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Como as políticas do orgasmo sequestraram o movimento feminista?

Sheila Jeffreys1


A edição de novembro/dezembro de 1995 da revista Ms.2, com o título de capa SEXO QUENTE E ESPONTÂNEO, mostrava o close de uma mulher negra lambendo seus lábios pintados. A despeito de todo esforço feminista que tem sido feito nos últimos 25 anos para criticar e contestar a construção supremacista masculina do sexo, nenhum dos quatro artigos da revista fazia menção a todos os outros aspectos da vida e do status social da mulher. Em destaque em um dos artigos estava uma frase do livro de Barbara Seaman de 1972, intitulado Livre e Mulher:

“O orgasmo livre é um orgasmo que você gosta, em qualquer circunstância”.

Julgando por essa edição de Ms., e pelas prateleiras de contos eróticos para mulheres em livrarias feministas, uma política de orgasmo irreflexiva parece ter se estabelecido.

No final da década de 1960 e no começo da década de 1970, acreditava-se amplamente que a revolução sexual, ao libertar a energia sexual, tornaria todos livres. Eu me lembro de Maurice Girodias, que publicou A História do O em Paris pela Olympia Press, dizendo que a solução para regimes políticos repressivos seria postar pornografia em todas as caixas de correio. Orgasmos melhores, proclamou o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, criariam a revolução. Naqueles tempos inebriantes, muitas feministas acreditavam que a revolução sexual estava intimamente ligada à libertação das mulheres, e elas escreviam sobre como orgasmos poderosos trariam poder às mulheres.

Dell Williams é citado em Ms. como tendo aberto uma sex shop em 1974 exatamente com essa ideia, a de vender brinquedos sexuais para mulheres:

“eu queria transformar as mulheres em seres sexuais poderosos… Eu acreditava que mulheres orgásmicas poderiam mudar o mundo.”

Desde os anos 60, sexólogos, libertários sexuais e empresários da indústria do sexo procuraram discutir o sexo como se fosse completamente dissociado da violência sexual e não tivesse nenhuma relação com a opressão de mulheres. Enquanto isso, teóricas feministas e ativistas antiviolência aprenderam a analisar o sexo politicamente. Nós vimos que o domínio masculino sobre os corpos de mulheres, sexualmente e reprodutivamente, provê a base da supremacia masculina, e que a opressão na sexualidade e através dela diferencia a opressão de mulheres da de outros grupos.

Se nós temos alguma chance de libertar as mulheres do medo e da realidade do abuso sexual, a discussão feminista da sexualidade deve incorporar tudo que sabemos sobre violência sexual ao que pensamos sobre sexo. Mas atualmente conferências feministas oferecem workshops separados, em locais diferentes, de como aumentar o “prazer” sexual e de como sobreviver à violência sexual – como se esses fenômenos fossem isolados. Mulheres que se intitulam feministas agora afirmam que a prostituição pode ser benéfica às mulheres, para expressar sua “sexualidade” e fazer escolhas de vida empoderadoras. Outras promovem às mulheres práticas e produtos da indústria do sexo com fins lucrativos, na forma de striptease lésbico e parafernália de sadomasoquismo. Existem agora setores inteiros de comunidades femininas, lésbicas e gays onde qualquer análise crítica da prática sexual é vista como um sacrilégio, estigmatizada como “conservadorismo”. A liberdade é representada como a conquista de orgasmos mais intensos e melhores por qualquer meio possível, incluindo “leilões sexuais”, prostituição de mulheres e homens, e danificação física permanente como branding. Formas tradicionais de sexualidade supremacista masculina baseadas na dominação e submissão e a exploração e objetificação da classe escravizada de mulheres estão sendo celebradas por suas possibilidades excitantes e “transgressoras”.

Bem, a pornografia está nas caixas de correio, e os artefatos para orgasmos cada vez mais poderosos estão prontamente disponíveis através da indústria internacional do sexo. E em nome da libertação feminina, muitas feministas hoje em dia estão promovendo práticas sexuais que – longe de revolucionar e transformar o mundo – estão profundamente envolvidas nas práticas do bordel e da pornografia.

Como isso pode ter acontecido? Como pode a revolução das mulheres ter entrado em curto-circuito? Eu sugiro que há quatro razões.


Razão Número 1
Vítimas da indústria do sexo tornaram-se “experts” do sexo

O capitalismo sexual, que encontrou uma forma de transformar em bem consumível praticamente todo ato de subordinação sexual imaginável, encontrou até mesmo uma forma de remodelar e reciclar algumas de suas vítimas. Como resultado, um grupo de mulheres que têm uma história de abuso e aprenderam sua sexualidade servindo aos homens na indústria do sexo agora podem, frequentemente com o patrocínio de empresários homens da indústria do sexo, promover-se como educadoras sexuais nas comunidades lésbicas e feministas. Algumas dessas mulheres “bem-conceituadas” – que dificilmente representam a maioria das vítimas da indústria do sexo – conseguiram lançar revistas como a On Our Backs (para praticantes de ‘sadomasoquismo lésbico’) e montar negócios de striptease e pornografia. Muitas mulheres aceitaram erroneamente essas mulheres, antes prostituídas, como “experts” sexuais. Annie Sprinkle e Carol Leigh, por exemplo, reintroduziram práticas misóginas da indústria do sexo em comunidades femininas. Essas mulheres lideraram a ridicularização direcionada àquelas de nós que disseram que o sexo pode e deve ser diferente.

Ao mesmo tempo, algumas mulheres que lucraram com o livre mercado capitalista nos anos 80 exigiram igualdade sexual e econômica em relação aos homens. Elas escaparam, e agora querem usar as mulheres como homens o fazem, então consomem pornografia e demandam por clubes de striptease e bordéis onde mulheres as sirvam. Essa não é uma estratégia revolucionária. Não há aqui uma ameaça ao privilégio masculino, ou uma chance de libertar outras mulheres de seu status sexual subordinado. E, mais uma vez, os homens se tornaram o padrão para todas as práticas sexuais.

Mulheres anteriormente prostituídas que promovem o sexo da prostituição – mas que agora são pagas para palestrar e publicar – passam uma mensagem que até mesmo algumas feministas consideraram mais palatável que todas as visões e ideias que nós compartilhamos sobre como transformar o sexo, como nos amarmos em igualdade como base para um futuro no qual as mulheres poderiam ser realmente livres.

Razão Número 2 

O sexo da prostituição foi aceito como o modelo padrão para sexo

Nós não podemos construir uma sexualidade que torne possível que mulheres vivam sem terrorismo sexual sem abolir o abuso de mulheres pelos homens na prostituição. Dentro do movimento feminino, no entanto, o sexo da prostituição tem sido defendido e promovido. Shannon Bell em Reading, Writing and Rewriting the Prostitute Body (1994) argumenta que a mulher prostituída deve ser vista como “trabalhadora, curadora, representante sexual, professora, terapeuta, educadora, minoria sexual e ativista política.” Nesse livro a representante das Prostitutas de Nova Iorque, Veronica Vera, é citada dizendo que deveríamos pensar as profissionais do sexo como “praticantes de um ofício sagrado”, afirmando que sexo (presumidamente qualquer tipo de sexo incluindo o sexo da prostituição) é uma “ferramenta de poder curativo e construtivo”. Mas na verdade o mecanismo mais poderoso hoje em dia para a construção da sexualidade masculina é a indústria do sexo.

A prostituição e sua representação na pornografia criam uma sexualidade agressiva que requer a objetificação de uma mulher. Ela é transformada em uma coisa que não merece o respeito que é devido a outro indivíduo senciente. A prostituição mantém uma sexualidade na qual é aceitável para o cliente obter “prazer” às custas de e no corpo de uma mulher que se dissocia para sobreviver. Esse é o modelo de como o sexo é concebido na sociedade supremacista masculina, e sexólogos construíram suas carreiras sobre esse modelo. Masters e Johnson, por exemplo, desenvolveram suas técnicas de terapia sexual a partir das práticas de mulheres prostituídas que eram pagas para fazer com que homens idosos, bêbados ou simplesmente indiferentes tivessem ereções e pudessem penetrá-las. Como Kathleen Barry apontou em A Prostituição da Sexualidade, a prostituição constrói uma sexualidade de dominação masculina/submissão feminina em que a identidade e o bem-estar da mulher, sem mencionar seu prazer, são vistos como irrelevantes.

A prostituição é um negócio poderoso que está rapidamente se tornando globalizado e industrializado. Mais da metade das mulheres prostituídas em Amsterdã, por exemplo, são traficadas, ou seja, levadas para lá, muitas vezes após serem enganadas, de outros países e são frequentemente mantidas em condições de escravidão sexual. Mulheres australianas são traficadas para a Grécia; mulheres russas para boates de striptease em Melbourne; mulheres birmanesas para a Tailândia; e mulheres nepalesas para a Índia. Milhões de mulheres em países de Primeiro Mundo e muitas mais nos países de Terceiro Mundo são submetidas ao abuso de terem seus corpos violados por mãos e pênis indesejados. Mulheres prostituídas sentem-se tão mal vivenciando esse abuso sexual quanto qualquer outra mulher. Elas não são diferentes.

Espera-se que mulheres e crianças prostituídas suportem muitas das formas de violência sexual que feministas consideram inaceitáveis no ambiente de trabalho e em suas casas. Assédio sexual e intercurso sexual indesejado são a base do abuso, mas mulheres prostituídas devem receber ligações obscenas de tele-sexo também. Elas trabalham de topless em lojas, lava-carros e restaurantes. Ao mesmo tempo que outras mulheres estão buscando dessexualizar seu trabalho de forma que possam ser vistas como algo além de objetos sexuais, a demanda de mulheres na prostituição e “entretenimento” sexual está aumentando. A prostituição de mulheres pelos homens reduz as mulheres de quem abusam e todas as outras mulheres ao status de corpos a serem vendidos e usados. Como feministas podem esperar eliminar práticas abusivas de suas camas, ambientes de trabalho e infância se os homens podem simplesmente continuar a adquirir o direito a essas práticas na rua ou, como em Melbourne, em bordéis licenciados pelo Estado?

Striptease é um tipo de prostituição que tornou-se aceitável em países ricos como uma forma de “entretenimento”. (Em países pobres dependentes de turismo sexual, toda prostituição é vista como entretenimento.) Junto de outras mulheres da Liga Contra o Tráfico de Mulheres, eu recentemente visitei uma boate de striptease em Melbourne chamada A Galeria dos Homens. Umas 20 ou 30 mulheres estavam “dançando” em cima de mesas. Uma fileira de homens – adolescentes de bairros nobres, homens que pareciam palestrantes e professores de faculdade, avôs, turistas – estavam sentados a essas mesas com seus joelhos escondidos sob elas. Geralmente em duplas, esses homens requisitavam à mulher que tirasse a roupa. Ao fazer isso, ela apoiava suas pernas nos ombros dos homens, ginasticamente mostrando-lhes sua genitália depilada, de frente e de costas e em posições diferentes por 10 minutos enquanto os homens colocavam dinheiro em sua cinta-liga. A genitália da mulher ficava a centímetros do rosto dos homens, e eles olhavam fixamente, suas faces com uma expressão de prazer admirado e culpado, como se eles não pudessem acreditar que possuem tal domínio. Será que os homens estavam excitados sexualmente pela incitação de seu status fálico dominante? Será que a simples exibição da genitália feminina, que demonstra o status subordinado das mulheres, era excitante por si só? Para nós observadoras mulheres, era difícil compreender a excitação e entusiasmo dos homens. Muitos deles deveriam ter filhas adolescentes, não diferentes daquelas mulheres, muitas das quais eram estudantes e cujas genitálias dançavam perante seus olhos hipnotizados.

A dança de striptease nos ensina algo que devemos entender sobre “sexo” como construção da supremacia masculina: Os homens se unem e criam vínculos através da degradação compartilhada das mulheres. Os homens que frequentam esses clubes aprendem a acreditar que mulheres adoram seu status de objeto sexual e adoram provocar sexualmente enquanto são examinadas como escravas em um mercado. E as mulheres, como eles nos dizem, simplesmente não se envolvem no que estão fazendo.

Razão Número 3 

Lésbicas têm imitado homens gays.

O questionamento feminista do modelo sexual da prostituição tem encontrado resistência especialmente por parte de muitos homens gays e lésbicas que os imitam. Como Karla Jay escreve, aparentemente de forma não crítica, em Dyke Life:


“Atualmente, lésbicas estão no limite do radicalismo sexual… Algumas lésbicas agora reivindicam o direito a uma liberdade erótica que já foi associada a homens gays. Algumas cidades grandes possuem clubes de sexo e bares de sadomasoquismo para lésbicas, e revistas e vídeos pornográficos produzidos por lésbicas para outras mulheres têm proliferado nos Estados Unidos. Nossa sexualidade tornou-se tão pública quanto as tatuagens e piercings em nossos corpos”.

Na cultura gay masculina nós observamos o fenômeno de uma sexualidade de automutilação e escravidão, de tatuagem, piercing e sadomasoquismo, transformada no próprio símbolo do que significa ser gay. Interesses comerciais gays investem de forma pesada na exploração dessa sexualidade de opressão como constitutiva da identidade gay. Grande parte do poder do pink money gay desenvolveu-se a partir do fornecimento de locais para eventos, bares e saunas nos quais a sexualidade da prostituição pudesse ser praticada, embora atualmente na maioria das vezes não paga. A influência cultural da resistência masculina gay aos questionamentos feministas da pornografia e prostituição tem sido profunda, financiada fortemente na mídia gay pela publicidade da indústria do sexo gay.

Alguns homens gays contestaram a sexualidade de dominação/submissão que prevalece na comunidade gay masculina, mas poucos até agora se aventuraram a publicar suas ideias a fim de não provocar a ira de seus irmãos. Homens gays, criados na supremacia masculina, ensinados a venerar a masculinidade, também precisam lutar para superar sua erotização das hierarquias de dominação/submissão se eles desejam se aliar ao feminismo.

O sexo da prostituição é central à construção da identidade gay devido ao papel da prostituição na história gay. Tradicionalmente, a homossexualidade masculina era expressa, por homens de classe média, através da compra de homens e garotos mais pobres – como foi feito por Oscar Wilde, Andre Gidé, Christopher Isherwood. Esse não era o modelo da prática lésbica.

Na década de 1980, à medida que as lésbicas perderam a confiança nas suas próprias opiniões, forças e possibilidades – uma vez que o feminismo foi atacado e a indústria do sexo se fortaleceu enormemente – muitas tomaram os homens gays como os seus modelos e começaram a se definir como “párias sexuais”. Elas desenvolveram uma identidade completamente contrária àquela do feminismo lésbico. Feministas lésbicas celebram o lesbianismo como o apogeu do amor entre mulheres, como uma forma de resistência a todas as práticas e valores da cultura supremacista masculina, incluindo a pornografia e a prostituição. As lésbicas liberais que vieram a público com o intuito de caluniar o feminismo dos anos 80 atacaram as feministas lésbicas por “dessexualizarem” o lesbianismo e optaram por se identificar como “pró sexo”. Mas as práticas dessa postura “pró sexo” acabaram por replicar a versão do lesbianismo que foi tradicionalmente oferecida pela indústria do sexo. As admiráveis novas lésbicas “transgressoras” eram as mesmas construções sadomasoquistas e butch/femme que já têm sido por muito tempo constituintes básicos da pornografia masculina heterossexual.

Essas lésbicas adotaram as práticas da indústria do sexo como constitutivas de quem elas realmente são, a fonte de sua identidade e de seu ser. Porém, a todo tempo elas se sentiam deficientes, uma vez que seu ideal de sexualidade radical e vigorosa, praticada por alguns homens gays, parecia sempre fora de alcance. Em publicações como a revista Wicked Women de Sydney, no trabalho de Cherry Smyth e Della Grace no Reino Unido e Pat Califia nos Estados Unidos, essas lésbicas lamentavam suas inadequações no sexo em banheiros, nos encontros casuais, em conseguirem sentir-se sexualmente atraídas por crianças. Terapeutas sexuais para lésbicas, como Margaret Nicholls, tornaram-se parte importante de uma nova indústria do sexo lésbico.

Atualmente há uma tendência em revistas feministas e nas revistas femininas de representar a sexualidade lésbicas da prostituição como um prato tentador para mulheres heterossexuais provarem e consumirem. Lesbianismo “transgressor”, derivado da indústria do sexo e mimetizando a cultura masculina gay, é agora apresentado como uma sexualidade “feminina” progressiva, um modelo de como mulheres heterossexuais poderiam e deveriam ser.

Razão Número 4
Subordinar-se pode ser excitante.

Não existe um prazer sexual “natural” que pode ser liberado. Aquilo que provê sensações sexuais a homens ou mulheres é construído socialmente a partir da relação de poder entre homens e mulheres, e isso pode ser mudado. No sexo, a própria diferença entre homens e mulheres, supostamente tão “natural”, é de fato criada. No “sexo”, as próprias categorias “homens”, pessoas com poder político, e “mulheres”, pessoas da classe subordinada, tornam-se carne. O sexo é tampouco uma mera questão privada. Na concepção masculina liberal, o sexo foi relegado à esfera privada e visto como um domínio de liberdade pessoal no qual as pessoas podem expressar seus desejos e fantasias individuais. Mas a cama está longe de ser privada; ela é uma arena na qual a relação de poder entre homens e mulheres é atuada de forma mais reveladora. A liberdade ali é usualmente a dos homens de realizarem-se através de e nos corpos das mulheres.

Sentimentos sexuais são aprendidos e podem ser desaprendidos. A construção da sexualidade em volta da dominação e submissão é suposta como “natural” e inevitável porque homens aprendem a operar o símbolo de seu status de classe dominante, o pênis, em relação à vagina de forma que assegure o status subordinado da mulher. Nossos sentimentos e práticas do sexo não podem ser imunes a essa realidade política. E eu sugiro que é a afirmação dessa relação de poder, a asserção de uma distinção entre “os sexos” por meio de comportamentos de dominação/submissão que proporcionam ao sexo sua saliência e a intensa excitação geralmente associada a ele na supremacia masculina.

Desde o começo dos anos 70, teóricas feministas e pesquisadoras têm revelado a extensão da violência sexual e de como a vivência e o medo dela castram as vidas e oportunidades das mulheres. O abuso sexual infantil diminui a habilidade de mulheres de desenvolver relações fortes e afetuosas com seus corpos e com outras pessoas, e criar confiança para enfrentar o mundo. O estupro na idade adulta, incluindo estupro no casamento e namoro, produz efeitos semelhantes. Assédio sexual, voyeurismo, exposições e perseguições diminuem as oportunidades igualitárias das mulheres na educação, no trabalho, em suas casas, nas ruas. Mulheres que foram usadas na indústria do sexo desenvolvem técnicas de dissociação para sobreviver, uma experiência compartilhada por vítimas de incesto, e lidam com danos à sua sexualidade e relacionamentos. A consciência da ameaça suprema obscurecendo as vidas das mulheres, a possibilidade do assassinato sexual, nos é exposta regularmente através de manchetes de jornais sobre as mortes de mulheres.

Os efeitos cumulativos de tais violências geram o medo que faz com que as mulheres limitem aonde elas vão e o que fazem, ter o cuidado de olhar para o banco de trás do carro, trancar portas, usar roupas “seguras”, fechar cortinas. Como mostram estudos feministas como o de Elizabeth Stanko em Everyday Violence (1990), mulheres têm consciência da ameaça de violência masculina e modificam suas vidas por conta desse medo, mesmo que elas não tenham vivenciado um assédio mais grave. Em contraste com essa realidade cotidiana das vidas das mulheres, a noção de que um orgasmo “em qualquer circunstância” poderia aniquilar esse medo e vulnerabilidade reafirmada é talvez a falácia mais cruel do pseudofeminismo.

A violência sexual masculina não é trabalho de indivíduos psicóticos, mas o produto da construção normalizada da sexualidade masculina em sociedades como a dos Estados Unidos e Austrália atualmente – como a prática que define o status superior dos homens e subordina as mulheres. Se nós realmente queremos acabar com essa violência, não devemos aceitar essa construção como o modelo do que “sexo” realmente é.
O prazer sexual para mulheres é uma construção política também. A sexualidade feminina bem como a masculina foi forjada no modelo de dominação/submissão, como um artifício para satisfazer e servir à sexualidade construída nos homens e para eles. Enquanto que garotos e homens foram encorajados a direcionar todos os seus sentimentos à objetificação do outro e são recompensados com o “prazer” pela dominação, mulheres aprenderam seus sentimentos sexuais em uma situação de subordinação. Garotas são treinadas através de abuso sexual, assédio sexual, e desde muito cedo com encontros sexuais com garotos e homens assumindo um papel sexual reativo e submisso. Nós aprendemos nossos sentimentos sexuais da mesma forma que aprendemos outras emoções, em famílias de dominação masculina e em situações nas quais nós não possuímos poder, cercadas de imagens de mulheres como objetos na publicidade e em filmes.

O maravilhoso livro de 1994 escrito por Dee Graham, Amar para Sobreviver, retrata a heterossexualidade feminina e a feminilidade como sintomas do que ela chama de Síndrome de Estocolmo Social. Na apresentação clássica da Síndrome de Estocolmo, reféns aterrorizados criam vínculo com seus captores e desenvolvem cooperação submissa a fim de sobreviver. Manuais para aqueles que podem ser feitos reféns, como aquele que me foi dado quando eu trabalhei numa prisão, descrevem táticas de sobrevivência que lembram os conselhos oferecidos em revistas femininas sobre como conquistar homens. Se você for tomado como refém, dizem esses manuais, você deve falar sobre os interesses e família do captor para fazê-lo compreender que você é uma pessoa e ativar sua humanidade. A Síndrome de Estocolmo desenvolve-se naqueles que temem por suas vidas, porém dependem de seus captores. Se o captor demonstra qualquer gentileza, mesmo quando mínima, é provável que o refém desenvolva um vínculo com seu captor até mesmo ao ponto de protegê-lo de perigos e adotar plenamente seu ponto de vista acerca do mundo. Graham define a violência sexual rotineira que as mulheres vivenciam como “terrorismo sexual”. Em face desse terror, Graham aponta, mulheres desenvolvem Síndrome de Estocolmo Social e criam vínculos com homens.

Uma vez que a sexualidade feminina se desenvolve nesse contexto de terrorismo sexual, nós podemos erotizar nosso medo, nosso vínculo aterrorizado. Toda excitação sexual e liberação não é necessariamente positiva. Mulheres podem ter orgasmos ao serem sexualmente abusadas na infância, no estupro ou na prostituição. Nossa linguagem possui apenas palavras como prazer e gozo para descrever sentimentos sexuais, e nenhuma palavra para descrever os sentimentos que são sexuais mas dos quais não gostamos, sentimentos que vêm da experiência, sonhos ou fantasias sobre degradação ou estupro e que causam angústia apesar da excitação.

O “sexo” promovido por revistas femininas e até mesmo feministas, como se esse fosse dissociado da realidade do status subordinado da mulher e experiência de violência sexual, não oferece nenhuma esperança de desconstrução e reconstrução das sexualidades tanto masculinas como femininas. Sadomasoquismo e cenas de “fantasia”, por exemplo, nos quais as mulheres procuram se “perder”, são frequentemente utilizados por mulheres que foram abusadas sexualmente. A excitação orgástica experimentada nesses cenários simplesmente não consegue ser sentida nos corpos dessas mulheres se e quando elas permanecem alertas e conscientes de quem elas realmente são. O orgasmo da desigualdade – longe de encorajar as mulheres à busca da criação de uma sexualidade proporcional à liberdade que feministas visualizam – simplesmente recompensa mulheres com o prazer da dissociação.

Muitas mulheres, incluindo feministas, limitaram suas visões de como tornar as mulheres livres e decidiram focar-se em ter orgasmos mais poderosos de qualquer forma possível. A busca pela orgasmo da opressão funciona como um novo “ópio para as massas”. Ela desvia nossas energias das lutas necessárias contra a violência sexual e a indústria globalizada do sexo. Questionar-se sobre como esses orgasmos são experimentados, o que significam politicamente, se são obtidos através da prostituição de mulheres na pornografia, não é fácil, mas também não é impossível. Uma sexualidade de igualdade adequada à nossa busca pela liberdade ainda precisa ser construída e defendida se nós desejamos libertar as mulheres da sujeição sexual.

A habilidade de mulheres de erotizar sua própria subordinação e “gozar” a partir da sua própria degradação e de outras mulheres ao status de objeto impõe um grande obstáculo. Enquanto mulheres receberem alguma recompensa no sistema sexual atual – enquanto elas sentirem prazer dessa forma – por que elas desejariam mudar? Eu sugiro que é impossível imaginar um mundo no qual mulheres são livres ao mesmo tempo que se protege a sexualidade baseada precisamente na sua ausência de liberdade. Nosso impulso sexual deve se igualar ao nosso entusiasmo político pelo fim de um mundo sustentado por todas as hierarquias abusivas, incluindo raça e classe. Somente uma sexualidade de igualdade, e nossa habilidade de visualizar e batalhar por tal sexualidade, torna a liberdade das mulheres possível.


  1. Tradução livre do artigo publicado em 1996 na revista On The Issues. Disponível em:
    https://ontheissuesmagazine.com/feminism/how-orgasm-politics-has-hijackedthe-womens-movement/ ↩︎
  2. Importante revista feminista liberal estadunidense. ↩︎

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Obstáculos para uma amizade feminina

De Janice Raymond, traduzido livremente de A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection.1


“Duas amigas bebendo chá no estúdio da artista”, de Bertha Wegmann 1885-1925.

Para colocar de forma direta e simples, a Segunda vinda da Caça às Bruxas empregará métodos diferentes. Desta vez, as mulheres são treinadas e legitimadas a fazê-lo umas às outras.

Mary Daly, Pure Lust

A amizade não elimina a distância entre as pessoas, mas a torna vibrante.

Walter Benjamin, Understanding Brecht

Se eu não estou por mim mesma, então quem está por mim? Se eu estou apenas por mim mesma, então quem sou eu?

Rabbi Hillel, Ditos de pais judeus [sic]

Existem diversos impedimentos para a amizade feminina. Um trabalho sobre amizades femininas deve evitar a romantização do assunto, expondo tais obstáculos a uma consideração severa. Tais obstáculos estão presentes entre diferentes tipos de mulher – aquelas que são feministas e aquelas que não se definem como feministas. Na verdade, entre os dois grupos de mulheres, os obstáculos têm sido surpreendentemente semelhantes em seus padrões.

O mais flagrante obstáculo à amizade feminina é o popular adágio patriarcal de que “as mulheres são, elas próprias, suas piores inimigas”. Tal tema possui muitas variações, e um refrão de vozes masculinas através dos séculos ecoou nas palavras de Jonathan Swift: “Eu nunca conheci uma mulher tolerável que apreciasse suas iguais”. Seria fácil desmantelar tal refrão sublinhando o sexo de quem o elaborou, ou enfatizando a inadvertida pista dada por Given: de que mulheres que os homens definem como “toleráveis” não admiram suas semelhantes. Logo, mulheres se desidentificam umas com as outras com a intenção de se tornarem “toleráveis” aos homens.

Todavia, mulheres reproduzem palavras semelhantes. Um estudo elencando atitudes de mulheres em relação à amizade feminina revelaram o seguinte. De uma secretária: atribuir muita importância a um vínculo com outra mulher é pueril; de uma programadora, “será visto como lesbianismo latente”.2 Seria fácil ignorar essas vozes dizendo que mulheres internalizam atitudes dos homens sobre elas mesmas, e sobre suas relações com outras mulheres. O problema está em que, embora isso possa ser considerado por um lado pela causa antifeminista, isso não atenua a terrível realidade de mulheres-odiando-mulheres quando isso se abate sobre suas próprias vidas. É sobre a materialidade desse comportamento que este capítulo tratará.

Bradando a mensagem hetero-relacional de que “as mulheres são, elas próprias, suas piores inimigas”, homens têm garantido que muitas mulheres se tornem, efetivamente, as piores inimigas umas das outras. Os obstáculos à amizade feminina têm grande repercussão. A mensagem funciona como uma constante poluição sonora nas vidas das mulheres e pode ser ouvida em diferentes lugares. Esse constante barulho sobre mulheres odiando mulheres é suplementado pelo silêncio histórico que cerca as mulheres que sempre amaram mulheres. Trata-se de uma dupla mensagem que estrangula o crescimento do ginoafeto. Mulheres precisam estar alertas sobre os contextos nos quais essa dupla mensagem surge, assim como acerca dos mecanismos do funcionamento dessa mensagem para blindar a evolução da amizade feminina.

Enquanto eu escrevia este livro, pedi a estudantes, amigas e várias outras mulheres que fizessem uma lista do que consideravam as barreiras básicas do ginoafeto. Tais listas foram longas, embora mulheres tendessem a caracterizar os mesmos obstáculos com matizes diferentes. O que, contudo, pude concluir é que apesar de os obstáculos materiais variarem nos diferentes grupos de mulheres, os contextos de onde surgem são bastante comuns a todas as mulheres. Logo, se é verdade que contextualizar o objeto o ilumina, então falar sobre os contextos em que os obstáculos ao ginoafeto surgem é um passo importante na direção da erradicação mesma dos obstáculos.

A amizade dá às mulheres um porto seguro para se localizarem no mundo. Ela dá forma, feições, uma localização concreta para mulheres que não têm um Estado ou uma origem geográfica e, de fato, nenhum gueto territorial ou diáspora como ponto de partida para ação. A amizade dá às mulheres um mundo comum que se torna um ponto de referência para localizarem-se num mundo maior. O compartilhamento de visões em comum, atrações e energias dá às mulheres a conexão com o mundo de forma que não perdem seu prumo. Assim, o compartilhamento da vida pessoal é ao mesmo tempo a base para uma existência política. Pelo mesmo emblema, qualquer iniciativa que milite contra o Ser da mulher no mundo – contra um internacionalismo feminino – subjuga as fortes amizades femininas que têm consequências políticas, leia-se, ginoafeto.

Infelizmente, os contextos nos quais cada mulher vive sua vida realçam nosso estado de “expatriadas” mais do que nosso internacionalismo. Nenhum internacionalismo feminino ou amizade feminina pode prosperar ou aprofundar-se nos contextos onde somos dissociadas do mundo, assimiladas pelo mundo ou vitimizadas pelo mundo. A partir do momento em que tais contextos prevalecem sobre as vidas de diversas mulheres, os obstáculos ao ginoafeto igualmente se expandem. Nossa falta de internacionalismo produz nossa falta de amizade.

  1. Dissociação do mundo

Uma vez que mulheres têm sido eternas vítimas da tirania masculina, uma vez que a sobrevivência se tornou o foco da existência feminina e das políticas feministas, uma vez que mulheres, em quase todo lugar, estão alienadas da participação política, e porque o mundo foi feito por homens, muitas mulheres desenvolvem um sentimento de dissociação do mundo. Hannah Arendt, mais do que a maior parte dos filósofos, discutiu o conceito de “sem-mundo”.3 Ainda que, originalmente, tal conceito tenha sido pensado e desenvolvido no contexto histórico dos judeus e do judaísmo, tal conceito possui grande relevância para mulheres e para o feminismo hoje.4

Mulheres, em geral, têm tomado para si a condição de “sem-mundo” como a regra, isto é, em virtude da posição derivada e passiva na qual têm sido forçadas através da história e em quase todas as culturas. A dificuldade em ambos os casos é que, quando a dissociação em relação ao mundo se torna o próprio modo de existir – como no exemplo anterior, no qual mulheres extraem muito de seu significado a partir da realidade de maridos, amantes, pais ou chefes, raramente experimentando o mundo de maneira direta, ou como no caso de algumas separatistas, que fazem da dissociação a base da afinidade com outras mulheres – a existência feminina se tornou segregada do resto do mundo. Filosoficamente, isto pode tornar as mulheres estreitas em sua visão de mundo; politicamente, pode torná-las vulneráveis.

Em um mundo que vê a mulher como supérflua, isto é, desnecessária, marginal, sem importância e dispensável, as mulheres acabam por adicionar a dissociação a essa condição. Quanto mais as mulheres se dissociam, mais catastróficos são os efeitos dessa dissociação – quanto mais afastadas as mulheres estão de uma participação definitiva, plena, naquilo que deveria ser um mundo compartilhado por todos.

É importante ressaltar que não estou identificando a dissociação com a necessidade que as mulheres têm de viver à margem de uma sociedade heterorrelacional.5 Mulheres sempre serão “estrangeiras” nessa cultura, como Virginia Woolf, entre outras, já sabia. No entanto, existe uma dissociação, uma sensação de estar sem-mundo em relação ao patriarcado. E essa sensação é sentida mundialmente. A dissociação que critico não é aquela das mulheres que se associam à parte para depois afetarem o mundo dito real. É, na verdade, a dissociação que proclama a remoção das mulheres deste mundo. Ela é geralmente acompanhada de uma “mobilidade para baixo”, seja em termos financeiros, seja em termos mentais.

Essa dissociação cria, comumente, uma apatia em relação à existência política, intelectual e financeira, bem como uma apatia em relação à aparência física, que se torna o símbolo de abandono para o mundo feito pelo homem. Ela se comporta como se dinheiro e status fossem coisas que as mulheres já possuem ou que poderiam possuir se assim desejassem, e que pudessem, por isso, ser descartadas e facilmente readquiridas. Essa atitude acaba tornando o patriarcado uma “desculpa” para racionalizar a inação de não procurar emprego, não ir à escola e não tomar iniciativas no âmbito econômico ou profissional, que colocariam a mulher em um lugar no mundo “real”.

A dissociação exclui as mulheres do acesso ao mundo. Consequentemente, as mulheres são privadas do poder, do dinheiro, da interação com outras pessoas e das condições mais básicas de uma participação plena no mundo. A dissociação ilude as mulheres, fazendo-as acreditar que podem se retrair para um lugar tranquilo onde preservam uma aparência de liberdade. No entanto, como apontado por Arendt, essa instância leva à “liberdade e inalcançabilidade dos excluídos”.6

Uma feminista politicamente dissociada pode desempenhar um papel revolucionário entre outras feministas que pensam de forma semelhante, mas que não ameaçam efetivamente o ethos do macho dominante. Ela permanece uma excluída do mundo, e não uma rebelde à margem dele.

Por outro lado, a dissociação do mundo que não é escolhida por razões feministas, conscientemente definidas – isto é, uma interpretação do mundo que venha para as mulheres filtrada pelo olhar masculino – é reforçada pelo fato de que as mulheres não se compreendem como um povo. Diferentemente de outros grupos oprimidos, as mulheres não possuem um passado que sirva como elemento de coesão e consciência de comunidade, com suas próprias tradições políticas, filosóficas e históricas – ou será possível dizer que tal passado é algo sobre o qual as mulheres sabem pouco, mas que existe? A condição da mulher, sem raízes intrínsecas em seu próprio grupo identitário enquanto mulheres, contribui mais do que tudo para a nossa condição de sem-mundo e para a percepção irrealista e apolítica que a maior parte das mulheres têm do mundo. Essa falta de raízes também é a causa da falta de amizade entre mulheres, a amizade que seja verdadeiramente um ginoafeto, uma virtude política.

O ginoafeto não pode ser sustentado onde as mulheres estejam livres do fardo de carregar o mundo nas costas7, pois o ginoafeto é uma virtude política com um efeito político. A existência feminina, especialmente a existência feminista, não pode ocorrer fora da esfera política da sociedade.

Uma verdadeira amizade feminina, forte e crítica, que busque retomar o poder de intervir no mundo e modificar a realidade, não pode ser construída entre mulheres que estão dissociadas e têm pouca compreensão ou interesse no mundo exterior. Qualquer comunidade que se dissocie do mundo maior não pode participar plenamente desse mundo.

A dissociação do mundo leva à dissociação das mulheres. Isso limita o ginoafeto a comunidades separadas que se retiram do mundo. Como resultado, ele perde seu poder político e se torna uma escolha individual. Embora as mulheres possam ganhar força através de uma dissociação radicalmente escolhida e sustentada, como Hannah Arendt nos lembra, “a força não é o mesmo que poder político. O poder surge apenas quando as pessoas agem em conjunto, não quando se fortalecem individualmente. Nenhuma força é forte o suficiente para substituir o poder; quando a força é confrontada pelo poder, ela cederá”.8

A dissociação como uma escolha radical é tentadora, uma vez que as mulheres enfrentam constantemente um mundo criado por homens. Ignorar a Babel que sustenta uma Babilônia feita por homens pode ser ainda mais tentador. No entanto, muitas mulheres optam por fazer isso, assumindo os riscos que essa decisão traz.

Mulheres que se dissociam do mundo, seja por uma escolha política consciente ou por uma sensação de alienação em relação ao mundo dos homens, precisam encontrar algo para substituir esse mundo. Muitas vezes, elas recorrem à terapia como uma forma de buscar apoio, compreensão e significado.

1.1. Terapismo: a tirania dos sentimentos

O termo terapismo é aquilo que já descrevi antes como “terapia como um estilo de vida”.9 O fenômeno do terapismo tal como se manifesta entre mulheres e no seio de comunidades femininas, inclui não apenas frequentar a terapia, o que inclui frequentá-la por anos, mas relacionar-se com outras mulheres em contextos terapêuticos. Terapismo é uma supervalorização dos sentimentos. Pensando de maneira materialista, é a tirania dos sentimentos, na qual as mulheres vêm a acreditar que, o que realmente conta sobre elas e sobre suas realidades, é sua “psicologia”. E a partir do momento em que elas não sabem o que de fato significa “psicologia”, elas passam a se submeter a outros que dizem saber – o psiquiatra, conselheiro ou analista. Neste sentido, podemos afirmar que o terapismo promove uma hipocondria psicológica entre mulheres, que acabam por se tornar a maior parte da demanda de saúde emocional.

Existem, é claro, circunstâncias nas quais as mulheres buscam a ajuda psicológica necessária de fato. Não critico o uso genuíno da terapia. Todavia, parece haver pouco reconhecimento em torno do fato de que a terapia está se tornando um estilo de vida entre mulheres, e que se faz necessário traçar uma linha divisória onde acaba a real necessidade de ajuda psicológica, e onde começa uma tirania dos sentimentos. Salta aos olhos que mulheres que lamentam sua falta de dinheiro para livros, eventos culturais, mas que, de alguma maneira, conseguem dinheiro para sessões semanais de terapia, e até para mais de uma sessão por semana. A terapia feminista está se tornando um negócio. Muitos restaurantes feministas, livrarias, centros de saúde, fundos financeiros, tenham falido por completo, ou vivam à margem da falência. Ainda assim,a  terapia feminista prospera. Em última instância, mulheres deveriam investigar as causas desse fenômeno.

Uma das razões para isso é o lugar privilegiado dado ao processo de “descortinamento do self” na terapia. O descortinamento do self se tornou a prioridade central da terapia, e é uma forma específica de descoberta que se baseia na modelagem, construção, ajustes e reparos do self, como se fosse algo externo à pessoa que precisa ser consertado. É um modelo fixo de descortinamento que confunde a genuína auto-descoberta com uma perpétua manifestação de  sentimentos íntimos. A recusa em revelar tudo é vista como repressão, como negação de um eu profundo. Como resultado, o movimento das mulheres, assim como a sociedade em geral, tornou-se focado na autoexposição, de seus aspectos mais importantes. Mulheres são encorajadas a dizer e mostrar tudo, com poucos aspectos do corpo ou da mente permanecendo um mistério. Esse contexto leva as mulheres a se envolverem em uma espécie de “strip-tease psicológico em massa”, que fragmenta e explora a vida interior. E cada vez mais, enfrentar a perda de emprego, problemas de saúde ou rompimentos amorosos sem se engajar em terapia se torna uma tarefa difícil.

Certamente, as pessoas precisam ser aptas a se libertarem de sentimentos opressivos, emoções reprimidas, e caminhos tortuosos. Pode haver momentos em que mulheres procurem terapeutas para obter ajuda. Assim como existe uma necessidade genuína de compartilhar tais sentimentos, existe também a necessidade de protegê-los e resguardá-los. E o contexto da terapia pode não ser o melhor lugar para compartilhar esses sentimentos. A autorrevelação genuína não deve ser confundida com a perpétua manifestação terapêutica. 

Manifestações terapêuticas têm consequências para além do contexto terapêutico em si. Michel Foucault o coloca dessa maneira:

… nós nos tornamos uma sociedade singularmente confessional. A confissão desempenha um papel na justiça, medicina, educação, relações familiares, relações amorosas, nas relações mais ordinárias de nosso dia a dia, e também nos ritos mais solenes; alguém confessa seus crimes, seus pecados, pensamentos e desejos, doenças e problemas; contamos com grande precisão, em meio à maior dificuldade de contar.10

Tais palavras deixam claro que a psicologia criou um novo tipo de sujeito – o humano, animal confessional. “A obrigatoriedade de confessar é tão profundamente incutida em nós, que não a percebemos mais como um efeito do poder que nos limita; pelo contrário, parece que a verdade, alocada em nossa natureza secreta, ‘demanda’ ser trazida à superfície”.11 A autodescoberta se torna sinônimo de liberdade. Neste sentido, terapia se torna um estilo de vida que afeta a maneira como falamos, como pensamos, a maneira como nos relacionamos com as outras pessoas. Como um estilo de vida, a expressão dos sentimentos se torna uma espécie de ritual, proclamando que a mera expressão independente das consequências, produz uma mudança nas pessoas. Expressão, por si só, exonera, purifica, redime. 

Neste contexto, Sara Scott e Tracey Payne, ao escreverem para a revista britânica de feminismo radical Trouble and Strife, chamaram a terapia de “laxante mental”. Enfatizando a preocupação das terapias com o passado, sustentam que terapias “nos deixam permanentemente olhando para trás, para dentro de nossos passados, em vez de nos apontarem horizontes vindos da experiência de outras mulheres, para encontrarmos explicação para nossas vidas. Uma vez que as mulheres encontram e expressam esses ‘bloqueios’, supostamente se tornam ‘completas’ e ‘felizes’.”12

A ironia de tudo isso está em que uma era obcecada pela revelação do self, a verdadeira e profunda subjetividade é difícil de ser encontrada. Hannah Arendt  sublinhou duas razões para tal. Em primeiro lugar, a introspecção filosófica aniquila a situação atual, dissolvendo-a no que chamamos de humor. Ao mesmo tempo, empresta uma aura de objetividade a tudo o que é subjetivo.13 Portanto, a vida íntima é reduzida a um exercício terapêutico. O terapismo reifica a subjetividade, isto é, a coisifica, externalizando e esgarçando a vida íntima de dentro de seus subterrâneos. Muito facilmente, a vida íntima se torna a vida pública.

Em segundo lugar, uma autodescoberta introspectiva, as fronteiras entre o que é íntimo e o que é público ficam borradas. Intimidades são transformadas em coisas públicas, e aquelas que se recusam a publicizar sua intimidade são vistas como pudicas e reprimidas, necessitadas de uma limpeza psicológica. A importância de conhecer os sentimentos das pessoas se torna a norma. A vida adquire realidade majoritariamente através da confissão, sendo constantemente submetida a uma provação psicológica. Não as emoções em si, mas o contar das emoções se torna a realidade.

E o que tudo isso tem a ver com amizade entre mulheres? Para muitas, a terapia feminista se tornou um substituto para a amizade feminina. Muitas pessoas já observaram o que uma emigrante russa disse certa vez: mulheres estadunidenses vão ao psicólogo movidas pela necessidade de ter amigas”.14 É senso comum que a recorrência, contínua, das mulheres à terapia se trata de uma compra de amizade. Frequentemente essas mulheres têm, sim, amigas com quem discutem sua vida íntima. Contudo, dizem que existe algo de “diferente” quando se trata de falar com o/a terapeuta. 

Por exemplo, uma mulher certa vez relatou que sua amiga estava passando pelo fim de um relacionamento que durara 10 anos. Esse término foi muito sofrido, e por um mês, minha amiga ouviu a cada detalhe dessa história, oferecendo conselho, conforto, e sua própria presença e amizade. Um dia, a amiga lhe disse que procuraria a ajuda de um terapeuta. Minha amiga perguntou sobre a necessidade de fazê-lo. A amiga respondeu que estava indo à terapia para ouvir alguns conselhos. “Mas o que é que pode ter de diferente entre meus conselhos e os de um terapeuta?”. A amiga ponderou por um tempo, e respondeu: “… mas a ela, eu pago!”. E minha amiga respondeu: então, pague a mim!

Como Tracey Payne relata acerca de sua própria experiência com terapia: “olhando hoje para essa experiência, eu vejo que havia muito pouco que eu não poderia ter obtido de amigas próximas, ou de um grupo de consciência, mas naquele tempo a terapia também oferecia ‘liberdade’. Em particular, a libertação do passado. Eu sentia que se eu mantivesse ‘desenterrando a merda’ rápido o suficiente, eu poderia alcançá-la e me tornar livre dela… Eu também acreditava que ‘botar tudo pra fora’ era uma coisa boa em si mesma”.15

Na sociedade confessional, a amizade frequentemente se reduz a um “colocar tudo para fora” e/ou um grupo de co-aconselhamento – literalmente, quando duas mulheres montam um arranjo extremamente formal, ou quando mulheres tornam seus relacionamentos umas com as outras lugares de constante descortinamento umas com as outras. Sentimentos se tornam fatos. Sentimentos tornam-se, para além disso, assunto de provações e preocupação. Como Pat Haynes descreveu, as mulheres se tornam “hiper-especializadas em sentimentos”.16 Questões políticas são largamente exploradas nos quesitos em que se relacionam com esses sentimentos. Em última instância, amizades de tal natureza se tornam uma forma de fofoca – a fofoca da vida de uma das envolvidas.

No terapismo, o que falta é uma paixão pela mudança. O compartilhamento de sentimentos triunfa sobre a verdade apaixonada. Mary Daly nos fez uma distinção crucial desse tipo de sentimento e a paixão. Ela chama as antigas paixões de paixões plásticas ou pseudo-paixões:

Em contraste com as paixões reais, as paixões plásticas são sentimentos flutuantes resultantes de uma crescente dissociação/fragmentação. Uma vez que são caracterizadas pela falta de causas específicas e nomeáveis, ou “objetos”, o que nos resta é “lidar com elas” infinitamente, de maneira descontextualizada, ou no interior de um pseudo-contexto.17

Em um exemplo contrastando paixão plástica e paixão verdadeira, Daly compara a realização à alegria. Daly vê a realização como “uma perversão terapeutizada da paixão da alegria”.18 Realização é uma espécie de preenchimento ou mesmo enchimento por uma fonte externa. Alegria é um movimento que começa internamente à pessoa. Uma mulher realizada é “completada” ou “finalizada” em outro lugar. Uma mulher alegre se engaja em um movimento consistente, autodirecionado, cada vez mais profundamente em seu Self e de suas amigas.

A terapia como estilo de vida filtra a paixão, deixando-a de fora, deixando passar apenas os sentimentos. É como se as profundezas da mulher ficassem de fora, restando apenas os sentimentos difusos. Terapeutas promovem níveis baixos de intensidade. Nesse sentido, “sentimento” é o que podemos identificar como a banalidade da paixão. A “terapeutização” da amizade é baseada numa perda particular do Eu, na perda do Eu apaixonado, na perda do Eu original, da amiga original. Perdendo essa originalidade, as mulheres continuam a se relacionar umas com as outras, mas não de maneira original. O exame e exploração dos sentimentos se tornam um substituto para uma intimidade mais e mais apaixonada. Existe uma perda de profundidade e intensidade das amizades femininas. Os padrões heterorrelacionais florescem diante da perda do ginoafeto original.

Em amizades estreitas, existe uma fome de verdade, começando pela verdade das próprias amigas. Terapismo substitui a verdade com uma overdose de adoração ao próprio umbigo e autodescoberta, borrando a diferença entre os dois – verdade e culto ao ego – de modo que a Verdade passa a ser equacionada com manifestações egóicas. Descontextualiza a autorrevelação, que é, sim, uma importante parte de qualquer amizade, afastando-a da revelação apaixonada da vida da mulher tal como foi vivida. O terapismo finge que tal revelação só pode ocorrer no interior do contexto de uma relação terapeuta-cliente ou em amizades que emulam essa relação.

O solo fértil onde o terapismo prospera é o contexto dissociativo no qual muitas mulheres vivem. Quando uma mulher se torna dissociada do mundo real, mesmo que esse mundo seja de fato feito por machos, mesmo que esse mundo seja corrupto, eventos e pessoas podem acabar tomando uma dimensão desproporcional ao que são na realidade. Por exemplo, o ser da mulher – não o seu Ser profundo, mas o seu ser que sente e se sente sentindo – toma uma proporção aumentada. Quando isso acontece, a expressão dos sentimentos pode se tornar igual ou até maior do que, por exemplo, a expressão de ideias e ações políticas. Tomando de empréstimo as palavras de Virginia Woolf em um diferente contexto, as mulheres se tornam “espelhos de aumento”19, refletindo a si mesmas de volta em um tamanho maior, egocêntrico.

O contexto dissociativo das mulheres em geral, ou aquele escolhido por algumas feministas separatistas, cria uma comunidade dissociada totalizante na qual as mulheres que habitam compartilham de normas e valores homogêneos. Como analisa Robert J. Lifton, ambientes totalizantes geralmente são bem sucedidos em reivindicar “a posse total de cada indivíduo que o habita. A posse privada da mente e seus produtos – imaginação e memória – se torna altamente imoral”.20 A dissociação, seja no caso de mulheres em geral, seja no caso de feministas separatistas, cria ambientes totalizantes que funcionam como sutis aparatos para restringir a verdade e incentivar comportamentos “corretos”, tornando a exposição/expressão total uma regra. Mulheres que não se engajarem na perpétua externalização dos sentimentos, seja num chá de dona de casa, seja em uma comunidade de mulheres, acabam sendo julgadas. No interior de tal sistema, uma mulher fica privada tanto de informações mais amplas sobre o mundo, quanto de reflexão interna, ambas necessárias para se manter conectada ao mundo real, bem como para manter o Self independente dele. No interior de um contexto dissociado, a vida se torna “real” mais fácil quando se expõe a privacidade dos sentimentos compartilhados nos termos mais místicos. Confissões se tornam uma forma de comunicação constante com outras mulheres. O terapismo substitui a amizade.

Embora o terapismo exista em outros contextos para além da dissociação das mulheres, as mulheres em tal condição se tornaram vítimas singulares desse estilo de vida, pois a maior parte de nós, em virtude de nosso estereótipo sexual, que nos separa da política de maneira geral; já somos afetadas pela dissociação. Se acrescentarmos ainda mais camadas a essa dissociação, por exemplo justificativas feministas para tal postura, cria-se um contexto ainda mais favorável à exploração da vida subjetiva das mulheres.

O movimento feminista não apenas ajudou a criar uma nova classe de conselheiras profissionais, conhecidas como terapeutas feministas, mas criou também contextos para que muitas relações entre mulheres se tornassem um mundo sem muros. Sustento que tal fenômeno de relacionamentos “show and tell”21 do Eu são uma nova forma de violência horizontal. Tal fenômeno é violento para o Eu original e profundo das mulheres, é violento para as amizades entre mulheres, mantendo as mulheres numa posição de confronto perene, a posição de alguém que escolhe se sentir sentindo-se a si própria o tempo todo, retirando, portanto, a atenção do uso ativo de recursos internos e dissipando energias em constantes manifestações do Eu. Em vez de se tornarem amigas profundas, mulheres estão se tornando “técnicas em relações humanas”.

1.2. Relacionismo

O que estou apelidando aqui de “relacionismo” costuma acompanhar o terapismo. O relacionismo é a redução das amizades a relações que frequentemente se limitam à autoanálise, a DRs, de maneira muito similar ao que o terapismo faz em relação aos sentimentos.

O relacionismo conta, também, com a sua própria classe de profissionais expertos. Chamam-se “teóricos da atração”, pois são capazes de tomar conta do “campo da amizade”; eles podem, entre outras coisas, explicar tecnicamente a diferença entre um “amor companheiro” e um “amor apaixonado”. Tal como os “teóricos da atração”, as mulheres “em relacionamentos” frequentemente transformam tais relacionamentos em empreendimentos técnicos, eternamente discutindo a relação até que não haja nada a ser discutido. Estilo, variedades eróticas, gestos, expressões faciais, tudo se torna matéria prima da qual um significado precisa ser extraído. Tal tipo de relacionismo objetifica as mulheres e suas relações de maneira muito semelhante à objetificação em contextos heterorrelacionais. O relacionismo faz uma definição da mulher a partir de um referente que é exterior a ela.

O relacionismo materializa a etimologia da palavra “relacionar” tornando as mulheres seres “relacionáveis”, isto é, uma classe que se “relaciona” com algo ou alguém – que está sempre a relacionar-se com algo externo a seu Ser. Esse foco reiterado em lidar com relações nas quais tantas mulheres estão imersas reforça a dissociação de um mundo de significados muito maiores. Tal relacionismo bloqueia o desenvolvimento de um ginoafeto profundo.

O relacionismo existe em vários contextos. Em contextos heterorrelacionais, nos quais as mulheres extraem o sentido de sua existência dos homens de suas vidas, o relacionismo se materializa na constante preocupação feminina em torno dos homens. Os homens de suas vidas se tornam, geralmente, o foco das discussões quando as amigas se encontram. Tal tipo de relação entre mulheres dá margem para amizades frívolas, majoritariamente caracterizadas por mulheres falando sobre homens, praticando um escambo de narrativas sobre “os bons homens”, “os homens de verdade”, “os cavalheiros”, ou os outros vários tipos masculinos de consorte. Muitas lésbicas, por outro lado, especialmente em contextos separatistas dissociativos, caem em paradigmas semelhantes em relação às mulheres de suas vidas. A hesitação em falar sobre suas vidas pessoais é vista, nos contextos separatistas, como uma herança patriarcal, uma repressão política à integração social entre mulheres. Portanto, a dissociação, nestas duas formas, conduzem as mulheres a um novo ofício, que não passa de uma velha profissão – os relacionamentos humanos profissionalizados.

Nas condições de “relacionistas profissionais”, as lésbicas com frequência canalizam o grosso de suas energias em relações, frequentemente movendo-se de uma relação erótica para outra. Lésbicas têm sido críticas ao imperativo heterorrelacional que torna mulheres seres que se pautam e se referenciam em homens. Todavia, “viver pelas mulheres” em um sentido estrito, onde as vidas das mulheres está estreitamente ligado a seus relacionamentos com elas, se torna um análogo a “viver pelos homens”.22 O relacionismo lésbico não é muito diferente do heterorrelacionalismo, já que as lésbicas neste contexto precisam constantemente encontrar-se namorando. No cerne desta “febre relacional”, parece que as lésbicas têm, em um certo sentido, substituído os homens pelas mulheres enquanto objetos relacionais. O adágio heterorrelacional “você, enquanto mulher, precisa se juntar a um homem” é modificado para “você, enquanto mulher, precisa se juntar a uma mulher”. A falta de um relacionamento erótico se transforma na falta de sentido para o Eu.

O fato de que a vida de muitas mulheres esteja centrada em relacionamentos amorosos, sejam heterossexuais ou lésbicos, torna as outras pessoas o centro da vida da mulher. Isto necessariamente desloca o autocentramento e frequentemente nega o trabalho de autocentrar-se, uma vez que, quando o relacionamento falha, tudo à sua volta falha também. As mulheres ficam deprimidas, paralisadas, inaptas a continuar seus compromissos, especialmente suas vidas profissionais. O relacionismo, ou o centralismo das relações amorosas, é portanto um obstáculo à amizade feminina, uma vez que drena a energia das mulheres de seus Eus, suas amigas primárias, para outrem. Nenhum ginoafeto genuíno pode ser criado se não partir de um Eu fortalecido. O relacionismo promove uma rendição do Eu, destruindo um autocentramento positivo e necessário.

1.3. Perversões do adágio “o pessoal é político”

A proliferação do relacionismo e do terapismo promove uma ampliação da vida privada feminina. No princípio da presente onda feminista [segunda], havia uma grande ênfase na ideia de que “o pessoal é político”. Este era e anda é um insight feminista crucial. Ele assinala que tudo aquilo que foi relegado ao domínio da vida pessoal das mulheres – áreas como a sexualidade e a família – eram consequências políticas de outras áreas, O adágio “o pessoal é político” encapsulava a verdade de que essas áreas, pretensamente resguardadas como da vida privada, e que eram largamente habitadas por mulheres, não poderiam mais ser segregadas da arena política. Na verdade, áreas como família e sexualidade passaram a ser vistas, a partir daí, como bastiões do poder patriarcal e como pilares centrais das políticas sexuais.

Têm havido muitas perversões desse insight original. “O pessoal é político” foi submetido a reduções e interpretações equivocadas. Por exemplo, muitas mulheres interpretam a frase como “o que é pessoal deve ser publicamente compartilhado”. Sob esta perspectiva, tudo o que é íntimo, privado ou pessoal se torna objeto de domínio público. Uma das mais novas versões dessa tendência, o BDSM lésbico, que Kathleen Barry compreende como a versão mais avançada da perversão de “o pessoal é político”.

Quaisquer que sejam seus “sentimentos” e “desejos”, porque você é mulher, lésbica, feminista, não torna legítimo reivindicá-los como direitos políticos… É esse tipo de pensamento que amplia o conceito de opressão até torná-lo vazio de significado… Se quisermos conectar nossa experiência pessoal enquanto oprimidas a estratégias políticas, tais estratégias precisam ser baseadas em determinados valores compartilhados que promovam a humanização da vida, e não sua objetificação.23

Aquilo a que se tem chamado BDSM lésbico possui similaridades com o terapismo no sentido de que também surge em um contexto onde a expressão dos sentimentos é a norma, e neste caso, até uma norma política. A negação de tais sentimentos é encarada como uma repressão política. Portanto, a liberação se torna sinônimo não só de liberdade de seguir seus próprios sentimentos, como também uma campanha política de publicização de sentimentos.

Houve outras pessoas a criticarem o princípio de que o pessoal é político. Mas nem todas foram tão astutas quanto a de Barry. O trabalho de Jean Bethke Elshtain pode ser tomado como exemplo de uma crítica tangencial – uma crítica que não tem um foco preciso – ao que entende por “política do deslocamento”. Elshtain defende que “nada do que é pessoal está isento , portanto, da definição, direção e manipulação – nem intimidade sexual, amor ou personalidade… se política é poder e o poder está em todo lugar, a política não está, afinal, em lugar nenhum”.24 

O problema, a meu ver, não está em politizar a vida pessoal, mas em publicizá-la. Nada do que é pessoal pode ser privado. Nada do que é pessoal pode ser resguardado do escrutínio público. A distorção reside no fato de que tudo que é pessoal passa a ser publicamente exibido sob a retórica de que “o pessoal é político”. Portanto, assinalar a tudo como “político” gera uma urgência de tornar tudo pessoal, objeto de julgamento público e coletivo nas comunidades de mulheres.

No contexto de certos grupos que se reivindicam separatistas, para os quais as políticas passam a se basear na dissociação do mundo, o “pessoal é político” se tornou um fenômeno consolidado. O que acontece grande parte das vezes é a racionalização da necessidade de uma existência coletiva através da destruição de toda a ordem privada. Como uma crítica já apontou, “primeiro vão-se as roupas; depois os sentimentos superficiais, a seguir os profundos, então virão os segredos verdadeiros, e finalmente todo o seu Eu interior. Supostamente, depois dessa orgia de desnudamento da alma, experimentaremos uma nova liberdade, uma verdadeira abertura, ou algo assim”.25 Relacionamentos, em particular, são uma fértil área para discussões. Uma de minhas ex-estudantes expressou sua exasperação com a mentalidade  “pessoal é político” da seguinte forma: “torna-se um imperativo categórico para todo e qualquer um que tenhamos uma opinião sobre o que todo e qualquer um está fazendo. Eu ODEIO ISSO”.26

Nenhum ginoafeto genuíno pode advir disso. Mesmo quando as mulheres não estão atentas para a interpretação equivocada de “o pessoal é político”, por sinceramente acreditarem no compartilhamento público da vida privada, temos de nos perguntar o que está, de fato, sendo compartilhado nessas circunstâncias. Estamos mesmo compartilhando uma vida interior profunda? Estamos compartilhando os frutos de uma existência reflexiva e criativa?

O ginoafeto precisa de um tempo e um espaço reservados. Tal privacidade é um tanto quanto diferente da dissociação sobre a qual o terapismo e o relacionismo prosperam, abrigando a ilusão de um tempo intocado e de um espaço separado do mundo ao qual apenas as “relações” têm acesso. Mais do que isso, a privacidade abriga o envolvimento com o mundo, porque adiciona a reflexão de qualidade à vida e à seleção das amigas – o que Alice Walker chamou de “rigor do discernimento”. O discernimento nos ajuda a recuperar a perspectiva sobre nossos Eus, e sobre os das outras. Sem o hábito da reflexão, perdemos a percepção de nosso Ser, o senso de integridade que nos faz ser quem somos. 

2. Assimilação ao mundo

O oposto da dissociação é a assimilação ao mundo. Mulheres assimilacionistas desejam ter sucesso no mundo dos homens apagando o fato de sua feminilidade. A assimilacionista se esforça para perder sua identidade feminina, ir além dela, ser considerada uma pessoa em um mundo que concede o status de pessoa apenas aos homens. Ela faz isso assimilando-se ao mundo dominado pelos homens em seus próprios termos.

Não estou defendendo que as mulheres constantemente proclamem “Eu sou mulher” no trabalho ou em qualquer outro ambiente em que estejam. No entanto, uma mulher assimilacionista constantemente se desidentifica com as mulheres. Por exemplo, ela pode ignorar ou, pior, aceitar atitudes e ações opressivas, como assédio sexual ou a denigração de outras mulheres feitas na sua presença. Ela pode até iniciar discussões sobre temas antifeministas para provar que é “um dos caras”. Em outras palavras, quando ela é oprimida como mulher, ela não responde como mulher.

Em uma sociedade que não apenas é hostil às mulheres, mas também é permeada pelo que Andrea Dworkin chamou de ódio às mulheres, é possível assimilar apenas através da assimilação ao antifeminismo também. Explicitamente ou implicitamente, as assimilacionistas rompem os laços com outras mulheres, estejam elas na companhia de homens, mulheres ou ambos. A ironia disso é que tanto homens quanto mulheres sempre as perceberão em primeiro lugar como mulheres. É lamentável que as assimilacionistas não reconheçam ou ignorem essa percepção, desejando que ela desapareça, quando isso nunca acontecerá.

Uma forma comum em que as mulheres se assimilam é exagerando declarações de que não são feministas ou fazendo questão de proclamar que superaram o feminismo. As primeiras podem afirmar que acreditam na igualdade salarial para trabalho igual, mas rapidamente se dissociam de outras mulheres que acreditam nas mesmas coisas ou de mulheres que vão além. No último caso, muitas mulheres usam o termo “pós-feminista” como um distintivo de maturidade. Assim, a assimilação, em ambos os casos, torna-se uma forma de dissociar-se das mulheres.

Outra ironia dessa dissociação das mulheres, especialmente do feminismo, é que muitas vezes as mulheres assimilacionistas se envolvem em atividades bastante extraordinárias que são feministas no sentido de que essas empreitadas requerem habilidades não convencionais, coragem, determinação e persistência. Além disso, frequentemente são pioneiras em seus campos de atuação. Pode-se pensar em mulheres cientistas, motoristas de caminhão, soldadoras e presidentes de faculdades que não apenas são excelentes no que fazem, mas que frequentemente são mais perspicazes e humanas do que os homens nas mesmas áreas. No entanto, muitas dessas mulheres, quando questionadas, negariam qualquer tipo de identificação com o feminino. Penney Kane escreveu na revista Homemaker’s Magazine:

As mulheres parecem estar adotando princípios feministas, por um lado, e se dissociando do movimento, por outro… As cartas em resposta aos nossos artigos são comoventes, pessoais e solidárias. Muitas leitoras estão ansiosas para relatar discriminação ou contar como lidaram com tratamentos patronizadores ou superaram obstáculos. No entanto, quando me apresento como feminista, muitas mulheres reagem como se o termo fosse escatológico.27

No máximo, os assimilacionistas se identificam com o feminismo como “um estilo de vida ou uma atitude ou sentimento de simpatia vaga com as mulheres ou uma afirmação de modernidade.”28

A assimilação sinaliza o fim de qualquer realidade forte de amizade feminina antes mesmo de começar. Para a assimilacionista, homens e/ou estruturas definidas pelos homens são o que importa. Para se tornarem parte da sociedade dominada por homens, as mulheres precisam acreditar ou fingir que são pessoas e mulheres da maneira que os homens as definiram. O que é exigido das mulheres assimilacionistas pela cultura dominante masculina é que se comportem de maneiras que as distingam das mulheres comuns – por exemplo, são incentivadas a serem inteligentes, articuladas, profissionais em ascensão -, mas ao mesmo tempo devem exibir maneiras e modos de feminilidade criados pelo homem, como comportamento charmoso ou roupas femininas. A complicada psicologia aprendida pelas mulheres assimilacionistas é como ser e não ser mulher, ou como ser a mulher que os homens ainda reconhecem como uma deles, evitando a mulher que reconhece seu Eu e as mulheres que são auto-definidas.

A mulher assimilada é a nova andrógina. Frequentemente, ela combina papéis considerados “masculinos” e “femininos”, ou mistura uma carreira “masculina” com um casamento e/ou maternidade “feminina”. Ela é frequentemente chamada de “nova mulher”. Essa nova mulher é uma combinação das chamadas polaridades cósmicas de masculinidade e feminilidade, yin e yang. É como se ela superasse essas polaridades cósmicas dentro de sua própria pessoa e estilo de vida. Duas metades culturalmente fabricadas, masculinidade e feminilidade, foram coladas novamente para produzir a pessoa completa, a mulher que supostamente “tem tudo”. A mulher assimilacionista cria sua própria pessoa à imagem heterorrelacional, incorporando desta vez uma imagem de complementaridade dentro de si mesma. Assim, ela não vê necessidade de ginoafeto em uma vida que busca a definição masculina para a completude de várias maneiras.

2.1. Liberação sexual

O caminho para a assimilação é o caminho para o conformismo, desta vez o conformismo aos novos estereótipos que assumem forma sob o disfarce da retórica de “libertação” e “nova mulher”, mas, ainda assim, conformismo. Esse tipo de assimilação frequentemente exibe o discurso e o estilo de vida externo da liberação, especialmente a liberação sexual.

A liberação sexual pode assumir a forma de um casamento liberado, no qual ambos os parceiros têm carreiras e compartilham as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, embora os homens raramente assumam uma parte justa dessas últimas duas responsabilidades.29 Ou pode assumir a forma de uma “independência” na qual uma mulher tem múltiplos parceiros sexuais de sua escolha e em seu próprio tempo, mas não se compromete com nenhum deles. A liberação das mulheres, lésbicas ou heterossexuais, como definida pelos costumes da revolução sexual, muitas vezes se refere a libertar-se do sexo “pecaminoso” ou, em uma linguagem mais moderna, do sexo repressor, em favor da expressão do eu através do “sexo livre”. Como Shulamith Firestone escreveu há muito tempo, “sua sexualidade eventualmente se torna sinônimo de sua individualidade.”30 A sexualidade se torna não apenas uma “perversidade polimorfa”, mas uma “rebelião polimorfa” contra tudo o que é percebido como repressivo. Swing, sexo gay, bissexualidade, BDSM – a lista é interminável – tudo se torna substituições superficiais para a intimidade sexual.

O que a mulher tradicional considerava como escravidão sexual, a “nova mulher” encara como libertação sexual. É uma libertação sexual que assimila seus valores do pensamento masculino de esquerda ou do movimento gay masculino. Uma de suas manifestações mais recentes é, novamente, o chamado sadomasoquismo lésbico, no qual feministas e lésbicas auto-definidas exibem um novo aspecto de assimilação – a assimilação à ética e ao estilo de vida de “o que conta é o sexo genital”. Isso se torna “refinado” para “o tipo de sexo genital é o que conta”.

Firestone foi premonitória em “A Dialética do Sexo”, onde, ao escrever sobre a libertação sexual, ela antecipou os argumentos das sadomasoquistas lésbicas modernas muito antes de existir tal movimento. “Ser apenas necessitada de afeto torna alguém chata, precisar de um beijo é embaraçoso, a menos que seja um beijo erótico; apenas o ‘sexo’ está tudo bem, de fato prova sua força”.31 As chamadas sadomasoquistas lésbicas iriam além e diriam que apenas certos tipos de sexo “provam sua força” e, brincando com o significado obsoleto dessa palavra, a “força” sexual de alguém é comprovada pelo “metal” (leia-se “metal” como colares, correntes, espinhos e outros acessórios “exóticos”). Elas afirmam isso sob o pretexto de “liberar” as mulheres de seu papel tradicional de “sexualidade afetuosa” que, segundo elas, carece de vigor e é realmente “fracote”. O sadomasoquismo lésbico limita a sexualidade a atos sexuais altamente carregados, substituindo apresentações sexuais fortes e muitas vezes violentas pela ardência e intensa paixão.

Embora o sadomasoquismo lésbico possa surgir em um contexto onde as mulheres estejam politicamente dissociadas do mundo mais amplo, ao mesmo tempo ele assimila as mulheres de forma muito intensa ao mundo da sexualidade dirigido pela esquerda e pelos homens gays. O S&M faz parte de uma “política de assimilação” na medida em que seus valores e estilo derivam dos mundos da esquerda e dos homens gays. Em seu artigo “Sadomasochism: The New Backlash to Feminism”, Kathleen Barry apontou que as promotoras do sadomasoquismo lésbico são mulheres identificadas com a esquerda que se tornaram aliadas das mulheres esquerdistas heterossexuais. Juntas, elas estão no cerne do chamado movimento feminista pró-pornografia. A partir de suas perspectivas esquerdistas, as defensoras do S&M, como Gayle Rubin, minimizam questões feministas radicais, como assédio sexual, estupro e pornografia, considerando-as insignificantes em comparação com questões “reais”, como a opressão econômica das mulheres.

A mentalidade e o movimento sadomasoquista assimilam as mulheres a uma libertação sexual que não é nada mais do que a expressão desenfreada do comportamento sexual definido pelos homens, onde a libertação sexual é equivalente a fazer o que se “sente” vontade de fazer. Confrontamos novamente a tirania dos sentimentos, onde os sentimentos são retratados quase como impulsos sexuais deterministas que devem ser expressos a todo custo. Essa mentalidade é muito reacionária, pois em certo sentido replica a concepção cultural da sexualidade masculina. Os homens sempre foram retratados como “necessitando” expressar seus impulsos sexuais “naturais”. O chamado sadomasoquismo lésbico permite que as mulheres expressem impulsos sexuais semelhantemente concebidos como “naturais”, conferindo às mulheres plena “igualdade” de expressão sexual irrestrita.

Em outra frente, os promotores do sadomasoquismo lésbico assimilam filosofias e atividades do movimento de homens gays. Os homens gays, como “formadores de estilo” na indústria da moda feminina, popularizaram roupas e maquiagem para mulheres que promovem a aparência masoquista. Além de manter a moda de couro preto dos anos 1950, muitos homens gays adicionaram chicotes, correntes, pulseiras com espinhos, coleiras com tachas e suásticas ao seu guarda-roupa, criando um verdadeiro arsenal de estilo sadomasoquista. As chamadas sadomasoquistas lésbicas foram rápidas em assimilar e copiar esse estilo.

John Stoltenberg apontou que “estamos testemunhando a convergência do que antes era considerado uma ‘sensibilidade gay’ com o que antes era considerado uma ‘sensibilidade heterossexual’. Essa convergência é claramente uma sensibilidade masculina e agora se revela plenamente como florescendo na degradação feminina”.32

No sadomasoquismo masculino gay, um dos parceiros “imita temporariamente a impotência”. Stoltenberg ilustra como,

fiel ao seu status privilegiado como homens genitais na sociedade, os parceiros têm a liberdade de trocar de papéis em particular sem prejudicar seu status na cultura de forma alguma. Entre dois homens homossexuais, então, existe a possibilidade de que o “consentimento” no sadomasoquismo possa ser significativo: o seu significado está em seu acordo prévio de reificar a masculinidade um do outro.33

As mulheres não são “pares fálicos”. Seu “consentimento” ao chamado sadomasoquismo lésbico pode derivar seu “significado” apenas de seu status como pares vitimizados, em que uma delas simplesmente representa o papel de poderosa. A lésbica sádica finge em particular ter mais poder do que realmente tem na cultura…

Um homem homossexual pode simular impotência em relação a outro homem homossexual, talvez mais violento; uma lésbica pode simular fraqueza em relação a outra mulher, mais masoquista. Nenhum disfarce altera a realidade objetiva de que, na sociedade em geral, os homens detêm poder sobre as mulheres através da força, e ambos os disfarces são manifestações eróticas dessa realidade.34

Os homens gays transmitem a mensagem de que o sadomasoquismo é uma libertação sexual que “transcende o estereótipo sexual”. Como muitas outras versões definidas por homens de transcendência, é uma transcendência por enxerto. Apenas enxerta em um relacionamento entre mulheres, um modo de “fazer sexo” que foi desenvolvido para homens e continua orientado para eles.

As mulheres não são “pares fálicos”. Seu “consentimento” ao chamado sadomasoquismo lésbico pode derivar seu “significado” apenas de seu status como pares vitimizados, em que uma delas simplesmente representa o papel de poderosa.

O Oxford English Dictionary fornece como definição primária de assimilação “a ação de tornar-se semelhante; o estado de ser semelhante; similaridade, semelhança”. Outras definições subsidiárias fornecem mais esclarecimentos: “o processo de se conformar a; conformidade com… conversão em uma substância similar”. Ao assimilar a objetificação masculina das mulheres, as mulheres se conformam a tratar umas às outras como objetos.

O ginoafeto forte e amoroso quebra o sistema sexual sujeito-objeto. A chamada pornografia lésbica – ou seja, pornografia desenvolvida por homens na qual mulheres são retratadas em posturas supostamente lésbicas – reduz as mulheres a uma interação objeto-objeto. Da mesma forma, o sadomasoquismo lésbico é mais uma forma de colocar as mulheres de volta no lugar de objetos sexuais. Desta vez, as mulheres se objetificam mutuamente.

Sob a bandeira da libertação sexual, é reivindicado o banimento da sexualidade repressiva. Surge então a tolerância repressiva!

2.2. A tirania da tolerância

Os defensores do S&M têm acusado seus adversários de promulgar um dogmatismo sobre o que é certo e errado para as feministas. Mais frequentemente, a acusação é de que aqueles que se opõem ao sadomasoquismo fomentam valores rígidos de correção política. Há uma curiosa inversão aqui. Afinal, onde reside o dogmatismo?

Um dogmatismo de tolerância infectou o movimento feminista. Como dogma, a tolerância afirma que não devem ser feitos julgamentos de valor sobre nada. Usando a retórica de não impor valores aos outros, as mulheres adotam uma filosofia perigosa na qual se despojam da capacidade de julgamento moral. O que elas não percebem é que os valores sempre se afirmarão. Quando as mulheres não assumem a responsabilidade por gerar e representar seus valores acordados, elas se tornam vulneráveis à tirania dos valores alheios. É a tirania da tolerância que fomenta a perda da vontade feminista – a vontade de moldar a história de forma definida por valores.

Assim como “a tirania da ausência de estrutura”, a tirania da tolerância promoveu uma ética de liberdade de valores que foi permitida a permanecer como um princípio não examinado entre certos grupos de mulheres. De um princípio não examinado, é uma curta distância para uma vida não examinada.

As fontes dessa ética de liberdade de valores são várias: a reação natural das mulheres à tirania dos valores patriarcais que são absolutistas e inflexíveis; a resistência ao tipo de controle que isso deu aos homens sobre a vida das mulheres; a aceitação acrítica dos valores esquerdistas de falta de valor; e a equiparação da moralidade ao moralismo. O moralismo, um território tradicional das mulheres, é justamente evitado pelas feministas. Como Andrea Dworkin o definiu, “o moralismo é o conjunto de regras aprendidas mecanicamente que mantém as mulheres aprisionadas, impedindo que a inteligência se encontre de frente com o mundo.”35 O moralismo restringe valores e impede que as mulheres se engajem em atividades éticas significativas e tomem decisões genuinamente morais. Em contraste, o que Dworkin chama de “inteligência moral” constrói valores. “A inteligência moral é ativa; ela só pode ser desenvolvida e aprimorada sendo usada no reino da experiência real e direta. A atividade moral é o uso dessa inteligência, o exercício do discernimento moral.”36

A assimilação da liberdade de valores como princípio orientador aprisionou muitas mulheres em um novo dogmatismo, tão rígido em suas próprias formas quanto o antigo – o dogma de que o julgamento moral ou ético em si é opressivo, contrarrevolucionário e antitético à política. Comprometidas com a liberdade de valores, muitos grupos feministas encontraram dificuldades em estabelecer prioridades, articular metas e definir a base para qualquer ação política que se opusesse e criticasse as prioridades e metas de outras mulheres. As mulheres acharam fácil fazer julgamentos que se opunham aos valores dominantes claramente aceitos pelos homens. A paralisia se instaurou quando os julgamentos e ações entraram em conflito com os de outras mulheres, especialmente aquelas que supostamente estavam comprometidas com a mesma causa.

Em nome de uma comunidade feminista vagamente definida, julgamentos de valor e a vontade de promovê-los em oposição a outras mulheres são vistos como divisivos. No entanto, que tipo de consenso pode ser construído na falta de vontade de fazer julgamentos? A vida social e política advém de valores, escolhas e atividades definidas com clareza e exercidas com comprometimento. Por exemplo, muitas mulheres sentem vagamente que o chamado sadomasoquismo lésbico é errado, mas hesitam em traduzir esse “sentimento” em uma posição articulada e ação de oposição. Ninguém, dizem elas, têm o direito de julgar o comportamento dos outros ou impor seus próprios valores.

A filósofa Hilde Hein disse:

Nós nos tornamos relutantes em ser rotuladas como cruzadas morais em uma época em que o potencial humano degenerou para “faça o que quiser”. Somos condicionadas a fazer observações banais e piadas cínicas em resposta a obscenidades de escala nacional e perversidade de magnitude universal. Estamos entorpecidas a ponto de nos sentirmos à vontade com a crueldade e o desespero. O sadomasoquismo é apenas mais um absurdo a ser saudado com um olhar vazio. Mas fazer isso é ceder a mais um ataque contra a nossa própria decência… Não podemos capitular ao dogma liberal que trata como normal e neutra a degradação e humilhação voluntária de um ser humano por outro.37

A tirania da tolerância desencoraja as mulheres de pensar com rigor, de assumir a responsabilidade por discordar dos outros e de agir. Pior ainda, permite que valores opressivos surjam sem serem refutados.

Em uma era de relativismo ético, as mulheres esquecem que, embora uma verdade possa ser relativa, ela é relativa a algum conjunto específico de valores. Mesmo a liberdade de valores é uma declaração de valores. Não existe algo como relativismo puro. Tudo é visto pelo olhar do observador, a partir de um de muitos ângulos ou quadros de referência. O fato de que a verdade pode ser relativa não deve levar ao julgamento de que todos os valores estão na mesma escala. De que ponto de vista puramente relativista esse julgamento poderia ser feito, já que ele é, de fato, um julgamento e não é mais puramente relativista do que qualquer outro julgamento.

A tirania da tolerância priva não apenas indivíduos, mas também um movimento político, de sua capacidade de discernimento. Ela esgota a paixão e propósito moral da política feminista. Ela retira questões de poder do âmbito ético, de modo que as decisões muitas vezes são tomadas a partir de uma análise puramente consequencialista ou de custo-benefício. Quando a política é dissociada da ética, ela frequentemente se reduz a políticas superficiais. A hostilidade em relação aos valores e a fachada de tolerância esvaziam o movimento feminista de seu radicalismo. Uma ousadia ativa é domesticada em uma tolerância passiva.

A tolerância é essencialmente uma posição passiva.38 Marcuse a denominou de “tolerância repressiva” porque, ao neutralizar os valores, ela serve principalmente para proteger o tecido pelo qual a sociedade se mantém unida. O que é definido como liberdade de valores pode parecer sensível e respeitoso com os outros, mas na realidade torna as pessoas passivas e acríticas. “A tolerância é transformada de um estado ativo para um estado passivo, de prática para não-prática.”39

A tirania da tolerância afeta negativamente o ginoafeto de forma significativa. Ela vaporiza “a rigidez do discernimento.” A passividade e a mentalidade acrítica que se desenvolve nas mulheres as levam a aplicar a mesma falta de critérios na escolha de amizades. Mulheres que carecem da “rigidez do discernimento” formam amizades indiferenciadas.

O discernimento, do ponto de vista da tirania da tolerância, é frequentemente visto como uma forma de elitismo. Como a escritora e fotógrafa Joreen observa em seu ensaio clássico “A Tirania da Estruturalidade”, “Elitista é provavelmente a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência e pelos mesmos motivos que ‘rosa’ foi usada nos anos cinquenta.” As mulheres abandonam seus poderes de discernimento porque são intimidadas pelo medo de serem rotuladas como “elitistas”.40 A tirania da tolerância equipara o discernimento ao elitismo e, ao fazer isso, promove um estado mental e um contexto social em que as distinções são niveladas e a uniformidade prevalece.

A tolerância é essencialmente uma posição passiva. Marcuse a denominou de “tolerância repressiva” porque, ao neutralizar os valores, ela serve principalmente para proteger o tecido pelo qual a sociedade se mantém unida. O que é definido como liberdade de valores pode parecer sensível e respeitoso com os outros, mas na realidade torna as pessoas passivas e acríticas. “A tolerância é transformada de um estado ativo para um estado passivo, de prática para não-prática.”

A tirania da tolerância afeta negativamente o Ginoafeto de forma significativa. Ela vaporiza “a rigidez do discernimento.” A passividade e a mentalidade acrítica que desenvolve nas mulheres as levam a aplicar a mesma falta de critérios na escolha de amizades. Mulheres que carecem da “rigidez do discernimento” formam amizades indiferenciadas.

O discernimento, do ponto de vista da tirania da tolerância, é frequentemente visto como uma forma de elitismo. Como a escritora e fotógrafa Joreen observa em seu ensaio clássico “A Tirania da Estruturalidade”, “Elitista é provavelmente a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência e pelos mesmos motivos que ‘rosa’ foi usada nos anos cinquenta.” As mulheres abandonam seus poderes de discernimento porque são intimidadas pelo medo de serem rotuladas como “elitistas”. A tirania da tolerância equipara o discernimento ao elitismo e, ao fazer isso, promove um estado mental e um contexto social em que as distinções são niveladas e a uniformidade prevalece.

No notável ensaio “One Child of One’s Own,” Alice Walker oferece este conselho para as mulheres negras:

O que era exigido das mulheres de cor era aprender a distinguir quem era a verdadeira feminista e quem não era, e investir energia em colaborações feministas apenas quando houvesse pouco risco de desperdiçá-la. Os rigores deste discernimento inevitavelmente levarão as mulheres de cor de volta a si mesmas, onde há, de fato, tanto trabalho, de natureza feminista, a ser feito.41

Muitas dessas palavras podem ser parafraseadas e aplicadas à formação das amizades entre mulheres. Poderíamos então dizer:

O que é exigido das amigas é que aprendam a distinguir entre aquelas que são verdadeiras amigas e aquelas que não são, e investir energia no desenvolvimento de amizades apenas quando houver pouco risco de desperdiçá-la. Os rigores deste discernimento inevitavelmente levarão as mulheres de volta a si mesmas, onde encontrarão sua amiga original.

É significativo que Walker se refira aos rigores do discernimento. É uma palavra que evoca associações de estrito, severo, rigoroso, exato e minucioso – associações com as quais as mulheres não se identificam facilmente. No entanto, se pudermos pensar no discernimento como um hábito de mente e coração, especificamente um hábito de reflexão que é rigoroso no melhor sentido da palavra e que não é um hábito fácil ou passivo, como a tolerância é, teremos alcançado uma maior compreensão de nossas amizades. As palavras de Cícero são instrutivas nesse contexto: “você deve amar depois de ter feito um julgamento; você não deve formar o julgamento depois de ter amado.”42 Isso não quer dizer que o hábito de discernimento sempre garantirá as amizades certas. No entanto, ele promoverá um “bom senso” sobre as possibilidades e até mesmo as falhas das amizades entre mulheres.

A ausência dos “rigores do discernimento” tem fomentado a atitude de que o feminismo torna todas as mulheres amigas. Isso não é apenas falta de discernimento; viola todo o bom senso. Isso sentimentaliza a amizade entre mulheres, dando a elas a ilusão de que o feminismo pode proporcionar algo que nunca foi seu propósito. Se todas as mulheres podem ser amigas, então nenhuma mulher é realmente amiga. Muitas mulheres cometem o erro de esperar ser amigas de outras mulheres com base em certas coisas que têm em comum: flashes de ideias, genialidade analítica, energia erótica, interesses animados, compromissos políticos, metas profissionais. Todas essas qualidades podem fornecer possibilidades para a amizade, mas podem não gerar a realidade. O discernimento é um hábito e, como qualquer hábito, leva tempo e deve ser exercitado de tal forma que o todo que constitui uma amizade possa ser compreendido.

O hábito do discernimento nos ensina a sermos leais a nós mesmas, a ter fé em nossas próprias percepções e a reivindicá-las como um poder de escrutínio em nossas interações com os outros. O discernimento não é infalível, nem pode garantir que a amizade dure para sempre. O que ele oferece é perspicácia – até mesmo perspicácia sobre nossos erros.

2.3. A assimilação do silêncio

Uma forma comum pela qual as mulheres são assimiladas ao mundo dominante masculino é pelo simples silêncio que cerca a realidade do ginoafeto. No início deste capítulo, observei que o barulho constante sobre as mulheres não amarem mulheres existe em conjunto com o silêncio histórico sobre as mulheres sempre amarem as mulheres. O silêncio que prevalece apaga o fato de que as mulheres têm sido as melhores amigas umas das outras, parentes solidárias, amantes devotadas e companheiras constantes. O silêncio aqui vestiu um traje fúnebre que ostenta várias modas.

Talvez o maior silêncio seja o silenciamento da experiência direta de amizade feminina de muitas mulheres. Isso equivale a um silenciamento da amizade feminina antes que ela tenha a chance de começar. Para outras mulheres, a inabilitação da experiência direta da amizade é forjada jogando areia nos olhos das mulheres sobre a natureza da amizade feminina – ou seja, é retratada como adolescente, imatura e/ou potencialmente homossexual. A escritora e ativista feminista Julie Melrose sugeriu que isso equivale a “tornar a realidade vivencial (ou seja, ‘estar com outras mulheres de maneira positiva é bom’) secundária à realidade intelectual masculina (ou seja, as mulheres não podem/não devem ser amigas).”43 Assim, o encontro direto e positivo das mulheres com o gino/afeto é mediado por sua versão masculina. A participação feminina direta é assimilada pelo pronunciamento não participativo masculino.

É importante entender que o silêncio total nem sempre é o problema. Em vez disso, o silêncio assume formas mais sutis e muitas vezes parciais. As maneiras pelas quais os relacionamentos das mulheres entre si são categorizados constituem uma técnica dramática de silenciamento que desempenha seu papel fora do palco. A categorização muda a definição e a forma da realidade das mulheres, principalmente quando é feita profissionalmente. Por exemplo, quando a psicologia freudiana relegou as amizades femininas aos domínios da “doença”, “desenvolvimento interrompido” e “imaturidade”, silenciou a experiência direta da amizade feminina para muitas mulheres – literalmente extinguindo sua existência ou possibilidade de existência, e categoricamente ao nomear erroneamente a realidade. Conforme vivenciado e interpretado por mulheres na era pós-freudiana, a amizade feminina torna-se aberrante.

A categorização promove o reducionismo. Uma vez que uma mulher vê o Ginoafeto categorizado de forma reducionista, ela se vê reduzida. A categorização promove a dissociação e a assimilação ao mesmo tempo. Isso leva as mulheres a se dissociarem da categoria degradada enquanto são assimiladas em categorias hetero-relacionais mais aceitáveis.

Uma das maneiras pelas quais a amizade feminina é silenciada pela categorização é proclamá-la “excepcional”. Por exemplo, na biografia extensa e esclarecedora de Joseph Lash sobre Helen Keller e Annie Sullivan, a profunda amizade entre as duas mulheres é descrita como “excepcional”, ou seja, rara. Ao longo do livro, o autor e várias pessoas que aparecem nesta história extraordinária comentam sobre a singularidade absoluta da amizade entre as duas mulheres. “O laço entre você e nossa querida Annie é o mais próximo possível. Atrevo-me a dizer que muitas pessoas já lhe disseram que não há nada parecido na história ou na literatura.” Pode-se dizer razoavelmente que não havia nada como essa amizade “na história ou na literatura”.44 No entanto, o que havia de excepcional nessas duas mulheres não era a intensidade de sua amizade. Muitas mulheres tiveram o profundo afeto que elas experimentaram uma com a outra. O que foi único foi a maneira como Annie Sullivan se tornou um canal para o conhecimento e o sentimento de Helen Keller pelo mundo. Não se escreveu sobre muitas amizades femininas, e esta provavelmente veio a público por causa da extraordinária jornada de Helen Keller das trevas à luz, e do papel surpreendente de Annie Sullivan na “criação de uma alma.”45

As amizades femininas são, claro, excepcionais, se por excepcional se entende melhor que a média e desviando-se da norma, a norma das relações hetero. No entanto, quando o Ginoafeto é retratado como excepcional no sentido que estou criticando, geralmente significa que as amizades femininas são raras, ou seja, não prevalecem ou estão fora do curso normal e do alcance da vida da maioria das mulheres. Tantas mulheres que aprendem sobre o relacionamento profundo e emocionante entre Helen Keller e Annie Sullivan são levadas a acreditar que a maioria das mulheres não pode estar à altura de tal amizade. Assim, mesmo as mensagens mais maravilhosas de Ginoafeto são silenciadas por esse tipo de representação excepcional. A categoria “excepcional” funciona para afastar as mulheres do aprendizado de como essas amizades entre mulheres prevaleceram ao longo da história e em quase todas as culturas.

Da mesma forma, qualquer coisa que as mulheres façam fora do âmbito comum das relações hetero ou que se desvie dessas normas foi categorizada como excepcional. Trabalhadoras da construção civil, cientistas, levantadoras de peso, especialistas em caratê e lésbicas são categorizadas como excepcionais porque saem dos papéis prescritos relacionais hetero. Há muito mais mulheres levantadoras de peso e lésbicas (justaposição chocante de categorias pretendidas) do que homens e algumas mulheres imaginam! Porém, por não serem visíveis aos olhos das relações hetero, são classificadas como excepcionais. A lógica complicada das relações hetero fez até da categoria “excepcional” um elogio para as mulheres.

Outro modo de silenciar é colocar qualquer coisa fora do comum que as mulheres façam em uma categoria relacional hetero, privando-a assim de seu poder identificado e originado por mulheres. Assim, os homens criam a chamada pornografia lésbica usando poses e posturas heterossexuais. Ou as mulheres que levantam pesos são encorajadas a parecer e agir como Linda Evans, a Krystle da série de TV “Dynasty” – forte, mas contida pela feminilidade criada pelo homem. Muitos livros e brochuras de levantamento de peso mostram às mulheres como aumentar sua força – falando relativamente – sem desenvolver músculos “desagradáveis”. As mulheres não são encorajadas a ostentar seus músculos, mas a desenvolver uma figura firme e esguia que as torne mais atraentes para os homens.

Cada vez mais, quaisquer coisas fora do comum que as mulheres fazem tornam-se hetero-relacionadas. As mulheres e os atos das mulheres são então assimilados na categoria da relação hetero apropriada. O próprio feminismo foi sujeito a tal assimilação. Uma proeminente feminista foi apelidada de “a feminista que gosta de homens”. Como a maioria das feministas é retratada como não gostando de homens, a mensagem é que qualquer mulher de verdade, na verdade, qualquer feminista de verdade, gosta de homens. O feminismo definido pelas mulheres é silenciado para as mulheres que leem tais descrições.

Há também o silêncio sobre o qual Virginia Woolf escreveu tão claramente em Um Quarto Todo Seu. “Chloe gostava de Olivia… Não ruborize-se. As mulheres gostam de outras mulheres.”46 Muitas mulheres estão cientes de uma atração por outras mulheres. As mulheres geralmente reconhecem isso em algum nível, mesmo que esse nível esteja se afastando drasticamente da atração.

Outras mulheres ficam constrangidas com qualquer exibição explícita da atração. O constrangimento, o “rubor”, decorre do medo de que seu segredo mais bem guardado seja divulgado, e elas junto com ele. Para muitas mulheres, esse “rubor”, em uma era pós-freudiana, é o medo de que a amizade feminina seja interpretada como lesbianismo. Muitas mulheres fazem de tudo para evitar qualquer possibilidade dessa interpretação.

Acho, no entanto, que Mary Daly nomeou o que acontece em um nível mais profundo no coração e na mente de muitas mulheres quando ela se refere ao tabu contra “mulheres que tocam mulheres”. Daly cita Freud, que deu algumas introspecções sobre a natureza do “tabu”:

“A proibição não se aplica apenas ao contato físico imediato, mas tem uma extensão tão ampla quanto o uso metafórico da frase “entrar em contato com”. Qualquer coisa que direcione os pensamentos da paciente para o objeto proibido, qualquer coisa que a coloque [sic] em contato intelectual com ele, é tão proibido quanto o contato físico direto”. [Marcações da autora em itálico]47

Daly acrescenta: “Qualquer coisa que direcione os pensamentos de uma mulher para o objeto proibido, seu Eu, qualquer coisa que a coloque em contato intelectual com seus Poderes Tocantes Espirituais, é tão proibido quanto o contato físico direto com outro Eu Feminino. Essa extensão é inerente ao tabu total contra mulheres que tocam mulheres.”48 Embora o tabu contra “mulheres que tocam mulheres” seja de fato sexual, não é só isso. Mais plenamente, é um “tabu total” contra as mulheres que tocam o alcance estendido de nossos Eus originais e de outras mulheres.

Também é verdade que as mulheres não ficam necessariamente envergonhadas pela atração por outras mulheres, mas pelo simples fato da presença de outras mulheres ao seu redor. Por exemplo, uma mulher apontou que os homens ficam tímidos em abordar mulheres em duplas ou em grupos maiores. Um obstáculo para a amizade feminina, ela observa, remonta a eventos como bailes da escola secundária, onde as meninas se separavam “propositalmente de suas amigas porque os meninos eram muito medrosos para convidá-la para dançar se ela estivesse com outras meninas: mais provável se ela estivesse sozinha e, portanto, ‘acessível’.”49 Muitas mulheres, de muitas maneiras diferentes, evitam a amizade feminina para se tornarem “acessíveis” aos homens.

Esses cenários do “ensino fundamental” nos dizem muito sobre os impedimentos à amizade feminina. Mulheres juntas em quantidade, não considerando qualidade, servem para manter os homens afastados. Se as mulheres reunidas em grande número são vistas como inacessíveis aos homens, quão mais inacessíveis são as mulheres unidas por escolha e laços apaixonados. Se algumas mulheres renunciam à mera presença numérica de mulheres em prol de encontros hetero-relacionais com homens, mais mulheres irão renunciar a energia qualitativa do Ginoafeto quando temem o “Tabu Total” de “Mulheres que Tocam Mulheres”.

As mulheres evitam a companhia de mulheres, muitas vezes porque acreditam que as mulheres são entediantes. Dentre as maneiras que as relações hetero absorveram o espírito aventureiro das mulheres, é claro que as mulheres foram domesticadas pelo patriarcado. E, infelizmente, são chatas as mulheres cuja vivacidade foi contida pela “chatocracia” das relações hetero. Como apontou a estudante de comunicação Denice Yanni, essa opinião de que as mulheres são entediantes é reforçada pela mídia hetero-relacional que retrata as mulheres somente como personagens “unidimensionais”.50 Essa unidimensionalidade das mulheres, conforme retratada nas novelas diurnas e noturnas , especialmente nos personagens de mulheres como Sue Ellen e Pam de “Dallas”, é o de mulheres que existem para os homens. (Se Sue Ellen voltar para o J.R. mais uma vez!) “Cagney and Lacey” é provavelmente um dos poucos programas de televisão do horário nobre que se desvia desse retrato de mulheres unidimensionais, mas mesmo assim é cuidadoso em incluir nas aventuras de Cagney e Lacey as crises com o marido de Lacey, Harvey, e com o namorado do momento de Cagney. A mensagem é que, embora essas duas mulheres sejam policiais espetaculares e aventureiras, elas são de fato mulheres hetero-relacionais normais que são iguais às outras mulheres, ou seja, hetero-relacionais.

O silêncio sobre a aventura do Ginoafeto proíbe a nomeação da domesticação de muitas mulheres. O silêncio sobre a aventura do Ginoafeto abafa a verdade de que as mulheres estão entediadas apenas com o que os homens forçaram as mulheres a se tornarem. As mulheres ficam entediadas apenas consigo mesmas e com outras mulheres que não têm um Eu original e independente e que não têm nada próprio com o que excitar as mulheres.

Que as amigas excitam outras mulheres é uma verdade que as mulheres devem contar, pois foi sufocada pelo seu oposto. Diz-se que o homem é aquele que excita uma mulher de todas as maneiras. Assim, quando uma mulher original desperta outra mulher, ela é rotulada como “não uma mulher”. Dizem que ela é “masculina”. É importante entender, no entanto, que “masculina” neste contexto significa o que o homem reservou para si mesmo. Uma vez que os homens se apropriaram da excitação das mulheres para si mesmos, uma mulher que excita profundamente outras mulheres é definida como agindo “como um homem”, quando exatamente o oposto é verdadeiro. É ela quem age mais como uma mulher porque seu Eu original está desperto e capaz de provocar a mesma originalidade de outras mulheres. Se os homens negam dinheiro, criatividade e independência às mulheres, por que não deveriam negar o afeto das mulheres às mulheres? Se o homem decidir que só ele deve dar dinheiro às mulheres, migalhas criativas e os fios de uma vida quase independente, não devemos nos surpreender que ele também reserve a afeição das mulheres para si mesmo. As relações hetero domam a originalidade e a capacidade das mulheres de despertar a originalidade de si mesmas e de outras mulheres.

A domesticação começa cedo na vida de uma menina. As mães como “torturadoras simbólicas” muitas vezes funcionam como veículos de domesticação. Seja a mutilação real do corpo de uma jovem por clitoridectomia, a restrição do movimento físico ativo e da mobilidade, a substituição da linguagem corporal feminina forte por um treinamento de postura feminina fraca, ou o desencorajamento do desenvolvimento atlético, ou seja a subjugação do espírito aventureiro,  da mente curiosa ou da busca independente pelo autoconhecimento de uma jovem, as mulheres que vivenciam a mãe ou outro parente feminino como “domadoras” geralmente seguem o caminho da dissociação das mulheres, não querendo mais ser domesticada ou mover-se no companhia das “domadas”.

A domesticação das mulheres também ocorre em um nível social e político generalizado. “Trinta e seis milhões de mulheres podem ser tranquilizadas em um ano e a nação não percebe, não sente falta de sua energia, criatividade, sagacidade, intelecto, paixão, comprometimento – tanto valem essas mulheres, tão importante é a contribuição delas… tão essencial é o vigor delas.”51 A ironia dessas palavras poderia ser multiplicada diversas vezes diante do estupro, da pornografia, da violência doméstica, das tecnologias reprodutivas (novas e antigas) e das formas pelas quais elas domesticam a existência auto-definida e autônoma das mulheres. No entanto, se o ideal heterorrelacional é o de uma mulher contida e domesticada, por que alguém notaria, comentaria ou se oporia? Mais importante ainda, por que no meio de uma população de mulheres domesticadas, as mulheres notariam, se oporiam ou sentiriam falta das possibilidades perdidas de uma amizade feminina vital e vibrante? A domesticação das mulheres garante que muitas mulheres prometerão não apenas “indiferença ao destino de outras mulheres”52, mas também indiferença à amizade de outras mulheres.

As mulheres são assimiladas pela ideologia heterorrelacional de que os homens são a maior aventura de uma mulher. As mulheres aprendem a não esperar um futuro animado com outras mulheres. Os homens se tornam o futuro – os salvadores escatológicos pelos quais as mulheres só precisam aguardar. “Sua juventude é consumida na espera, mais ou menos disfarçada. Ela está esperando o Homem.”53 O adolescente garoto avança de forma ativa e aventureira em direção à vida adulta. A jovem garota é treinada para esperar docilmente que o futuro aconteça com ela. (Talvez esta seja mais uma razão pela qual os homens sempre estiveram tão focados no “vir” das mulheres, como em “você chegou?”) Muitas vidas inteiras de mulheres são consumidas na espera não apenas pelo homem prometido, mas pela terra prometida da heterorrelação. “Telenovelas investem prazer exquisito na condição central na vida de uma mulher: a espera – seja pelo telefone tocar, pelo bebê tirar sua soneca, ou pela família se reunir logo após a novela do dia ter deixado sua família ainda lutando contra a dissolução.”54 As telenovelas nunca terminam. “Sintonize amanhã”, mas amanhã cria mais espera. Horace descobrirá que sua esposa está tendo um caso com sua ex-namorada? (De fato, tal enredo poderia, por um momento, tornar até as telenovelas interessantes!) As inúmeras maneiras pelas quais as mulheres esperam se somam a uma espécie de “doença da espera”.

As maneiras pelas quais as mulheres foram treinadas para esperar são obstáculos à formação de amizades femininas. Frequentemente, as mulheres esperam que outras mulheres iniciem o ginoafeto, sem tomarem a iniciativa por si mesmas. Elas têm medo de dar o primeiro passo. Aqui, as mulheres assimilam o modelo heterorrelacional no qual as mulheres esperam por uma ligação telefônica, um pedido de casamento, a expressão de uma preferência, a oferta de um contrato, um emprego, um futuro. No entanto, esperar pode ser fatal, pois gera passividade e desencoraja a tomada de riscos. No final das contas, convence as mulheres de que elas não são responsáveis por seus próprios futuros.

As mulheres devem superar esse grande obstáculo ao ginoafeto, iniciando todo tipo de atividades umas com as outras – afeto, reflexão e ação. O presente da amizade feminina é que ela inicia o automovimento. A mulher que faz amizade com seu Eu e outras mulheres percebe que não pode “livrar-se do fardo do tempo” esperando por um futuro em que alguém, desta vez uma mulher, lhe devolverá seu Eu perdido.

As relações heterossexuais se baseiam na ficção de que as mulheres devem esperar com “grandes expectativas” pelo homem prometido e sua terra prometida. O ginoafeto deve se basear na iniciativa ativa da amizade feminina. É um tipo de amizade que deve ser buscada ativamente, em vez de passivamente esperada. Muitas mulheres pensaram que, ao se tornarem feministas, a amizade com outras mulheres seguiria automaticamente. Assim, as mulheres esperaram, esperando que a amizade com outras mulheres fosse o resultado natural do compartilhamento de conscientização, objetivos políticos comuns e organização coletiva. Mas isso era apenas outra forma de espera.

Assim como todo movimento autêntico, a amizade feminina deve ser despertada ativamente. As mulheres precisam despertar umas às outras para as possibilidades de amizade, especialmente dentro do contexto de um mundo heterorrelacional onde as mulheres aprenderam que apenas os homens despertam e excitam as mulheres. Os homens transformaram as mulheres em propriedade “móvel”, mas não permitiram um movimento genuíno. O ginoafeto pode ensinar às mulheres que o que elas confundiram com movimento, dentro do quadro das heterorrelações, era apenas “toque”. Como Mary Daly observou, todas as mulheres no patriarcado são uma “casta tocável”.55 O ginoafeto promete um movimento profundo e uma agitação profunda ou, para reiterar a famosa frase de Virginia Woolf, “Somente as mulheres agitam minha imaginação”.

Desejando aventura, as mulheres muitas vezes são repelidas pela incapacidade das outras mulheres de correr riscos. Inerente ao argumento heterorrelacional de que as mulheres são entediantes é que todas as mulheres são iguais, iguais em timidez de viver. “É a aceitação do risco que lhe confere poder.”56 Embora Elizabeth Janeway não tenha aplicado essas palavras à percepção das mulheres sobre outras mulheres como tímidas, elas são importantes nesse contexto. No entanto, em “aventuras” heterorrelacionais, as mulheres frequentemente não distinguiram entre risco masculino e imprudência e as maneiras pelas quais os homens transformam o risco em comportamento imprudente, um comportamento que frequentemente disfarça a obsessão necrofílica.

O verdadeiro risco, o risco existencial, é assumido por aquelas mulheres que desafiam as heterorrelações e que têm a coragem de reivindicar seus Eus originais e suas amigas mulheres. A recusa ou a incapacidade de correr o risco do ginoafeto está no cerne da perda da amizade feminina. Não correr o risco da amizade feminina limita as possibilidades da vida e da existência feminina de todas as maneiras imagináveis. Isso fecha a imaginação mulherista. Ao assumirem o risco de criar o ginoafeto, as mulheres mudam os termos de nossa existência neste mundo. O ginoafeto destrói as heterorrelações, principalmente ao negar a crença nos homens e na existência definida pelos homens para as mulheres.

Com o aumento dos níveis de domesticação hetero-relacional, a capacidade das mulheres de experimentar o Eu e a aventura definida pelas mulheres diminui. Cada vez mais, nesta sociedade anestesiada, são necessários estímulos externos definidos pelos homens para proporcionar às mulheres uma sensação de estar viva. No entanto, a estimulação é uma forma de escape. Sem ter recurso ao Eu original definido pelas mulheres, as mulheres preenchem o vazio. Relações hetero-relacionais se tornam um transporte rápido para longe do Eu original próprio e do de outras mulheres. A diversão se torna um objetivo para mulheres que sofrem da doença de deficiência das hetero-relações. Infelizmente, para tais mulheres, a doença é confundida com a cura. As mulheres continuam buscando constantemente estímulos hetero-relacionais novos. Tal estimulação é, na melhor das hipóteses, de curta duração e, na pior, destrutiva para o Eu dela e das outras. Esse tipo de diversão anestesia a capacidade das mulheres de viver criativamente, fecha a imaginação e, em última instância, promove a assimilação das mulheres a um mundo que elas nunca criaram.

Muitos homens falaram sobre o medo de serem domados por mulheres. Tão forte é esse ditado hetero-relacional que ele se tornou um dogma da psicologia hetero-relacional – o medo de “castração pela mãe (mulher)”. Isso disfarça o real naufrágio das relações hetero-relacionais – que as mulheres foram castradas57 pelos homens e, além disso, que as mulheres são domadas por mulheres que foram domadas por homens. O silêncio por trás de todo esse barulho sobre o complexo de castração masculina é que as mulheres são domesticadas pela mulher hetero-relacional. Claro, as mães (mulheres) não iniciam a domesticação das filhas (outras mulheres). Os homens e as relações hetero-relacionais começaram a domesticação da mãe como mentora (consulte a seção “Mães e Filhas” nas páginas seguintes deste capítulo). 

As mulheres anseiam por aventura, mas em um mundo hetero-relacional, elas se contentam com a estimulação. Estimulantes embotam a clareza de espírito de uma mulher, força de vontade, amplitude de visão e domínio do mundo. O maior estimulante de todos é a constante dose de relações hetero-relacionais.

3. Vitimização no mundo

O vitimismo proporciona um terceiro contexto no qual os obstáculos à amizade entre mulheres se enraízam. Uso o termo vitimismo para descrever um ambiente no qual a identidade primordial feminina ou feminista das mulheres parece estar fundamentada no estado compartilhado de terem sido vitimizadas por homens. Nas relações umas com as outras, tais mulheres enfatizam sua herança de dor compartilhada, embora as formas pelas quais diferentes mulheres foram vitimizadas diferem em idade, classe, raça e outros fatores.

Kathleen Barry descreveu como o vitimismo funciona ao criar um papel e um status a partir da realidade de ser uma vítima.

O status de “vítima” cria uma mentalidade que evoca pena e tristeza. O vitimismo… cria uma estrutura na qual os outros a conhecem não como uma pessoa, mas como uma vítima, alguém a quem foi infligida violência… O rótulo atribuído de “vítima”, que inicialmente tinha a intenção de conscientizar sobre a experiência de violência sexual, se transforma em um termo que expressa a identidade dessa pessoa.58

O vitimismo transforma a realidade histórica e intercultural da vitimização das mulheres pelos homens em uma identidade psicossocial na qual as mulheres assumem o status de vítima como uma autodefinição e papel primários. Uma vez que isso ocorre, as mulheres são retratadas como indefesas diante da tirania masculina. Tanto em um sentido político quanto pessoal, o vitimismo se torna a primeira e última palavra sobre as mulheres. O vitimismo promove a crença de que o eu de uma mulher e as mulheres como grupo estão para sempre em servidão à sua história de dor e opressão.

Nesse contexto, estou preocupada que o vitimismo não se torne a base da autodefinição e do enfraquecimento de uma mulher. Certos grupos feministas autodefinidos têm abusado gravemente desse tipo de crítica, e é importante dissociar minhas preocupações das deles. Por exemplo, a FACT (Força-Tarefa Feminista Contra a Censura) e outros atacaram a legislação de direitos civis contra a pornografia – elaborada pela escritora Andrea Dworkin e pela advogada Catharine MacKinnon e apoiada por uma multidão de grupos de bairros negros e pobres, grupos de mulheres negras, grupos de mulheres judias, lésbicas, prostitutas e ex-prostitutas, e centenas de mulheres que arriscaram exposição pública e assédio testemunhando em nome dessa legislação – alegando que ela promove o estereótipo da mulher como vítima.

…a regulamentação perpetua o estereótipo das mulheres como vítimas impotentes, incapazes de consentimento e necessitadas de proteção… Além disso, seus estereótipos das mulheres como vítimas impotentes minam a capacidade das mulheres de agir de forma afirmativa para se protegerem.

Não é a ordenança contra a pornografia que perpetua o estereótipo da mulher como vítima. É a pornografia em si e o apoio distorcido da FACT à pornografia, apelando para um estereótipo inexistente da mulher como vítima na lei. São eles que mantêm as mulheres como vítimas – amarradas e submissas.

Existem diferentes maneiras pelas quais o vitimismo é demonstrado por mulheres, algumas sutis e outras não tão sutis. De maneira mais sutil, as mulheres muitas vezes se relacionam umas com as outras como vítimas quando se reúnem por causa de uma dor compartilhada, enfatizando que o que têm em comum é apenas, ou principalmente, essa dor compartilhada.

O foco constante e unidimensional na partilha da dor pode afastar as mulheres de amizades fortes com outras mulheres, obscurecendo a realidade histórica de que as mulheres têm sido e podem ser para outras mulheres de formas que não envolvem apenas o sofrimento fraternal. A ênfase no vitimismo também reforça a convicção de que a amizade feminina só pode surgir por razões negativas: ou seja, porque os homens são tão ruins ou em reação às atrocidades promovidas por uma cultura misógina. Aqui, a amizade feminina parece ser gerada pelos resultados da opressão das mulheres. Assim, em um mundo melhor, presumivelmente um em que os homens “se comportem”, a amizade feminina talvez não seja necessária.

Mulheres que se unem como vítimas muitas vezes passam muito tempo imersas na narrativa de experiências de vitimização. Isso é necessário e proveitoso como catalisador para o compartilhamento de forças que muitas vezes podem emergir dos muitos estados de atrocidade aos quais as mulheres foram submetidas em um mundo que odeia as mulheres. E é um passo importante para afastar as mulheres do pensamento de que suas experiências horrendas têm sido peculiares a elas mesmas ou, pior, têm sido culpa delas. No entanto, “lidar” constantemente com a experiência de sofrimento, seja na terapia ou nos relacionamentos das mulheres umas com as outras, impede as mulheres de ir além do ciclo interminável não apenas de repetir a experiência, mas de repetir a experiência da experiência, frequentemente para outras que compartilham as mesmas ou experiências semelhantes.

Isso leva a um tipo peculiar de “relacionismo” em que as mulheres gastam uma quantidade desproporcional de energia “relacionando” tais atrocidades a outras mulheres e cultivando associações com mulheres que são construídas em sua condição compartilhada de vítimas. O vitimismo vai contra o ginoafeto porque o tipo de relacionamento em que as mulheres se envolvem é o de narrar constantemente a dor. Mulheres que se unem na vitimização estão, de maneiras reais, encorajando as mulheres a permanecerem vítimas para sustentar os laços.

De forma mais evidente, as mulheres se relacionam umas com as outras como vítimas quando cultuam o fracasso. Muitas mulheres podem ser maravilhosas na adversidade, mas não no sucesso. Aqui, não estou falando da chamada “síndrome do medo do sucesso” discutida originalmente por Matina Horner. Em vez disso, estou falando de uma desconfiança ou até mesmo ressentimento que frequentemente é expresso em grupos de mulheres quando uma delas tem sucesso de alguma maneira específica e notável. A reação muitas vezes é que, ao escapar do círculo dos oprimidos, ela se torna uma pária.

Alice Walker aborda essa questão em um ensaio, originalmente escrito para o Black Scholar em resposta ao artigo de Robert Staples que atacava as “feministas negras irritadas” Ntozake Shange e Michele Wallace.

Tente não pensar em quão bem-sucedidas elas são. Tente apagar o quanto de dinheiro Shange ganhou. Não fique chateado com o quão lindamente ela escreve, ou com que coragem e vulnerabilidade. Resista à tentação de culpá-la por todas essas plateias de Marin e Scarsdale. Lembre-se, se puder, de que ela não sabia que eles viriam. Pense grande.59

Essas palavras poderiam ser dirigidas a muitas mulheres que sucumbem à política de vitimismo ao considerar o fracasso no mundo masculino, ou a mobilidade descendente, como a única política feminista “pura”. Tais mulheres confundem o mundanismo com a assimilação ao mundo.

A ênfase unidimensionalmente sustentada no vitimismo reduz a história e a ligação das mulheres a um estado eterno de atrocidade sobre o qual as mulheres nunca exerceram nenhum contrapoder. Nessa visão, a história e a ligação das mulheres são moldadas por forças externas dominadas por homens que moldam a existência das mulheres. Isso é uma forma de teoria política behaviorista que enfatiza a onipotência determinista do ambiente, desta vez o ambiente sendo o patriarcado.

Embora seja necessário para as mulheres reconhecerem a prevalência e a longevidade do antifeminismo ao longo de épocas históricas e fronteiras culturais, o imperativo desse reconhecimento não deve levar as mulheres à conclusão de que a força do antifeminismo é quase natural e sem fim – tão avassaladora que qualquer vontade de ação feminista e amizade entre mulheres é perdida. 

O vitimismo, em última instância, nega a autodefinição e a autorresponsabilidade no mundo. Quando as mulheres não se definem além do papel de sofredoras, elas se contentam com o mundo como os homens o fizeram. Haverá pouca inclinação para criar um mundo diferente. O vitimismo significa ser dominada pelo mundo. Isso faz com que as mulheres sejam sofredoras do mundo em vez de criadoras do mundo. Estabelece as mulheres no mundo de forma negativa. A comunidade das mulheres é reduzida à nossa opressão compartilhada. Há a premissa não declarada e, esperançosamente, não intencional, de que nós feministas poderiamos perder nossa identidade feminista se o antifeminismo desaparecesse do mundo. Embora um feminismo que destaque a opressão das mulheres como vítimas esteja orientado para questões e realidades muito reais que afetam as mulheres – como o aborto, abusos reprodutivos, estupro e coisas do tipo – ele é engolido pelo vitimismo quando seu ímpeto e propósito são contidos por essas atrocidades.

As mulheres, como povo, não podem se manter unidas e não podem se mover no mundo vinculadas principalmente por um inimigo comum ou por uma identidade negativa de vítima. Somente dentro do quadro da amizade entre mulheres uma mulher pode viver como mulher, trabalhando por um mundo reconstituído, sem se esgotar na luta contra o ódio às mulheres e sem desesperar diante da enormidade da tarefa.

3.1. Mães e filhas

Adrienne Rich escreveu: “Antes da irmandade, havia o conhecimento – transitório, fragmentado, talvez, mas original e crucial – da relação mãe-filha.”60 Nancy Richard acrescentou: “O primeiro relacionamento de uma mulher é com sua mãe. Aprendemos a nos relacionar com outras mulheres tanto a partir desse relacionamento quanto em reação a esse vínculo original.”61 Embora a relação mãe-filha não seja de forma alguma determinística para a formação de amizades entre mulheres, ela teve uma influência persuasiva no desenvolvimento do ginoafeto.

Muito já foi escrito sobre as relações mãe-filha, e não pretendo cobrir esse terreno novamente. No entanto, é importante examinar a relação mãe-filha na medida em que ela se mostrou um grande obstáculo para as mulheres formarem amizades próximas entre si e na medida em que infelizmente proporcionou o solo para o crescimento do vitimismo feminino. Minha intenção aqui não é mais uma vez culpar as mães, como é o procedimento habitual, mas analisar as formas pelas quais o vínculo mãe-filha, ou a falta dele, tem sido baseado no vitimismo – a vitimização da mãe por uma vida hetero-relacional e a vitimização da filha por mães que repassam às filhas uma tradição de dissociação das mulheres.

Sabemos sobre o peso da relação mãe-filha definida nos parâmetros das hetero-relações: a filha testemunha a mãe que não pode ou não quer ajudá-la; a mãe que pode ignorar não apenas o estupro literal da filha pelo pai ou figuras paternas, mas o “estupro” por uma cultura que odeia as mulheres; a mãe que incentiva a filha a se submeter, ficar em silêncio, se moldar; e a mãe que se rebela, mas que paga por sua resistência.62 Mesmo quando a mãe desafia as hetero-relações, a filha observa a vitimização da mãe por fazê-lo. O protótipo histórico disso são as filhas que foram forçadas a testemunhar mães literalmente queimadas como bruxas durante a Inquisição. Os exemplos históricos se multiplicam quando consideramos o preço que as filhas tiveram que pagar ao testemunhar mães “queimadas” por espancamentos, loucura, institucionalização, terapia, drogas e pela constante domesticação feminina do corpo e da mente.

Certamente, filhas são fortalecidas por mães que foram “queimadas” por desvios hetero-relacionais mais do que por mães que não desafiaram as hetero-relações. No entanto, em um nível prático, há pouco conforto, pois a deviança maternal muitas vezes pode privar a filha da presença da mãe. Em um nível existencial, no entanto, dá à filha alguma presença da mãe como mentora.

As mentoras proporcionam educação e conhecimento de mundo. A palavra “mentor” vem de uma raiz latina que significa “lembrar, pensar, aconselhar”. No entanto, a educação que as filhas recebem das mães, dentro dos limites das hetero-relações, não oferece o conhecimento de lembrança – lembrança da mulher original, aquela que cria a si mesma. Não é um conhecimento original ou definido pela mulher. Não transmite às filhas os conselhos e orientações da mundanidade e do poder do ginoafeto.

Dentro dos papéis das hetero-relações, não foi permitido que a mãe fosse mentora da filha. No máximo, ela é uma mentora equivocada; ou seja, o aconselhamento que ela pode dar é bem-intencionado, mas equivocado.

Em um mundo de hetero-relações, onde as mulheres existem principalmente para os homens, a maioria das mães ensina suas filhas a existirem para os homens. Ou seja, a viver “seguramente” no mundo das hetero-relações…

Ao ensinar suas filhas a existirem para os homens, as mães deixam de contar a elas a que custo. Nem elas próprias podem saber… As mães “protegem” suas filhas da violência no mundo que os homens “criaram”.63

Nancy Richard, que escreveu essas palavras, descreve a mãe como uma mulher que pode exercer a proteção sem ter o poder de proteção. Assim, as mulheres recorrem aos homens em busca do que pensam ser proteção “real”, conhecimento e poder.

Conhecer, conhecer verdadeiramente as formas pelas quais as mulheres são contidas pelas hetero-relações seria a educação definitiva do ginoafeto que as mães poderiam transmitir às filhas. Mas as mulheres com frequência se tornam “as filhas de homens educados”.

Hannah Arendt associa o conhecimento à busca da verdade.64 O conhecimento do ginoafeto ensinaria às mulheres a verdade sobre as hetero-relações e o que as mulheres precisam saber para viver de maneira verdadeira. Seria um conhecimento confiável que viria de um conselheiro experiente e confiável, um verdadeiro mentor. Poderia ser o tipo de conhecimento que Sido transmitiu a Colette.

O que Colette tanto amava em Sido era um tipo especial de força feminina. Ela amava o que sua mãe sabia sobre o mundo – de que direção o vento estava soprando, onde estava chovendo. Sido estava próxima da natureza e atenta aos presságios. Ela fazia barômetros com aveia e podia dizer se o inverno seria frio ou não com base no número de camadas de uma cebola. Essas eram as antigas artes femininas, os talentos de xamãs e bruxas, e eram praticados em uma cultura que nem as denegria nem as domava.

Sido não parece ter vivido no patriarcado. Ou Colette não a via dessa forma. Tanto mãe quanto filha tinham uma distância compartilhada e um benigno desprezo pela autoridade masculina.65

Essa é uma descrição profunda da mãe como mentora. No entanto, é em segunda mão. Temos as próprias palavras de Colette sobre a ausência de restrições hetero-relacionais na relação mãe-filha: “Nenhum macho meio-crescido em qualquer lugar, nenhum sinal de um homem… A profunda paz de um harém, sob os ninhos de maio, e a glicínia banhada de luz solar… e as mãos de minha mãe na parte de trás do meu pescoço, habilmente trançando meu cabelo.”66

A melhor educação que as mães podem dar às filhas é o exemplo de suas próprias vidas. Oxalá todas as filhas pudessem dizer de suas mães: “Eu sou filha de uma mulher… que ela mesma nunca deixou de florescer, incansavelmente, durante três quartos de século.”67 Isso é verdadeira mentoria.

A ideia de mentora como uma conselheira experiente e confiável quase desapareceu. A conselheira tornou-se a terapeuta, que tenta substituir o relacionamento autêntico onde a relação mãe/filha “fracassou” e a mentora não está disponível. Ele ou ela se torna o intermediário entre a mãe e a filha. As mulheres gastam tanto tempo, se não mais, com seus conselheiros, trabalhando para resolver – lidar com a confusão entre amar e odiar suas mães e entre sentir-se engolidas e, ao mesmo tempo, expulsas por suas mães do que jamais tiveram em um relacionamento autêntico com suas mães.68

Uma filha sem mentoria é uma filha sem nutrição, sem a nutrição da força que ela precisa para Sobreviver como uma mulher original neste mundo. As filhas, em comparação com os filhos em uma família hetero-relacional, são mais subnutridas de todas as formas pelas mães e pressionadas prematuramente a se tornarem nutridoras de outros — principalmente de homens. O que também acontece nesse contexto, como apontou Denice Yanni, é “um silenciamento das próprias necessidades de nutrição da mulher, tornando-a a principal nutridora.”69 Uma vez que nutrir é “o modo de comportamento mais aceitável para as mulheres, seu estilo de relacionamento mais aceito, as mulheres são mais propensas a se estenderem — e serem rejeitadas — como nutridoras.”70

Esse síndrome de nutrição afeta as mulheres de muitas maneiras diferentes, algumas bem sutis. Muitas vezes, observei que em aulas de Estudos Femininos, as estudantes têm grande dificuldade em discutir criticamente as opiniões e julgamentos umas das outras. Algumas estão hesitantes, inseguras e geralmente pouco familiares nesse novo e alienígena território de julgamento crítico. Outras conscientemente se abstêm do debate crítico porque o equiparam com um modo de interação adversarial masculino que é percebido como um ataque. Com muitas estudantes, a tentação é adotar um comportamento tradicional de nutrição umas com as outras e encobrir a troca crítica e análise em sala de aula com gestos de apoio e cuidado. Muitas vezes, as questões, bem como qualquer análise significativa e de pensamento rigoroso sobre elas, acabam sendo deixadas de lado. As estudantes não vão além da nutrição e do apoio, enquanto desejam desesperadamente ir além, tanto em um contexto intelectual quanto analítico. No entanto, elas não querem arriscar o que é necessário para encarar diretamente as interações críticas e às vezes desagradáveis com outras mulheres.

A falta de mentoria materna pode acompanhar uma mulher ao longo de sua vida. Presas na “rede de segurança” das hetero-relações, as mulheres passam para as filhas — filhas que se tornam mães, professoras, conselheiras e amigas de mulheres — um saco de sobrevivência de táticas. Essas táticas não fornecem o tipo de “Sobrevivência” que o ginoafeto proporciona, “não apenas no sentido de ‘continuar vivendo’, mas no sentido de viver além”71 — neste caso, além das hetero-relações. São as táticas de sobrevivência de mulheres que ainda são vítimas das hetero-relações. Elas dão às mulheres a capacidade de sofrer e resistir e/ou de manipular seu caminho com segurança e habilidade pelo mundo que os homens lhes deram. No entanto, elas geram negligência com relação às mulheres e a uma forte existência do ginoafeto. E frequentemente criam culpa em relação às coisas erradas.

3.2. A Política da culpa e da culpabilização

A culpa e a culpabilização frequentemente acompanham uma ideologia e estilo de vida de vitimismo. A culpa produz uma identificação com indivíduos e grupos oprimidos que muitas vezes é baseada em piedade e tristeza por suas situações difíceis. A culpa também é semelhante a uma reação automática quase pavloviana; ou seja, ela reage sem pensar e frequentemente sem crítica ao que é percebido como opressão. Às vezes, isso tem levado a exigências de algumas mulheres para a aceitação acrítica das ações de certos indivíduos e grupos porque eles são membros de uma classe oprimida. Kathleen Barry dá este exemplo:

Quando eu estava pesquisando sobre a escravidão sexual feminina na Europa e nos EUA, encontrei vários casos de cafetinas lésbicas – ou seja, mulheres lésbicas que escravizam sexualmente e exploram outras mulheres. Elas eram pelo menos tão cruéis, escravizadoras e exploradoras de suas próprias mulheres quanto quaisquer cafetões homens. Parecia haver apenas uma diferença: elas eram tratadas com mais severidade pelo sistema de justiça criminal, que se esforça muito para ignorar ou não interferir com os cafetões homens. Agora, é verdade que as cafetinas lésbicas não são típicas nem do lesbianismo nem do cafetinismo. Mas isso não significa que qualquer forma de cafetinagem deva ser ignorada ou que as cafetinas lésbicas devam receber consideração especial das feministas porque, como lésbicas, são tratadas com mais rigor pelo sistema de justiça criminal. Acredito que a mesma lógica se aplica à acusação de que o movimento de combate ao estupro é racista porque os homens negros são tratados com mais rigor pelo sistema. O fato do racismo patriarcal nem desculpa os homens negros por estuprar mulheres, nem exime as feministas da responsabilidade de garantir que mais homens brancos sejam detidos e levados a julgamento por estupro.72

Eu citei essas palavras em extensão porque elas fornecem uma boa análise não apenas de uma aceitação acrítica da opressão, mas também de uma conclusão seriamente equivocada que é um desdobramento de uma política de culpa. Aqui, as mulheres tiram conclusões sobre heterossexismo e racismo que são severamente limitadas pela falta de discernimento e de “rigor de discernimento”. Aqui, a culpa embota a percepção crítica e a capacidade de separar o racismo real, por exemplo, daquilo que é sentimentalizado como racismo.

A culpa também gera a culpabilização. Isso é evidente em grupos de mulheres onde algumas mulheres repreendem outras por racismo, classismo e/ou heterossexismo. Isso promove uma política e um estilo de consciência e comportamento antirracista, anticlasses e/ou antiheterossexista baseados em aterrorizar outras mulheres tanto de maneira intelectual quanto social. A culpabilização geralmente é expressa de forma negativa; por exemplo, uma mulher pode dizer que outra mulher “não tem análise sobre raça”, em vez de expressar uma posição educativa e afirmativa sobre raça.

As pessoas culpabilizadas, assim como aquelas que são culpadas, muitas vezes buscam segurança na invisibilidade; ou seja, muitas vezes confessam sua culpa em um fórum público. Como Nietzsche expressou, “falar sobre si mesmo também pode ser um meio de se esconder”.73 Escondendo-se entre os “opressores”, os culpados e os culpabilizados muitas vezes batem no próprio peito e confessam sua própria história de comportamento opressivo. Supostamente, se alguém se nomeia como opressor, não pode ser acusado de oprimir. Isso pode esconder o que é realmente uma necessidade de segurança, proteção e “perdão superficial”.

O que frequentemente se torna de importância primordial nos círculos de mulheres é que as mulheres reconheçam sua culpa. O reconhecimento da culpa muitas vezes se torna uma licença para julgar os outros.

A confissão entusiástica e agressiva se torna semelhante ao personagem de Camus, cuja confissão perpétua é seu meio de julgar os outros: “[Eu]… pratico a profissão de penitente para poder me tornar um juiz… quanto mais me acuso, mais tenho o direito de te julgar.”74

Essa identificação com o vitimismo também cria um padrão em que as mulheres aplacam os outros depreciando a si mesmas. É como um ritual onde a culpa não é realmente expulsa, como pelo menos era nos rituais religiosos de expiação, mas sim onde ela é redistribuída entre os culpados e os manipulados com culpa. Isso tem o efeito adicional de levar as mulheres a agirem como oprimidas ou se colocarem no papel de vítimas em outras circunstâncias da vida. Mulheres que agem de forma forte, que não estão deprimidas ou com aparência derrotada, são suspeitas. Muitas mulheres acham muito mais fácil criar laços umas com as outras na miséria, a partir de uma fraqueza compartilhada de espírito, e como vítimas.

Uma postura de contínua auto-humilhação e confessionalismo em relação a lésbicas, mulheres pobres, mulheres negras, mulheres com deficiência e/ou mulheres idosas não é corajosa nem produz mudanças. Em vez disso, ela amplia o círculo do vitimismo, com as mulheres, desta vez, impondo a identidade e o comportamento de vítima. Mulheres com discernimento deveriam ser tão céticas em relação a essa subserviência quanto seríamos se tal comportamento viesse dos homens. A política de culpa e de culpabilização não beneficia nenhuma mulher.

As energias investidas em carregar e reconhecer a culpa, bem como em culpabilizar os outros, não permitem uma ação construtiva contra a opressão. Em vez disso, elas produzem uma estagnação confessional que cria uma preocupação com a própria culpa. Quando as mulheres redistribuem a culpa entre si, e especialmente usam a culpabilização para fazer isso, acabam esquecendo do “inimigo principal”.75

O compartilhamento da culpa pode criar uma sensação ilusória de unidade por um tempo, mas não promove uma união mais forte que sobreviva ao compartilhamento da dor.

A humanidade dos insultados e feridos nunca sobreviveu à hora da libertação nem por um minuto sequer. Isso não significa que seja insignificante, pois na verdade torna o insulto e o sofrimento suportáveis; mas significa que, em termos políticos, é absolutamente irrelevante.76

Dito de forma diferente, o sofrimento, a resistência, a vitimização e a irmandade dos oprimidos não criam nada além de si mesmos. A política da culpa e da culpabilização de outras mulheres está sendo cada vez mais usada para conferir um tipo de status interno a certas mulheres que podem reivindicar uma história de múltiplas vítimas – ou seja, opressão por sexo, classe, raça e/ou outras formas infinitas de opressão produzidas por uma cultura patriarcal – ou que reconhecem sua história de ser uma opressora múltipla. Aquelas que não podem ou não querem reivindicar uma ou mais formas de múltiplas opressões são empurradas para o status de outsiders. Em um sentido muito real, as mulheres criam assim outra forma da “Sociedade de Outsiders” de Virginia Woolf entre nós mesmas. Em vez de usar a multiplicidade de opressões de forma positiva, ela se torna uma cunha negativa que divide as mulheres umas das outras.

Pat Hynes foi a primeira a apontar que o que também está surgindo nesse contexto é uma “aritmética da opressão… cuja correção é medida pelo fato de conter os fatores adequados de adição.”77 Esse método de adição nunca pode dar conta adequadamente da variedade infinita de opressões específicas, porque sempre haverá algum termo ausente. Em vez disso, Hynes vê que o “imperativo para o feminismo radical… é encontrar a linguagem e a teoria que descrevam em detalhes precisos todas as maneiras de suspeita e separação que têm enfraquecido a paixão por uma comunidade de mulheres.”78

É crucial reconhecer as condições de vitimização única e opressão múltipla na vida de muitas mulheres, seja por raça, classe e/ou orientação lésbica. Quando se é oprimida por condições distintas e variadas, é preciso responder não apenas como mulher, mas como mulher negra, mulher judia, mulher idosa e/ou mulher lésbica. Da mesma forma, as mulheres que não são oprimidas dessa maneira não podem se manter afastadas dessas condições nas vidas de outras mulheres. Não podemos agir levianamente como se todas fôssemos mulheres da mesma forma. Diferentes opressões devem ser avaliadas e tratadas de forma singular, não porque automaticamente conferem um “status especial”, mas porque trazem insights tanto para as diversas condições da opressão das mulheres quanto para as possibilidades de amizades diversas entre mulheres. Lucy Dawidowich coloca dessa forma, usando o Holocausto como exemplo:

Referir-se ao assassinato dos 6 milhões de judeus como distintivo, como único, não é uma tentativa de magnificar a catástrofe que lhes ocorreu, nem de implorar lágrimas e pena por eles. Não é pretendido minimizar as mortes dos milhões de não-judeus… [isso] fica à parte… não por causa de qualquer destino distintivo que as vítimas individuais suportaram, mas por causa da intenção diferenciadora dos assassinos e do efeito único dos assassinatos… A aniquilação dos 6 milhões de judeus pôs um fim com irrevogável finalidade na cultura e civilização milenar do judaísmo ashkenazi, destruindo a continuidade da história judaica.79

As feministas não podem se dar ao luxo de resumir qualquer condição opressiva sob a categoria ecumênica de sofrimento feminino. Não podemos turvar a distintividade da vitimização por raça, classe ou qualquer outra coisa, rejeitando assim a responsabilidade política e moral pelas consequências dessas condições opressivas distintamente diferentes na vida de muitas mulheres. No entanto, ao mesmo tempo, não podemos permitir que essas diferenças distintivas apaguem ou extingam nossa comunidade comum como mulheres que são oprimidas como mulheres e que se unem como mulheres.

Em última análise, o reconhecimento das diferenças e da responsabilidade por múltiplas formas de opressão deve proceder do que Bonnie Atkins chamou de “política de identidade”.80 Alice Walker dá um bom exemplo da “política de identidade”:

…na América, as mulheres brancas que são verdadeiramente feministas – para quem o racismo é inerentemente impossível – são em grande parte superadas pelas mulheres brancas americanas comuns, para quem o racismo, na medida em que assegura o privilégio branco, é uma forma de vida aceita. Naturalmente, muitas dessas mulheres aderiram ao movimento feminista para parecerem modernas, já que essa é a tendência do momento.81

Neste contexto, Walker defende o “rigoroso discernimento” que mencionei anteriormente neste capítulo. Esse discernimento, ela lembra às mulheres negras, permitirá que elas “coloquem energia em colaborações feministas apenas quando houver pouco risco de desperdiçá-la.”82 Walker acrescenta ainda mais:

Até o ponto em que as mulheres negras se dissociam do movimento feminista, elas abandonam suas responsabilidades com as mulheres em todo o mundo. Isso é uma abdicação séria e um uso inadequado da tradição da história das mulheres negras radicais: Harriet Tubman, Sojourner Truth, Ida B. Wells e Fannie Lou Hamer não teriam gostado. Nem eu.83

Andrea Dworkin nos ofereceu algumas das melhores análises antirracistas que derivam de uma “política de identidade” feminista. Ao analisar como as mulheres negras são retratadas na pornografia, ela diz:

Enquanto sua pele aparece, sua vulva aparece. Esse é o valor sexual específico da mulher negra na pornografia nos Estados Unidos, uma sociedade voltada fanaticamente para a desvalorização sexual da pele negra percebida como um órgão sexual e uma natureza sexual. Nenhuma mulher de outra raça carrega esse fardo específico neste país. Em nenhuma outra mulher a pele é sexo, a vulva por si só – sua essência, sua ofensa.84

Aqui, não há subordinação da raça sob a categoria universal do feminismo. Em vez disso, há uma análise aguçada das conexões que as mulheres como mulheres devem fazer se a análise e ação contra múltiplas formas de opressão devem ter integridade feminista. As obras de Alice Walker e Andrea Dworkin são excelentes exemplos de análises e ações antirracistas que derivam de uma “política de identidade”.

As feministas não podem ser culpadas ou serem alvo de tentativas de culpabilização por criarem o espectro de condições opressivas sob as quais muitas mulheres vivem. Em vez disso, devemos agir com responsabilidade, não com culpa. Devemos lutar para que as mulheres não assumam essa culpa que não lhes pertence, uma culpa tão corrosiva para o espírito feminino quanto a culpa de uma jovem vítima de incesto que se convence de que é responsável pelo crime de seu pai contra ela. As mulheres com frequência assumem a culpa que pertence corretamente aos Patriarcas.

Quando as mulheres são consumidas pela culpa e agem a partir dela, ou quando ocorre a culpabilização, as possibilidades de amizade entre mulheres são escassas. A política da culpa e da culpabilização reforça a noção de que as mulheres só podem se unir ao reconhecer uma dor compartilhada, assim reciclando novamente a dor entre nós mesmas. Se uma mulher assume a identidade primária de ser oprimida, ou de ser de alguma forma opressora, as mulheres se entregam ao sofrimento.

Uma “aritmética da opressão” incute nas mulheres a desconfiança em relação às mulheres que não são, por exemplo, da mesma raça, grupo étnico ou não têm o mesmo nível de capacidade. As mulheres então aprendem a confiar apenas nas mulheres de seu próprio tipo. Há, é claro, uma real necessidade de depositar confiança primordial em mulheres que compartilham uma história semelhante. As mulheres não podem simplificar a amizade feminina ou tornar a harmonia do ginoafeto em uma questão de “perdão superficial”. A amizade entre mulheres, especialmente a amizade que se forma através de linhas de diversidade e diferença, é um processo complexo, delicado e exigente. Não podemos nos dar ao luxo de romantizar a amizade feminina ou imaginar que podemos ultrapassar as fronteiras das diferenças para alcançar instantaneamente o ginoafeto. No entanto, podemos deixar a culpa e a culpabilização para trás, colocando as possibilidades de amizade à nossa frente.

3.3. Alienação das mulheres do poder pessoal e político

A vitimização cria uma relação complexa entre as mulheres e o poder. Por um lado, muitas mulheres tendem a encarar o poder de forma ambivalente, como algo a ser evitado, algo que corrompe e algo que é sempre usado sobre e contra os outros. Por outro lado, muitas mulheres que foram submetidas às perversidades do poder patriarcal se insurgiram contra ele e o tomaram para si e para outras mulheres. As mulheres têm uma relação dual com o poder. No entanto, é a primeira noção – de que o poder deve ser evitado – que tem se mostrado um obstáculo para o ginoafeto. Muitas mulheres, tendo sido vítimas do poder patriarcal, assumiram acriticamente que o poder em si corrompe. Isso muitas vezes é acompanhado por uma alienação de seu próprio senso de poder pessoal – o que Paul Tillich chamou de “poder de ser” – e das outras mulheres que afirmam seu poder individual de ser dentro dos grupos de mulheres.

O poder pode ser definido de muitas maneiras. Em tempos mais recentes, frequentemente tornou-se sinônimo de poder político. No entanto, se quisermos pensar no poder fora de suas nuances corrompidas, devemos começar com o poder de ser e falar sobre o fundamento ontológico de todas as outras formas de poder, especialmente do poder político.

A autoafirmação de um ser apesar do não-ser é a expressão de seu poder de ser. Aqui estamos nas raízes do conceito de poder. O poder é a possibilidade de autoafirmação apesar da negação interna e externa. É a possibilidade de superar o não-ser. O poder humano é a possibilidade do ser humano de superar infinitamente o não-ser.85

Na minha opinião, é na alienação das mulheres de seu próprio poder de ser que outros problemas femininos com o poder começam.

Existem diferentes formas pelas quais essa alienação se manifesta. Muitas vezes em grupos de mulheres, há uma aceitação automática e acrítica do coletivismo como a melhor maneira de estruturar um grupo. Junto com isso, surge uma insistência em estruturas “não hierárquicas”. Embora o desejo de se organizar coletivamente seja uma reação compreensível à experiência das mulheres com hierarquias opressivas, institucionais e patriarcais, isso pode tomar direções perturbadoras que desviam o desenvolvimento e o aprofundamento da amizade feminina.86

Por exemplo, essa insistência em estruturas coletivas muitas vezes nivelam as diferenças reais que as mulheres têm em competência, comprometimento e capacidades. Quando as diferenças de talento ou liderança são afirmadas, mulheres que se sentem menos poderosas são ameaçadas. Sherry McCoy e Maureen Hicks, em um artigo intitulado “Uma Retrospectiva Psicológica sobre o Poder na Comunidade Lésbica-Feminista Contemporânea”, dão um excelente exemplo disso:

Uma ética que foi aceita em muitos grupos feministas diz: “Se a mulher A exerce o poder de uma maneira que faz com que a mulher B se sinta menos poderosa, A cometeu um erro.” Isso deixa muito pouco espaço para o exercício de poder ou liderança, porque alguém deve estar constantemente em guarda para que os esforços de orientação e sugestão não sejam vistos como a usurpação do poder de uma mulher menos expressiva.87

A questão real aqui é: por que a mulher B e outras como ela não tomam o próprio poder em vez de acusar outras mulheres de privá-las disso?

Muitas mulheres não assumem o poder porque sua história de vitimização resultou em um poder pessoal gravemente diminuído. Diante da falta desse poder pessoal, tais mulheres tendem a desvalorizar aquelas que expressam um poder de ser. Mulheres que manifestam individualidade ou direcionamento podem ser duramente criticadas por se destacarem do grupo. Sob a retórica de “coletivo”, “não competitivo” e “igualitário”, mulheres que alcançam, que são ambiciosas e bem-sucedidas em suas atividades são relegadas ao status de párias. Não querendo ser “exiladas” do grupo, algumas mulheres fortes podem apaziguar as mais fracas depreciando ou diminuindo a si próprias e suas realizações. Ou podem optar por deixar o grupo e se desiludirem com outras mulheres. A alienação das mulheres do poder pessoal e político confere ao grupo coletivo ou à comunidade um falso poder.

Para muitas mulheres, a comunidade [das mulheres] se tornou uma entidade com vida própria. Como tal, detinha o poder de julgar e, como um lar recém-encontrado para os sem-teto, adquiriu uma significância poderosa… Tradicionalmente, as mulheres foram excluídas do acesso ao poder e à autoridade “legítimos” (masculinos)… Quando as mulheres atingem a idade adulta, muitas vezes têm pouco entendimento de como adquirir poder pessoal direto, e muito menos do que fazer com ele mesmo que o tivessem… Porque as mulheres não vivenciaram de primeira mão a agregação e a utilização do poder, nos foi deixado conceber nossos próprios conceitos sobre o que é o poder, o que deveria ser e como funciona. Conceitualizar a comunidade como uma fortaleza de onipotência reflete a imaturidade de nossa experiência em relação ao poder.88

Estruturas não hierárquicas frequentemente incentivam um tipo de pessoa parasitária que pode derivar seu próprio “poder” ao se alimentar do poder de outra pessoa. Tais mulheres frequentemente usam a retórica da igualdade como um meio de manipular emocionalmente outras mulheres que demonstram “a possibilidade de autoafirmação apesar da negação interna e externa”, para repetir as palavras de Tillich. Qualquer exibição de poder pessoal por outra pessoa é vista como uma crítica implícita de suas próprias inadequações. A reação hostil a qualquer demonstração de força ou conquista por parte de uma mulher muitas vezes é acompanhada por uma rejeição acrítica de qualquer forma de requisitos ou ordem do grupo. Todos os imperativos são considerados elitistas, repressivos e/ou ávidos por poder. É claro que, como Joreen demonstrou há muito tempo em “The Tyranny of Structurelessness”89 (A Tirania da Falta de Estrutura), não existe tal coisa como um grupo sem estrutura. As chamadas estruturas não hierárquicas frequentemente incentivam o surgimento de hierarquias mais informais – um jogo de poder velado e restrições – que acabam se tornando mais rígidas do que a maioria dos grupos explicitamente estruturados, uma vez que as pessoas no grupo “não hierárquico” não têm formas aceitas de contestar as hierarquias não estruturadas que inevitavelmente se formam.

O dogma não hierárquico pode prejudicar o poder do ginoafeto porque pode dar um foco equivocado à “igualdade de poder político” quando várias mulheres no grupo não têm um centro de poder individual a partir do qual construir. Assim, a situação frequentemente se torna uma na qual as mulheres drenam o poder comum do grupo ou dos indivíduos fortes no grupo ou descontam seus sentimentos inadequados sobre o poder em outras mulheres que o manifestam.

… igualar o poder pode não ser um objetivo apropriado em todo grupo. Uma insistência automática em estruturas “não hierárquicas” pode ser uma reação exagerada à nossa experiência com desequilíbrios de poder institucionalizados opressivos. Diferenças reais em competência, responsabilidade e compromisso exigem reconhecimento, e isso pode se manifestar na forma de delegar maior autoridade aos membros de um grupo que estão dispostos a aceitá-la.90

O imperativo acrítico de formar grupos baseados em princípios coletivistas pode funcionar como uma reação, isto é, como uma resposta ao nosso status como vítimas do poder patriarcal. “Nossas estruturas de poder precisam ser julgadas pelo fato de aumentarem ou não a capacidade dos indivíduos de alcançar seu próprio potencial, não pelo fato de, em determinado momento, algumas mulheres receberem maior autoridade.”91

Outro obstáculo do grupo não hierárquico é o hábito de poder indireto que ele encoraja as mulheres a cultivar. Mulheres em geral muitas vezes não usaram seu poder pessoal direto. Em vez disso, muitas recorreram ao poder indireto ao canalizar suas próprias ideias e desejos através de homens ou até manipulando homens para fazerem o que desejam. Esse uso indireto do poder muitas vezes é imitado em contextos coletivistas. Onde o poder direto do ser não é convocado pelos valores do grupo, a ética encorajada é a da indireção. As mulheres muitas vezes procuram influência por meio de indireção. Não projetar um sentido direto do Eu ou de seus valores é considerado “politicamente correto”. “Misturar-se” com o grupo é preferível a “se destacar”. As qualidades que distinguem uma mulher não são convocadas, e seu poder distintivo se torna invisível. No entanto, o grupo ainda pode ser manipulado por mulheres individuais dispostas a conquistar poder por meios indiretos.

A aceitação acrítica de um modelo não hierárquico pode gerar um conjunto completamente diferente de injustiças. Como muitas críticas observaram, o coletivismo leva as mulheres a buscar objetivos internos – o que poderíamos chamar de assuntos domésticos – em detrimento das tarefas externas necessárias, tarefas que se estendem para um grupo mais amplo. A dinâmica do processamento do grupo, as formas de inter-relação dentro do grupo e os problemas de comunicação entre os membros do grupo são tratados e às vezes arrastados indefinidamente. Tais assuntos internos podem ser “discutidos até a exaustão” ou, mais apropriadamente, receber uma falsa “vida”.

Falsa vida não é poder real. Dentro do enclave de tal grupo, as mulheres podem ter a ilusão de que estão desafiando as estruturas de poder patriarcal. No entanto, nenhum poder real surge de um grupo que silencia suas vozes mais competentes e brilhantes em prol de uma falsa sensação de igualdade do grupo. E certamente nenhuma amizade sólida pode ser formada entre mulheres que não têm o poder de ser. Se, como disse Aristóteles, “o amigo é outro eu”, esse Eu deve conhecer seu próprio poder de ser. Ela deve ser sua própria amiga.

3.4. A mulher como a suprema vitimizadora de mulheres

Tem havido traições reais de mulheres por outras mulheres – por mulheres que supostamente compartilhavam um espírito e visão feministas semelhantes e por mulheres que um dia chamamos de amigas. As mulheres também têm mantido expectativas irrealistas em relação a amigas mulheres, de tal forma que, quando essas expectativas não foram cumpridas, as mulheres se sentiram desiludidas e abandonadas. É importante distinguir entre as traições reais e as expectativas irrealistas, embora as duas frequentemente produzam os mesmos resultados – a falta de afinidade com outras mulheres.

A irmandade que foi criada na luta contra todas as formas de tirania masculina não significou que as mulheres automaticamente se tornaram amigas ou que compartilhavam um mundo comum além da luta. Muitas mulheres que lutaram arduamente pela causa comum do feminismo sentiram que isso lhes daria mais do que realmente deu. E quando não deu, elas se “queimaram”. Kate Stimpson observou que “burnout” (esgotamento) é realmente outra forma de raiva. Poderíamos então perguntar, Raiva com relação a quê? Eu responderia: Raiva contra as mulheres que desapontaram ou traíram. Raiva pelo investimento feito em outras mulheres. Raiva por dar mais do que recebeu. Raiva pela incapacidade de transcender diferenças e divisões inconciliáveis. Raiva pelo reconhecimento, respeito e consideração que as mulheres deixaram de dar umas às outras. Raiva pela perda de uma felicidade que as mulheres esperavam encontrar com outras mulheres.

Muitas mulheres que se tornaram feministas durante as décadas de 1960 e 1970 foram “desprezadas” por mulheres que elas tinham começado a considerar como amigas. O “desprezo” às vezes tomava a forma de uma denúncia pública em que as mulheres eram castigadas por alguma posição “politicamente incorreta”. Mais frequentemente, a ruptura ocorria em particular. Como as mulheres não estavam preparadas para confrontar traições e deslealdades de outras mulheres, especialmente mulheres nas quais tinham começado a confiar, muitas vezes a resposta era concluir que “as mulheres não eram melhores do que os homens”. Assim, muitas mulheres se afastaram de outras mulheres e voltaram atrás na identificação com mulheres. Na última década, muitas mulheres se alienaram de outras mulheres e do feminismo. Mary Daly se refere a isso como uma “crise de fé feminista”, onde as mulheres passaram a acreditar que a “ilusão” é o próprio feminismo.92

Existem muitas maneiras de analisar esse fenômeno. É instrutivo observar que as mulheres que se afastam das outras mulheres e da identificação com mulheres parecem estar dizendo que ser ferida por uma mulher é uma espécie de “vitimização definitiva”. Tendo conhecido a vitimização pelos homens e esperado que ela viesse desses lados, as mulheres não previram que isso pudesse vir de outras mulheres. No entanto, veio, e mais frequentemente do que muitos de nós gostariam de admitir.

No entanto, afastar-se das mulheres, diante da violência horizontal e da traição, é como proclamar que ninguém pode infligir golpes mais mortais nas mulheres do que outras mulheres. Claro, há um nível em que isso é verdade. Porque esperamos muito mais das mulheres, as mulheres ferem mais profundamente. No entanto, isso é apenas uma verdade parcial. Verdades parciais podem ser envolventes, mas o problema com as verdades parciais é que elas simplesmente não são verdades completas. A verdade completa é que, em um mundo que odeia as mulheres, as mulheres internalizarão e externalizarão valores e comportamentos anti-mulheres. O melhor que as mulheres podem fazer com isso é saber precisamente que esse comportamento ocorrerá, enfrentar esse conhecimento de frente (mas talvez mais importante, de coração) e agir de maneira mais gino afetiva por causa e apesar desse conhecimento da mente e do coração.

A força do nosso compromisso com as mulheres é finalmente testada nos momentos difíceis – mesmo quando as mulheres jogam a amizade feminina de volta em nossos rostos. Como mulheres da realidade, devemos conhecer todas as forças que estão contra nós, incluindo a terrível força das mulheres que traem outras mulheres. Devemos compreender esse conhecimento, senti-lo e depois seguir em frente – em direção a outras mulheres. Isso requer persistência e resistência – o poder de permanecer junto às mulheres.

Quando as mulheres se afastam das mulheres, elas escolhem um tipo diferente de vitimização. Elas estão dizendo, na verdade, que já estão muito feridas para serem feridas novamente, desta vez por outras mulheres. No entanto, essa atitude faz das mulheres as feridas supremas das mulheres. Também proclama que ser ferida por uma mulher é ser uma vítima definitiva, além da qual nada mais pode vitimar. Claro, as mulheres não estão conscientemente cientes de que estão se sujeitando a um tipo mais sutil de vitimismo feminino. No entanto, isso é o que acontece na realidade.

O afastamento entre mulheres gera uma atitude niilista em relação ao feminismo e à amizade entre mulheres. Durante meados do século XX, especialmente na era pós-Holocausto e pós-bomba atômica, poetas e filósofos homens tiveram uma fascinação prolongada pelo significado do nada. Andrea Dworkin disse sobre esse niilismo: “… eles romantizam essa alienação para evitar assumir a responsabilidade pelo que fazem e pelo que são.”93 Uma alienação semelhante infectou as mulheres, não ao ponto de romantizar o afastamento das mulheres, mas ao ponto de evitar a responsabilidade por expectativas irreais em relação às mulheres e por não reconhecer um certo sentimentalismo no vínculo feminino, que esperava demais e então recuava quando não era correspondido.

Esse sentimentalismo pode assumir a forma de depositar confiança acrítica nas mulheres em geral ou nas mulheres que se definem como feministas. A confiança categórica, assim como a verdade categórica, não pode se sustentar; não pode sustentar aqueles que a exercem, e certamente não pode sustentar a amizade entre mulheres. A confiança categórica torna a amizade, como disse Emerson, “boa demais para ser verdade”. Confiar acriticamente em alguém, mesmo em mulheres honrosas, é tolice.

Não está errado que as mulheres esperem muito umas das outras. Devemos esperar que as mulheres não se comportem como os homens. No entanto, ao esperar muito, não podemos esperar que as mulheres sejam mais de tudo – mais morais, mais confiáveis, mais generosas, mais inteligentes. E, especialmente, não podemos esperar que as mulheres sejam mais de tudo de uma maneira que as torne menos tolerantes com as mulheres que as decepcionam.

A desafeição niilista é a saída fácil. As vítimas mais seguras de nossa decepção e raiva são as de nosso próprio sexo. É simples negar os valores do feminismo e da amizade entre mulheres que foram anteriormente mantidos. É muito mais difícil confrontar o desencanto e decidir novamente optar pelas mulheres.

A desafeição das mulheres deve ser substituída por um ginoafeto mais realista. Devemos resistir à ideia de “que estamos condenadas a uma vitimização eterna pelo ‘outro’: primeiro o patriarcado – agora outras mulheres.”94

Conclusão

Os obstáculos à amizade entre mulheres finalmente nos lembram de que a amizade é contínua. Tornar-se amiga de mulheres significa continuar a ser amiga de outras, mesmo depois de amizades profundas serem perdidas, ou trabalhar através dos obstáculos na esperança de que uma amizade possa continuar.

A amizade é um processo de “atos repetidos”. Nesse sentido, a amizade é um hábito que reaparece diante de traições, rupturas e desafeição em relação às mulheres. É um hábito criativo que, para usar as palavras de Mary Daly e aplicá-las a outro contexto, “não acontece por meio de pensamentos fantasiosos, mas por meio de prática árdua, através de atos repetidos”.95 Atos repetidos de amizade devem enfrentar o “paraíso perdido” de amigas anteriores.

Há uma quantidade enorme de sabedoria prática sobre a amizade que pode surgir de seus fracassos, assim como de seus sucessos. No calor do fracasso, sempre há a tentação de perguntar: “Valeu a pena?” Valeu a pena o tempo, a energia, a intensidade de sentimentos e o compartilhamento do Eu? Se o ginoafeto é de fato uma virtude política com efeitos políticos, essas perguntas devem ser respondidas de um ponto de vista diferente, possivelmente com outras perguntas.

Quando uma amizade desperta uma mulher para as possibilidades de uma vida mais profunda e depois nega o cumprimento dessas possibilidades dentro da amizade, teria/terá valido a pena? Seria melhor ter sido deixada sem ser afetada por uma amizade específica, mesmo que essa aliança específica não tenha durado? Todos nós poderíamos nos inspirar nas palavras de Alice Walker, ditas no contexto do movimento pelos direitos civis, mas muito aplicáveis à crise da amizade entre mulheres:

Parte do que a existência significa para mim é saber a diferença entre o que sou agora e o que era então. É ser capaz de cuidar de mim mesma intelectualmente, bem como financeiramente. É ser capaz de perceber quando estou sendo prejudicada e por quem… Significa fazer parte da comunidade mundial, estar atenta a qual parte é que eu me juntei e saber como mudar para outra parte se essa parte não me convém. Saber é existir.96

Se a amizade entre mulheres fizer qualquer uma dessas coisas, apesar dos rasgos e fissuras em seu tecido, vale muito a pena.

Os obstáculos à amizade entre mulheres, para muitas, deu-lhes uma razão para se afastarem de outras mulheres porque sentem que se ganha muito pouco com o ginoafeto. Elas ignoram os presentes da amizade feminina que lhes foram dados. A amizade entre mulheres nos deu a experiência uma da outra, e nos deu o presente do Eu. Ela nos deu um propósito, e nos mostrou que podemos estar pelas mulheres. Ela demoliu a fachada das hetero-relações que nos afasta de nós mesmas e umas das outras. Ela nos deu uma história em que aprendemos que as mulheres sempre amaram outras mulheres. Ela nos deu uma compreensão de que uma vida de mera sobrevivência é insuficiente para o espírito. Ela nos deu a capacidade de expressar nosso amor pelas mulheres de diferentes maneiras. Ela nos deu vidas que são tocadas por mulheres, rompendo “o Tabu patriarcal universal contra o Toque entre Mulheres”. Ela nos deu aquilo que nos é “mais gravemente proibido”.

O fato de ela não nos ter dado isso para sempre, ou com as amigas com as quais começamos, não é a questão. Pois o que ela nos deu é a visão e a possibilidade de que isso se repita sempre.


  1. Capítulo 4 de RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001. Tradução: @taticafeminista, @acordamenina e @pity ↩︎
  2. Cited in Joel Block, Friendship (New York: Macmillan, 1980), p. 33. ↩︎
  3. O conceito de sem-mundo é uma tradução aproximada do termo filosófico worldlessness, proposto pela autora. Por sem-mundo compreendemos a condição daquelas que não têm uma rede de saberes, arte, cultura, leis, Estados, territórios, próprios, isto é, a condição das mulheres – que, na história do feminismo, foi também descrita por Simone de Beauvoir como “dispersas entre os homens”. Seria talvez uma escolha mais estética manter o termo original, na língua inglesa, porém, desejamos atingir o maior número possível de mulheres, e para tanto, fez-se necessária a tradução. ↩︎
  4. Estou profundamente endividada para com as tipologias de dissociação e assimilação do mundo, desenvolvidas por Hannah Arendt em seu trabalho sobre judeus e judaísmo. Ver, por exemplo, The Jew as Pariah, ed. e intro. Ron H. Feldman (Nova York: Grove, 1978). Inspirei-me em muitas de suas ideias, contidas neste capítulo. ↩︎
  5. O conceito de heterorrelacional pode ser melhor compreendido à luz deste artigo: http://heresialesbica.noblogs.org/post/2014/06/17/heterorealidade/ . [N.d.T.] ↩︎
  6. Arendt, Jew as Pariah, pp. 89-90. ↩︎
  7. Arendt, Jew as Pariah, p. 27. ↩︎
  8. Hanna Arendt, « On Humanity in Dark Times, » in Men in Dark Times (New York: Harcourt, 1968), p. 23. ↩︎
  9. Janice G. Raymond, The Transsexual Empire (Boston: Beacon, 1979); ver especialmente o capítulo 4, « Therapy as a Way of Life. ». ↩︎
  10.  Michel Foucault, The History of Sexuality (New York: Pantheon, 1978) 1:59. ↩︎
  11.  Foucault, History of Sexuality, p. 60. Foucault, History of Sexuality, p. 60. ↩︎
  12. Sara Scott and Tracey Payne, « Underneath We’re All Lovable: Therapy and Feminism, » Trouble and Strife 3 (Summer 1984): 22. ↩︎
  13.   Hannah Arendt, Rahel Varnhagen: The Life of a Jewish Woman (New York: Harcourt, 1974), p. 1. ↩︎
  14. Entrevista, Boston Globe, 26 August 1984, p. A3. ↩︎
  15. Scott and Payne, « Underneath We’re All Lovable, » p. 24. ↩︎
  16. Conversa com Pat Hynes, Montague, Mass., July 1984. ↩︎
  17. Mary Daly, Pure Lust: Elemental Feminist Philosophy (Boston: Beacon, 1984), pp. 200-201. ↩︎
  18. Daly, Pure Lust, p. 204. ↩︎
  19. Virginia Woolf, A Room of One’s Own (New York: Harcourt, Brace & World, 1929), p. 35. ↩︎
  20. Robert Jay Lifton, Thought Reform and the Psychology of Totalism (New York: Norton, 1961), p. 426. ↩︎
  21. “show and tell” poderia ser traduzido como “mostrar e contar”. É uma prática pedagógica comum nos Estados Unidos. As crianças são encorajadas a trazerem à sala de aula objetos de seu convívio cotidiano, mostrá-los, e contar à turma uma história sobre eles. ↩︎
  22. Na qualidade de tradutora e feminista, me oponho pessoalmente a essa comparação. Se acreditamos no aspecto compulsório e intrinsecamente violento que a heterossexualidade representa às mulheres, romantizando situações de abuso e mantendo laços de amor entre o povo dominado (mulheres) e a classe que conscientemente domina (homens), não existe comparação possível entre a dissociação vivida no interior do romantismo heterossexual e a vivência de mulheres que centram sua existência no amor a outras mulheres. ↩︎
  23. Kathleen Barry, ’Sadomasochism’: The New Backlash to Feminism, Trivia: A Journal of Ideas 1 (Fall 1982): 86-87. ↩︎
  24. Ver Jean Bethke Elshtain, “Feminists Against the Family”, The Nation, 17 de novembro de 1979, p.497. Cito Elshtain pois é de grande importância distinguirmos boas e más críticas a “o pessoal é político”, sendo a crítica de Elshtain deste último tipo. Sua crítica pode ser resumida em suas próprias palavras: Percebe-se que a reivindicação não é de que pessoal e político sejam interrelacionados de maneira importante e fascinante, que ainda não foram completamente explorados por terem sido encobertas pelo patriarcado; nem se trata de dizer que pessoal e político possam ser examinados de maneira frutífera enquanto análogos sob certos prismas de privilégio e poder, e sim quer dizer que o pessoal é o político. (p.497) Não é outra coisa, mas má fé criticar um adágio abreviado por não abarcar as complexidades que Elshtain procura esmiuçar. Será que Elshtain acredita seriamente que feministas que partem desse adágio para reflexões mais aprofundadas são simplórias reducionistas? É óbvio que muitas feministas compreendem a multidimensionalidade de “o pessoal é político”. Por anos, muitas de nós entendemos essa complexidade. E é exatamente porque entendemos que podemos partir para o tipo de análise particular que temos feito. A afirmação de que “o pessoal é político” pode ser comparada à metáfora que sugere uma análise, mas que não pode ser reduzida a isso. Ela é pensada para ser levada a sério, mas não de maneira reducionista. Quando alguém diz que ficou “na sarjeta”, nós não presumimos uma redução literal a essas palavras. Em vez disso, compreendemos que uma situação pode ser elucidada, através de palavras, pela comparação com outra. Não estou dizendo que “o pessoal é político” seja uma metáfora. Sustento, porém, que seja semelhante a uma metáfora pela analogia que possibilita, tanto para exprimir semelhança quanto para exprimir diferença entre situações reais, e pelo fato de que não podemos lê-la de maneira reducionista.

    Como Anne Koedt escreveu em seu ensaio “Lesbianidade e Feminismo”, em uma clássica antologia feminsita radical: “a genial originalidade desta frase é a de ter aberto as vidas privadas das mulheres à análise política. Antes disso, o isolamento das mulheres umas das outras havia sido alcançado rotulando a experiência feminina como “pessoal”. As mulheres podiam, portanto, ser mantidas afastadas da possibilidade de verem a opressão comum causada pelos homens. Todavia, abrir as vidas das mulheres à análise política também resultou em um uso equivocado da frase. Se, por um lado, é verdade que há implicações políticas em todos os aspectos da vivência feminina, não deve ser consequência que a vida das mulheres se torne propriedade política do movimento feminista” (Anne Koedt, « Lesbianism and Feminism, » in Radical Feminism ed. Anne Koedt, Ellen Levine, and Anita Rapone [New York: Quadrangle/New York Times Book Co., 1973, p. 255) Koedt escreveu tais palavras em 1971, ainda que Elshtain não tenha qualquer familiaridade com elas. Poderia se pensar que Elshtain foi a primeira a imaginar que “o pessoal é político” poderia ser pervertido. ↩︎
  25. Thomas J. Cottle, “Our Soul-Barig Orgy Destroys the
    Private Self”
    , Psychology Today (outubro de 1975): 22. ↩︎
  26. Correspondência pessoal para Janice Raymond, 1978. ↩︎
  27. Citado em Paula Caplan, Barriers Between Women (Nova York: SP Medical and Scientific Books, 1981), pp. 125-26. ↩︎
  28. Andrea Dworkin, Right-Wing Women (Nova York: Perigee, 1983), p. 227. ↩︎
  29.  Judy Foreman, ”Men Are Resisting Sweeping Changes”, Boston Globe, 23 de dezembro de 1980. ‘Os maridos de hoje, de acordo com quatro novos estudos publicitários e algumas novas pesquisas acadêmicas, estão assumindo mais das tarefas domésticas do que costumavam – embora ainda menos da metade da carga de trabalho – e estão odiando cada minuto disso. Quando os maridos compartilham a carga de trabalho doméstico, quase sempre é apenas quando estão casados com mulheres que trabalham em tempo integral no mercado de trabalho remunerado. … Não é o mero número de horas dedicadas ao trabalho doméstico, mas sim a contínua desigualdade da carga que causa mais estresse para casais que trabalham’, diz o pesquisador de Wellesley, Joseph Pleck. … um novo estudo de Pleck mostra que ‘o tempo total de trabalho dos homens, combinando tanto o trabalho remunerado quanto o doméstico, (na verdade) diminui quando suas esposas estão empregadas’” (pp. 19, 21). ↩︎
  30.  Shulamith Firestone, A Dialética do Sexo (New York: Morrow, 1970), p. 168. ↩︎
  31.  Firestone, “Dialética”, pp. 166–67. ↩︎
  32. John Stoltenberg, “Sadomasochism: Eroticized Violence, Eroticized Powerlessness,” in Against Sadomasochism, ed. Robin Ruth Linden et al. (East Palo Alto, Califórnia: Frog in the Well, 1982), p. 125. ↩︎
  33.  Stoltenberg, “Sadomasochism,” p. 127. ↩︎
  34.   Stoltenberg, “Sadomasochism,” p. 128. ↩︎
  35.  Dworkin, Right-Wing Women, p. 52. ↩︎
  36.  Dworkin, Right-Wing Women, p. 52. ↩︎
  37.  Hilde Hein, “Sadomasochism and the Liberal Tradition,” in Linden, Against Sadomasochism, p. 88. ↩︎
  38.  Ver Raymond, Transsexual Empire, esp. pp. 175–77 on “‘Repressive Tolerance’ and Sensitivity.” ↩︎
  39.  Herbert Marcuse, “Repressive Tolerance,” in Robert Paul Wolff, Barrington Moore, Jr., and Herbert Marcuse, A Critique of Pure Tolerance (Boston: Beacon, 1965), p. 82. ↩︎
  40.  Joreen, “The Tyranny of Structurelessness,” in Koedt, Levine, and Rapone, Radical Feminism, p. 287. ↩︎
  41.  Alice Walker, “One Child of One’s Own,” in In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose (New York: Harcourt, 1983), p. 379. ↩︎
  42.  Cicero, De Amicitia (On Friendship) 1.85, trans. and intro. Harry G. Edinger (New York: Bobbs-Merrill, 1967), p. 73.  ↩︎
  43.  Correspondência pessoal, Julie Melrose para Janice Raymond, 23 de Maio de 1984. ↩︎
  44.  Joseph P. Lash, Helen e a Professora: A História de Helen Keller e Anne Sullivan Macy (Nova York: Delacorte, 1980), p. 332. ↩︎
  45.  Lash, “Helen e a Professora”, p. 295. ↩︎
  46.  Virginia Woolf, Um Quarto Só Seu (Nova York: Harcourt, 1929), p. 86. ↩︎
  47.  Freud citado em Daly, Pure Lust, p. 250. ↩︎
  48.  Daly, Pure Lust, p. 251. ↩︎
  49.  Correspondência pessoal, Julie Melrose para Janice Raymond. ↩︎
  50.  Correspondência pessoal, Denice Yanni to Janice Raymond, April 1984. ↩︎
  51.  Dworkin, Right-Wing Women, p. 159. ↩︎
  52.  Dworkin, Right-Wing Women, p. 25. ↩︎
  53.  Simone de Beauvoir, The Second Sex, trans. and ed. H.M.Parshley (New York: Bantam, 1952), p. 307. ↩︎
  54.  Tania Modleski, Loving with a Vengeance: Mass-Produced Fantasies for Women (Hamden, Conn.: Archon, 1982), p. 88. ↩︎
  55.  Daly, Pure Lust, esp. pp. 232–35. ↩︎
  56.  Elizabeth Janeway, The Powers of the Weak (New York: Knopf, 1980), p. 144. ↩︎
  57.  Como Mary Daly apontou há muito tempo, “castrar” essencialmente significa privar de poder, potência, criatividade e habilidade de comunicação. ↩︎
  58.  Barry, Female Sexual Slavery (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall, 1979), p. 35. ↩︎
  59.  Alice Walker, “To the Black Scholar,” in In Search of Our Mothers’ Gardens, p. 322. ↩︎
  60.  Adrienne Rich, Of Woman Born (New York: Norton, 1976), p. 226. ↩︎
  61.  Nancy Richard, “Mothers and Daughters” (Advanced Seminar Paper in Women’s Studies. University of Massachusetts, Fall 1982), p. 1. ↩︎
  62.  Não estou dizendo que esse é o único legado que as mães deixam para as filhas. Existem muitas outras tradições fortalecedoras que todo tipo de mãe deixou para todo tipo de filha. Este ponto, espero, é óbvio em outros exemplos ao longo deste livro. Estou tentando retratar, neste capítulo, a interconexão mãe-filha no contexto de como ela funcionou como um obstáculo para a amizade feminina. Certamente, nem sempre, ou mesmo principalmente, funcionou dessa maneira. Mas aconteceu com frequência suficiente para justificar a análise. ↩︎
  63.  Richard, “Mothers and Daughters,” p. 1. ↩︎
  64.  Hannah Arendt, The Life of the Mind (New York: Harcourt, 1978); ver especialmente vol. 1, “Thinking.” ↩︎
  65.  Louise Bernikow, Among Women (New York: Harmony, 1980), p. 66. ↩︎
  66.  Colette, Earthly Paradise, ed. Robert Phelps (New York: Farrar, 1966), pp. 35–36. ↩︎
  67.  Colette, Break of Day (London: Secker and Warburg, 1961), p. 6. ↩︎
  68.  Richard, “Mothers and Daughters,” p. 12. ↩︎
  69.  Correspondência pessoal, Denice Yanni para Janice Raymond. ↩︎
  70.  Correspondência pessoal, Denice Yanni para Janice Raymond. ↩︎
  71.   Daly, Gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism (Boston: Beacon, 1978), p. 9. ↩︎
  72.  Barry, “Sadomasochism”, p. 81. ↩︎
  73.  Friedrich Nietzsche, Beyond Good and Evil, trans. Walter Kaufmann (New York: Vintage, 1966), pt. 4, 1.169. ↩︎
  74.  Lifton, Thought Reform, p. 427. ↩︎
  75.  Esta é uma frase de Christine Delphy. Ver “The Main Enemy,” in Close to Home: A Materialist Analysis of Women’s Oppression, trans. and ed. Diana Leonard (Amherst: University of Massachusetts Press, 1984), pp. 57–77. ↩︎
  76.  Arendt, “On Humanity in Dark Times,” pp. 16–17. ↩︎
  77.  Patricia Hynes, “On ‘Racism and Writing,” Sinister Wisdom 15 (Fall 1980): 105. ↩︎
  78.  Hynes, “On ‘Racism and Writing,” p. 108. ↩︎
  79.  Lucy Dawidowich, The Holocaust and the Historians (Cambridge: Harvard University Press, 1981), pp. 13–14. ↩︎
  80.  Bonnie Atkins (Feminist Theory class paper, University of Massachusetts, Fall 1983). ↩︎
  81.   Walker, “One Child of One’s Own,” in In Search of Our Mothers’ Gardens, p. 379. ↩︎
  82.  Walker, “One Child,” p. 379. ↩︎
  83.  Walker, “One Child,” pp. 379–80. ↩︎
  84.  Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women (New York: Perigee, 1981), p. 217. ↩︎
  85.  Paul Tillich, Love, Power, and justice (London: Oxford University Press, 1954), p. 40. ↩︎
  86.  Não estou dizendo que não houve coletivos bem-sucedidos. Estou ciente de que alguns coletivos conseguiram evitar os problemas dos quais estou falando, mas esses são exceções, não a regra. Não há um padrão normativo, portanto, de coletivismo positivo que me faça acreditar que os coletivos sejam tudo o que se supõe que sejam, ou que sejam a alternativa para estruturas em que autoridade e responsabilidade são delineadas. ↩︎
  87.  Sherry McCoy and Maureen Hicks, “A Psychological Retrospective on Power in the Contemporary LesbianFeminist Community,” Frontiers: A Journal of Women’s Studies 4 (Fall 1976):68. ↩︎
  88.  McCoy and Hicks, “Psychological Retrospective,” pp. 66–67. ↩︎
  89.  Joreen, “The Tyranny of Structurelessness,” in Koedt, Levine, and Rapone, Radical Feminism. ↩︎
  90.  McCoy and Hicks, “Psychological Retrospective,” p. 68. ↩︎
  91.  McCoy and Hicks, “Psychological Retrospective,” p. 68. ↩︎
  92.  Daly, Pure Lust, p. 112. ↩︎
  93.  Dworkin, Pornography, p. 67. ↩︎
  94.  Renate Duelli Klein, “Rethinking Sisterhood: Unity in Diversity,” editorial, Women’s Studies International Forum 8 (1985):iv. ↩︎
  95.  Daly, Pure Lust, p. 261. ↩︎
  96.  Walker, “The Civil Rights Movement: What Good Was It?” in In Search of Our Mothers’ Gardens, pp. 125–26. ↩︎
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Traduções

O sexo cotidiano: coerção e consentimento

Por Sheila Jeffreys, traduzido livremente de Penile Imperialism.


Thérèse e Edmondo Morbilli, por Edgar Degas (1865)

O direito sexual masculino se expressa mais claramente no casamento e na convivência heterossexual. Através das instituições da heterossexualidade e do casamento em todas as suas formas, desde a óbvia escravidão sexual até a “união estável” e as uniões mais informais, os homens adquirem o direito de acesso sexual constante, bem como o controle da reprodução e cuidado infantil e do trabalho doméstico não remunerado. Em alguns países, os maridos não têm mais a propriedade total dos corpos de suas esposas e o direito de fazer o que quiserem com eles, embora isso ainda persista em muitas jurisdições. No Reino Unido, por exemplo, o estupro no casamento é agora um crime, mas o contrato não escrito que está na base do casamento é de propriedade. Este contrato era claro na lei do século XIX e fez com que as feministas questionassem se havia alguma diferença significativa entre o status das esposas e o dos escravos.

Argumentarei que, embora a maioria das mulheres no casamento e em relacionamentos heterossexuais agora tenham o direito de acusar seus parceiros de estupro, o direito do sexo masculino, ou direito conjugal, como era chamado na lei, ainda permanece. Este capítulo trata dos encontros sexuais que geralmente não são chamados de estupro, mas sexo indesejado ou coercitivo ou, por serem tão normativos, sexo “cotidiano”. A relação de poder de dominação masculina e subordinação feminina constrói o sexo que acontece nas relações heterossexuais e o exercício de diversas formas de força garantem que as mulheres não tenham direito à autodeterminação em relação aos seus corpos. O escopo deste capítulo é limitado aos ‘direitos conjugais’ na cultura dominante do Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, mas já escrevi sobre esse problema em outros países e regimes religiosos em outros lugares (Jeffreys, 2012a).

A origem do direito do sexo masculino no casamento

As feministas do século XIX escreveram poderosamente sobre como o status das mulheres casadas se assemelhava ao dos escravos (Thompson e Wheeler, 1970, publicado originalmente em 1825). Na lei, as mulheres não tinham o direito de recusar o uso sexual, não tinham direito a qualquer liberdade de movimento sem o consentimento de seus maridos, a possuir dinheiro ou ferramentas de uma profissão ou à guarda dos filhos. Como diz Carole Pateman:

Até o final do século XIX, a posição legal e civil de uma esposa assemelhava-se à de uma escrava. Pela doutrina legal comum do casamento, uma esposa, como um escravo, estava civilmente morta (Pateman, 1988: 119).

Os direitos sexuais do marido eram chamados de “direitos conjugais” na lei. Eles foram descritos pelo jurista Lord Hale em 1778, 

“o marido não pode ser culpado de estupro cometido por si mesmo em sua esposa legítima, pois pelo consentimento e contrato matrimonial, a esposa se deu a ele neste sentido” (citado em Pateman, Ibid: 123).

De fato, como explica Pateman, até 1884, uma esposa poderia ser presa por recusar os direitos conjugais do marido. Ela afirma que 

“O direito conjugal do marido é o exemplo mais claro da maneira pela qual a origem moderna do direito sexual como direito político é traduzida pelo contrato de casamento ao direito de cada membro da fraternidade na vida cotidiana” (Ibid: 123).

William Thompson e Anna Wheeler, em seu manifesto feminista de 1825, procuraram explicar a condição de escravas das mulheres no casamento e como isso diferia de outras formas de escravidão e outras formas de trabalho, dizendo que os desejos sexuais dos homens os levavam a instituir “estabelecimentos de reprodução isolados, chamados de vida conjugal”, em vez de usar as mulheres apenas como trabalhadoras (Ibid: 123). A penetração vaginal de uma mulher é tão central para o casamento heterossexual, por exemplo, que a não consumação, como é chamada, ainda é uma base para a anulação (GOV.UK n.d., acessado em 26 de abril de 2021).

Feministas fizeram campanha nas décadas de 1970 e 1980 para remover da lei a isenção de estupro conjugal, que dizia que um marido não poderia estuprar sua esposa. Tiveram sucesso no Reino Unido em 1992 como resultado de uma decisão da Câmara dos Lordes, em vez de uma mudança na lei (Hart, 2014). A isenção de estupro conjugal persistiu em metade dos países da Commonwealth Britânica até 2019, bem como em muitos outros países do mundo (Sisters for Change, 2019).

A partir desse momento, tanto na lei quanto na teoria, as mulheres no Reino Unido, que supostamente teriam sido libertadas pela revolução sexual, deveriam ser capazes de rejeitar o sexo indesejado nos relacionamentos. Mas, como veremos neste capítulo, o sexo indesejado continua a ser um problema muito sério e a erotização da igualdade não ocorreu. O que mudou é que as práticas mais abusivas e assassinas que foram popularizadas pelos movimentos de direitos sexuais dos homens e pela indústria do sexo foram disseminadas no sexo cotidiano de tal forma que as mulheres estão sendo extremamente pressionadas pelos homens  para permitir práticas como  sexo anal e estrangulamento em seus corpos. A marcha progressiva da ‘revolução sexual’ levou a uma situação em que muitas mulheres e jovens adolescentes em relações heterossexuais estão experimentando sérias dores e humilhações.

A heterossexualidade compulsória

O sexo só pode ser entendido como voluntário se as mulheres tiverem uma escolha real quanto a entrar em relacionamentos heterossexuais. As teóricas feministas lésbicas questionaram o grau de escolha que as mulheres são capazes de exercer e argumentaram que a heterossexualidade é uma instituição política que é social e politicamente construída e imposta às mulheres (Hawthorne, 1976/2019; Rich, 1980; Wilkinson e Kitzinger, 1993; Jeffreys, 1990). Ela é, como explicou Adrienne Rich,  “compulsória” (Rich, 1980). Essas teóricas argumentam que a heterossexualidade não é simplesmente um direcionamento do desejo sexual para o sexo oposto, uma orientação sexual. Em vez disso, é a base institucional da dominação masculina porque permite a extração de muitas formas de trabalho não remunerado para os homens: sexual, reprodutivo, emocional e trabalho doméstico. É funcional à dominação masculina também, mantendo mulheres individuais sob o controle de homens individuais e separadas umas das outras. É, dizem elas, imposta em vez de livremente escolhida. As alternativas, lesbianismo ou solteirice, são difamadas, punidas ou tornadas invisíveis ao serem excluídas da cultura e da sociedade. O movimento de libertação lésbica dos anos 1970 e 1980 permitiu que muitas mulheres deixassem a heterossexualidade e se tornassem lésbicas. Por várias décadas, uma cultura, teoria e comunidade positivamente lésbica existiram nas quais as lésbicas podiam encontrar irmandade e força  (Jeffreys, 2018a). Essa cultura e comunidade não existem mais para apoiar as mulheres no orgulho de serem lésbicas e o lesbianismo agora é comumente entendido como o resultado da biologia, o que não permite escolha (Ibid).

Durante a maior parte da história recente no ocidente, as mulheres foram obrigadas a entrar em casamentos ou outras formas de relacionamentos heterossexuais por uma necessidade econômica urgente. Embora o imperativo financeiro não seja mais tão poderoso, há muitas forças que encaminham as mulheres para a instituição da heterossexualidade, como ser criada em famílias heterossexuais onde qualquer alternativa provavelmente será excluída ou rejeitada, sistemas de educação que não mencionam a história, cultura ou existência de lésbicas, e a ausência de lesbianismo aberto entre professoras e outros possíveis modelos. As vantagens dos relacionamentos lésbicos não são divulgadas na educação sexual para crianças, como uma maior chance de compartilhamento de cuidados infantis e tarefas domésticas, evitando a violência masculina em casa, a falta de necessidade de contracepção, a maior possibilidade de prazer sexual com outras mulheres que entendem os corpos das mulheres e não são dedicadas apenas à sua própria satisfação. Os romances lésbicos não são estudados. Existem novas forças envolvidas em fazer o lesbianismo desaparecer e fazer com que uma nova geração de mulheres jovens evite a palavra lésbica (Morris, 2017). Por exemplo, jovens lésbicas estão sendo medicinalmente modificadas ao serem identificadas como meninos pelos médicos com a conivência do sistema escolar. Elas estão passando por uma ‘terapia de conversão’, como veremos em um capítulo posterior (Jeffreys, 2018a).

Este capítulo pressupõe que a heterossexualidade é uma instituição em que as mulheres não estão em posição de escolher livremente se desejam entrar ou rejeitar. Considerando que todas as forças e punições muito significativas das sociedades masculinas dominantes se juntam para forçar as mulheres à heterossexualidade, não é de surpreender que o sexo que ocorre nela muitas vezes não seja escolhido livremente ou adequado aos interesses das mulheres, mas imposto pela força. Ele ocorre, proeminentemente, em uma relação de poder.

Sexo pênis na vagina (piv)

O casamento é legalmente baseado na entrada do pênis na vagina. Essa forma de sexo, no entanto, tem muitas contra-indicações para as mulheres e poucas vantagens. As teóricas e pesquisadoras feministas postularam que o coito não é adequado para o prazer sexual das mulheres e apresenta problemas para a saúde e segurança das mulheres (Jeffreys, 1990; Dworkin, 1987). Uma pesquisa no Reino Unido descobriu que 80% das mulheres não conseguiam atingir o orgasmo apenas com essa prática (Delvin e Webber, 2017).

No entanto, o que Alex Comfort chamou de “o bom e velho casamento” ainda é a prática preferida dos homens e comumente vista como a essência do sexo. Pesquisadoras feministas têm procurado estabelecer por que o sexo com pênis na vagina sobreviveu como a forma primária e “natural” de se engajar em relações heterossexuais, apesar do fato de ser inadequado para o prazer das mulheres, requerer a tecnologização do corpo com contracepção, e ter o risco de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Elas examinaram as diferentes formas de força envolvidas para garantir que muitas mulheres deem aos homens acesso a seus corpos, por mais relutantes que estejam. Um estudo procurou entender por que coito continuou a ser o principal ato sexual, apesar de

os efeitos colaterais das formas mais eficazes de contracepção e das implicações sociais, psicológicas e de saúde da gravidez não planejada e indesejada ou do aborto

(Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 36).

Como explicam esses pesquisadores, a vagina é 

apresentada como a melhor parte do corpo da mulher para atender às necessidades sexuais do pênis. É um encaixe que foi ‘projetado’, os órgãos são ‘construídos para se prenderem uns aos outros’, e a prática é vista como mais natural do que o uso da boca ou da mão de uma mulher

(Ibid: 41).

A maioria das razões dadas pelas quais o sexo com pênis na vagina é natural são, dizem eles, biológicas ou procriativas. Tais razões não se relacionam, é claro, com o prazer sexual das mulheres. A pesquisa reconhece que muitas mulheres não têm escolha sobre permitir ou não o sexo na vagina por causa da violência e do controle masculino, mas se concentra nas forças mais sutis que induzem as mulheres a permitir que seus corpos sejam usados dessa maneira, “nosso interesse aqui é em entender mais sobre as normas que regem as relações sexuais em situações que não parecem envolver coerção direta” (Ibid: 37).

O modelo de consentimento

O sexo cotidiano que pode ser profundamente indesejado pelas mulheres, ou mesmo doloroso e angustiante, é justificado pela noção de ‘consentimento’. A própria ideia de que os encontros sexuais requerem ‘consentimento’, em vez de serem experiências de prazer mutuamente desejadas, torna clara a dinâmica de poder da heterossexualidade. Os homens heterossexuais não têm problema em saber se consentiram o uso de seus corpos por mulheres, porque a exigência de submeter seus corpos ao prazer de outro não existe para eles. No sexo heterossexual, espera-se que o homem inicie o sexo e que a mulher concorde ou discorde de seus avanços e demandas por meio do mecanismo de consentimento. Supõe-se que iniciação e consentimento sejam iguais, mas na verdade representam os comportamentos de dominação e submissão. Catharine MacKinnon rejeita a ideia de que o consentimento forneça qualquer tipo de proteção ou vantagem para as mulheres. Como ela explica:

O consentimento é supostamente a forma das mulheres controlarem a relação sexual, diferente mas igual à prática da iniciativa masculina. O homem propõe, a mulher dispõe. Até mesmo o ideal não é recíproco… esse modelo não imagina uma situação em que a mulher tenha controle ou escolhas a fazer.

(MacKinnon, 1989: 174)

Fora do contexto do sexo, o consentimento é o mecanismo que justifica a aplicação de um procedimento que pode colocar em risco a saúde e a vida; um comportamento que é arriscado. Assim, os formulários de consentimento são usados regularmente para cirurgias ou para práticas em que há risco de divulgação de informações confidenciais. O consentimento não é entendido como algo que ocorre entre iguais, mas como indício de desigualdade. Apesar disso, como explica Carole Pateman

[As] relações mais íntimas das mulheres com os homens são regidas pelo consentimento; as mulheres consentem com o casamento, e a relação sexual sem o consentimento da mulher constitui crime de estupro

(Pateman, 1989: 72).

Expliquei o problema com o conceito em 1993:

A ideia de consentimento implica em um modelo de sexualidade em que uma pessoa, geralmente homem, usa o corpo de outra pessoa que não está necessariamente interessada sexualmente e possivelmente relutante e angustiada, como um recurso sexual. É um modelo dominante/submisso e ativo/passivo… O consentimento é uma ferramenta para negociar a desigualdade nas relações heterossexuais. Espera-se que as mulheres tenham seus corpos usados, mas a ideia de consentimento faz com que esse uso e abuso pareçam justos e justificados.

(Jeffreys, 1993: 178)

O conceito de consentimento molda o sexo heterossexual. Espera-se que a mulher disponibilize seu corpo sem objeções para que um homem possa usá-lo para se satisfazer, mas seu próprio prazer e até mesmo sua presença psicológica não são necessários. Ela pode, como a literatura sexológica sugere, estar com a cabeça inteiramente em outro lugar. Ela pode estar lendo um livro durante o procedimento ou estar pintando as unhas dos pés (Jeffreys, 1990).

Um modelo de sexualidade que se baseia na noção de que uma pessoa tem a iniciativa e a outra pode apenas dar ou negar consentimento é profundamente desigual e simplesmente replica as relações de poder social de dominação masculina. No entanto, o conceito de consentimento forma a base das leis internacionais sobre estupro, agressão sexual e crimes sexuais contra menores de idade. A lei tanto replica esse modelo de desigualdade sexual quanto o promove e molda. A legislação atual do Reino Unido sobre estupro, a Lei de Ofensas Sexuais de 2003, é baseada em um modelo de iniciação/consentimento (Legislation.gov.uk, 2003). Na Seção 1, afirma que:

Uma pessoa (A) comete um delito se –

(a) ele penetra intencionalmente a vagina, o ânus ou a boca de outra pessoa (B) com seu pênis, e

(b) B não consente com a penetração, e 

(c) A não tem motivo razoável para acreditar que B consente.

Um outro problema com a legislação do Reino Unido é que ela continua a tradição dentro da dominação masculina de definir se uma mulher foi estuprada de acordo com o que acontece na cabeça de um homem, incluindo uma cláusula de ‘motivo razoável para acreditar’. A legislação revela a influência de um movimento feminista ao acrescentar a necessidade por parte do homem de tentar averiguar se a mulher que ele penetrou estava consentindo:

(2) Se uma convicção é justificável deve ser determinada tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo quaisquer passos que A tomou para verificar se B consente.

O conceito não apenas mede o que é um estupro muito mais pelo que um homem considera do que pelo que uma mulher experimentou, mas também define sexo aceitável como o que um homem faz a uma mulher, que pode ser totalmente passiva e desejar estar em outro lugar. Os sentimentos dela não entram na definição.

Fabricando o consentimento

As meninas e mulheres, membras da casta sexual subordinada, alvos da iniciativa sexual de membros da casta sexual superior, supostamente têm o direito de recusar. Mas esse direito de recusar ou aceitar o consentimento de uma mulher é construído a partir de sua posição nas relações de poder da dominação masculina. São muitas as razões pelas quais o consentimento de uma menina ou mulher não é livre e todas se relacionam com sua posição subordinada. Elas incluem como meninas e mulheres são treinadas para se curvarem aos homens, para não deixá-los irritados e para não se expressarem de forma assertiva perto de homens. Algumas das razões tradicionais pelas quais as mulheres não são iguais em relacionamentos heterossexuais podem ter sido um pouco amenizadas no Reino Unido nos últimos cinquenta anos, com o resultado de que as mulheres agora têm muito mais independência econômica. Muitas outras, no entanto, permanecem, como as formas pelas quais os homens mantêm o controle por meio da violência, ameaça ou as mais variadas formas de coerção. Na década de 1980, pesquisadoras feministas formularam um vasto entendimento das forças que estão envolvidas na construção do que a lei penal e os perpetradores masculinos entendem como consentimento, ou seja, a ausência de uma recusa direta por parte de uma mulher para permitir que seu corpo seja usado como um receptáculo.

O primeiro exemplo desse tipo de trabalho é a pesquisa de Diana Russell em seu livro de 1982, Rape in Marriage. Ela descobriu que, nos EUA, o estupro de esposas com força ou ameaça de violência era comum:

Em meu estudo financiado pelo governo federal… 14 por cento das mulheres que se casaram uma vez ou mais relataram ter sido estupradas por seus maridos

(Russell, 1982/1989: XXII).

É importante ressaltar que ela também prestou atenção às maneiras pelas quais as esposas foram forçadas a aceitar o acesso sexual de seus maridos, o que não se encaixava na definição usual de estupro e que as próprias esposas viam como consensual. As muitas razões que as mulheres deram para terem que ‘consentir’ podem ser resumidas em algumas categorias. Uma delas era que as mulheres sentiam que tinham que permitir o acesso sexual de seus maridos porque esse era seu dever de esposa, parte do contrato. Como uma esposa explicou:

Quando estou dormindo, não quero ser incomodada. Ele não me forçou, mas se eu não quisesse, ele faria de qualquer forma. Eu não gostei. Eu disse apenas ‘pode fazer, mas eu não estou no clima’

(Ibid: 82).

Outra queria agradar o marido:

Às vezes, meu marido quer fazer coisas que eu não quero fazer ou que são desconfortáveis para mim. Certas posições são desconfortáveis ou cansativas para mim, como ficar de pé. Não é forçado como estupro, mas às vezes, quando digo não, ele nunca me força, mas talvez eu faça mesmo assim para agradá-lo

(Ibid: 82).

Outro motivo era evitar discussões e a raiva do marido:

Eu simplesmente não queria fazer e ele queria, então fizemos sexo. Eu disse que não queria e não ajudei o sexo a acontecer, mas por outro lado, não fui forçada. Isso provavelmente acontece muito com pessoas casadas. (Você se sentiu forçada?) Sim, me senti forçada a fazer isso. Não fisicamente. Mas você não pode simplesmente começar a brigar com seu marido. Não estávamos nos comunicando bem. Era a noite de nosso casamento e eu estava muito, muito bêbada

(Ibid: 83).

A raiva de um marido podia ser expressa em retraimento emocional e as mulheres faziam questão de evitar isso:

Houve um número razoável (de experiências sexuais indesejadas) um ano antes de nos separarmos. Parei de querer fazer amor, e era uma pressão constante. (Força física?) Não, não houve coerção física; foi apenas retraimento emocional ou nenhum contato físico

(Ibid: 77).

Outra forma de força que o marido poderia exercer era a ameaça de infidelidade:

Eu estava cansada. Eu estava trabalhando muito. Eu queria dormir. Como ele é meu marido, não pude dizer não. Eu nunca disse ‘estou com dor de cabeça’ como as americanas, porque senão ele iria procurar em outro lugar

(Ibid: 83).

No final do século XX, as pesquisas feministas como a de Russell criaram uma compreensão das dinâmicas de poder nas relações heterossexuais e contribuíram para o sucesso de campanhas feministas em muitos países para criminalizar o estupro marital. Mas outras forças estavam trabalhando ao mesmo tempo para consolidar esse sexo de dominação masculina, incluindo a liberação das indústrias de prostituição e pornografia, a promoção de parafilias como BDSM (Bondage, Disciplina, Sadomasoquismo) e o apoio a essas práticas pelos profissionais da terapia sexual. A compreensão feminista que estava sendo construída com tanto cuidado não era páreo para essas forças. Apesar de toda a excelente pesquisa e campanha em torno da violência sexual, os muitos sucessos do Movimento de Libertação das Mulheres não mudaram a maneira como as mulheres eram forçadas a “consentir” ao sexo. O sexo como um direito legal do marido deu lugar ao sexo por “consentimento”.

A derrota do trabalho feminista ficou clara na pesquisa de Lynn Phillips com estudantes universitárias (Phillips, 2000). Ela entrevistou jovens estudantes, de 19 a 21 anos, que fizeram um curso de estudos feministas e aprenderam sobre a violência masculina. Se alguma mulher estivesse em posição de lutar contra o estupro, deveriam ser essas estudantes que estavam bem informadas e preparadas, mas elas sofreram estupros que não podiam nomear e muito sexo abusivo, violento e doloroso que não conseguiam evitar em seus relacionamentos sexuais cotidianos. Um aspecto importante da construção da sexualidade feminina que Lynn Phillips descobriu em suas entrevistas foi que as jovens praticavam atos sexuais com homens se guiando detalhadamente pelo que achavam que seus parceiros desejavam, e não por qualquer coisa que elas estivessem sentindo:

As participantes relataram repetidamente que suas decisões sobre como se apresentar fisicamente, como e quando fazer ruídos e como mover seus corpos foram determinadas muito menos por suas próprias sensações corporais do que por seus cálculos mentais do que os homens gostariam que eles fizessem

(Phillips , 2000: 108).

As universitárias descreveram em detalhes para Phillips as estratégias que usavam para sobreviver a experiências sexuais muito insatisfatórias com homens abusivos e indiferentes. Algumas estratégias foram adotadas para que o homem parasse sem ela precisar mostrar que não gostava do que ele estava fazendo.

Às vezes, demora demais… Então, eventualmente, finjo que não consigo manter os olhos abertos e que gostaria de poder, porque estou amando muito isso. Assim eu não firo os sentimentos dele… Dessa forma, eu não pareço frígida ou muito esquisita

(Ibid: 146).

Uma estudante fez um relato sobre quando estava sendo usada sexualmente, ela não queria transar, estava sentindo dor, ela chorou e ele não notou:

Então eu fiquei deitada embaixo dele, chorando, enquanto ele fazia. Eu não sentia que poderia dizer não, mas esperei que ele me visse chorando e simplesmente parasse, não sei, por culpa ou preocupação ou algo assim, talvez até pena. Ele não parou, claro. Ele simplesmente continuou e depois disse: ‘Você não gostou?’ E eu disse: ‘Sim, foi bom’

(Ibid: 145).

Um motivo pelo qual as alunas se sentiram compelidas a atender os homens foi o fato de que eles poderiam se tornar violentos se seus avanços fossem rejeitados:

Alguns caras ficam furiosos quando seus egos masculinos são feridos. Eu simplesmente não posso correr esse risco

(Ibid: 139).

Phillips descobriu que as universitárias reformulavam sua experiência sexual para que não tivessem que pensar em si mesmas como tendo sido estupradas, embora o que elas descrevessem muitas vezes se encaixasse na definição legal de agressão sexual. Ela diz que das 27 mulheres que descreveram experiências que envolveram violência e coerção, 25 delas – ou 93 por cento – não chamavam nenhuma de suas experiências de abuso ou vitimização. Em vez disso, recorreram a várias formas de assumir, elas mesmas, a responsabilidade pelo que os homens lhes fizeram ou, pelo menos, de sobreviver à violência. Elas fizeram muito esforço para ter uma resposta sexual ao serem usadas sexualmente, porque isso significaria que não foi estupro. Um jovem de 19 anos explicou:

Se eu pudesse apenas encontrar uma maneira de me excitar, saberia que estava envolvida e isso não seria realmente como um estupro

(Ibid: 144).

Uma jovem de 21 anos disse quase a mesma coisa:

Eu estava pensando que, se eu conseguisse me excitar, seria consensual, como uma boa experiência

mas isso foi em uma situação em que o homem a forçou violentamente à submissão:

Eu me envolvi em uma situação em que fui para o apartamento deste cara, e estávamos nos beijando e tal, mas eu não queria fazer sexo, mas ele sim. Foi uma luta longa e tudo mais. E ele me bateu e tudo, e então eu pensei: ‘Ok, tudo bem’. Eu cedi, sabe, porque se eu realmente tentasse lutar e acabasse sendo espancada, o que eu diria para a minha mãe?

(Ibid: 143).

A mesma mulher aprendeu uma técnica quando criança para fazer um homem que a estava assediando sexualmente se apressar e acabar logo com isso:

Eu aprendi bem cedo, por volta dos treze anos, eu acho, a fazer o boquete perfeito. Eu também sei fazer a punheta perfeita, para que eu possa tirar os homens de cima de mim e acabar logo com isso. Dessa forma, estou totalmente no controle. Porque uma vez que eles gozem, então você está livre… Com sorte, se você jogar as cartas certas, eles simplesmente irão cair no sono

(Ibid: 141).

Ela aprendeu a amenizar as piores condições do uso sexual que fazem do seu corpo, mas não foi capaz de recusar.

As experiências de violência sexual que as mulheres se recusaram a ver como estupro incluíram a seguinte situação em que uma mulher foi asfixiada pela mão de um homem e sofreu fortes dores quando foi penetrada pela primeira vez:

Eu pensei, estou pronta para fazer isso… Ele estava, tipo, me ignorando completamente, e nós não estávamos mais nos agarrando (ela chora e soluça). Ele estava apenas enfiando o pau dentro de mim, e tampando a minha boca com a mão, então eu não podia falar nada… Só posso dizer que nunca senti tanta dor na minha vida… Depois que ele gozou, o que não demorou muito, graças a Deus, ele apenas rolou para o lado, parecendo tão orgulhoso de si mesmo. Ele me disse: ‘Você quer que eu te acompanhe até sua casa?’

(Ibidem: 94).

Outra mulher descreveu uma agressão sexual dolorosa que ela se recusou a chamar de estupro:

Eu penso nisso principalmente como uma noite muito ruim. Se você está me perguntando se eu acho que fui estuprada, não, eu realmente não chamaria isso assim. Quero dizer, fui forçada, sim, e me machuquei, e as coisas não saíram como eu queria, mas eu estava no carro com ele. Foi tudo muito complicado. Quero dizer, eu estava lá, poderia ter escolhido não ir. Então não, eu realmente não chamo isso de estupro.

(Ibid: 154).

As jovens que sofrem essas agressões sexuais aprenderam a crítica feminista da violência masculina em seus cursos feministas, mas, no caso dessa mulher, o ensino permitiu que ela se diferenciasse das mulheres que ela via como verdadeiras vítimas, em vez de se ver como uma:

Eu só agradeço a Deus por não ter passado por algo tão extremo quanto as mulheres que são abusadas… Nós estudamos isso nas aulas de feminismo. Às vezes eu apanhava e era humilhada pelo meu namorado, mas não era espancada como muitas mulheres são.

(Ibid: 158)

Uma razão dada para negar o estupro foi que admitir ser uma vítima era humilhante:

Se eu me considerasse uma vítima, seria como se eu fosse apenas uma garotinha burra que perdeu a cabeça. Na época, eu queria provar para mim mesma o quão adulta eu era, não queria nem pensar que poderia ter sofrido abuso … porque então eu seria ingênua e estúpida.

(Ibid: 95)

Em outro estudo, as pesquisadoras feministas descobriram que a principal razão pela qual as mulheres eram usadas sexualmente quando não queriam era a pressão social para agradar aos homens ou para não parecer frígida. Uma mulher falou sobre se sentir forçada a dizer sim por medo de ser “rotulada e julgada (como frígida) se dissesse ‘não'” (Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 43). “É isso que devo fazer, é isso que preciso fazer para manter o respeito ou a amizade deles.” Outra forma de pressão que encontraram em suas entrevistas foi a necessidade das mulheres de “agradar sexualmente seus homens”, pelo menos estando sexualmente ‘disponível’ ou enfrentar a “consequência previsível de que ele procurará em outro lugar para ter suas ‘necessidades sexuais’ atendidas”. As pesquisadoras comentam:

Se o papel da mulher nas relações heterossexuais é construído em torno da necessidade de agradar seus parceiros masculinos, então a relação sexual pode não ser uma escolha real

(Ibid: 48).

É provável que todas as experiências angustiantes aqui descritas tenham sido vistas pelas mulheres como ‘consensuais’.

O ensino do consentimento

A falsa ideia de que o ‘consentimento’ indica a atividade sexual desejada está por trás do ‘treinamento de consentimento’, que é a solução preferida por governos, universidades e outras instituições para lidar com o problema do assédio sexual. No treinamento de consentimento, homens e mulheres aprendem a buscar e dar um consentimento inequívoco antes que a atividade sexual ocorra. O governo do Reino Unido, por exemplo, lançou uma campanha “para ajudar a combater o estupro, educando jovens homens sobre a necessidade de consentimento antes do sexo” em 2006. O jornal The Guardian citou uma porta-voz do Ministério do Interior dizendo: “Dar consentimento é uma ação, não uma omissão, e cabe a todos garantir que o parceiro concorde com a atividade sexual” (Travis, 2006). Mas, é claro, embora o ‘consentimento’ possa ser ativo, a mulher que consente pode se sentir forçada a concordar em ser usada passivamente ou a simular entusiasmo. O conceito de consentimento usado por tais campanhas é notavelmente simplista. A União Nacional dos Estudantes (NUS) do Reino Unido lançou uma campanha com objetivo semelhante em 2015, chamada Eu amo o consentimento:

A campanha das mulheres da NUS e a Sexpression UK se uniram para criar um programa educacional de consentimento que visa facilitar conversas e campanhas positivas, informadas e inclusivas sobre consentimento em universidades e faculdades em todo o Reino Unido.

A definição de consentimento do programa é: “Uma pessoa consente se concorda por escolha própria e tem a liberdade e capacidade de fazer essa escolha” (NUS, 2015, ênfase no original). O treinamento de consentimento é onipresente, mas falho pois assume a iniciativa sexual masculina e que as relações entre homens e mulheres são baseadas na igualdade, em vez das relações de poder.

Uma notável pesquisa de Celia Kitzinger e Hannah Frith, de 1999, procura mostrar por que o treinamento de consentimento pode não funcionar (Kitzinger e Frith, 1999). Elas apontam que a “teoria da má comunicação”, que fundamenta esses programas, não descreve com precisão o que acontece entre homens e mulheres na atividade sexual. Essa teoria acredita que as mulheres não são suficientemente incisivas ao expressar seu “não” ao sexo e que os homens são facilmente confundidos em pensar que podem prosseguir quando uma mulher não deseja fazê-lo. Elas explicam que

o ensino de “habilidades de recusa” é comum a muitos programas de prevenção de estupro em encontros, treinamentos de assertividade e habilidades sociais para jovens mulheres. A suposição subjacente a esses programas é que as jovens mulheres acham difícil recusar a atividade sexual indesejada e um objetivo comum é ensinar as mulheres a dizer “não”, de forma clara, direta e sem desculpas

(Kitzinger e Frith, 1999: 293).

Boas pesquisas feministas qualitativas mostram as falhas na teoria da má comunicação, apontando que formas complexas de entendimento social estão em jogo quando as pessoas tomam essas decisões, que podem, na verdade, ser prejudicadas pela exigência de que as mulheres rejeitem de modo duro e explícito (Beres, 2020). O problema mais grave com essa teoria é que ela culpa as mulheres pela violência sexual que sofrem, sugerindo que tudo o que elas precisam fazer para evitar a agressão é tornar sua recusa mais clara. Pode ser por essa razão que o treinamento de consentimento é o preferido como resposta à violência sexual, porque culpa as vítimas, as mulheres, sem exigir nenhuma mudança no comportamento dos perpetradores, os homens.

Kitzinger e Frith utilizaram a análise da conversa (AC) para examinar a maneira como os jovens falam sobre consentimento. Elas apontam que

os resultados empíricos da AC demonstram que as recusas são interações conversacionais complexas e finamente organizadas, e não são adequadamente resumidas pelo conselho de apenas dizer não

(Kitzinger e Frith, 1999:294).

Elas observam que em interações cotidianas, tanto homens quanto mulheres não usam recusas diretas quando solicitados a fazer algo, porque isso é ofensivo. Eles tendem a usar atrasos, hesitações e desculpas em vez disso. A análise da conversa depende da atenção cuidadosa aos pequenos detalhes da fala, como breves pausas, hesitações, falsos começos e autocorreções, bem como “paliativos” – frases usadas para “acalmar” um homem para que ele não se sinta tão ofendido. Além disso, eles apontam que dizer simplesmente “não” sem prestar atenção às regras sociais que geralmente se aplicam em todas as situações pode colocar as mulheres em perigo, causando uma reação de raiva em um homem que interpreta a recusa como grosseria. A teoria da má comunicação oferece uma forma de defesa para estupradores no tribunal: eles podem argumentar que não entenderam porque a mulher não sinalizou sua falta de consentimento com bastante clareza. Mas isso não ajuda as mulheres.

Kitzinger e Frith explicam que “apenas dizer não” é visto como grosseria e “as mulheres jovens sabem disso” (Ibid: 305). Os programas de prevenção de estupro que insistem em ‘apenas dizer não’, ‘são profundamente problemáticos na medida em que ignoram e anulam formas culturalmente normativas de indicar recusa’ (Ibid). A evidência, dizem elas, ‘é que as pessoas geralmente ouvem recusas sem que a palavra ‘não’ seja necessariamente pronunciada” (Ibid). Elas concluem que “a raiz do problema não é que os homens não entendam as recusas sexuais, mas que eles não gostam delas” (Ibid: 310). Elas fundamentam essa ideia com pesquisas que registram as reações de meninos adolescentes e homens jovens que foram questionados sobre quais seriam suas reações se as mulheres os recusassem. A agressividade sexual (que apresentavam) era bastante extrema”. Elas concluíram que “o problema da coerção sexual não pode ser solucionado pela mudança do modo com que as mulheres falam” (Ibid: 311).

A diferença do desejo sexual entre homens e mulheres

A noção de ‘consentimento’ é necessária por causa do que tem sido chamado pelos sexólogos de ‘diferença do desejo’. Talvez não fosse necessário se não houvesse um problema de imposição de algo indesejado a parceiros relutantes, se as mulheres estivessem tão entusiasmadas em serem penetradas quanto os homens estavam em penetrá-las. Sexólogos no início do século XX buscaram descrever, quantificar e curar o que eles viam como o principal impedimento ao direito sexual masculino – a falta de interesse ou recusa das mulheres em responder com entusiasmo suficiente a serem penetradas pelos homens. Como vimos no Capítulo 1, eles inventaram uma série de termos para descrever o problema enquanto buscavam por uma solução.

A resistência das mulheres era vista como política e a derrota dessa resistência era a principal tarefa da ciência do sexo e da prática da terapia sexual ao longo do século XX. As demandas importunas dos homens, por outro lado, eram vistas como naturais e não eram questionadas. No século XXI, sexólogos inventaram um novo termo para descrever o que antes era chamado de frigidez, “diferença de desejo”. A “diferença” é atribuída às mulheres. Os homens não precisam mudar, mas a falta de interesse das mulheres deve ser medicalizada e tratada. As mulheres não conseguem simplesmente rejeitar o sexo que não desejam, porque o direito sexual masculino exige que elas concedam acesso.

Na pesquisa sobre “Negociação de diferenças de desejo sexual para mulheres em relacionamentos de parceria”, uma entrevistada explica que a “negociação” é um problema relacionado ao direito sexual masculino, já que as parceiras femininas não fazem as mesmas exigências. Ela também explica que o tipo de pressão que os homens colocam sobre as mulheres para que elas permitam o uso de seus corpos não existe em relacionamentos lésbicos:

Eu achei que com os caras [o sexo] é algo que eles querem imediatamente, mas nas minhas experiências com as garotas eu sinto que não há pressão alguma. Com homens, sempre senti essa pressão para ter sexo, enquanto com minha namorada nunca tive essa pressão

(Fahs, Swank e Shambe, 2020:233).

As pesquisadoras concluem que as relações de poder de dominação masculina persistem dentro de relacionamentos heterossexuais, apesar dos avanços que o movimento feminista alcançou para as mulheres na esfera pública. No âmbito privado/doméstico, eles afirmam que

as mulheres se sentem “presas” em estereótipos sexuais e dinâmicas de poder que não necessariamente as beneficiam, mesmo quando expressam consciência sobre o dano dessas normas. Em outras palavras, as mulheres continuam suportando o sexo pelo qual não sentem entusiasmo ou “aguentando” o sexo que parece chato ou pouco recíproco, mesmo quando estão obtendo progressos em outros aspectos de suas vidas

(Ibid: 236).

A forma como o que é chamado de “diferença de desejo” afeta as mulheres é explorada em uma pesquisa na qual dez mulheres em relacionamentos de longo prazo foram entrevistadas sobre sua prática sexual (Hayfield e Clarke, 2012). As autoras apontam que o problema com a forma como a falta de interesse das mulheres pelo sexo é apresentada é que ela vê a “falta de desejo” das mulheres como problemática em vez de apontar o “desejo excessivo” dos homens como um problema (Ibid: 68). Algumas das mulheres entrevistadas tinham desejo sexual por seus parceiros, mas a maioria não tinha. Uma comentou “Nunca me vi com um impulso sexual, muito raramente”, e outra afirmou “Não acho que eu tenha um impulso sexual muito alto”. Ambas essas mulheres e muitas das outras, explicam as pesquisadoras, tinham “pouco interesse em sexo”, mas todas sentiam que o interesse sexual era desejável e lamentavam a sua falta. As pesquisadoras apontam que há um imperativo coital que posiciona o sexo de pênis na vagina como essencial para os homens e algo em torno do qual as mulheres devem ajustar suas vidas. Isso é acompanhado por um “imperativo de orgasmo”. Como Gavey, McPhillips e Braun acima, elas apontam que a exigência de fazer sexo com pênis na vagina sobrepõe todo conhecimento de quão problemático pode ser para a saúde das mulheres, embora

a relação sexual com penetração vaginal apresenta riscos diretos (por exemplo, ISTs, HIV/AIDS, gravidez indesejada) e riscos indiretos (por exemplo, câncer cervical causado por ISTs específicas, efeitos colaterais de contraceptivos, consequências sociais e psicológicos de gravidez indesejada)

(Ibid: 71).

Elas expressam sua perplexidade de que

existe uma expectativa de que as mulheres (e homens) participem regularmente em um ato, mesmo quando ele tem o potencial de prejudicar sua saúde e bem-estar, e quando pode não ser prazeroso para ambas as partes envolvidas.

As entrevistadas explicaram que fizeram uma ‘escolha’ “de estar passivamente presentes no sexo para satisfazer as ‘necessidades’ de seus parceiros” (Ibid).

Terapia sexual

As duas principais forças envolvidas na construção do sexo cotidiano são a pornografia e a terapia sexual. Essas duas indústrias estão interligadas e abraçam os mesmos valores na aplicação do direito sexual masculino e da obediência feminina. Como resultado da “diferença do desejo”, é provável que muitas mulheres prefiram ler um bom livro ou terminar um quebra-cabeça em vez de buscar conexão sexual. Para obter seus direitos sexuais, então, os homens devem se impor às mulheres. É trabalho das mulheres negociar a iniciativa sexual dos homens, seja ao caminhar na rua ou no local de trabalho, onde pode ser chamado de “assédio sexual”, ou em relacionamentos. Quando essa iniciativa acontece em casa, nunca é chamada de assédio, embora haja muitas evidências de pesquisas feministas e literatura de aconselhamento sexual que as mulheres o experimentam dessa forma. As mulheres em relacionamentos heterossexuais provavelmente serão o objeto da iniciativa sexual dos homens e têm a escolha de cumprir ou pensar em uma razão para recusar. As dinâmicas de poder do sexo heterossexual são tais que simplesmente dizer que não estão com vontade não é suficiente. Uma tarefa central dos terapeutas sexuais é garantir que as mulheres reajam adequadamente às demandas sexuais dos homens em vez de buscar um hobby mais interessante.

Um exemplo do site de aconselhamento psicológico online, Psychcentral, ilustra isso bem. Em 2017, uma mulher escreveu ao site explicando que estava em um relacionamento de longo prazo com um homem, tinha quatro filhos e sua vida sexual tinha sido boa, mas

[Naquela noite] eu estava cansada e queria assistir um pouco de TV e ir dormir, meu namorado queria fazer sexo, e quando eu disse que não estava com vontade… ele ficou violento e tentou me dar um tapa na cara. E fez algum comentário do tipo ‘você vai pagar por isso’, brincando ou não

(Randle, 2019).

Ela diz que “fazem sexo com bastante frequência”, mas quando ela não “está a fim” uma vez ou outra, ele “fica bravo ou violento”. O conselho que ela recebe é simpático à situação do marido: “Ele fica bravo porque se sente rejeitado. O sexo aparentemente é muito importante para ele”. A terapeuta não demonstra preocupação com a violência e não dá conselhos sobre como a mulher pode manter a si mesma e seus filhos em segurança. Em vez disso, ela aconselha a mulher a satisfazer as demandas sexuais do homem, desde que sejam “razoáveis”: “Você tem que aprender a garantir o atendimento de uma quantidade razoável da necessidade dele, mas ele não pode esperar que você atenda 100% do desejo sexual dele”. A tarefa da terapia sexual aqui é claramente defender o direito sexual masculino. A terapia sexual é divulgada em revistas e livros para mulheres, bem como em tratamento individual. A terapeuta sexual mais conhecida na Austrália é Bettina Arndt.

A ‘diferença de desejo’ e mulheres idosas

Esse disciplinamento cruel das mulheres a serviço do direito sexual masculino fica claro no trabalho de Arndt, Os diários sexuais (Arndt, 2009). Arndt não é uma terapeuta sexual qualificada, mas isso não a impediu de exercer sua profissão de maneira proeminente na mídia australiana. Seu livro surgiu de sua preocupação de que muitas mulheres ficavam entediadas com o sexo em relacionamentos de longo prazo e rejeitavam as demandas de seus parceiros. Ela recrutou 98 casais na Austrália com mais de 60 anos para escrever diários nos quais descreviam se e quando o sexo acontecia e como eles, os homens e mulheres, se sentiam sobre isso. Ela embarcou em seu projeto porque estava preocupada que homens idosos sofriam com suas parceiras femininas limitando o que ela chama de “suprimento de sexo”, ou seja, não dando aos homens acesso às suas vaginas. Ela explica suas motivações da seguinte forma:

O que mais escuto é a respeito de negociar o suprimento de sexo. Como os casais lidam com a pressão do homem que deseja e espera enquanto tudo o que ela quer é a felicidade do sono ininterrupto? É um drama noturno que acontece em quartos de todos os lugares, a fonte de grande tensão e infelicidade

(Arndt, 2009: 2).

No entendimento dela, as mulheres são a oferta e podem abrir ou fechar o acesso em detrimento daqueles que razoavelmente esperam receber a oferta, os homens. Ela estava alarmada com a resistência das mulheres. No caso de um “casal em que o marido quer sexo duas vezes por dia”, ela explica que “eles estão fazendo algumas vezes por semana” e a mulher diz: “ainda prefiro ler um livro” (Ibid: 3). O direito das mulheres à autodeterminação não foi reconhecido pelo parceiro ou por Arndt.

Arndt descobriu que para as esposas, fornecer “suprimento” aos seus maridos quando não desejavam fazê-lo era uma experiência extremamente angustiante. Uma mulher escreveu:

Acho que ter relações sexuais quando você realmente não quer é a coisa mais horrível. Antes eu ainda respondia e até tinha orgasmos mesmo sem querer, mas agora não tenho mais nenhuma resposta, então é horrível. Por dentro, estou gritando para acabar rapidamente

(Ibid: 4).

Arndt aconselha as mulheres que elas devem “simplesmente fazer” quer queiram ou não. Outra mulher forneceu uma descrição gráfica de sua repulsa a esse conselho:

Odeio essa ideia! Por que diabos as mulheres deveriam simplesmente fazer isso quando não têm desejo? São elas que têm que lidar com o frio escorrendo entre as pernas, as infecções urinárias, as infecções fúngicas, a dor causada pela mucosa seca, o tédio de todo o processo… simplesmente fazer isso é um tipo de uma provação quando você tem mais de 40 anos e as secreções secaram.

Ela acrescentou: “Não há nada de errado comigo, então por que devo ser tratada como se eu fosse a anormal?… Por que os homens não podem ser tratados por sua libido mais alta?” (Ibid: 291).

Arndt expressa grande simpatia pelos homens cujas parceiras não desejam ser usadas para o sexo. Ela explica que: “Com meus diários sexuais, foram as histórias dos homens que realmente me chocaram” (Ibid: 5). Os homens realmente sofriam, ela disse, e “Eles ficam atordoados ao descobrir que suas necessidades são completamente ignoradas. Muitas vezes isso sai em um grito de raiva e decepção” (Ibid: 6). Eles esperam acesso contínuo e não acham que as mulheres devem ser capazes de mudar de ideia à medida que envelhecem. Como um homem coloca, “O que faz as mulheres pensarem que, na metade do jogo, podem mudar as regras para atender às suas próprias necessidades e esperar que o macho aceite?” (Ibid: 6). Arndt comenta: “É apenas quando você ouve os homens falando honestamente sobre o que é estar no lado receptor que você percebe o impacto do desprezo com o qual estamos tratando eles” (Ibid: 8). Se Arndt tivesse alguma simpatia pelas mulheres, ela poderia ver que o desprezo não vinha das esposas, mas sim dos maridos que estavam determinados a usar os corpos de suas esposas como ajudas de masturbação.

A razão para se chegar a essa situação lamentável, quando algumas mulheres achavam razoável poder recusar o acesso sexual dos homens aos seus corpos, segundo ela, foi o feminismo. Arndt afirma que:

O direito das mulheres de dizer ‘não’ foi consagrado em nossa história cultural há quase cinquenta anos. Mas simplesmente não funcionou para a vida sexual de um casal depender da frágil e fraca libido feminina. O direito de dizer ‘não’ precisa dar lugar a dizer ‘sim’ com mais frequência – desde que tanto homens quanto mulheres acabem desfrutando da experiência. A noção de que pode estar no melhor interesse das mulheres parar de racionar o sexo certamente vai causar controvérsia, mas este é um problema que merece atenção séria

(Ibid: 12).

Era simplesmente absurdo, segundo ela, que os parceiros fizessem outras coisas um pelo outro, como cozinhar pratos favoritos ou assistir a programas de TV que não gostavam, quando as mulheres não permitiam o acesso sexual de seus maridos: “Por que, então, somos tão mesquinhos quando se trata de ‘fazer amor’, que deveria ser a expressão máxima desse cuidado mútuo?” (Ibid: 14). Recusar o sexo era algo egoísta, ela considerava. Arndt lamenta o fato de que tantas das mulheres de seus diários não estavam dispostas a fazer o trabalho sexual de seduzir seus maridos com performances usando lingerie sexy, mesmo enquanto cozinhavam, e a razão, novamente, é que o feminismo as desencorajou: “De alguma forma, a sedução veio a ser vista como um ato anti-feminista, uma traição da igualdade bem diferente de outros gestos de cuidado” (Ibid: 17). A sedução se assemelha às técnicas de prostituição, projetadas para excitar os homens por meio das mulheres interpretando papéis.

O livro de Arndt é uma visão muito útil do que acontece nos casamentos de casais mais velhos. A questão que ela ilustra tão bem a partir das palavras das mulheres em seus diários é a maneira como as esposas se sentem quando os homens exercem sua iniciativa sexual indesejada, comportamento que poderia ser chamado de assédio sexual no relacionamento. O assédio sexual é um termo geralmente limitado ao comportamento dos homens em relação às mulheres em lugares públicos, como o local de trabalho ou a rua, e não se aplica ao que os parceiros masculinos fazem com as mulheres em suas casas. No entanto, a experiência para as mulheres que são assediadas, embora compreenda diferentes elementos relacionados ao fato de o perpetrador ser um parceiro, parece ser semelhante a outras formas da prática em seu desconforto e na angústia que causa. Em um caso, a esposa descreve sua angústia: “Esta manhã eu estava no chuveiro quando ele saiu para o trabalho; ele veio me beijar, o que foi adorável. Mas ele teve que me esfregar na vagina, o que me deixa louca!” O assédio sexual era frequente na cama e seu marido estava jubilante com isso, dizendo: “Às vezes, à noite, nos últimos anos, até comecei a deslizar minha mão em sua calcinha enquanto ela está dormindo e apenas toco seus pelos pubianos” (Ibid: 33). Outra mulher também descreve como perturbador o assédio sexual de seu marido: “Quando ele começa a mexer nas minhas partes íntimas, sinto vontade de chicoteá-lo com uma raquete de mosquitos!” (Ibid: 169).

O papel de Arndt em impor o direito ao sexo masculino em nome dos homens mais velhos foi recompensado pelo governo. Em janeiro de 2020, ela recebeu uma homenagem do Dia da Austrália, ostensivamente por “serviços à ‘equidade de gênero’ por meio da defesa dos homens” (Zhou, 2020).

A medicalização da “disfunção sexual”

A falta de interesse das mulheres em serem penetradas por um parceiro do sexo masculino e sua incapacidade de sentir prazer na atividade foram medicalizadas com a entrada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) do que era chamado de ‘disfunções sexuais’ (Mitchell et al., 2016). Os problemas descritos pelas mulheres neste capítulo são chamados de ‘transtornos’. Um deles é o ‘Transtorno Orgásmico Feminino’, o que significa que a mulher está doente porque não tem orgasmo durante o sexo com penetração vaginal, e outro é o ‘Transtorno de Interesse/Excitação Sexual Feminino’, que transforma a preferência de uma mulher por assistir televisão em um problema médico (Couples and Sexual Health Laboratory, 2016). A medicalização da falta de resposta ‘correta’ das mulheres às iniciativas sexuais dos homens fazia parte de uma medicalização geral da ‘disfunção sexual’ nos anos 90, que visava obter lucros para médicos e empresas farmacêuticas.

Inicialmente, o mercado-alvo consistia em homens que não tinham o tipo de ereção que lhes permitia se sentir adequadamente masculinos; mas a solução oferecida, o medicamento Viagra, criou ainda mais problemas para as mulheres. Leonore Tiefer, a sexóloga feminista dos EUA, explica que,

em 1998, em mais uma grande reviravolta, uma nova era da farmacologia sexual foi inaugurada com a aprovação governamental do Viagra, um medicamento para tratar a impotência que rapidamente alcançou níveis incríveis de reconhecimento global.

Tiefer diz que o desenvolvimento do Viagra foi resultado do falocentrismo, a noção de que ereções rígidas que permitissem a penetração de parceiras femininas simbolizavam a masculinidade (Tiefer, 2006a). O Viagra para homens foi lucrativo e exacerbou a ‘diferença de desejo’, à medida que os homens buscavam agir com sua nova potência nos corpos de suas parceiras femininas. As mulheres não desejantes foram transformadas em ‘pacientes’ que precisavam de tratamento (Tiefer, 2001). A solução foi seguir a criação do Viagra para homens com uma tentativa de criar um ‘Viagra’ feminino (Tiefer e Hartley, 2003).

Tiefer iniciou uma campanha composta por cientistas sociais feministas para combater a medicalização da sexualidade feminina em 2000 (Tiefer, 2006b). A campanha, intitulada A Nova Visão, era contra “A rápida incursão da influência da indústria farmacêutica na pesquisa sobre sexo e na educação profissional.” Seu objetivo, ela diz, era

expor as decepções e consequências do envolvimento da indústria na pesquisa sobre sexo, na educação sexual profissional e nos tratamentos sexuais, e gerar alternativas conceituais e práticas ao modelo médico prevalente da sexualidade

(Ibid).

A campanha continuou, com conferências e tentativas de proibir o uso de drogas que foram usadas para curar a ‘disfunção sexual’ das mulheres, geralmente formas de testosterona, proibidas para este uso até 2017, quando o site da campanha foi arquivado. As acadêmicas envolvidas na campanha A Nova Visão argumentaram firmemente que as supostas ‘disfunções sexuais’ das mulheres eram social e politicamente construídas. Elas disseram que o diagnóstico do DSM não reconhecia

aspectos relacionais da sexualidade feminina, que muitas vezes estão na raiz das satisfações e problemas sexuais, por exemplo, desejos por intimidade, desejos de agradar um parceiro ou, em alguns casos, desejos de evitar ofender, perder ou irritar um parceiro

(Working Group on a New View of Women’s Sexual Problems, 2017).

A campanha, no entanto, não deixa claro que o termo ‘relacional’ se refere a problemas que surgem das relações de poder. Ao se concentrar em como os problemas sexuais das mulheres podem ser resolvidos sem recorrer a drogas, eles prestam um grande serviço às mulheres, mas não questionam a suposição de que a falta de interesse das mulheres em satisfazer o direito sexual masculino constitui um problema. Eles não vão tão longe a ponto de sugerir que as demandas dos homens, em vez da resistência das mulheres, requerem tratamento.

Acadêmicas feministas questionaram a forma como a falta de orgasmo das mulheres durante a penetração é tratada na terapia sexual. Hannah Frith, por exemplo, argumenta que os orgasmos femininos não são “naturais”. Ela escreve sobre a construção social do orgasmo, isto é, a maneira como a realização do orgasmo, e especificamente o orgasmo vaginal, foi elevada a uma posição de importância primordial na literatura sobre a sexualidade feminina e na terapia sexual. Isso, segundo ela, simplesmente reproduz o modelo masculino de sexo e confirma que o sexo é e deve ser a penetração vaginal. Ela explica que as mulheres frequentemente têm que “trabalhar” para atingir o orgasmo, realizando os exercícios recomendados pelos terapeutas sexuais e se esforçando muito.

Efeitos do uso do Viagra masculino nas mulheres

A medicalização da sexualidade masculina através do desenvolvimento do Viagra criou um problema para as mulheres (Potts, Gavey, Grave e Vares, 2003). Este medicamento foi visto como totalmente positivo para os homens, pois curou a impotência e permitiu que homens, mesmo os mais velhos, se envolvessem em relações sexuais de penetração vaginal. A pesquisa sobre o Viagra e seus efeitos preocupou-se apenas com as vantagens que oferecia aos homens, como a oportunidade de se sentir mais “masculino” e dominante, e ignorou quaisquer efeitos negativos que possa ter em suas parceiras femininas. A pouca pesquisa feita por estudiosas feministas sobre as implicações do desejo renovado dos homens por acesso sexual às vaginas de suas esposas sugere que o medicamento constituiu, em muitos casos, um sério retrocesso. A pesquisa utilizando entrevistas com 27 mulheres cujos parceiros masculinos usavam Viagra revelou as muitas desvantagens que elas sofreram (Ibid). Para algumas mulheres mais velhas, o fato de seus maridos não poderem mais se envolver em relações sexuais de penetração vaginal foi um alívio, o que significava que elas não seriam mais importunadas e poderiam se dedicar a hobbies mais prazerosos. Para muitas, também, estar na pós-menopausa significava que as relações sexuais de penetração vaginal eram dolorosas ou desconfortáveis e elas não reagiam favoravelmente às demandas renovadas de seus maridos por acesso sexual.

As mulheres entrevistadas para este estudo falaram de seus maridos as incomodando para terem relações sexuais de penetração vaginal quando já estavam acostumadas a não ter que fazê-lo e preferiam, se ainda estivessem sendo sexuais com seus parceiros, relações sexuais não-vaginais que foram projetadas para lhes dar satisfação em vez de uma prática dedicada ao orgasmo masculino. As mulheres falaram do sofrimento que seus parceiros causaram a elas exigindo a penetração, porque eles tinham pago muito pelo medicamento e precisavam aproveitar a ereção antes que os efeitos desaparecessem. As mulheres mais velhas que estavam muito felizes por não terem mais que ser penetradas, falaram da dor que a retomada dessa prática lhes causou. Uma mulher de 60 anos disse: “Às vezes pode durar muito tempo e eu estou pensando “oh, está demorando demais, e está ficando… dolorido” (Ibid: 704).

As autoras comentam que existem estudos que sugerem uma conexão entre o uso de Viagra pelos homens e a ocorrência de infecções urinárias em suas esposas, o que é chamado de “cistite da lua de mel”. Uma mulher de 65 anos disse:

[E]le teria relações sexuais naquela noite e novamente na manhã seguinte e … ele pode ter mais relações sexuais do que eu, porque fico dolorida… Eu só tive candidíase uma vez e outra vez tive uma infecção urinária… Eu estava urinando sangue, então presumo que ter relações sexuais tenha algo a ver com isso

(Ibid: 704).

As pesquisadoras explicam que “as mulheres pós-menopáusicas podem experimentar mais secura vaginal, o que exacerba o início desse tipo de cistite” e que existem outros problemas de saúde causados ​​pelo sexo prolongado, como “dor pélvica inferior e irritação e rasgamento da parede vaginal” (Ibid: 704).

Algumas das entrevistadas disseram que usavam lubrificantes, conforme aconselhadas, para aliviar o desconforto, mas isso não resolveu o problema. Uma entrevistada de 51 anos disse que a relação sexual era dolorosa por causa de uma doença, e que estava tentando cumprir o conselho dado na literatura médica que estava lendo, que dizia que as mulheres mais velhas deveriam permitir o acesso sexual para que seus maridos não “percam ‘a prática'” (Ibid: 704). As mulheres falaram que não queriam fazer sexo ou estavam cansadas, mas tinham que “acompanhar” para não ferir os sentimentos dos homens. Uma mulher de 65 anos descreveu como seu marido não falava com ela por 24 horas se ela não quisesse ser usada sexualmente, pois isso o fazia “desperdiçar” um medicamento caro.

Sexo anal

O desenvolvimento da indústria da pornografia mudou a natureza do sexo a que os homens sentem ter direito nos relacionamentos, de modo que as práticas que manifestamente nada têm a ver com o prazer das mulheres, e são dolorosas e prejudiciais à saúde, podem ser letais e outrora teriam sido incomuns na prática heterossexual, foram normalizadas. Essas práticas incluem sexo anal, estrangulamento (chamado por seus normalizadores de ‘brincadeira’) e outras formas de práticas sadomasoquistas, eufemisticamente chamadas de ‘sexo violento’. O sexo anal, que antes era raro nas relações heterossexuais na Anglosfera, tornou-se agora uma parte aceitável do uso masculino do corpo feminino, de acordo com a literatura sexológica e de aconselhamento sexual. Foi normalizado por ter a dor que causa descrita como uma disfunção sexual com um nome especial próprio, anodispareunia, o que implica que a pessoa que sente a dor é o problema e não a prática em si (Hollows, 2007).

A literatura sugere que a prática foi disseminada a partir da pornografia (Stulhofer e Adjukovic, 2011) e é comum na subcultura BDSM entre homens gays. Existe uma considerável literatura médica sobre a dor que o sexo anal causa em homens gays, mas para alguns homens gays há uma compensação, porque a prática oferece satisfações particularmente sadomasoquistas (Grabski e Kasparek, 2020). Os ‘ativos’ podem se ver como dominantes e em um papel masculino, enquanto os ‘passivos’, apesar da dor que possam sentir, podem experimentar os prazeres masoquistas de se sentir ‘como uma mulher’, ou seja, subordinados (Jeffreys, 1990). Nenhuma dessas satisfações está disponível para as mulheres, que geralmente falam apenas sobre a dor e o desconforto do sexo anal e o trabalho que têm que realizar para permitir que os homens as usem dessa maneira.

Um artigo de revista sexológica sobre ‘anodispareunia’ deixa claro que o sexo anal é doloroso e desagradável para as mulheres (Stulhofer e Adjukovic, 2011). Os autores definem ‘anodispareunia’ como “dor debilitante persistente durante a relação sexual anal” (Ibid: 349). Eles observam que “o sexo anal está se tornando cada vez mais comum entre mulheres e homens heterossexuais”, mas descobriram que para a maioria das mulheres o sexo anal era doloroso e elas não queriam fazê-lo. O aumento da prática foi marcante. Eles observam que uma pesquisa realizada nos EUA em 2002-3 constatou que 35% das mulheres tinham experiência de sexo anal, enquanto na década anterior a figura era apenas de 23%.

Eles também realizaram uma pesquisa com 2.002 mulheres jovens na Croácia sobre a experiência delas com sexo anal em 2010, na qual descobriu-se que 62,3% delas haviam sido penetradas analmente. Mostrou-se que, embora quase metade, 48,8%, tenha sido forçada a encerrar sua primeira experiência de “intercurso anorretal” devido à dor ou desconforto, a maioria das mulheres, 62,3%, continuou a se submeter às exigências dos homens. Os pesquisadores consideraram que a representação comum do sexo anal na pornografia online explicava o aumento da prática. Eles descobriram que, das 788 mulheres que afirmaram ter continuado a praticar sexo anal, apenas 61, ou 7,7%, relataram que nunca sentiram dor ou desconforto durante o intercurso anal receptivo, e entre as mulheres com dois ou mais episódios de intercurso anorretal no ano anterior, apenas 18 ou 3,6%, estavam livres de qualquer dor ou desconforto (Ibid: 352).

Embora o sexo anal tenha consideráveis desvantagens para as mulheres, ele se tornou tão normalizado nas últimas décadas que passou a ser visto como uma prática sexual cotidiana. Conselhos sobre como fazê-lo são onipresentes em uma variedade de fontes de mídia, especialmente em sites de saúde. Alguns desses recursos detalham os danos. O Medical News, por exemplo, explica que a penetração anal é um problema para a pessoa penetrada, seja ela masculina ou feminina, porque “o ânus não possui as células que criam o lubrificante natural que a vagina possui. Também não tem a saliva da boca” e diz que “a mucosa retal também é mais fina do que a da vagina” (Nall, 2019). Ele lista os riscos que envolvem a saúde, como infecção bacteriana por lacerações na mucosa retal, incontinência, risco de ISTs e, potencialmente, o dano muito grave de fístula.

Algumas fontes de mídia, no entanto, minimizam firmemente seus danos. Um exemplo é a cobertura do sexo anal na Teen Vogue, uma revista para adolescentes do sexo feminino. Um artigo publicado pela primeira vez em 2017 chamava-se ‘Um guia para o sexo anal’ (Engle, 2017/2019). Isso provocou considerável controvérsia na mídia, com os pais dizendo que ele não era adequado para crianças. A justificativa para o artigo foi que as meninas estariam fazendo sexo anal de qualquer maneira, então precisavam saber como fazê-lo. O artigo começa dizendo:

O sexo anal, embora muitas vezes estigmatizado, é uma maneira perfeitamente natural de se engajar na atividade sexual… Então, se você está um pouco preocupado em experimentar ou está tendo problemas para entender o apelo, saiba que não é estranho ou nojento

(Ibid).

O artigo não mostra nenhuma consciência de que a atividade heterossexual ocorre dentro de uma estrutura de poder que torna difícil para as mulheres, ainda mais para as meninas, impedir os homens de fazer o que querem, por medo de violência, de perder o namorado ou simplesmente de não agradá-lo como deveriam. A Teen Vogue promove a prática dizendo: “O ânus está cheio de terminações nervosas que, para algumas pessoas, dão sensações incríveis quando estimuladas”. Ela reconhece que o sexo anal provavelmente será difícil e desconfortável, se não doloroso, para a adolescente, então uma série de instruções é dada sobre como o músculo anal ficará rígido e objetos de vários tamanhos devem ser inseridos para soltá-lo, e então a penetração deve ocorrer muito lentamente com o auxílio de lubrificação. Por meio desse tipo de trabalho, espera-se que as meninas transformem seus ânus em tubos de masturbação para seus usuários masculinos.

As adolescentes em cujos corpos essas práticas serão provavelmente executadas quando os rapazes experimentarem seu repertório sexual estão em uma posição muito pior para exercer um “não” do que as mulheres mais velhas cujas dificuldades com o consentimento foram delineadas anteriormente neste capítulo. Há evidências de que as adolescentes são particularmente vulneráveis à violência sexual de parceiros masculinos. Uma pesquisa de 2015 com meninas de 13 a 17 anos em cinco países europeus descobriu que mais de quatro em cada dez foram coagidas a atos sexuais. Nas entrevistas, muitas crianças disseram que a pressão para fazer sexo era tão persistente que se tornou ‘normal’. Katie, uma jovem de 15 anos que participou da pesquisa na Inglaterra, disse aos pesquisadores: “Tive relacionamentos em que não podia sair com meus amigos porque eles ficavam com raiva de mim. Eu fui estuprada e outras coisas assim” (Topping, 2015).

Um artigo do British Medical Journal de 2014 descreve as experiências de sexo anal de adolescentes no Reino Unido com idades entre 16 e 18 anos (Marston e Lewis, 2014). As motivações e consequências para meninos e meninas eram extremamente diferentes. Foi descrito como sendo prazeroso para os meninos e um indicador de realização sexual, enquanto para as mulheres era uma fonte de dor ou reputação prejudicada. Um rígido duplo padrão estava em operação. Onde antes os homens competiam entre si para penetrar uma garota vaginalmente e assim obter uma vitória sobre ela da qual pudessem se gabar, o sexo vaginal agora era muito comum e não era mais um desafio. Os jovens passaram para o sexo anal. Os meninos do estudo descreveram o sexo anal como “algo que fazemos para uma competição” e “cada buraco é um gol”. Em contraste, tanto homens quanto mulheres disseram que as mulheres arriscavam sua reputação pelo mesmo ato (Ibid: 3). Os meninos descreveram como forçaram uma menina relutante a passar por uma penetração que ela desconfiava que seria dolorosa:

Shane nos disse que se uma mulher dissesse ‘não’ quando ele começasse a ‘colocar o dedo’, ele poderia continuar tentando: ‘Eu posso ser muito persuasivo […]. Como às vezes você continua, apenas continua até que elas se cansem e deixem você fazer de qualquer maneira’. Um ‘não’ verbal da mulher não impediu necessariamente as tentativas de penetração anal

(Ibid: 3).

O fato de a penetração em uma mulher poder causar danos consideráveis ao seu esfíncter anal não é necessariamente um impedimento, pois existe um grande nicho de pornografia dedicado especificamente a mostrar os danos (Shrayber, 2014).

Neste capítulo, eu examinei o sexo ‘consensual’ que ocorre em relacionamentos heterossexuais. Eu descrevi as muitas forças que permitem aos homens exercer seu direito sexual, mesmo quando as mulheres não querem participar, a dor, humilhação e simples irritação que muitas sentem quando não têm uma maneira realista de dizer não, e as repercussões abusivas que podem experimentar caso se recusem.

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Traduções

Sadomasoquismo: O Culto Erótico do Fascismo

Comentário da autora: Esse artigo foi escrito em 1984, quando eu [Sheila Jeffreys] fazia parte do grupo Lésbicas Contra o Sadomasoquismo em Londres. As feministas lésbicas na Grã-Bretanha sabiam dos desenvolvimentos do sadomasoquismo lésbico nos Estados Unidos, mas nenhum grupo havia se reunido no entorno deste assunto até que o novo London Lesbian and Gay Center concordou que sadomasoquistas deveriam ser aceitos lá. Os eventos dessa época são descritos no capítulo “A Pale Version of the Male” no livro The Lesbian Heresy. O artigo foi originalmente escrito para uso do próprio grupo, e também foi distribuído em forma de fotocópias para outras lésbicas interessadas. Ele não deve ser considerado uma afirmação definitiva das políticas do grupo, mas uma visão individual. Em 1986 ele foi publicado na Lesbian Ethics nos Estados Unidos.


Cartaz do filme The Night Porter (1974). Arte de Liliana Cavani.

Soube das ligações entre o sadomasoquismo e o fascismo em 1981, quando visitei Amsterdam vinda de Londres para participar de um festival de mulheres. Um tema importante do festival, senão o principal, era o sadomasoquismo. As mulheres do festival de Amsterdam demonstravam cenários sadomasoquistas, por exemplo, um homem transexualizado chicoteando uma mulher, ambos vestidos em roupa fetichisticamente “feminina” e couro negro. Um número considerável de mulheres no festival estava vestida de couro negro, e algumas usavam coleiras e guias enquanto eram conduzidas por outras mulheres. As oficinas que promoviam o sadomasoquismo argumentavam com base na liberdade pessoal para as minorias sexuais. Os seus promotores argumentavam que o sadomasoquismo era basicamente um assunto privado, ainda que os praticantes de sadomasoquismo tivessem que “sair do armário” por serem oprimidos por preconceito e discriminação contra as práticas sexuais de sua preferência.

Na mesma semana em que o festival aconteceu, o primeiro membro fascista do parlamento foi eleito em Amsterdam desde a guerra. Houveram brigas de rua naquele fim de semana nas quais fascistas celebraram batendo em membros da população imigrante de Amsterdam, e uma rede de contatos por telefone teve de ser operada para distribuir os antifascistas a diferentes partes da cidade para resistirem à violência racista. As feministas de Amsterdam que me contaram da violência e do triunfo eleitoral não viam nenhuma conexão entre o aumento do fascismo e a promoção do sadomasoquismo como uma prática sexual. Elas aceitavam que o sadomasoquismo era simplesmente uma questão pessoal. Eu não estava convencida. Uma importante estação policial de Amsterdam ficava na mesma rua do prédio onde aconteceu o festival, o Melkweg. Fora do prédio do festival havia um poster gigante de uma mulher nua com suas mãos amarradas às costas. A mulher escrava estava do lado oposto da estação policial. Ela não me parecia representar um símbolo de provocação. Parecia mais que o sadomasoquismo, a polícia, a crescente ameaça fascista, os meninos adolescentes que jogaram pedras em mim e em minha namorada por andarmos de mãos dadas na rua depois do festival, tinham muita coisa em comum. Qual era o fio que os ligava?

Berlim nos anos 1930

Existe um exemplo histórico da conexão entre sadomasoquismo e fascismo que ignoramos, e que nos prejudica. Antes de os nazistas dominarem na Alemanha em 1933, o sadomasoquismo estava florescendo e crescendo enquanto prática sexual, particularmente entre homens gays. Christopher Isherwood, um novelista britânico gay que viveu em Berlim naquela época, deixou um registro escrito dos flertes com o sadomasoquismo que estavam acontecendo não apenas entre os gays, mas também entre a juventude alienada e desempregada da Alemanha. Em um livro de 1962, Down There on a Visit, Isherwood discorreu sobre as conexões entre o sadomasoquismo e o crescente fascismo em suas descrições de um jovem alemão, Waldemar.

Tenho certeza que Waldemar instintivamente sente a relação entre as cruéis senhoras vestidas de botas que costumavam frequentar seu comércio fora da Kaufhaus des Westens e os jovens valentões em uniformes nazistas que estavam lá naqueles dias agredindo os judeus. Quando uma senhora dessas reconhecia um cliente promissor, ela costumava arrastá-lo, puxando-o para um táxi e o batia com um chicote. Os garotos da SA não fazem exatamente a mesma coisa com os seus fregueses — exceto que, nesse caso, o chicoteamento é fatal? Um não era uma espécie de ensaio psicológico para o outro? [1]

Martin Sherman usa o sadomasoquismo como um tema subjacente importante em sua poderosa peça chamada Bent. A peça abre com o personagem principal, Max, pegando e levando para casa consigo, presumivelmente para sexo a três com seu amante, um jovem homem vestido de couro que praticava sadomasoquismo. Na manhã seguinte, os oficiais da Gestapo chegam à procura do jovem alemão e cortam sua garganta. O ano é 1934. Max e seu amante estavam então foragidos. Depois que seu amante foi morto, Max acabou em um campo de concentração. Na cena mais comovente da peça, Max e um companheiro de cela, que estava no campo porque assinou uma petição que repelia o estatuto alemão contra a homossexualidade, interagem sexualmente apenas conversando, enquanto moviam pedras sob vigilância pesada. Max é incapaz de fazer sexo sem dor e inclui mordidas dolorosas nos mamilos durante a fantasia falada. Horst, o amante, reclama e relaciona o sadomasoquismo com o fascismo que os aprisionou.

Horst: …Você tentou me machucar. Você me conforta, e então me machuca. Já estou machucado o suficiente. Não quero mais sentir dor. Por que você não pode ser gentil?
Max: Eu sou gentil.
Horst: Não, você não é. Você é como eles. Você é como os guardas. Você é igual a Gestapo. Nós paramos de ser gentis. Eu observei, enquanto estávamos lá fora. As pessoas fazem dor e chamam de amor. Eu não quero ser assim. Não se faz amor para machucar. [2]

A peça relaciona o sadomasoquismo de Max à sua inabilidade de aceitar sua homossexualidade e realmente amar outro homem. Ao fim da peça, embora Horst seja morto, Max alcança algum tipo de triunfo moral e pessoal ao demonstrar que ele ama Horst, ao deliberadamente vestir o triângulo rosa dos homossexuais e caminhar em direção à cerca elétrica.

A tragédia da prática sadomasoquista nos anos 1930 em Berlim era que os cenários que os homens gays estavam encenando para seu desfrute sexual, complementados com os uniformes nazistas, eram apenas uma antecipação da grande violência que cairia sobre eles, vinda dos valentões fascistas, quando esses homens gays foram internados em campos de concentração. A experiência dos homens gays nesses campos é graficamente descrita no livro de Heinz Heger, The Men with the Pink Triangles. Um exemplo de tortura e morte de um prisioneiro gay é interessante pela forma com que esclarece como funciona a prática sadomasoquista.

O primeiro “jogo” que o sargento da SS e seus homens faziam era fazer cócegas em suas vítimas com penas de ganso, nas solas dos seus pés, entre suas pernas, nas axilas e em outras partes de seu corpo nu. A princípio, o prisioneiro se forçava a manter o silêncio, enquanto os seus olhos se contraíam de medo e tormento, olhando de um homem da SS para o outro. Até que ele não podia mais se conter e finalmente explodia em uma risada aguda que logo se transformava em um choro de dor, enquanto lágrimas escorriam de seu rosto, e seu corpo se retorcia contra as correntes…
Mas os homens depravados da SS estavam prontos para se divertir ainda mais com a pobre criatura. O chefe do bunker trouxe duas tigelas de metal, uma cheia de água fria e outra com água quente. “Agora nós vamos cozinhar seus ovos, sua abominação suja [filthy queer, no original], logo logo você vai estar quentinho”, disse o oficial do bunker alegremente, levantando a tigela de água quente entre a virilha da vítima de modo que suas bolas fossem mergulhadas nela…
“Ele é um fodido, não é?, que tenha o que tanto quer”, rosnou um dos homens da SS, pegando uma vassoura que ficava no canto e enfiando o seu cabo no ânus do homem… [3]

Eventualmente o homem foi morto ao ser atingido na cabeça por uma pá de madeira.

As descrições a seguir são de um capítulo de uma cartilha lésbica sobre como praticar sadomasoquismo com segurança.

Fisting ou fistfucking significa mover a mão inteira dentro ou para dentro para fora da vagina ou do reto de alguém. A introdutora começa colocando um ou dois dedos dentro de sua parceira, colocando um dedo de cada vez, e dentro de alguns minutos o movimento estimulatório entre eles aumenta, até que ela coloca toda a sua mão lá dentro, até que os dedos se curvem para preencher o espaço, formando um “punho”. Neste ponto, a inclinação usual da pessoa que está recebendo a ação é pedir “dá para colocar mais?”
A primeira coisa a se fazer antes de qualquer fisting é manter as unhas curtas e sem rebarbas. Suas unhas devem ser cortadas bem rentes, e então polidas com uma lixa ou lima, polindo tanto as laterais quanto das costas das mãos ao lado da palma. Também é importante utilizar um bom e espesso lubrificante que não se transforme em uma poça de água em cinco minutos, óleo é bom. Deve-se cobrir a mão de forma espessa com óleo sem passar do ponto em que encaixe muito facilmente… [etc]
O modo de se gotejar cera de uma vela de forma segura é deixar uma gota ou duas cair por vez, ao invés de deixar cera derretida acumular em volta da base do pavio e espirrar na pele de sua parceira tudo de uma vez… [etc.] [4]

Incluí as duas práticas acima porque elas se aproximam bastante de replicar os métodos de tortura usados nos exemplos da vida real dos campos de concentração. (Outras instruções incluem como cortar os seios de uma mulher com lâminas e como perfurar seus lábios vaginais.) Elas deixam claro que a prática sadomasoquista vem de nenhum lugar menos misterioso que a própria história da opressão bastante real que sofremos. Os cenários sadomasoquistas reencenam a tortura dos gays pelos fascistas bem como a tortura dos negros pelos brancos, dos judeus pelos nazistas, das mulheres pelos homens, dos escravos pelos senhores. Tais práticas podem ser vistas como rituais performáticos, como um talismã. Uma vez que parece improvável que os praticantes gays do sadomasoquismo realmente desejem ser torturados de forma inteiramente fora de seu controle, parece provável que tais práticas cumpram o papel do alho para espantar o demônio, ou sejam simplesmente uma antecipação ansiosa do que pode acontecer de pior para que se acostume-se a ele.

Ambientação fascista

Os proponentes do sadomasoquismo geralmente são bastante abertos a respeito de seu uso de símbolos e fantasias fascistas e nazistas, por exemplo os quepes de couro negro da SS, suásticas, uniformes e sobretudos de couro parecidos com os da SS. Assim explica Pat Califia, principal teórica do sadomasoquismo nos Estados Unidos:

Uma cena sadomasoquista pode ser feita usando as personas do guarda e do prisioneiro, do policial e do suspeito, do nazista e do judeu, branco e negro, homem hétero e queer, pais e filhos, padre e penitente, professor e estudante, puta e cliente etc. Entretanto, nenhum destes símbolos têm um único significado. Seu significado é derivado do contexto onde é utilizado. Nem todo mundo que porta uma suástica é nazista, nem todo mundo que tem um par de algemas em seu cinto é um policial, e nem todo mundo que usa um hábito de freira é católico. O sadomasoquismo é mais uma paródia da natureza sexual oculta do fascismo do que uma adoração ou uma aquiescência a ele. Quantos nazistas, policiais, padres ou professores reais estariam envolvidos em uma cena sexual kinky? [5]

A resposta para a ingênua pergunta de Califia é, claro, um bom tanto de gente. Pelo menos uma membra do grupo de apoio ao sadomasoquismo lésbico de Londres foi vista usando um quepe da SS e suásticas em eventos sociais. Ela foi questionada a respeito do fato de esses símbolos serem ofensivos a muitas mulheres e respondeu com ameaças de violência a qualquer outra crítica feita.

No começo de 1984, skinheads gays foram à uma festa gay na discoteca Bell em Kings Cross. Um deles fez uma saudação nazista abrupta direta e deliberadamente dirigida à face de um homem gay negro na pista de dança, e três deles seguiram um homem negro gay portador de deficiência ao banheiro e o ameaçaram. Um homem gay branco puxou o som da tomada para que se discutisse a respeito do incidente e se tomasse alguma atitude. Ele foi expulso e barrado da discoteca. Este era um clube que supostamente fazia parte da cena gay alternativa, política ou pelo menos não-comercial. Os skinheads eram clientes regulares. O organizador nacional do Young National Front também apareceu no Bell e foi expulso quando tirou sua jaqueta e revelou suásticas. O coletivo do Bell e outros coletivos que gerenciavam clubes tiveram de instituir normas de vestimenta, isto é, sem suásticas ou camisetas “Hitler’s European Tour”, mas o uniforme de couro foi aceito.

Mas, diriam os proponentes do sadomasoquismo, somente usamos insígnias nazistas por diversão e não gostaríamos de ser associados a comportamentos violentos. Até é possível, mas como os outros gays vão saber a diferença? O medo será igual independente de as suásticas serem usadas por “diversão” ou perseguição. No que diz respeito à suásticas, a diversão de uma mulher é o terror de outra. Os fascistas obtêm exatamente o mesmo tipo de diversão ao usarem suásticas que os proponentes do sadomasoquismo, o poder conseguido a partir do medo e da angústia de outra mulher. Um perigo sério que resultará da tolerância ao simbolismo nazista na cena gay, sob a guisa de “diversão”, prática sexual, ou moda, é a paralisia da nossa vontade ou habilidade de agir em face de violência fascista real. É tão importante combater e rejeitar o uso irônico de emblemas nazistas agora tanto quanto o era na Alemanha nos anos 1920 e 1930, quando o fascismo tomou conta. Os indubitavelmente antifascistas de então que questionaram as suásticas encontraram os mesmos tipos de ameaças que os proponentes do sadomasoquismo já fazem quando seu prazer é questionado. O nazismo era a moda daqueles tempos?

O sadismo do fascismo alemão

Um dos termos usados para ofender as feministas em Londres que estavam realizando um encontro para questionar a promoção do sadomasoquismo era “fascistas”. As feministas lésbicas eram acusadas de serem “exatamente iguais ao Front Nacional” por ousarem realizar tal encontro. Essa linha de ataque, que se assemelha às tentativas atuais dos libertários sexuais socialistas de rotular feministas como de direita, é feita com base em um pressuposto de que as políticas fascistas seriam opostas ao sadomasoquismo. Na realidade o oposto é verdadeiro, e essa acusação é um bom exemplo do que Mary Daly chama de “reversal patriarcal”. [6]

Dorchen Leidholdt, do grupo Mulheres Contra a Pornografia de Nova York, em um artigo esclarecedor, Where Pornography Meets Fascism, explica a extensão do papel que o sadomasoquismo erótico cumpria enquanto esteio da ideologia e da prática fascista.

Hitler adotou o chicote como seu símbolo pessoal, por exemplo, e quando exaltado geralmente batia com ele em suas próprias pernas. Ele sentia muito prazer ao citar a máxima de Nietzsche, “Vais encontrar mulheres? Não esqueças teu chicote!” Talvez o mais revelador a respeito da resposta sexual de Hitler às mulheres era o seu deleite em assistir mulheres parcamente vestidas arriscarem suas vidas. Em The Psychopathic God, Waite aponta, “Ele apreciava particularmente assistir belas mulheres em um circo no alto do trapézio e fortemente amarradas… Ele não se impressionava particularmente com atos de animais selvagens a menos que mulheres bonitas estivessem envolvidas. Ele então assistia avidamente, sua face avermelhada, sua respiração logo vinha em assovios enquando seus lábios trabalhavam avidamente.” O sadismo de Hitler direcionado às mulheres provavelmente tinha algo a ver com seu histórico ruim de relações românticas: das seis mulheres com quem ele se envolveu romanticamente durante sua vida, cinco cometeram ou tentaram suicídio.
O sadomasoquismo também caracterizava as interações de Hitler com seus subordinados imediatos — “Toda vez que o encaro”, relembra Hermann Goering, “meu coração vai parar nas calças” —, bem como sua relação com o povo germânico como um todo. Eric Fromm apontou que a orientação sadomasoquista de Hitler jogava com a subordinação sadomasoquista das massas alemãs, seu desejo de ser dominado por um líder poderoso enquanto domina outros. Hitler estava bastante consciente desse teor dos tempos e das pessoas que ele governava. Em um discurso aos cadetes do exército alemão em 1942 ele declarou, “Por que resmungar a respeito da brutalidade e se indignar com a tortura? É isso que as massas querem. Eles precisam de algo que lhes dê um terror emocionante?” [7]

Leidholdt parece sugerir que o povo alemão tinha uma tendência particular para o sadomasoquismo. Toda a evidência disponível iria sugerir que toda a supremacia masculina está imbuída na mesma tendência. Mas as suas observações nos forçam a considerar a extensão com que o apelo do fascismo e do próprio racismo são abastecidas pelo erotismo. Ela prossegue apontando que Jacobo Timerman, um argentino judeu torturado por direitistas, descreveu o antissemitismo argentino como tendo um caráter erótico e sádico: “o ódio aos judeus era visceral, explosivo, um relâmpago sobrenatural, um excitamento das tripas, o senso de um ser inteiro abandonado ao ódio.” [8]

Em virtude de algum processo misterioso, tudo o que diz respeito ao sexo nesta sociedade tem sido separado da política até mesmo por aqueles que se consideram a si mesmos socialistas e radicais. Na tentativa de tornar a prática sexual um enclave privado de deleite individual, de alguma forma a sexualidade tem sido vista como removida dos efeitos do sexismo, do racismo, e de qualquer opressão que acontece no mundo fora do quarto, e se considera que ela não tem qualquer efeito ou relevância neste mundo. Na verdade, o sexo cumpre um papel crucial ao abastecer e regular a opressão das mulheres e a opressão racista. Não há nada puro a respeito do sexo ou de qualquer outra coisa que possa justificar uma exceção especial da crítica política.

Os promotores do sadomasoquismo chamam suas oponentes feministas de fascistas com a intenção de nos evitar, para nos calar, para dificultar que apontemos as ligações entre o sadomasoquismo e o fascismo. Eles devem saber que estão em uma posição exposta e acusam de “fascista” desesperadamente, na intenção de que nós não depositemos tais acusações sobre eles.

Seriam fascistas os proponentes do sadomasoquismo? Eles provavelmente não são membros de organizações fascistas e não se importam com nenhum aspecto do fascismo fora da sua esfera erótica. Eu diria que a maioria deles não é fascista, ainda que experienciar prazer ao aterrorizar outras lésbicas ao vestir iconografia fascistas se aproxime bastante disso, mas sim são promotores de valores fascistas. A erotização da dominação e da submissão, a glamourização da violência e da opressão dos gays, judeus e mulheres, é do que o fascismo é feito.

As raízes eróticas do fascismo

Qual o principal apelo do fascismo? O sistema político do fascismo oferece aos capitalistas uma forma de manter seus lucros sem qualquer ameaça de resistência da classe trabalhadora. A violência e o racismo do fascismo oferecem aos desiludidos e desempregados, aos jovens e alienados, um bode expiatório para os seus problemas em uma forma substituta de “satisfação” e excitamento. Oferece-lhes comícios, um sentimento de poder (assédio), orgulho nacionalista e um auto-respeito espúrio baseado na ideia de que se se é branco, homem e gentio, ao menos se é superior a outros grupos raciais e às mulheres. Sem dúvida há muitos outros mecanismos operando conforme o fascismo e seus valores tomam conta. Um deles inclui o excitamento do erotismo. As raízes eróticas do fascismo não têm recebido muita atenção, talvez porque exijam uma avaliação bastante assustadora da nossa própria sexualidade.

Para entender as raízes eróticas do fascismo é necessário realizar uma análise um tanto diferente e mais complexa do fascismo que a versão simplista geralmente empreendida pelos homens de esquerda. É errado assumir que o fascismo é uma força do mal que existe em algum lugar já completamente desenvolvida no mundo lá fora, que ele é facilmente reconhecível e chegará de repente, de forma óbvia, chamando-se a si mesmo de fascismo e em uma forma que seja facilmente desafiada. Esse foi, penso, o erro conceitual atrás de muito do trabalho antifascista de meados dos anos 1970. A Liga Anti-Nazi confrontou, de maneira bem sucedida, as organizações claramente fascistas. Embora estes partidos estejam atualmente adormecidos conforme o governo conservador na Grã-Bretanha faz muito de seu trabalho para eles, as pessoas envolvidas na política de esquerda podem acreditar que o uso de suásticas por pessoas que não são membros dessas organizações não é importante. Mas o fascismo não cai do céu pronto na forma de organizações fascistas. Partidos fascistas necessitam de apoio amplo, ou pelo menos tolerância para serem bem sucedidos. Membros de partidos não nascem fascistas, e às vezes são homens e mulheres que foram socialistas. Oswald Mosley é o exemplo britânico mais famoso desse fenômeno. O jovem Isherwood descrevendo que esteve em um partido nazista em um dia e no partido comunista no próximo, levado pela sedução das oportunidades para a violência e pelos sentimentos de poder pessoal, é outro exemplo.

Houve um tempo, no final dos anos 1960 e início dos 1970, em que os radicais de esquerda falavam sobre as raízes psicológicas e emocionais do fascismo em todos os que viviam sob uma sociedade supremacista masculina. Wilhelm Reich era lido avidamente. Artigos eram escritos sobre a formação da personalidade autoritária dentro da família patriarcal e sobre a necessidade de se criar um modo completamente novo de se viver que reduziria a atração por figuras do tipo do fuehrer. A análise era parcial porque não havia muita consideração a respeito da opressão das mulheres para além da simples crença de que a eliminação da família nuclear resolveria todos os problemas das mulheres. Mas havia um entendimento de que as raízes emocionais do fascismo são imbricadas nas nossas personalidades a partir de um tipo de estrutura familiar na qual nós nascemos e pelos tipos de autoridade aos quais nós somos submetidos ao longo da infância e do nosso crescimento. Esse era um entendimento de crucial importância, e seus frutos existem hoje nas novas atitudes em relação à criação das crianças, na organização política dentro do feminismo, e em algumas partes da esquerda e do movimento gay. Esse entendimento da importância das políticas pessoais, na base na qual o movimento de libertação das mulheres foi formado, parece agora cada vez mais impopular. Estou convencida, mas pode ser que seja ilusão, de que o significado do uso de suásticas poderia ser claro em 1971 de um modo que hoje não é mais.

As raízes eróticas do fascismo residem no modo pelo qual a sexualidade sob a supremacia masculina é estruturada nos indivíduos. Porque a supremacia masculina ocidental encoraja-nos a experienciar a sexualidade como uma força imensamente poderosa e quase incontrolável, o aspecto erótico do fascismo tem grande significado. Nós não aprendemos a expressar-nos sexualmente em um mundo de relações igualitárias e amorosas. Mulheres e homens nascem dentro de um sistema heterossexual de dominação masculina e submissão feminina. Isso é verdade independente de sermos capazes de escapar o suficiente disso para amar mulheres. A sexualidade na infância é construída através de interações com garotos agressivos puxando as calcinhas das meninas e através de abuso sexual e exploração por parte de homens adultos. Os modelos oferecidos a nós de sexualidade feminina são os de passividade e submissão. Somos ensinadas a responder sexualmente a investidas agressivas dos homens. Muitas lésbicas tem dificuldade em aprender qual a resposta feminina correta à sexualidade submissa dócil aos homens, todavia não emergimos facilmente incólumes da construção da sexualidade feminina no entorno do sadomasoquismo. Vivemos sob opressão e onde não há virtualmente nenhuma forma de escapar, pelo menos até atingirmos uma idade avançada, em direção a relacionamentos igualitários nos quais tomamos iniciativas sexuais, temos pouca alternativa além de nos aprazer de nossa opressão. A resposta mais comum é a de erotizar nosso desempoderamento no masoquismo. Para algumas mulheres que vêm isso como muito “afeminado”, o papel de humilhar mulheres pode ser utilizado no sadismo — os modelos para isso em uma cultura que odeia mulheres estão em todo lugar.

Lésbicas e gays sofrem pressões particulares que podem levar à posse de uma sexualidade construída no entorno do sadomasoquismo. Como resultado do heterossexismo e do anti-lesbianismo, frequentemente crescemos odiando a nós mesmos e particularmente a nossa sexualidade. É difícil para nós construir uma sexualidade própria que seja positiva, igualitária e livre de conotações sadomasoquistas. Algumas lésbicas e gays não conhecem nenhuma outra sexualidade além das fantasias sadomasoquistas que influenciam sua prática, ainda que possam evitar agir dentro do ritual sadomasoquista. Qualquer questionamento do sadomasoquismo é sentido por algumas dessas lésbicas e gays como uma ameaça séria. Eles se enxergam como não tendo nenhuma alternativa de prática sexual se tiverem de abandonar essa que é baseada na erotização da opressão. Mas existe, no nosso próprio entendimento de que a sexualidade é algo construído e não dado, uma mensagem de esperança. Podemos reconstruí-la. Existe espaço para otimismo. Algumas lésbicas e gays são bem pouco afetados pelo sadomasoquismo, e são capazes de praticar um tipo diferente de sexualidade. Até mesmo aqueles de nós que sabem do alcance da influência do sadomasoquismo em nossas vidas usualmente experienciam momentos de intensidade e prazer sexual incomum nos quais não há envolvimento de fantasias de dominação e submissão em qualquer grau. As sementes da mudança estão em todos nós. Podemos buscar maximizar a sexualidade positiva ao invés de maximizar a sexualidade negativa do sadomasoquismo.

Os gatilhos da resposta sexual construída no entorno do masoquismo são os símbolos de poder e autoridade. Os símbolos particularmente poderosos são aqueles que representam poder e autoridade abusiva, cruel e arbitrária, sendo o chicote o símbolo mais poderoso que um distintivo de chefe. Os aparatos e rituais do fascismo são símbolos perfeitos para esse propósito. Uniformes, marchas, suásticas, retratos de Hitler, discursos autoritários são todos gatilhos eróticos. Os sádicos do Front Nacional são estimulados através da visão repetida de vídeos de marchas e paradas nazistas na Alemanha. Toda a parafernália do fascismo é calculada para obter uma resposta erótica poderosa daqueles cuja sexualidade tem sido formada sob a supremacia masculina e modelada no sadomasoquismo. Isso inclui a maioria de nós.

É a capacidade de ser atraído pelo nazismo que entorpece a resposta de ultraje que muitas pessoas podem de outra forma sentir por ele. A construção da sexualidade sadomasoquista é um poderoso e inteligente truque para o opressor. Nossa resistência é minada nas nossas próprias vísceras se nossa resposta à tortura dos outros ou às armadilhas do militarismo é mais erótica do que politicamente indignada. É muito difícil lutar contra o que te excita. Esse é um problema que as feministas anti-pornografia já reconheceram e entenderam. É humilhante e paralisante ser estimulada pela própria degradação das mulheres que você visa combater. O único jeito de lutar é transformar essa dor em raiva. Não somos culpados pela forma como a nossa sexualidade é construída, ainda que sejamos totalmente responsáveis pela forma como escolhemos agir sobre isso. Temos direito de estar furiosas e de direcionar a nossa dor ao ataque aos mercadores da pornografia, aos apologistas da pornografia (infelizmente eles incluem as lésbicas do sadomasoquismo), os compradores e consumidores de pornografia. É difícil, mas devemos entender que as imagens e mensagens — das mulheres como objetos, torturadas, usadas e abusadas — que influenciam nossa própria resposta sexual têm a intenção de nos paralisar. Não podemos nos dar ao luxo de ser debilitadas por essas imagens, mas podemos compartilhar nossos sentimentos e construir nossa raiva.

Da mesma forma que com o sexismo, as armadilhas do fascismo e até mesmo suas práticas podem ser excitantes não apenas para o opressor mas também para suas vítimas. Edmund White, um novelista gay americano, entrevistou um casal de homens gays que tinha o hábito de usar uniformes policiais em seu livro States of Desire: Travels in Gay America. Ele explica que havia um bar cheio de homens gays em uniformes policiais no qual entre os clientes se incluíam homens gays vestidos como policiais e policiais na vida real. Esse flerte trágico e degradante com a opressão teve implicações alarmantes. Um homem fantasiado de policial, quando mais tarde foi preso do lado de fora do bar, passou esse tempo extasiado pelas botas do policial. Outro que também foi preso e surrado não falava de outra coisa que não a sua paixão pelo seu atormentador. [1]

Os promotores do sadomasoquismo constantemente destacam que o sadomasoquismo é “apenas fantasia” e não possui nenhuma relação com a realidade. A promoção do sadomasoquismo e de sua imagética vai assegurar que seja cada vez mais e mais difícil no futuro para algumas lésbicas e gays, e talvez até mesmo para todos aqueles que fazem parte da cena gay social que são afogados em imagética sadomasoquista, serem apenas raivosos e de forma nenhuma excitados eroticamente pela imagética de prática real de fascistas, policiais e valentões. Acredito que é importante que sejamos capazes de distinguir as ameaças fascistas de forma precisa e lutar contra elas de forma clara. Não quero pensar que quando os tanques, as botas marchando e as suásticas passarem em um golpe fascista real, a população gay esteja experienciando uma onda de desejo erótico que nos imobilize.

O sadomasoquismo é racista?

Os promotores britânicos e americanos do sadomasoquismo ficam moralmente indignados a respeito da sugestão de que possa haver alguma coisa de racista em suas políticas. Assim, Pat Califia, representante do sadomasoquismo lésbico californiano, proeminente “top” ou sádica, dispensou as críticas de racismo feitas quando disseram ao grupo sadomasoquista Samois que eles não poderiam alugar um espaço em um edifício de mulheres em São Francisco, “Espera-se que nos defendamos contra acusações de que somos racistas…”, ela reclamou indignada. [10] Ela claramente não o faz, nem menciona em qualquer lugar o conteúdo das alegações e os modos pelos quais ela enxerga essas acusações como falsas. Tal crença arrogante de uma mulher branca de que eles estão acima e além de qualquer possibilidade de comportamento ou atitude racistas seria, espera-se, em qualquer outra esfera além dessa da sexualidade, vista como uma forma de racismo.

Os proponentes do sadomasoquismo deveriam estar cientes da ofensa a todos os gays não brancos que o emblema de uma ideologia política que significa a morte ou a perseguição odiosa significa a todos os não arianos. O Gay Black Group deixou bastante claras as suas perspectivas em resposta à imagética nazista em eventos gays mistos.

Estamos cada vez mais conscientes da presença de pessoas usando insígnias fascistas e nazistas em vários eventos lésbicos e gays, orgulhosamente exibindo símbolos do Movimento Britânico e do Front Nacional. Crescem as denúncias de ataques a homens gays e mulheres por esse tipo de gente. Não é mais aceitável para nós que pessoas usando tais tipos ofensivos de roupas sejam perdoados ao justificarem que se trata apenas de “moda”.
Achamos ofensivo e perturbador que o racismo continue incontestado, tido como normal ou de outra forma tolerado por toda a comunidade lésbica e gay. Estamos atordoados com a ignorância a respeito dos numerosos ataques, abusos e hostilidade direcionadas às pessoas gays pelos grupos de fascistas. Sentimos que um esforço conjunto precisa começar a identificar e erradicar as raízes do racismo e do fascismo inerentes na comunidade lésbica e gay…
O Gay Black Group tem experimentado violência nas mãos dos fascistas tanto por motivo de racismo quanto por causa da nossa sexualidade. [11]

A feminista negra americana Alice Walker, em um comovente e, poderia-se pensar, incontestável artigo, explanou o modo pelo qual ela via a prática do sadomasoquismo como sendo racista. Walker escreve como uma professora que passou um período com mulheres estudantes, negras e brancas, tentando “chegar a um consenso, pela imaginação e pelos sentimentos”, a respeito do que significa ser uma escrava, senhor ou sinhá. “Mulheres negras, brancas ou mestiças escreveram sobre cativeiro, estupro, procriação forçada para reabastecer as senzalas do senhor de escravos. Elas escreveram sobre tentativas de fuga, sobre a venda de seus filhos, sobre sonhos com a África, sobre tentativas de suicídio.” [12] Em seguida, ela escreve sobre os efeitos de assistir a um programa de TV no qual duas mulheres do Samois participam como mestra e escrava. Ainda que o artigo seja escrito em um estilo ficcional e tenha sido publicado originalmente em um livro de contos, o programa de TV sadomasoquista não era ficção, mas realmente acontecia conforme ela descreve.

Imagine nossa surpresa, portanto, quando muitas de nós assistimos a um especial de televisão sobre sadomasoquismo que foi ao ar na noite anterior ao fim das nossas aulas, onde o único casal interracial que aparece, lésbicas, se apresentavam como escrava e senhora. A mulher branca, que falou todo o tempo, era a senhora (usando um anel em forma de chave que ela disse encaixar na fechadura da corrente em volta do pescoço da mulher negra), e a mulher negra, que permaneceu sorrindo e silenciosa, era — disse a mulher branca — sua escrava…
Tudo o que estive ensinando foi subvertido por aquela única imagem, e eu fiquei enfurecida de pensar que a difícil luta das minhas estudantes para se livrarem dos estereótipos, para combater o preconceito, para se colocarem na pele das mulheres escravizadas, e então verem sua luta ridicularizada, e a condição real de escravizadas de literalmente milhões de nossas mães trivializada porque duas mulheres ignorantes insistiram em seu direito de encenarem publicamente uma “fantasia” que ainda causa terror nos corações das mulheres negras. E também vergonha e nojo, pelo menos nos corações da maior parte das mulheres brancas em minha sala de aula.
Uma estudante branca, aparentemente com ligações próximas ao grupo local de lésbicas sadomasoquistas, disse que não conseguia ver nada de errado com o que vimos na TV. (A propósito, havia muitos homens brancos nesse programa que possuíam mulheres brancas como “escravas”, e até mesmo diziam ter documentos legais atestando isso. De fato, um homem exibia sua escrava pela cidade com um arreio de cavalo em seus dentes e a “emprestava” a outros sadomasoquistas para ser chicoteada.) É tudo fantasia, disse ela. Nenhum mal estava sendo feito. A escravidão, a escravidão real havia acabado afinal.
Mas ela não acabou… e os livros de Kathleen Barry sobre escravidão sexual feminina e de Linda Lovelace relatando sua experiência como escrava não são os únicos indicadores de que isso é verdade. [13]

Pat Califia resolveu responder o artigo de Alice Walker em duas frases inteiramente desdenhosas em sua contribuição ao livro do grupo Samois, Coming to Power. “…Em uma tentativa de provar que o sadomasoquismo é racista, Walker descreve essas mulheres [aquelas interpretando senhora e escrava no programa de TV] como uma mulher branca dominadora e uma mulher negra masoquista. Na verdade, a dominadora nesse casal é uma lésbica latina.” [14] Esse é o nível de seriedade com qual o grupo Samois, a partir do qual os grupos de apoio ao sadomasoquismo lésbico britânico parecem usar de modelo, aborda o assunto do racismo.

O grupo britânico lésbico de sadomasoquismo apoiado pelo Coletivo Inglês de Prostitutas (ECP) e o Wages Due Lesbians (dois subgrupos dentro da organização guarda-chuva Wages for Housework, uma campanha fortemente antifeminista que tenta se infiltrar onde quer que vejam assuntos de interesse das mulheres que possam ser usados para destruir o movimento de libertação delas) foi ao encontro de algumas lésbicas feministas em Londres que queriam planejar uma campanha para questionar a disseminação das políticas sadomasoquistas. Uma mulher do ECP apresentou uma razão, pensada a partir da literatura padrão propagandista do sadomasoquismo, do porquê o sadomasoquismo poderia ser bastante útil nas relações. Ela explicou que em relacionamentos entre mulheres negras e brancas, os rituais sadomasoquistas poderiam ser encenados de modo a equilibrar as diferenças de poder ou ao menos ajudar a entendê-las. Essa mulher, que era branca, não disse quem deveria representar o papel de dominadora e quem deveria ser a dominada nessas relações. No exemplo americano citado acima, a dominada era uma mulher negra. Mas apenas supondo que não seja sempre este o caso, é realmente possível ver encenações de rituais racistas, mesmo nos casos em que as relações de poder não são com brancos sendo dominadores e negros os dominados, como formas de ajudar a eliminar o racismo? Na literatura pornográfica masculina, a mulher negra é representada tanto como uma vítima escrava submissa quanto como dominatrix. Os rituais do sadomasoquismo podem apenas reforçar um ou ambos desses estereótipos. O sadomasoquismo não oferece qualquer chance de se libertar deles.

Pode o sadomasoquismo ser reformado?

Pat Califia explica, em Coming to Power, que alguns membros do grupo Samois acharam que alguns dos seus princípios estavam em oposição à prática sadomasoquista, e que isso levou a alguns problemas dentro do grupo. Ela não diz quais são esses princípios e não se mostra simpática a eles, mas podemos tentar adivinhar que dizem respeito a coisas como o uso de suásticas ou até mesmo rituais onde mulheres negras eram escravas. Não parece que as mulheres britânicas sadomasoquistas estejam com a consciência pesada, uma vez que ao menos uma delas foi vista abertamente usando suásticas. Mas seria possível para os praticantes do sadomasoquismo “limparem” suas performances e cortarem fora simbolismo obviamente racista como resultado da crítica? (Até o momento, a resposta deles à crítica tem sido chamar os críticos de fascistas e racistas, dizer que os sadomasoquistas não iriam permitir qualquer encontro público sem lésbicas sadomasoquistas vestidas a caráter, e impedir a discussão.)

O ritual sadomasoquista erotiza as relações de dominação e submissão, e envolve a encenação da opressão. Os cenários de nazistas e judeus, ou de escravos e senhores podem possivelmente ser tirados da pauta por aqueles com a consciência mais sensível. Isso deixaria um escopo amplo de cenários e figurinos representando opressão sexista, usando imagens da prostituição, de assédio sexual ou simplesmente estereotipificação fetichizada sexista, como por exemplo um dos personagens vestido como ciclista forte e outro afeminado usando espartilhos e babados. Isso é realmente uma solução?

Fora o fato de que esse imagético permaneceria terrivelmente sexista e heterossexista, qualquer erotização do poder, qualquer glorificação da opressão pode apenas fortalecer os valores que mantém todas as formas de opressão. A opressão racista depende tanto das ideias de que o poder é um direito, de que a violência é um razoável modo de ameaçar aqueles tidos como inferiores, que as desigualdades de poder são desejáveis e inevitáveis, quanto o sexismo. A prática do sadomasoquismo reforça esses valores. Tal prática não permite qualquer espaço para a existência de uma alternativa a esses valores. Se estamos comprometidos com a meta de uma sociedade na qual nenhum grupo da população está sujeito a violência, discriminação e exploração, então devemos desenvolver uma forma de prática sexual que reflete o tipo de sociedade que queremos criar. Do contrário, o que estamos dizendo é que o sexo e as emoções envolvidas nele estão bastante desconectados do restante de nossas vidas e não possuem nenhuma relevância política. Tal prática precisa ser mútua, carinhosa e igualitária. Isso, claro, é um pecado na opinião dos proponentes do sadomasoquismo. Práticas assim são chamadas de bambi por homens gays defensores do sadomasoquismo como Jeffrey Weeks e de vanilla pelas lésbicas do Samois. [15] Ambos os termos foram criados de forma a mostrar desdém e afastar as pessoas. Práticas sexuais igualitárias são representadas como desprovidas de intensidade, monótonas, apropriadas apenas para fracotes.

Os proponentes do sadomasoquismo estão conscientes de que estão sujeitos à crítica política, de modo que alguns deles desenvolveram uma defesa engenhosa. Alguns anos atrás, um membro do agora defunto grupo Gay Left realizou uma fala em defesa do sadomasoquismo, com apresentação de slides, em um workshop gay. Ele mostrou slides de homens vestidos com uniformes nazistas urinando em sarjetas e forçando homens algemados a lamberem a urina nos seus joelhos. Intrigada, perguntei a ele o que tudo aquilo tinha a ver com socialismo. A princípio, ele respondeu que não tinha nada a ver com o socialismo mesmo, tratava-se apenas de prática sexual. Mais tarde, ele forneceu uma justificativa que alguns ex-sadomasoquista políticos se sentiram obrigados a desenvolver. A prática sadomasoquista seria uma forma de ajudar os envolvidos entenderem as diferenças de poder existentes no mundo e trabalharem mais efetivamente para o fim delas. (Vide também o argumento descrito acima dado pelo ECP e pelo grupo de apoio sadomasoquista lésbico.) Um defensor americano do sadomasoquismo expressou essa defesa de forma bastante sucinta:

Talvez um dos modos mais efetivos de lutar contra o poder político e até mesmo torná-lo desnecessário é entender os impulsos de poder e submissão em si mesmo e integrá-los. O envolvimento no sadomasoquismo tende a remover a “necessidade” pessoal de oprimir e ser oprimido, manipular e ser manipulado socialmente e politicamente — outra razão porque aqueles que possuem delírios de poder político tendem a se opor tão fortemente a ele. O sadomasoquismo pode ser parte de uma verdadeira rebelião contra a opressão social estruturada, o que é parte da razão porque anarquistas e libertários estão sub-representados entre os praticantes do sadomasoquismo. [16]

Para esse homem, a opressão parece ser algo que as pessoas “precisam” e atraem para si. Essa é a análise lógica da perspectiva do sadomasoquismo, que vê a violência e o abuso como algo que as pessoas podem “precisar” ou escolher. É uma análise completamente individualista, da qual a opressão da vida real não faz parte. É um argumento espúrio e auto-indulgente. De que forma a prática do sadomasoquismo nos ajuda a desmantelar o complexo militar-industrial, confrontar grupos de valentões fascistas ou ajudar uma mãe lésbica a conseguir a custódia de seus filhos?

Lutar contra a opressão estrutural requer amor-próprio e alguma ideia de que uma alternativa existe fora dos círculos de dominação e submissão. Podemos nos guiar apenas pela noção de que as estruturas de poder opressivas não “precisam” existir para a felicidade humana, seja ela sexual ou de qualquer outro tipo.

Sadomasoquismo como política

Os promotores do sadomasoquismo estão atraindo apoio de liberais com base em sua reivindicação de liberdade individual, o direito pessoal de seguir a prática sexual escolhida. Mas o argumento de liberdade pessoal não é necessariamente progressiva. Esse era o alicerce da política econômica e social Thatcheriana. Tal argumento depende da condição de que o comportamento em questão não fira qualquer outra pessoa além da própria praticante. (Algumas pessoas argumentam que deveria haver limites ao direito de qualquer ser humano causar dano físico a si mesmo ou requerer que outro ser humano cause dano a eles. Qual seria a nossa responsabilidade se confrontados com um cenário de fistfucking anal brutal em um contexto de uso de drogas e álcool, quando sabemos que a prática poderia levar a lesões terríveis ou a morte? Iríamos intervir nos masturbar para isso, ou dar as costas?) A promoção do sadomasoquismo causa dano para além de apenas aos seus praticantes e trata-se da promoção de muito mais coisas do que a de uma prática sexual; não se trata de um hobby, mas de uma política e de um estilo de vida.

O uso de roupas de sadomasoquismo em eventos sociais, marchas etc, na forma de fantasias de couro negro, algemas e rebites, cria uma atmosfera de ameaça e ansiedade para todas as lésbicas presentes. As lésbicas geralmente procuram a companhia de outras mulheres para escapar do assédio e da intimidação dos homens na rua, em anúncios e na pornografia. Estamos acostumadas ao “masculino”, a homens agressivos usando roupas de sadomasoquismo rotineiramente no intuito de intimidar, por exemplo Hell’s Angels. Não deveríamos ter que temer outras lésbicas ou sermos ostracizadas porque não aceitamos esse tipo de vestimenta intimidadora. Há muitas lésbicas em Londres agora cujas vidas sociais estão restritas pela prevalência do uso de roupas sadomasoquistas, seja à guisa de moda ou como extensão da prática do sadomasoquismo. Essas lésbicas não são fracotes. Temos direito de não sentir medo e direito a espaços livres da violência.

O uso de emblemas nazistas e fascistas, por exemplo, suásticas, quepes de couro negro da SS, sobretudos de couro negro da SS, ofendem e causam grande agonia em todas as lésbicas que estão conscientes do que o fascismo germânico significa em termos de violência e morte para os judeus, ciganos, lésbicas, aqueles física e mentalmente diferentes, todos os que não sejam homens brancos, gentios, heterossexuais e fisicamente capazes.

A aceitação de vestimenta sadomasoquista, particularmente a emblemática nazista, torna a comunidade lésbica menos apta a entender o florescimento bastante real de valores e práticas fascistas na sociedade britânica atualmente. Não precisamos que as distinções sejam ofuscadas. Devemos ver e questionar claramente qualquer tentativa de tornar os valores e comportamentos racistas e fascistas aceitáveis. Alguns daqueles que vestem emblemática fascista estão assediando e atacando gays, particularmente gays negros, agora mesmo. Eles se tornam mais difíceis de expor e rejeitar quando a emblemática fascista e “masculina”, e os valores agressivos se tornam lugar comum na cena social gay.

A erotização do poder e da opressão na sexualidade de crueldade que é o sadomasoquismo nos treina a nos excitarmos pelas armadilhas do fascismo. O apelo erótico do fascismo, estruturado em nossa sexualidade conforme aprendemos nossas respostas sexuais vivendo sob a supremacia masculinista, é aumentado pelas políticas do sadomasoquismo. Apenas a construção de uma prática sexual igualitária pode se encaixar em uma política antifascista.

O sadomasoquismo não é uma prática sexual que caiu do céu, mas uma resposta e um eco do crescente domínio dos valores e práticas fascistas no mundo fora do gueto gay. Como na Alemanha no início dos anos 1930, os ataques racistas estão aumentando agora. Militarismo crescente infecta a sociedade ocidental. O pornô e os anúncios publicitários se tornaram mais e mais violentos e sádicos com as mulheres. Temos um governo conservador que está dedicado a restringir as liberdades pessoais com a desculpa de aumentá-las. Há uma atmosfera de medo e tensão social crescentes conforme as políticas governamentais polarizam as diferenças entre os pobres e ricos, negros e brancos, mulheres e homens. Nesse contexto, o sadomasoquismo pode ser visto como sendo não uma saída corajosa e radical, mas um modo em que lésbicas podem traduzir diretamente o ódio e o desprezo por mulheres, e particularmente por lésbicas, em suas relações entre si, que os valores fascistas representam. Talvez esta seja uma forma de autodefesa mal direcionada, isto é, se lésbicas causam medo e dor umas às outras agora, não será tão angustiante quando recebermos tal tipo de abuso dos outros no futuro.

Os advogados do sadomasoquismo defendem que sua prática sexual não afeta de nenhum modo as suas relações uns com os outros e o resto do mundo fora do quarto, exceto em fazê-los se sentirem mais fortes. Nas escolas de treinamento para a tortura na Grécia sob ditadura militar e também em outros regimes de extrema-direita, os torturadores treineiros eram treinados sendo eles mesmos torturados. Pode ser que as lésbicas dominadas ou masoquistas, que correspondem à vasta maioria delas, tenham tido as suas sensibilidades enfraquecidas pela tortura a qual escolhem se sujeitar. Para criar um número suficiente de sádicas, algumas masoquistas precisam progredir na prática para distribuir o que receberam anteriormente.

A prática do sadomasoquismo escorre para fora do quarto em outras áreas das relações lésbicas. O trecho a seguir é de um artigo do Coming to Power no qual Susan Farr explica como ela e sua amante usam punição física para superar o ciúme que sentem uma pela outra na não-monogamia.

Se eu chicoteio Rae após ela ter feito sexo com alguma pessoa, isso também expressa diretamente o quanto estou com raiva e ciúmes. Este é um exercício de poder, inquestionavelmente. Ele me dá um escape para os sentimentos “negativos” e bastante naturais que existem independente do meu comprometimento com os princípios da não-monogamia. A punição também funciona como um alívio da culpa da pessoa tendo o caso, outro sentimento “negativo” e natural que existe independente das crenças sinceras de que os baixos ocasionais da não-monogamia são preferíveis à sufocação da monogamia monótona… Essa discussão dos rituais de punição usados como uma resposta à não-monogamia é um exemplo de como a agressão física pode funcionar para manter o relacionamento às claras. [17]

Os sadomasoquistas diriam que existe uma diferença entre o que é descrito aqui e um relacionamento onde ocorre agressão explícita. A distinção, baseada na falsa premissa de que podemos consentir com abuso (lembre da velha anedota na qual esposas agredidas na verdade gostam de apanhar), pode facilmente se tornar confusa de modo que a agressão se torna bastante danosa para um ou ambos os parceiros. Marissa Jonel, uma sobrevivente do sadomasoquismo, descreve uma situação em Against Sadomasochism. [18] Tal agressão “consensual” não é capaz de ajudar na nossa luta enquanto mulheres e lésbicas para afirmar o desejo das mulheres de viverem livres de violência, nosso direito de não sermos vistas como alvos apropriados para violência. O sadomasoquismo é muito mais do que uma prática sexual. É um estilo de vida e uma abordagem ao mundo que glorifica e legitima a violência. Relações onde ocorrem agressões reduzem o potencial de seus participantes e de todos nós de encontrar modos alternativos de lidar com o conflito. A agressão entre lésbicas, onde lésbicas direcionam seu anti-lesbianismo e auto-ódio internalizado umas às outras, é um problema sério com o qual a comunidade lésbica tem que lidar, não é uma brincadeira.

É importante compreender que se trata de uma política do sadomasoquismo que está sendo promovida, não apenas uma prática sexual. As táticas do sadomasoquista deixam isso claro. Os promotores do sadomasoquismo, com a desculpa de fazerem parte de uma minoria oprimida, levaram um cartaz sadomasoquista na marcha Lesbian Strength em junho de 1984. Isso significa que muitas lésbicas que sabiam desse cartaz nunca foram à marcha, e muitas outras se sentiram incapazes de fazer parte da marcha naquele dia. Os promotores do sadomasoquismo estavam bastante conscientes de que estavam dessa forma dividindo e excluindo muitas lésbicas da marcha, mas o direito de três lésbicas sadomasoquistas de causar dano à unidade e às políticas lésbicas foi defendido pelos seus asseclas e toda a objeção foi rejeitada. Os promotores do sadomasoquismo incitam deliberadamente esses confrontos e o estilhaçamento da unidade política que decorre deles. Nos EUA, o grupo Samois primeiramente destruiu a unidade das marchas do Orgulho Gay, e então buscaram dividir o centro coletivo de mulheres de São Francisco reservando espaços onde seriam realizadas atividades, e depois começaram a intimidar e assediar livrarias feministas que não exibissem sua literatura propagandista de forma proeminente. O grupo de lésbicas sadomasoquistas britânicas reservou espaço em um centro de mulheres de Londres, A Woman’s Place. A mesma tática foi usada no Lesbian and Gay Center. Apesar da oposição da vasta maioria das feministas lésbicas que eram membras do centro, os sadomasoquistas foram permitidos no espaço em junho de 1985.

Essa campanha coordenada para espalhar confusão, desunião e medo, de forma desproporcional ao seu número de integrantes, lembra nada menos do que as táticas fascistas. Fiando-se no apoio do liberalismo, eles criam confrontos para causar discórdia na oposição política e enfraquecer nossa capacidade de confrontar práticas e valores fascistas em qualquer forma que se apresentem. (Um exemplo de fascistas utilizando essa tática foi um movimento recente do Front Nacional demandando ajuda do Conselho Nacional pelas Liberdades Civis [NCCL, na sigla em inglês]. Isso foi calculado para dividir a NCCL e causou dano considerável.) O que está acontecendo é muito mais do que a tentativa de uma minoria “oprimida” de ganhar o direito de agir conforme suas práticas sexuais. O sadomasoquismo é uma política com táticas definidas, que incluem a intimidação por mulheres vestidas em uniforme de couro negro. Raras vezes um grupo “oprimido” foi tão opressivo e potencialmente destrutivo.

As implicações das políticas sadomasoquista são muito alarmantes para se ignorar. Não apenas as políticas feministas, mas todas as políticas antirracistas, antifascistas e anticapitalistas dependem de um entendimento de que os oprimidos não buscam, precisam ou querem sua opressão. O grande mito que une a ideologia da democracia ocidental é o do consentimento. No pensamento democrático ocidental todos os grupos dentro de uma população consentem com um sistema de governo. Aí existe consenso. Mas não é bem assim. Somente aqueles que são homens brancos detentores de riqueza estão em qualquer posição de exercer consentimento verdadeiro a um sistema político que rotineiramente degrada, explora e controla todos os outros. O sadomasoquismo utiliza essa noção politicamente manipulativa de consentimento para se justificar. A noção de que qualquer pessoa deliberadamente busca abuso e degradação pode ser explorada de forma muito fácil para justificar sistemas opressivos políticos, por exemplo, o valor fascista básico de que as massas “precisam” de um líder forte. A doutrina política básica do sadomasoquismo está então em contradição com a nossa luta por um sistema político baseado no direito de todo ser humano à dignidade, igualdade, amor-próprio e auto-governo.

A sexualidade de crueldade que é o sadomasoquismo não é nem inata nem inevitável. Ainda que muitos de nós experienciemos fantasias e práticas que incorporam valores de dominância e submissão do sadomasoquismo, também experienciamos uma sexualidade positiva com valores igualitários. É essa sexualidade positiva que precisamos promover e ampliar. Nossa capacidade de amarmos uns aos outros com dignidade e amor-próprio, não apenas com intensidade de sensações e prazer, tem sido danificada pela nossa experiência de opressão. Mas essa capacidade não foi destruída. Devemos lutar contra todas as pressões que nos encorajam a amar as botas que nos curvarão à submissão. Podemos decidir não participar de um romance com nossos opressores. Podemos ter uma sexualidade que é integrada, não com a nossa opressão, mas com as nossas políticas de resistência.


Notas

[1] ISHERWOOD, Christopher. Down There on a Visit. Londres: Methuen, 1962. P. 73-74.
[2] SHERMAN, Martin. Bent. Derbyshire, UK: Amber Lane Press, 1980. P. 67.
[3] HEGER, Heinz. The Men with the Pink Triangle. Tradução de David Fernback. Londres: Gay Men’s Press, 1980. P. 82-83.
[4] BELLWETHER, Janet. “Love Means Never Have to Say Oops: A Lesbian Guide to S/M Safety”. In: SAMOIS (editor). Coming to Power: Writings and Graphics on Lesbian S/M. Segunda edição. Boston: Alyson, 1982. P. 70-71 e 74.
[5] CALIFIA, Pat. “Feminism and Sadomasochism”. Heresies. Sex Issue 12. P. 32.
[6] Cf. várias passagens em DALY, Mary. Gyn/Ecology. Boston: Beacon Press, 1978; e também Beyond God the Father: Toward a Philosophy of Women’s Liberation. Boston: Beacon Press, 1973.
[7] LEIDHOLDT, Dorchen. “Where Pornography Meets Fascism”. WIN, 15 de março de 1983. P. 18. As citações usadas por Leidholdt estão em WAITE, Robert G. L. The Psychopathic God. Nova York: Basic Books, 1977. P. 153, 375 e 380.
[8] TIMERMAN, Jacobo. Prisioner without a Name, Cell without a Number. Nova York: Knopf, 1981. P. 66.
[9] WHITE, Edmund. States of Desire: Travels in Gay America. Nova York: Dutton, 1983. Aparentemente, o uso de violência real como excitação sexual tem aumentado desde as observações de White. Recentemente, uma pessoa da equipe da livraria Glad Day em Boston me disse que o livro History of Torture de Daniel P. Mannix (Nova York: Dell, 1983) é o campeão de vendas da loja.
[10] CALIFIA, Pat. “A Personal View of the History of the Lesbian SM Community and Movement in San Francisco”. In: Samois (editor). Coming to Power, 1982. P. 274.
[11] Gay Black Group. “Letter to the Editor”, Capital Gay. Londres, 14 de fevereiro de 1984.
[12] WALKER, Alice. “A Letter of the Times, or Should This Sadomasochism Be Saved?” In: LINDEN, Robin Ruth et al (editores). Against Sadomasochism: A Radical Feminist Analysis. Palo Alto, California: Frog in the Well Press, 1982. P. 206–207. Reimpresso de WALKER, Alice. You Can’t Keep a Good Woman Down: Stories by Alice Walker. Nova York: Harcourt Brace, 1981. P. 118–123.
[13] WALKER, Alice. “A Letter of the Times”, 1982. p. 207.
[14] CALIFIA, Pat. “A Personal View”, 1982. p. 268.
[15] Vide a contribuição de Jeffrey Weeks ao Gay News. No. 243. Edição de 10º aniversário, 1982. Vanilla é um termo que aparece com frequência na literatura lésbica sadomasoquista.
[16] YOUNG, Ian. Comentários sobre o “Forum on Sadomasochism”, em JAY, Karla; YOUNG, Allen (editores). Lavender Culture. Nova York: Harcourt Brace, 1978. P. 104.
[17] FARR, Susan. “The Art of Discipline: Creating Erotic Dramas of Play and Power”. In: Samois (editor). Coming to Power, 1982. P. 16.


REFERÊNCIA: JEFFREYS, Sheila. “Appendix — Sadomasochism: The Erotic Cult of Fascism”. In: The Lesbian Heresy: A Feminist Perspective on the Lesbian Sexual Revolution. Melbourne: Spinifex Press, 1993. P. 172-189.