientes é um disfarce fino para a moldagem terapêutica da experiência das mulheres em termos das próprias teorias do terapeuta.
De qualquer forma, a “experiência” é sempre percebida por meio de uma estrutura teórica (implícita ou explícita) dentro da qual ganha significado. Sentimentos e emoções não são simplesmente respostas imediatas, não socializadas e auto-autenticadoras. Eles são socialmente construídos e pressupõem certas normas sociais. A “experiência” nunca é “bruta”; ela está embutida em uma teia social de interpretação e reinterpretação. Ao encorajar e perpetuar a noção de “experiência” pura, não corrompida e pré-socializada e emoção natural surgindo de dentro, os terapeutas disfarçaram ou obscureceram as raízes sociais de nossos “eus internos”. Colocar a “experiência” além do debate dessa maneira é profundamente antifeminista precisamente porque nega as fontes políticas da experiência e as torna puramente pessoais. Quando a psicologia simplesmente “valida” emoções específicas, ela as retira de um quadro ético e político.
Empoderamento
Uma quarta interpretação psicológica de “o pessoal é político” se baseia na noção de “empoderamento”. Ela segue mais ou menos assim:
A terapia nos capacita a agir politicamente. Elevar a conscientização pessoal por meio da terapia permite que os indivíduos liberem suas energias psíquicas em direção a uma mudança social criativa. Através da terapia, lésbicas podem adquirir tanto a consciência feminista quanto a autoconfiança para se envolver em ação política. Muitas ativistas políticas radicais feministas são empoderadas a continuar através de seu auto cultivo contínuo na terapia.
Aquelas em terapia muitas vezes usam essa justificativa: de acordo com Angela Johnson (1992, p. 8), a terapia (junto com a escalada) “me dá energia para continuar meu ativismo com renovado entusiasmo.” E as terapeutas concordam. De acordo com a psicóloga clínica Jan Burns (1992, p. 230), escrevendo sobre a psicologia do atendimento à saúde lésbica, “parece intuitivamente razoável que um indivíduo possa preferir se envolver na autoexploração antes de escolher se envolver em ações mais políticas, e pode de fato precisar disso antes de ser capaz de tomar outras medidas”. Laura Brown (1992) diz que muitos de seus clientes “têm muito pouco a contribuir para a luta maior da qual muitos estão desengajados quando os vejo pela primeira vez” (p. 245). Sua cliente, “Ruth”, foi ajudada a entender que a “cura final reside em sua participação em uma mudança cultural, não apenas pessoal” (p. 246) e Laura Brown mostrou a ela como “levar seu processo de cura para uma esfera mais ampla” (p. 245). Como resultado da terapia, suas “energias” foram “liberadas” (p. 245) e ela se tornou uma palestrante, poetisa e professora sobre mulheres e guerra, além de se envolver em ativismo público contra a guerra. Da mesma forma, a psicóloga clínica Sue Holland (1991), em um artigo intitulado “Dos sintomas privados à ação pública”, promove um modelo de terapia no qual o cliente passa de “paciente/vítima ‘doente’ e passivo” no início do tratamento para o “reconhecimento da opressão localizada no ambiente objetivo”, o que leva a um “desejo coletivo de mudança” em que “energias psíquicas podem… ser direcionadas para inimigos estruturais” (p. 59).
De acordo com essa interpretação, o “pessoal” consiste em “energias psíquicas” (nunca claramente definidas) que operam de acordo com um modelo hidráulico. Há uma quantidade fixa de “energia” que pode ser bloqueada, liberada ou redirecionada por outros canais. O “político” é simplesmente um desses “canais”. A terapia pode (e alguns diriam que deve) direcionar a energia feminista ao longo de “canais políticos”. Muitas vezes, é claro, ela não faz isso, e as mulheres permanecem perpetuamente focadas internamente, um problema notado com pesar pelas terapeutas lésbicas/feministas mais radicais. Mas, segundo elas, sua terapia resulta em suas clientes se tornando ativas politicamente.
Longe de incorporar a noção de que “o pessoal é político”, essas ideias dependem de uma separação radical entre os dois. O aspecto “pessoal” da terapia é distinguido do trabalho “político” de participar de marchas, e ao terem separado o “pessoal” e o “político” dessa maneira, os dois são então examinados quanto ao grau de correlação.
O argumento de “empoderamento” ignora totalmente a política da própria terapia. É visto simplesmente como um hobby (como a escalada) ou uma atividade pessoal sem implicações éticas ou políticas em si mesma. Desprovido de significado político intrínseco, é avaliado apenas em termos de suas consequências presumidas para a “política” – definida em termos da velha variedade de bandeira acenando do antigo movimento de esquerda masculino. Se “o pessoal é político”, o próprio processo de fazer terapia é político, e esse processo (não apenas seus resultados alegados) deve ser criticamente avaliado em termos políticos.
Em conclusão, e apesar da frequência com que as terapeutas feministas afirmam rotineiramente que “o pessoal é político”, parece completamente errado afirmar que esse objetivo é um “pilar da terapia feminista” (Gilbert: 1980). Certamente, as noções de “revolução de dentro”, a importância de “validar” a realidade das mulheres e “empoderar” as mulheres para o ativismo político são centrais para o pensamento de muitas psicólogas feministas. Essas ideias sobrepostas e inter-relacionadas estão entrelaçadas em grande parte na teoria e na prática psicológica lésbica/feminista. No entanto, tais noções estão longe da perspectiva radical feminista de que “o pessoal é político” e muitas vezes são interpretadas em contradição direta com essa perspectiva. Muitas vezes, promovem conceitos ingênuos dos mecanismos pelos quais a mudança social é alcançada; envolvem a aceitação acrítica de “verdadeiros sentimentos” e/ou “reinterpretações” manipulativas da vida das mulheres em termos preferidos pelo psicólogo; levam as mulheres a reverter a definições “externas” de política em contraposição ao aspecto “pessoal” da terapia; e nos deixam carentes de linguagem ética e política. Reconhecer que o pessoal realmente é político significa rejeitar a psicologia.
Reconheço que algumas mulheres cuja política eu admiro e respeito não rejeitaram a psicologia: muitas estão “em terapia” ou são provedoras de terapia. Essa observação às vezes é usada para contestar nossos argumentos. Depois de ler um capítulo (Kitzinger e Perkins: 1993) que cita o processo judicial de Nancy Johnson contra o governo dos EUA por condenar as pessoas de Utah ao câncer (por causa do armazenamento nuclear), um leitor comentou que Nancy Johnson agora trabalha como curandeira psíquica de uma maneira que eu provavelmente consideraria politicamente problemática. “Acho que a situação é mais complicada do que você apresentou: Feminismo e psicologia não parecem ser mutuamente exclusivos”, disse ele. Obviamente, ativistas feministas às vezes são praticantes ou consumidoras de psicologia: muitas feministas claramente acham possível incluir ambos em suas vidas. Mas, assim como os defensores da saúde às vezes fumam cigarros; os ecologistas às vezes jogam lixo; e os pacifistas às vezes batem em seus filhos. A coexistência observada de duas visões ou comportamentos na mesma pessoa não os torna lógicamente éticos ou politicamente compatíveis.
O debate sobre a compatibilidade ética e política das diferentes ideias e comportamentos das pessoas é uma parte importante do que a discussão política feminista é. Meu argumento é que o feminismo e a psicologia não são eticamente ou politicamente compatíveis. Não significa necessariamente que as mulheres envolvidas na psicologia sejam apolíticas ou antifeministas. Muitas levam a sério o feminismo e estão profundamente engajadas em atividades políticas. Mas, na medida em que organizam suas vidas com base em ideias psicológicas e na medida em que limitam seus pensamentos e ações ao que aprendem da psicologia, estão negando o princípio feminista fundamental de que “o pessoal é político”.
KITZINGER, Celia. Terapia e como ela Minimiza a Prática do Feminismo Radical. IN: BELL, D.; KLEIN, R. (eds) Radically Speaking: Feminism Reclaimed. Melbourne: Spinifex Press, 1996. Tradução livre.
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