De Janice Raymond, traduzido livremente de A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection1 por @taticafeminista.
O que uma mulher pensa das mulheres é a prova de sua natureza.
George Meredith, Diana of the Crossways
Eu sou a responsável por ter esta amizade com Ethel Waters, porque eu trabalhei por isto… Sou sua amiga, e sua língua está em minha boca. Posso falar seus sentimentos por ela, ainda que Ethel Waters se saia muito bem ao falar por si própria.
Zora Neale Hurston, Dust tracks on a Road
Jezabel, aquela tagarela avoada, costumava passar muito de seu Tempo com a cabeça para fora da Janela, gritando “Uoo Hoo” para os Rapazes a caminho da Guerra e da Morte. E alguns atravessaram sua Porta, e outros seguiram em frente, ainda que não tenham sido muitos – sejamos francas. Assim as coisas se passavam quando a Rainha de Sabá passou sob sua janela, e Jezebel, inclinando-se sobre o beiral, gritou “Uoo Hoo”. E este foi seu último “Uoo hoo”
Djuna Barnes, Ladies Almanack
DE ACORDO COM O HOMEM
Homens sempre entenderam que é importante começar pelo começo. Os acadêmicos desenvolveram elaboradas teorias sobre origens, mitos de criação, e esquemas evolutivos que reivindicam chegar ao início insondável da raça humana. Em todos estes esquemas, mulher e homem evoluem para serem um para o outro. De acordo com o homem, a mulher não é para a mulher. Dentro de uma heterorrealidade, Gin/afetos não têm status de origem.
Antes da mulher, havia o homem. Todas as crônicas masculinas da origem humana, ignorando ou desdenhando evidências biológicas, colocam o homem no começo e no próprio engendramento da existência humana. A Bíblia Hebraica conta:
Yahweh Deus moldou o homem do pó do solo… Yahweh Deus disse “Não é bom que o homem esteja só. Vou-lhe fazer uma ajudante…”. Assim, Yahweh Deus adormeceu o homem profundamente. E enquanto este dormia, ele tirou uma de suas costelas. Yahweh Deus esculpiu a costela que tirara do homem em uma mulher, e a trouxe para o homem. O homem exclamou: “Isto, enfim, é osso do meu osso, carne da minha carne! Isto vai se chamar mulher, pois isto foi feito do homem”.
(Gen. 2:18-24)
Esta passagem foi interpretada como uma prova mítica de que o homem é o ser humano primordial. Ela também estabelece que a relação humana primordial se dá entre macho e fêmea.
A narrativa do Gênesis sugere, involuntariamente, a improdutividade da homorrelação anterior, existente entre um deus masculino e o macho humano. Parecia que sua relação “homem a homem” era algo lúgubre, uma vez que, do ponto de vista bíblico, a mulher se torna o ser necessário para aplacar a solidão do homem. Desde então, os homens pronunciaram que a relação humana original é a heterorrelação, apagando as evidências de sua broderagem. Portanto, a narrativa normal de atos amorosos e sentimentais existem pretensa e privativamente entre homens e mulheres.
De acordo com o homem, a sociedade original consiste em um homem e uma mulher consonantes e consortes entre si. Tal relação é construída sobre uma teoria da evolução social que enrijece os papéis sexuais e o comportamento social. Durkheim, por exemplo, liga a evolução da sociedade, com sua transformação de solidariedade mecânica em solidariedade orgânica, à evolução da “solidariedade conjugal” no matrimônio e à “evolução” da diferenciação sexual. Grupos sociais mais antigos, no qual as funções das mulheres não eram nitidamente diferentes das funções dos homens, e onde não havia a imposição de constrições conjugais, eram computadas como fracas. A real sociedade evoluiu com a divisão do trabalho e sua proporcional submersão das mulheres na família, com a projeção do homem na esfera pública. O papel da divisão do trabalho “não é apenas o de embelezar ou melhorar as sociedades, mas fornecer às sociedades os próprios meios de sua existência”2. Para Durkheim, e para todos os homens funcionalistas, uma sociedade real não pode se estabelecer até que tenha passado por sua fase patriarcal, ou como eles chamam, sociedade orgânica. O grupo social primordial é heterorrelacional, ou seja, baseado nos arranjos sociais e comportamentais entre homens e mulheres.
De acordo com o homem, a construção da civilização se desenrola como um drama heterorrelacional. O homem assume a tarefa de construtor mundial porque o homem é o ator/ativista original. No script evolutivo Freudiano, o homem é o iniciador da civilização por ter o mais alto libido. Uma vez que mulheres tenham pouca iniciativa sexual, de acordo com o psicanalista, e uma vez que o nascimento da cultura envolve sublimação sexual de uma sexualidade que apenas homens possuem, a mulher não pode conceber vida civilizada. O papel heterorrelacional feminino é de atriz coadjuvante nas produções culturais masculinas.
De acordo com o homem, as origens da consciência começam na academia heterorrelacional, com um homem mentor e uma mulher estudante. É o homem quem introduz a mulher na consciência de si própria e do cosmos. No interior desta escola heterorrelacional, o homem desperta a si e à mulher à consciência do Self, dos outros, da sexualidade e, mais tarde, à linguagem e às ideias. Na Bíblia Hebraica o homem nomeia e dá existência às coisas quando se torna consciente de seu rebanho, bestas selvagens, pássaros nos céus e da mulher, fruto de sua costela. A consciência masculina confere existência porque é o homem quem desperta primeiro para a consciência de si, A mulher é trazida à vida e conscientizada desta pelo homem.
A mulher é porque o homem aceitou seu papel evolutivo como iniciador sexual (fodedor). Um dos mais flagrantes misóginos antissemitas, o escritor Otto Weininger, atribui a própria existência da mulher ao reconhecimento masculino e à aceitação da sexualidade masculina.
Quando o homem se tornou um ser sexual, ele formou a mulher. Que a mulher simplesmente exista acontece simplesmente porque o homem aceitou sua sexualidade. A mulher é meramente o resultado de sua afirmação; é sexual em si mesma. A existência da mulher é dependente da existência do homem; quando o homem, enquanto homem, se contrapõe à mulher, ser sexual, ele está dando forma a ela, invocando-a a existir.3
Esta é uma justificativa das mais arrogantes para a naturalidade e primazia das heterorrelações. De acordo com Weininger, e mais discretamente outros, não só a mulher, mas toda a sua existência afetiva é trazida à vida pelo homem. Portanto, o homem tem sido e sempre será seu destino. Para as mulheres, o caso amoroso primordial é entre homem e mulher. A relação natural que homens têm prescrito às mulheres é a mulher para o homem.
O homem tem nomeado a hetero-afeição como a relação primordial para as mulheres. Isto é primordial pois os homens, como pessoa original, é também o iniciador original. Isto lhe confere o direito de chamar as coisas e as criaturas à vida por si próprio. De acordo com o homem, a mulher é o receptáculo primordial. Ela não é a pessoa original e, portanto, não pode originar. Suas origens e suas afinidades originais são estabelecidas pelos homens. “Teu desejo será para teu marido, e ele o dominará sobre você” (Gen 3:16). As origens masculinas conferem originalidade, mas apenas para o homem. Uma vez que o homem se concebe como ser original, apenas ele pode originar.
DE ACORDO COM A MULHER
A genealogia da amizade feminina – a linhagem das mulheres que têm sido primordiais umas para as outras – conta uma história diferente. Trata-se da linhagem de mulheres que têm sido essenciais uma para a outra. Eu uso a palavra primordial, tanto no sentido denotativo quanto no conotativo. No sentido conotativo, quer dizer significativo, proeminente, memorável, aquilo que não se pode esquecer, emocionante, crítico, vital, essencial. Tal palavra caracteriza amizades que são originais e independentes, bem como fundamentais e radicais.
A genealogia da amizade feminina é também a história de mulheres que têm interpretado a palavra primordial em um sentido mais denotativo; isto é, as amizades das mulheres são marcadas por uma mensuração, uma mensuração radicada na mulher. Neste sentido denotativo, as mulheres que são primordialmente uma para a outra colocam isto em primeiro lugar: primordial em termos de importância; primordial em termos de atenção, afeição, atividade; primordial em não permitir a interferência masculina; primordial significa em primeiro lugar, aquilo que dá forma à mais fina fibra da existência feminina; e primordial no sentido de reapropriar-se da memória de uma atração original às mulheres, que pertence ao estado original do Gin/afeto, seu desenvolvimento e crescimento.
As maneiras pelas quais as mulheres têm colocado umas às outras em primeiro lugar têm sido diversas. Repetidamente, todavia, muitas mulheres têm feito seus Eus, bem como os de outras mulheres, primordiais, sejam elas lésbicas, heterossexuais ou celibatárias. Esta primordialidade é exemplificada na existência de clubes de mulheres negras, fundados no século XIX. Tais clubes, particularmente em sua primeira geração de sócias, eram compostos de
“mulheres de raça” cujo compromisso primordial era o fim da opressão racial através de um comprometimento mulher-identificado, negro e forte. The Woman’s Era, uma publicação de mulheres negras do século XIX, fez esta notável declaração em 1874, acerca dos clubes: “Os clubes farão as meninas pensar seriamente sobre seus futuros, e não apenas sobre suas opções de casamento.”4 Um quarto das 108 sócias de clubes estudadas por Paula Giddings em seu estudo sobre o impacto da mulher negra sobre as concepções de raça e sexo nos Estados Unidos nunca se casaram. Muitas das mais dinâmicas sócias casaram-se relativamente tarde, entre elas Mary Church Terrell e Ida Wells-Barnett. E apenas 25% das mulheres estudadas pela autora tiveram filhos.
Têm havido várias interpretações acerca do por quê, por exemplo, as sócias dos clubes se casaram tarde. Giddings sugere que muitas mantinham visões tradicionais sobre casamento, portanto acreditavam que mulheres “jamais deveriam negligenciar lar, marido e filhos para entrar na vida profissional ou qualquer causa no mundo público, por mais justa que fosse”5. Assim, estas mulheres retardaram o casamento enquanto foi possível, até que pudessem se dedicar completamente a seus deveres de mãe e esposa e ao que a sociedade esperava delas enquanto mulheres. No entanto, podemos interpretar a questão sob outro ângulo, afirmando que tais mulheres se casaram tarde porque colocaram mulheres em primeiro lugar na cronologia de seus compromissos. Assim, casaram-se apenas depois de considerar cumprido o seu trabalho junto às mulheres. Seu compromisso junto às mulheres veio em primeiro lugar, seja em termos de idade, seja em termos de prioridades.
Para além disso, algumas sócias, como Ida Wells-Barnett, depois de declarar suas intenções de aposentarem-se do trabalho no clube para devotarem-se completamente à família, duraram poucos meses na “aposentadoria” marital. Mesmo algumas das mais conservadoras mulheres dos clubes, como Margaret Murray Washington, eram céticas acerca das “alegrias da maternidade”6. É ainda mais significativo o fato de que 25% dessas mulheres exerceram sua liberdade de não se casar.
Outro exemplo de mulheres que colocaram umas às outras em primeiro lugar é o fenômeno da “linhagem profissional”, instaurado por algumas das primeiras gerações de cientistas mulheres dos Estados Unidos7. Em seu livro Women Scientists in America, Margaret Rossiter pesquisa um sistema estabelecido por mulheres cientistas em universidades femininas através do qual mulheres serviam como mentoras para mulheres estudantes, supervisionavam a seleção para estudantes de graduação, seguiam seu progresso de perto, e contratavam-nas, mais tarde, como suas colegas de trabalho. Com o tempo, as “protegidas” chegariam à posição de mentoras e seguiriam o mesmo processo de identificar e promover outras sucessoras femininas.
Algumas destas “cadeias de protegidas” duraram várias gerações e ajudaram no estabelecimento de reputações em âmbito nacional para o departamento envolvido. Elas também influenciaram muitas mulheres que não eram graduadas a estudar ciência. Por exemplo, em 1932, as professoras de astronomia no Vassar College eram todas alunas (diretas ou não) de Maria Mitchell, a astrônoma que havia sido indicada para lecionar ali em 1865.
Para completar seu quadro de “linhagens profissionais”, Rossiter descreve como a cientista sênior, confiante em suas sucessoras, aposentava-se em um chalé no próprio campus. Um setor ou laboratório receberia seu nome, e uma de suas “protegidas” escreveria seu obituário no momento de sua morte8.
As origens da amizade feminina estão na liberdade feminina, e um importante aspecto desta é a liberdade de ser para mulheres. É importante para a genealogia da amizade feminina que mulheres clamem por esta liberdade de sermos para Nós Mesmas e uma para a outra. As maneiras pelas quais estes aspectos primordiais são aumentados e intensificados realçam a originalidade da amizade feminina. Uma genealogia da amizade feminina revela muitas das maneiras pelas quais mulheres têm sido para Si Mesmas e para outras mulheres.
As origens da amizade feminina estão também na cultura feminina. Nossa cultura está no passado, no presente e em curso, portanto as origens da amizade feminina não estão confinadas em algum lugar estático e originário, uma era dourada do Gin/afeto. Como já apresentado na “Introdução”, a vitalidade da “alteridade” feminina está enraizada na cultura que as mulheres têm criado com e para outras mulheres através da história e em todas as culturas. A palavra “cultura” tem diversos sentidos – social, intelectual, artístico. Etimologicamente, vem do latim cultura, significando cultivar o solo. Desde a pré-história, as mulheres são quem originalmente cultiva o solo9, e esta é uma metáfora para representar as muitas procuras e conquistas da cultura das mulheres. Portanto, nós também temos as mulheres como cultivadoras dos grupos sociais, isto é, da sociedade, como nos apresentam as hipóteses do matriarcado, que creditam as mulheres pelo próprio aspecto gregário humano10; mulheres, enquanto cultivadoras da mente, criando uma cultura feminina do pensamento que incluiu o início da ciência, matemática e filosofia11; e mulheres como cultivadoras da arte, tais como tecelagem, cerâmica e pintura12. Em última análise, na evolução de seu uso e em seu moderno desenvolvimento, a cultura veio a significar “a totalidade do modo de vida, material, intelectual, espiritual, de uma dada sociedade”13.
As origens da amizade feminina podem ser encontradas na “totalidade do modo de vida, material, intelectual e espiritual”, que as mulheres têm cultivado umas com as outras. Uma genealogia do Gin/Afeto clama por essa “totalidade no modo de vida” que tem, para diversas mulheres, representado uma tentativa de pensar sob novas formas sobre a vida social, moral e intelectual das mulheres. Como a acepção moderna de cultura tem dado grande valor às tradições particulares de certos povos, assim deve proceder também a genealogia da amizade feminina, colocando especial valor nas especificidades culturais femininas – isto é, a comunalidade feminina e suas particulares maneiras de existir umas para as outras – através de uma diversidade étnica, racial e nacional14. Como nenhuma tradução cultural pode ser assimilada pela ideia simples e linear de civilização, também a cultura da amizade feminina não pode ser mais absorvida por ideias católicas de amizade em geral. A cultura da amizade feminina tem proposta, paixão e política distintivas. Suas origens podem ser encontradas naquelas esferas onde as mulheres eram e são livres para ser umas para as outras e onde as mulheres provêm umas às outras o senso de diferença, importância, autonomia e afeição.
Na tentativa de subjugar os povos, uma das armas mais destrutivas do colonialismo era extinguir as tradições culturais de um grupo. Isto foi diversas vezes realizado com violência abrupta, como quando os símbolos, artefatos, criações e crenças foram imediatamente obliterados. Porém, com maior frequência, foi feito ao longo de um grande período de tempo, durante o qual este mesmo conjunto de especificidades culturais foi apagado em um andamento progressivo. Enquanto mulheres re-membram e re-criam a cultura do Gin/afeto em nossas vida, nos tornamos recém nascidas para nossos Eus e para as outras.
Uma das maneiras pelas quais os homens distorceram e desmembraram as origens da amizade feminina foi a institucionalização de um sistema de primogenitura no qual não apenas o filho primogênito é considerado e reconhecido, herdando o reino de seu pai, como a relação pai/filho é elencada como o modelo das relações importantes entre homens. A primogenitura patriarcal é a estratégia para alavancar as tradições homorrelacionais nas quais toda sorte de pai lega a toda sorte de filhos as chaves para seus reinos. A primogenitura patriarcal não apenas invisibiliza as primogênitas como as relações mãe/filha. Este laço potencialmente Gin/afetivo é privado de seu poder e serve como um arquétipo para a sucessão das afinidades femininas. Em vez disso, as mulheres são ensinadas a negar sua afeição por mulheres. O amor desfeito das mulheres é como filhas sem herança. Apenas os homens são reconhecidos e gratificados com a afeição feminina.
Os homens herdaram a terra e seus reinos masculinos de dinheiro, educação, prestígio profissional, poder político. Os homens herdaram também, apenas por terem nascido no sexo masculino, o “direito” ao afeto feminino. A amizade feminina pode devolver às mulheres o direito de primogenitura, estabelecendo a primordialidade de seus Eus e de outras mulheres, dizendo que nós existimos, temos memória de nossas origens Gin/afetivas, e que nós herdaremos a terra retomando nossa afeição perdida, umas pelas outras, e por Nós Mesmas.
O SIGNIFICADO E A IMPORTÂNCIA DA BUSCA PELAS ORIGENS
As origens da amizade feminina são as origens do feminismo radical. Enquanto as mulheres não reclamarem e reconhecerem a afeição original entre nossos Eus, o feminismo ficará carente daquilo que o filósofo Henri Bergson chamou de “um ímpeto original pela vida” (un élan original de la vie), isto é, um ímpeto original pela própria vida – vitalidade feminista. Quando as mulheres deixarem de acreditar na primazia e primordialidade heterorrelacionais, verão que o primeiro objetivo do feminismo não é aproximar homens e mulheres, mas aproximar mulheres. A amizade feminina é o processo pelo qual este objetivo é realizado. E tal processo começa no começo, quando mulheres eram orgulhosas de suas relações com outras mulheres – e onde mulheres ainda forem orgulhosas.
O significado primário de origem no Oxford English Dictionary é “o ato de elevar… derivação… O fato de advir de um ancestral ou raça particular”. Além da comunalidade da opressão, as mulheres têm um Gin/afeto ancestral, uma sobrevivência ancestral, força e orgulho umas das outras.
Outra definição do termo origem vem da matemática, significando “um ponto fixo de onde começa o movimento” (Oxford English Dictionary). As origens da amizade feminina são também encontradas onde mulheres se tornaram “pontos fixos” para o movimento das outras mulheres. As mulheres se voltaram para suas parentes e amigas mulheres, frequentemente em momentos críticos da vida, e encontraram fontes estáveis de força. Muito frequentemente, esta força transformou-se na coragem para continuar.
Em uma tese original e tocante chamada “As vozes das mulheres sobreviventes: o holocausto, mulheres e resistência”, Debra Seidman mostra como a realidade da resistência foi profundamente enraizada nas relações entre mulheres nos campos de concentração. Ela cita as memórias de Isabella Leitner em Auschwitz, na qual a autora e suas três irmãs de sangue foram encarceradas. Leitner descreve como elas tornaram a sobrevivência mutuamente viável:
Ter irmãs vivas, não estar sozinha, foi uma bênção também, mas atormentada a cada dia, a cada hora: Quando este dia acabar, ainda haverá quatro de nós? Se você não tiver irmãs, você não tem a pressão, a responsabilidade absoluta de chegar viva ao fim do dia. Quantas vezes esta responsabilidade nos manteve vivas? Não sei dizer. Só posso dizer que, naquelas tantas vezes que caí na seleção, eu sabia que tinha que voltar para as minhas irmãs, mesmo quando eu estava cansada demais para brigar pela minha volta, quando ir pelo caminho da fumaça teria sido mais fácil, quando eu quis esse caminho, quando ele me pareceu desejável. Mas naqueles momentos, eu sabia também que minhas irmãs, sabendo que eu tinha sido escolhida, não apenas queriam que eu voltasse, mas esperavam que eu voltasse. O fardo de viver à altura daquelas expectativas era meu, e era incrível.15
Quando a guerra estava no fim, os nazistas evacuaram os campos de concentração e forçaram seus prisioneiros a marchar no frio glacial do terreno alemão e polonês, com quase nenhuma comida ou roupas. Em uma destas marchas, uma das quatro irmãs morreu. Aqueles que a viram antes de sua morte lembram-se de tê-la visto dizer: “Minhas irmãs, essas escaparam. Que os deuses estejam com elas e ajudem em cada passo deste caminho”16. Muito do trabalho de Seidman retrata a força de tais laços femininos, que existiam não apenas entre irmãs de sangue como entre muitas mulheres que tinham ancestralmente ajudado umas às outras, tornando-se “pontos fixos” de existência.
Nos campos, as mulheres eram aterrorizadas, obrigadas a testemunhar a tortura de outras mulheres sem esperança; com isso, pretendia-se ensinar a elas a não atuar em conjunto aspirando a vitória… aceitando suas limitações, as mulheres, todavia, seguiram acreditando ser possível ajudar umas às outras. É esta convicção – de que elas poderiam fazer o que estivesse ao seu alcance, quando estivesse a seu alcance, mesmo sabendo que não poderiam fazer tudo, mesmo sabendo que não poderiam viver a vida de outra mulher por ela – que caracteriza as sobreviventes mulheres.17
Como Seidman acrescenta, “não é que as mulheres tenham ajudado uma à outra e que homens não o tenham feito”18, mas que a experiência feminina nos campos estava inextricavelmente atrelada ao fato de que eram mulheres.
Mulheres não podiam escapar de seu papel social enquanto objetos sexuais nos campos, onde cada aspecto da tortura e degradação era sexualizado. Elas claramente tinham um conjunto de circunstâncias passadas e presentes com o qual lidar, diferentemente dos homens. Elas também enfrentaram desafios diferentes, tanto quanto diferentes possibilidades de resistência.19
Elie Wiesel, que havia se tornado porta-voz de sobreviventes, havia dito que, depois de Auschwitz, a literatura, a amizade e a esperança não eram mais possíveis. A partir de sua pesquisa sobre sobreviventes femininas, Seidman observa que “as mulheres contam outra história”20. Embora seus registros retratem o completo horror das atrocidades dos campos de concentração, em geral,
as mulheres não perdem a esperança… Para aquelas de nós que vivem o mundo depois de Auschwitz, nossa tarefa é a de re-definir e re-afirmar a necessidade de esperança, amizade e poesia. Os registros das sobreviventes nos contam que tais coisas ainda são possíveis. As mulheres falam de esperança, elas nos mostram exemplos de sua amizade, elas até mesmo cantam e recitam poesia em Auschwitz21.
Em seu tocante livro A cor púrpura, Alice Walker retrata outra relação entre irmãs de sangue na qual elas são pontos fixos uma para a outra. Seu Gin/afeto significa sobrevivência para a irmã mais nova, Nettie, e uma fuga da situação opressiva. Quando a irmã mais velha,
Celie, se dá conta de que o padrasto, que a estuprou e engravidou, tem planos semelhantes para Nettie, ela jura tomar conta da mais nova “com ajuda de Deus”22. “Eu pedi a ele para me levar, em vez de levar Nettie”23. Eventualmente, Nettie deixa a casa dos pais com Celie, mas as irmãs são forçadas a se separar pelo marido da mais velha. Nettie, então, muda-se para África, onde ajuda a construir uma escola. As cartas que Nettie escreve a Celie expressam, de muitas maneiras, a gratidão da mais nova para com a mais velha: “Sinto sua falta, Celie. Penso sobre quando você se sacrificou por mim. Eu te amo com todo meu coração”24.
A cor púrpura mostra que a amizade feminina tem um poder capaz de gerar uma dinâmica de resposta mútua que liberta e fortalece movimentos de todos os tipos. Atrair é causar um movimento em direção a algo. No sentido matemático de origem, as mulheres precisam ser centros do movimento, do deslocamento genuíno, em direção uma à outra, e não meramente afastando-se de situações opressivas criadas por homens.
As origens da amizade feminina revelam mulheres originais25. Uma mulher original mapeia seu próprio princípio nos mais profundos confins de seu Eu e no de outras mulheres. Ela se ergue através da história como uma antítese às mulheres fabricadas pelo homem na criação patriarcal. Enquanto mulher original, ela toma para si o poder de originar. A construção social da realidade tem sido “causada” pelos homens, que vêem a si próprios trazendo o amor e a vida das mulheres à existência. O poder masculino para originar todas as coisas tem sido um ato primordial de patri-gênese que resultou no homem nomeando a si próprio enquanto criados dos afectos femininos, que posteriormente ele redirecionou para si. Pata fazê-lo, no entanto, os homens tiveram de fabricar seus próprios mitos da origem feminina e suas próprias histórias de criação. Ele teve de desmembrar a memória feminina e mesmo seu desejo de lembrar de suas origens e de seu Eu e sua atração por outras como Ela. Portanto, como apontou Anne Dellenbaugh, a criação masculina da mulher foi, dificilmente, criativa. Foi desintegradora, isto é, desintegrou a percepção feminina de si mesma e a origem feminina junto a outras mulheres26.
O pior efeito de desintegração causado pela criação masculina da mulher tem sido a erosão da integridade feminina. Escrevo, em outro momento, acerca da integridade original, significando um potencial feminino para a Auto-criação, não sujeita ao homem e seus artefatos de estereótipos e papéis sexuais delegados a mulheres – que eu agora chamaria de heterorrealidade. O “pecado original” masculino, se quisermos chamá-lo assim, tem sido a contaminação da mulher original, bem como de suas origens junto a outras mulheres. Portanto, Gin/afeto, que é um ato original, tornou-se o maior tabu de todas as ações femininas. Em troca, a cumplicidade feminina – seu “pecado original” – tem sido negar suas origens e negar sua amizade original junto a outras mulheres.
As mulheres precisam fazer do Gin/afeto um evento primordial, isto é, uma prioridade em suas vidas. A separação primordial em suas duas palavras constituintes lança uma luz sobre a amizade feminina. Prima, significando primeira, sugere um retorno feminino às maneiras pelas quais elas têm sido primárias nas vidas umas das outras. Gin/afeto, como um evento contínuo primordial, engendra uma genealogia de mulheres que são primárias umas para as outras de variadas maneiras, como as já abordadas neste trabalho.
Prima também significa “mais ativa, próspera e bem sucedida etapa da vida de alguém” (Oxford English Dictionary). Mulheres que são amigas estão, portanto, no primo estágio da vida, não permitindo a si mesmas serem tuteladas em toda sorte de heterorrelações. Em lugar disso, estas mulheres reconhecem que o estágio primo em suas vidas, aquele que é primário, original, ativo e próspero, será encontrado junto a outras mulheres. A história das mulheres e a literatura feminina estão repletas de exemplos de amizades femininas que têm sido primárias para muitas vidas, de muitas mulheres. Por exemplo, o trabalho de Carroll Smith-Rosenberg encontrando diários e cartas de mulheres do século XIX, retrata inúmeras mulheres que nitidamente preferiram a companhia de suas amigas à de seus maridos27.
O romance Sula, de Toni Morrison, revela a amizade entre Nel e Sula, que Nel passa a reconhecer como prima em sua vida. “Era como recuperar a visão de um olho que tivesse sido afetado pela catarata. Sua velha amiga tornara-se seu lar. Sula. Que lhe provocara riso, que lhe inspirara a ver as coisas velhas com novos olhos, em cuja presença ela se sentia esperta, gentil, e um pouco obscena”28. A declaração de Nel ao fim do romance está ainda mais endereçada para a primazia desta relação: ” ‘Todo aquele tempo, todo aquele tempo, pensei que sentia saudades de Jude’. E a perda pressionava o peito e subia pela garganta. ‘Nós era menina junta’, lamentava, ‘menina, menina, menina”‘29.
Em Little Women, o universo maternal e sororário das meninas March é primo para suas vidas. Este mundo se torna desordenado e desintegrado inicialmente pela morte de Beth que, como evidencia Nina Auerbach, estabelece o contexto de mortes maritais das demais irmãs30 e do fim da ordem primordial do Gin/afeto.
Em matemática, o número primo é um número positivo inteiro que só pode ser dividido por um e por ele mesmo. Dentre os números, é indivisível de uma maneira única. Em um nível menos literal, pode-se dizer que ele não pode ser dividido dele mesmo. Se nos movermos do contexto dos números para o contexto da amizade feminina, mulheres que são primas nas vidas umas das outras não deixam que homens as dividam. Esta é a ordem prima. É a ordenação feminina da existência, feita autonomamente.
Dentro de uma hétero-ordem, as mulheres não têm se Auto-ordenado. Muitas mulheres viveram vidas desordenadas, falhando em colocar os homens no lugar adequado em relação a si próprias. Portanto, a tarefa mais essencial na recuperação das origens da amizade feminina é a restauração da ordem prima. As mulheres devem estabelecer uma ordem de existência de nossa própria confecção, na qual nossos afetos sejam Auto-direcionados, e na qual sejamos verdadeiramente primas uma para as outras.
A questão da ordem é irrevogavelmente ligada à questão das origens, e a questão das origens levanta a mais importante questão na pesquisa pelas pistas do Gin/afeto. Um método genealógico busca nos lugares mais improváveis as evidências desta amizade. Surepreendentemente, a hétero-teoria e as disciplinas da heterorrealidade nos dão muitas epifanias acerca das origens da amizade feminina. A questão da história, mais especificamente da meta-história, torna-se um necessário ponto de partida.
META-HISTÓRIA E MICHEL FOUCAULT
Já existiram várias teorias sobre o que é a história. Em geral, o grandioso passado patriarcal tem conformado seus participantes e não-participantes a algum propósito ou plano subliminar (teleológico) ou tem usado leis e fórmulas generalizantes (evolucionismo científico) para explicar a história. Mesmo o historicismo, que buscava ver todo o conhecimento e formas de experiência em um contexto histórico de mudanças constantes, promoveu a crença de que uma compreensão adequada acerca de qualquer fenômeno podia ser alcançada apenas apreciando vários fenômenos dentro de um paradigma de desenvolvimento. Cada evento seria, assim, percebido em termos de um processo maior do qual o evento seria uma fase ou uma parte.
A historiografia moderna tem proposto desafios a tais teorias tradicionais. Michel Foucault, influenciado pelo trabalho de Nietzsche, concentrou-se em uma teoria da história como descontinuidade. É importante analisar o trabalho de Foucault, pois este teórico tem escrito sobre história e meta-história de uma maneira que a princípio suscita o interesse e pode aparentar ser útil às feministas acadêmicas em busca das origens da amizade feminina. Suas ideias de descontinuidade, transgressão, origens e genealogia, consideradas abstratamente, são atraentes. Ainda assim, elas não podem ser dissociadas de seus ícones de descontinuidade, transgressão e afeto.
Foucault ataca, de uma maneira muitas vezes evasiva, a busca por um significado maior, total, grandes unidades de sentido, e continuidades que têm sido objeto da preocupação de tradições historiográficas e historiadores. Em alternativa, propõe que a matéria da história seja a desordem das coisas.31 Interrupções, deslocamento, transformações e rupturas seriam o objeto próprio da história, para Foucault.
Se a pesquisadora feminista tentar usar a noção foucaultiana de história como descontinuidade na procura pelas origens no gin/afeto, sua primeira pergunta precisa ser: descontínuo de que e/ou de quem? Mulheres têm sido desde sempre arrebanhadas em descontinuidade com seus próprios Eus, com seus passados femininos e feministas, cujas continuidades nunca estamos autorizadas a saber. Foucault falha em perceber as desnecessárias e indesejadas descontinuidades entre mulheres para quem a opressão tem sido contínua, e é através da continuidade dessa opressão que as mulheres têm sidos coagidas à descontinuidade da história das mulheres em geral, e da história do gin/afeto em particular. Dale Spender declarou, com afiada objetividade, qual é o problema da descontinuidade histórica entre mulheres:
É perturbador reconhecer que o que hoje temos em comum com as mulheres do passado é nossa experiência em sermos silenciadas e interrompidas; nossa experiência de tornarmo-nos membros de uma sociedade na qual as mulheres não têm um passado observável, herança, onde nossa experiência tem existido no vácuo.32
Diante disso, a adulação de Foucault à descontinuidade é, na melhor das hipóteses, abstrata, e na pior, ignorante em relação às descontinuidades reais nas vidas das mulheres. Como Pat Hynes propõe em alternativa, “a história das mulheres é/precisa ser descontínua com a história patriarcal, mas contínua em relação a si própria”.33
Se, como propõe Foucault, descontinuidades e rupturas são a matéria da história, então as origens do gin/afeto serão encontradas nas descontinuidades históricas das mulheres em relação aos homens. A continuidade da amizade feminina tornou possível às mulheres as interrupções e deslocamentos de uma história feita pelo homem, de uma hetero-realidade.
Foucault não encontra seus heróis da descontinuidade entre mulheres. Seus transgressores modelares são o Marquês de Sade e Georges Bataille. Depois de lermos Andrea Dworkin e seu paradigmático trabalho sobre pornografia, que contém longas análises desses dois homens e seu trabalho pornográfico, reconhecemos que o “filosofar” sobre pornografia e pornógrafos pelos olhos de teóricos de alta reputação como Foucault acoberta uma multitude de “transgressões” que de nenhuma forma oferece uma nova teoria da história, apenas reforça as tradições. Foucault é fascinado pela “ausência de Deus e o jogo epidérmico da perversidade. Um deus morto e a sodomia são as portas abertas para uma nova elipse da metafísica… Sade e Bataille”34
A Sade, Foucault atribui a maior transformação na linguagem e na história:
A data desta transformação se insinua toscamente com o aparecimento, ao final do século XVIII, das obras de Sade. Não é sua predileção comum pela crueldade o que nos preocupa aqui… tais linguagens são comumente arrastadas para fora de si mesmas por um arrebatamento, pelo inarticulado, pelo deslumbramento, estupefação, êxtase, atordoamento, pura violência, gestos sem palavras… Essa reivindicação da linguagem de nos contar não é simplesmente a quebra de uma série de proibições, mas a procura pelos limites do possível.35
É preciso compreender que “um arrebatamento, pelo inarticulado, pelo deslumbramento, estupefação, êxtase, atordoamento, pura violência, gestos sem palavras” são todos obtidos através de corpos femininos degradados, mutilados, e inclusive mortos, de mulheres que, sem dúvidas, sentiram-se arrebatadas, impossibilitadas de se articular na linguagem, estupefatas e idiotizadas. Para “estupefação e êxtase”, essas experiências pertencem ao Marquês de Sade. Foucault, todavia, não está preocupado com a “comum predileção de Sade pela crueldade”. Afinal, a crueldade é muito “comum”, isto é, ordinária, quando comparada com a questão da linguagem, tão mais intelectualmente importante. Foucault transmuta a tortura sadeana, os estupros, seu abuso sexual infantil ininterrupto, brutalidade e assassinato em “transmutação” da linguagem, desafio, descontinuidade e transgressão.
Sade é creditado não apenas por criar uma nova linguagem como por criar uma nova teoria historiográfica. Para Foucault, a linguagem transgressiva de Sade tem imenso pelo histórico:
… na raiz da sexualidade, do movimento que nada pode nunca limitar, uma experiência singular toma forma: a transgressão. Talvez isso um dia torne-se decisivo para nossa cultura, uma parte tão importante de seu solo quanto a experiência da contradição o foi nos tempos primórdios do pensamento dialético.36
Tal assunto é, de fato, matéria intelectual velha. Ao declarar estar foerecendo uma nova linguagem e um novo método para a história, Foucault não desafia a continuidade hétero-histórica – o obsoleto abuso, degradação, mutilação de mulheres encontrado em Sade e em todas as heterorrelações da supremacia masculina histórica. Foucault se perfila a um longo desfile de homens que, como Andrea Dworkin ressalta, mantêm o trabalho de Sade vivo por quase dois séculos “porque homens literautos, artísticos e intelectuais o adoram, e pensadores políticos da esquerda o apontam como um avatar da liberdade”37.
Georges Bataille é outro desses heróis da transgressão e descontinuidade para Foucault. Em seu ensaio “Um prefácio à transgressão”, foi originalmente publicado em “Hommage à Georges Bataille”, que homenageia a peça de Bataille História do olho. Brevemente, nesta pornografia casca-grossa, o olho, assunto de grande fascinação, toma a forma de um ovo cozido cuja gema é chupada para fora, mijada, depois engolida do fundo de uma privada, pelo protagonista. Há também o olho de um toureiro pendurado de sua cabeça enquanto Simone, uma grande personagem feminina da história, tem um orgasmo. E, para ilustrar a epítome da transgressão e do sacrilégio, Bataille se concentra no olho de um padre assassinado, que Simone gentilmente insere em sua bunda.
Para Foucault, o olho acumula o significado da experiência interior. Também se torna uma figura “no cerne da transgressão do próprio limite”. Foucault iguala o olho sem núcleo ou virado ao contrário com a filosofia de Bataille acerca da linguagem:
O olho, em uma filosofia da reflexão, deriva da capacidade de observar o poder de se tornar cada vez mais interiorizado em relação a si próprio… Este movimento de introjeção é finalmente resolvido em um centro imaterial onde as formas intangíveis da verdade são criadas e combinadas, no coração da supremacia do sujeito. [grifo da autora]38
O “sujeito soberano”, o olho do homem, pode ver tudo, exceto o objeto soberano – a mulher. Foucault “filosofa” que a morte é o limite que o olho incessantemente transgride. Enquanto isso, as formas materiais e tangíveis da verdade – que mulheres são abusadas, lesadas, que elas morrem, que os intelectuais encontram na morte o significado do sexo, que a força é romantizada por levar mulheres à morte – são apagadas e invalidadas por Foucault. Aqui temos fetiche como filosofia, fingindo expandir a visão humana e os limites da transgressão. Foucault nos leva a acreditar que um ovo cozido em uma privada é um profundo símbolo de transgressão, que representa “nossa” experiência íntima, interior. Nunca é perguntado se quem é essa visão íntima. Nunca é perguntado de quem são os limites transpostos. O olho dele certamente não é o olho dela.
Tais são as transgressões, deslocamentos, transformações e descontinuidades da linguagem e da história que Foucault nos encoraja a perseguir. Sade de Bataille supostamente nos conduziriam a uma nova era, que Foucault mais tarde viria a chamar de “história efetiva”. Homens podem revelar essa “nova” e “efetiva” história. Mulheres que têm olhos, olhos reais, reconhecem esta como sendo a velha conversa.
Em nossas procuras historiográficas, nós feministas precisamos encontrar as reais descontinuidades, e as transgressões que cometemos contra a heterohistória, que as mulheres amigas alcançaram – que mulheres não estão, não são e não foram sempre em relação ou em relacionamentos para com os homens, seja por escolha ou seja por coerção; porque somos fortes, e não apenas por termos sido vitimizadas por homens. A explicação para o gin/afeto não é a abnegação heterorrelacional, como os psicólogos teorizaram; ela é a saúde e a atratividade independente que caracteriza a amizade feminina.
Ao passo que as mulheres reconquistam sua história autônoma, precisamos também nos dar conta de que a hétero-história é a real descontinuidade e transgressão nas vidas das mulheres e nas suas amizades com as outras. Os laços masculinos e as amarras masculinas sobre as mulheres interromperam o curso e a corrente da história e da cultura do Gin/afeto. Os campos acadêmicos do conhecimento heterorrelacional “disciplinaram” a memória e a realidade do Gin/afeto, subtraindo-o das vidas das mulheres.
PISTAS FORNECIDAS PELAS DISCIPLINAS HETERORRELACIONAIS: PSICOLOGISMOS
O primeiro fundamento da teoria freudiana acerca da sexualidade feminina é que a feminilidade é defeituosa. Cedo em sua vida, a jovem menina se dá conta da máxima adversidade feminina – falta-lhe um pênis – e isto se ramifica por todas as áreas da existência feminina, em todo o mundo. Trata-se de uma suposta tragédia que assombrará a jovem por toda a vida.
Elas reparam no pênis de um irmão ou amiguinho, impactante e visível, de grandes proporções, e é arrebatada pela percepção de que se trata de seu complementar, superior a seu imperceptível órgão, e deste momento em diante, cai vítima da inveja pelo pênis.39
Neste esquema, pode-se dizer que a mulher desenvolve não apenas um senso de inferioridade e desdém de si própria, como em relação a outras mulheres. Pois a menina, de início, culpará a mãe “que a mandou neste mundo insuficientemente equipada” e que é “quase sempre responsabilizada pela sua ausência de pênis”40.
De acordo com Freud, o amadurecimento da mulher a redireciona para o homem depois que ela rejeita seu próprio sexo, personificado pela mãe. Este é o início da fase edipiana das meninas. Presumindo que sua mãe a castrou, ela direciona sua atenção ao pai e, através dele, para outros homens. Para Freud, a maior tarefa edipiana é o ajuste da jovem, amadurecendo-a para a heterossexualidade. Freud deixa evidente que meninas são primordiais para a heterossexualidade. A bem da verdade, podemos inferir de seu trabalho que uma complexa estrutura precisa ser construída para a maturação heterossexual acontecer. É importante compreender, neste contexto, que a produção da heterossexualidade feminina é parte de um projeto maior – a construção das heterorrelações em geral.
Os maiores pilares desta estrutura consistem em três níveis. Não apenas a menina precisa ultrapassar a inveja do pênis para chegar a uma heterossexualidade feminina normal; ela precisa, também, substituir seu primeiro amor – mãe/mulher – com outro, isto é, o pai/homem. Simultaneamente, ela precisa transferir sua sexualidade do clitóris (ativo) para a vagina (passiva). Freud define a afinidade pela estimulação do clitóris como uma “regressão patológica” que aleija “as funções sexuais de muitas mulheres”41. Freud ainda afirma que “a principal zona erógena da menina é o clitóris”42. Para que a menina se transforme em mulher, ela precisa “reprimir” a sexualidade clitoriana durante a puberdade.
Dorothy Dinnerstein, em The Mermaid and the Minotaur, um trabalho que tem sido amplamente usado em Women’s Studies e em círculos femininas, adere à teoria freudiana da transferência do amor da mãe/mulher para o pai/homem, frisando, porém, esta mudança de uma forma diferente da que usa Freud. “O amor original da menina… era, como o do menino, uma mulher. Sobre esta imagem erótica prototípica, a imagem do homem precisa ser superimposta”43. Diferentemente de Freud, Dinnerstein desenvolve a ideia de que o amor original da menina era uma mulher e que o amor pelo homem é secundário. Mais ainda, Dinnerstein observa, “Dar-se conta de que se é uma fêmea destinada a competir com outras fêmeas pelos recursos eróticos masculinos é descobrir-se condenada a renegar o primeiro amor”44.
Há, portanto, no trabalho de Dinnerstein, um senso da real tragédia que confronta a menina: ela precisa renunciar seus sentimentos primordiais de Gin/afeto para se tornar uma mulher “normal”; ela precisa abandonar a outra pessoa (um homem) o amor que por direito e origem pertencia a outra mulher; e “ela precisa interromper sua continuidade em relação ao seu primeiro sentimento de jovem, pelo qual ela viverá de luto”45. O que foge, contudo, à percepção de Dinnerstein é que as meninas também são amputadas de sua própria história e cultura de Gin/afeto e das possibilidades de fortalecer esta realidade em sua vida.
Pode-se interpretar a análise de Dinnerstein da teoria edipiana como um conjunto importante de pistas no sentido de uma genealogia da amizade feminina: que o amor pelas mulheres é primordial para elas; que as mulheres seguirão com raiva, tornando-se ambivalentes, uma vez que suprimem o Gin/afeto; e que as mulheres podem passar suas vidas tentando reconquistar esse amor, embora de jeitos contorcidos e convolutos. Todavia, através de todos os esclarecimentos e variações sobre o tema edipiano, o que ela, afinal, esclarece é a ausência de amor entre mulheres, e não sua presença. Seu livro é, afinal, dirigido no sentido de melhorar os “arranjos sexuais” prevalentes, isto é, “a colaboração macho/fêmea para manter a loucura da história”46.
Outros comentadores de Freud tomam um caminho distinto. Helene Deutsch, que fez ainda mais esforços que Freud para promulgar a teoria do masoquismo feminino, divergia de Freud no que tange a teoria edipiana:
Não é correto afirmar que a menininha abre mão de seu primeiro amor materno em favor do amor paterno. Ela apenas e gradualmente o inclui nesta aliança, desenvolvendo a partir da exclusividade do amor mãe/filha uma relação triangular pais/filha, continuando esta, bem como continuando a primeira, ainda que de forma enfraquecida e menos elementar, mas ao longo de toda a vida47.
Nancy Chodorow, em The Reproduction of Mothering, outra obra extensamente usada em Women’s Studies, segue Deutsch em acentuar o que chamo de permanência do Gin/afeto entre as mulheres. “Para as meninas, portanto, não há também uma mudança absoluta de objeto, nem ligação exclusiva para com seus pais”48. As meninas nunca assumem “compromissos finais e absolutos com o amor heterossexual, enquanto compromisso emocional, independentemente de fazerem compromissos finais com a escolha de objeto genital”49.
A psicologia tradicional tem focado na ambivalência feminina em relação a outras mulheres, isto é, o fato de que as mulheres não nutrem confianca por outras mulheres, invejam-nas; Chodorow enfatiza que muitas mulheres se sentem profundamente ambivalentes sobre amar outras mulheres porque uma atração original e poderosa compete com a competitividade feminina pela atração heterossexual imposta.
As meninas não podem “rejeitar” suas mães e mulheres em favor de seus pais e homens, e não o fazem, mas permanecem em um triângulo bissexual através da infância, adentrando a puberdade. Elas tomam uma resolução sexual em favor dos homens e de seus pais, mas retêm um forte triângulo emocional50.
Chodorow, evidentremente, suprime o fato de que muitas mulheres não “permanecem no triângulo bissexual”, e que este conceito não descreve a realidade daquelas mulheres que não participam deste arranjo triangular. Mais ainda, qualquer mulher que permaneça no triângulo não fez qualquer “resolução” em favor da heterossexualidade, mas foi coagida a tal “resolução” ou ainda, resignou-se a ela.
Chodorow teoriza que a transferência, por parte da menina, do amor mãe/mulher para o pai/homem não pode ser adequadamente completada, por uma série de razões. Comparativamente falando, o pai não é tão física e emocionalmente disponível quanto a mãe. Freud, também, reconheceu isto ao dizer que as mulheres em relações heterossexuais procuram homens por “gratificações que elas querem receber das mulheres”51. Todavia, como a mãe não dispensa a menina o mesmo amor que dispensa ao menino, a filha se volta para outro lugar – seu pai – buscando “a mesma confirmação de sua especialidade que seu irmãozinho recebe da mãe”52. Ao mesmo tempo, a filha procura escapar de sua mãe, para desenvolver um senso de individualidade e discrição, que também é encontrado quando ela se volta para os homens. “Ela se torna mais capaz de fazê-lo pois sua distância significa que ela não o conhece”53.
Refutando o estereótipo social de que mulheres são as românticas, e homens, os racionalistas no amor, Chodorow deixa evidente que “as mulheres adquiriram uma capacidade real para a racionalidade e distância em relações heterossexuais, qualidades construídas desde suas tenras relações com homens”54. Ela cita evidências clínicas e sociológicas para sustentar este argumento. “A maior parte dos estudos argumenta… que o aparente romantismo é uma resposta emocional e ideológica à sua dependência econômica real”55. Para além do racionalismo econômico, Chodorow pode ter citado outros poderes sociais e psicológicos que os homens exercem sobre as mulheres para torná-las mais “racionalistas” em atribuir primazia às heterorrelações. Como enumerou Andrea Dworkin, os homens, para além do poder do dinheiro, têm o poder do Eu, por mais parasítico que seja; o poder da força física, mobilizado contra as mulheres; o poder de aterrorizar e inculcar medo; o poder de nomear, inicialmente analisado pelo trabalho de Mary Daly; o poder de possuir mulheres e tudo que vem delas; e o poder do sexo, isto é, da foda – tirar, forçar e conquistar.56
À distância entre mulheres e homens, Chodorow justapõe as afinidades que mulheres desenvolvem entre si. Mulheres passam mais tempo na companhia de outras mulheres do que homens passam tempo com outros homens. Citando Wayne Booth em suas descobertas e escritos sobre grupos de libertação masculina, a autora alega que as amizades femininas são “mais ricas afetivamente do que as masculinas”57. Em muitas culturas, as mulheres que são parentes são também amigas. “No entanto, relações afetivas profundas são difíceis de se encontrar na rotina diária, em curso, na vida das mulheres. As relações lésbicas tendem a recriar emoções e conexões mãe/filha, mas a maior parte das mulheres é heterossexual”58. Embora Chodorow mencione a preferência heterossexual, “tabus contra a homossexualidade” e dependência econômica para com homens enquanto razões que tornam difícil a primazia das relações entre mulheres, a frase “a maior parte das mulheres é heterossexual” é uma vasta e rasa simplificação. Adrienne Rich atentou a complexidade de forma mais detalhada:
A suposição de que “a maioria das mulheres são heterossexuais de modo inato” coloca-se como um obstáculo teórico e político para o feminismo. Permanece como uma suposição defensável, em parte porque a existência lésbica tem sido apagada da história ou catalogada como doença, em parte porque tem sido tratada como algo excepcional, mais do que intrínseco. Mas, isso também se dá, em parte, porque ao reconhecer que para muitas mulheres a heterossexualidade pode não ser uma “preferência”, mas algo que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido por força, o que é um passo imenso a tomar se você se considera livremente heterossexual “de modo inato”. No entanto, o fracasso de examinar a heterossexualidade como uma instituição é o mesmo que fracassar ao admitir que o sistema econômico conhecido como capitalista ou o sistema de casta do racismo são mantidos por uma variedade de forças, incluindo tanto a violência física como a falsa consciência. Tomar passo a favor do questionamento da heterossexualidade como uma “preferência” ou “escolha” das mulheres – e, assim, fazer o trabalho intelectual e emocional que vem a seguir – irá exigir coragem de uma qualidade especial das feministas que se definem como heterossexuais, mas acho que a recompensa será grande: uma libertação do pensamento, a exploração de novos caminhos, a dissolução de outro grande silêncio, uma nova claridade nas relações interpessoais.59
No âmbito das relações pessoais, Chodorow reconhece que “os desejos das mulheres por intensidade e primazia das relações não tende a outras mulheres, tanto por causa de tabus internos e externos sobre a homossexualidade, quanto por conta do isolamento das mulheres em relação ao seu clã feminino (especialmente mães), bem como outras mulheres”60. Mais do que isso, a falta de resposta afetiva que as mulheres encontram nas heterorrelações, o que Chodorow chama de “as contradições da heterossexualidade”, ajudam a promover essa mesma normatividade das heterorrelações. Para ter uma afetividade profunda, as mulheres buscam sustento emocional nas crianças, sendo portanto orientadas na direção da família e da maternidade. “Portanto, a indisponibilidade afetiva masculina e uma flexibilização do comprometimento heterossexual ajudam a assegurar a maternidade”61.
Se a análise de Chodorow não fosse tão psicanalítica para fatores pessoais e tão economicista para os sociais, ela teria nomeado “os tabus internos e externos sobre a homossexualidade” todos os obstáculos erguidos contra o continuum de Gin/afeto em uma cultura heterorrelacinal. E ela teria nomeado o suposto “isolamento feminino” em relação a outras mulheres como segregação e dissociação feminina.
Chodorow e Dinnerstein nos dão as pistas para as origens da primazia do Gin/afeto, ao que parece, sem pretender fazê-lo. O máximo objetivo, como fica aparente em ambos livros, é o de impulsionar e manter os falidos pais das heterorrelações. Elas desejam reorganizar a instituição do parentesco para trazer os homens à responsabilidade. Ambas argumentam que a ausência masculina da criação é responsável por desordens individuais e sociais. Se tal desequilíbrio social fosse sanado, dizem elas, e homens tomassem igual parte na criação dos filhos, toda sorte de salvação aconteceria. Chodorow argumenta:
… esta dependência nela [mãe/mulher] e esta primária identificação não seriam criadas, em primeiro lugar, se homens tomassem para si responsabilidades também primárias na criação. As crianças poderiam ser dependentes, desde o princípio, de pessoas de ambos os gêneros, e estabeleceriam um senso de Self independente em relação a ambos.62
Dinnerstein argumenta:
Quando a criança, uma vez nascida, é uma responsabilidade tão grande para o homem quanto para a mulher, as tenras vicissitudes da carne – cuja lida fundamenta as bases para nossa lida com a morte – não terá nenhuma relação especial com qualquer gênero.63
O que Dinnerstein e Chodorow nos dizem é que, uma vez mais, os homens serão nossos salvadores. Quando os homens forem tão presentes quanto mulheres na criaça dos filhos, os sofrimentos e ambivalências do desenvolvimento infantil que são hoje impingidos na mulher, a culpa em que ela incorre sendo a primeira cuidadora, e a gama de “nós heterossexuais” e “arranjos sexuais” não irá acontecer.
O que isto afinal significa é que, mais uma vez, as heterorrelações precisam ser o foco das vidas femininas e que mulheres deveriam devotar-se à reconstrução de novas formas de heterorrelação. Não há qualquer percepção, e muito menos prescrição, de que mulheres devam criar novas formas de relação entre mulheres. Tendo desenvolvido alguns insights notáveis sobre a atração original entre mulheres, e tendo dado algumas pistas sobre por que mulheres orientam tal atração em direção aos homens, ambas falham em enfatizar a importância da afeição feminina uma pela outra como primária e paradigmática.
Em lugar disso, Dinnerstein e Chodorow apresentam uma implícita e invisível exortação de que mulheres se tornem, outra vez, mães dos homens. Mas desta vez, as mulheres precisam se tornar mães para que os homens também se tornem mães, pois se as mulheres não o fizerem, quem fará? Esta é a agenda não admitida, e talvez não premeditada, de ambos livros.64 Dinnerstein e Chodorow nos apresentam em teoria aquilo que filmes tais como Kramer vs. Kramer nos oferece em filme. Todos os três nos apresentam o pai completo, carinhoso e “humanizado”. Nenhum deles nos diz onde ele vai aparecer.
O maior problema não é que as mulheres sejam as principais encarregadas do cuidado com as crianças. Em lugar disso, o maior problema é que as mulheres são as mais visíveis e imediatas conduítes da heterorrealidade, enquanto são as que menos se beneficiam de tal sistema65. Enquanto mulheres retrocederem para a formação daquilo que Dinnerstein e Chodorow chamam de conflito edipiano feminino, e que eu chamo de heterorrealidade – a canalização do amor feminino, da energia e do poder para os homens – nada vai mudar radicalmente. Até as mulheres “maternarem” para o amor e cuidado para outras mulheres, o sistema de heterorrealidade feminina não vai se transformar.
Se as mulheres originais, que experimentam o amor primário por suas mães (mulheres) não fossem confrontadas com a mãe (mulheres) e moldadas nestes relacionamentos pelas mesmas mães (mulheres), mas em vez disso fossem confrontadas pela mãe enquanto uma mulher amiga que coloca mulheres em primeiro lugar em sua vida, então o Gin/afeto prevaleceria na realidade. As jovens meninas tirariam conclusões bastante diferentes sobre seus sentimentos e seu Self em relação a outras mulheres.
Não é a inclusão dos homens na parentalidade que vai restaurar (entre outros desequilíbrios a falta de amizade feminina, porque então, presumivelmente, as mulheres seriam livres para não odiar ou para ser ambivalentes sobre outras mulheres. Em lugar disso, dividir a parentalidade nas presentes circunstâncias realça a supremacia masculina, pois dá aos homens mais poder do que eles já têm, agora na forma de poder emocional no seio da família. Continuar ignorando a falta de poder feminino em todas as outras instituições sociais e prescrever a parentalidade masculina como solução para nossos “arranjos sexuais” desiguais, é uma visão bastante torta. Mais ainda, onde o homem é retratado como sensível e cuidadoso, a mãe está geralmente deslocada. O que surge disso é uma versão mais “humana” e “comovente” da broderagem. Ao menos, tal é a imagem cinematográfica em Ordinary People e Kramer vc. Kramer, dois filmes populares do início da década de 1980, que retratavam o pai sensível. Neste, a mãe está fisicamente ausente pois deixou o marido para “se descobrir”, para descobrir seu caminho no mundo, abandonando um casamento conturbado. Naquele, a mãe está emocionalmente ausente na vida do filho, apesar de estar fisicamente presente no casamento. Ambos contêm cenas comoventes e chorosas de momentos pai/filho, nas quais o pai emerge não apenas no papel de pai, como também no de mãe. O tema mítico da maternidade masculina ganha vida.
O que Dinnerstein e Chodorow nos mandam procurar é o “homem moderno”. Mas o homem moderno é, de muitas formas, o antigo homem. Em primeiro lugar, ele é um homem, e não uma mulher, e as mulheres têm tradicionalmente se engajado em procurar homens, por mais modernos e sensíveis que sejam. Em segundo lugar, ele se liga a seus semelhantes, mesmo sob a influência dessa sensibilização. Vemos esta broderagem em curso no novo “macho sensível” dos filmes, e podemos esperar disso uma forma rejuvenescida de broderagem no contentamento da visão de Dinnerstein e Chodorow de co-parentalidade. Mulheres estão sendo orientadas a novas formas de heterorrealidade aqui. E o que não se está discutindo é que homens serão encorajados a criar novas formas de broderagem porque isso lhes dá espaço para mais intimidade entre homens, que serão estabelecidas agora sob a forma de sensibilização. A intimidade masculina, adicionada à presente solidariedade masculina baseada no dinheiro, no poder e na força física, resultará na institucionalização das homorrelações masculinas. Os relacionamentos femininos permanecerão secundários ao imperativo de criar novas heterorrelações. Quaisquer destas relações ocorridas entre mulheres dentro deste “novo” contexto heterorrelacional serão, tais como as antigas, secundárias. Elas, tampouco, serão vividas com primazia.
Para ambos homens e mulheres, o amor pelas mulheres continuará sendo mantido em seu lugar apropriado, não se permitindo que interfira nos laços vitais entre homens. Homens, “libertando-se” para sentir emoções, serão aptos a manifestar seu amor por outros homens em novas formas. Mulheres, sendo reorientadas a novas formas de heterorrelação, serão igualmente redirecionadas aos homens, e ficarão ainda mais confinadas e impedidas de manifestar Gin/afeto.
Na análise final,as teorias de Dinnerstein e Chodorow mantêm o presente sistema de heterorrealidade. Elas inclusive lhe dão nova força, embora não seja intencional, a certamente não se trata de uma prescrição articulada fazê-lo. No entanto, a broderagem persistirá e prosperará, acordando para novas formas de heterorrelações, uma vez que as homorrelações podem ser apenas reforçadas na ausência de um foco sobre a primazia das relações entre mulheres.
Não há nada em tais obras que coloque em primeiro lugar as relações das mulheres entre si. Não há uma definitiva e conclusiva prescrição para o estreitamento do Gin/afeto que se compare à sua idealização das heterorrelações. A menina ou mulher não recebe nenhuma oferta de encorajamento à sua atração original por mulheres. Mais uma vez, mas agora mais sutilmente, ela é encorajada a ser para os homens.
PISTAS DAS DISCIPLINAS SOBRE HETERORRELAÇÕES: BIOLOGISMOS
Argumentos da biologia têm-se provado muito poderosos na manutenção das heterorrelações e, por conseguinte, na supressão do Gin/afeto. Entre os argumentos biológicos mais comumente aceitos para a primazia das heterorrelações estão as teorias da complementaridade biológica. Tais teorias mantêm que a natureza fez a mulher para o homem, o que está evidente na correspondência anatômica de seus órgãos sexuais – em uma linguagem mais reducionista, “a vagina foi feita para o pênis”, ou mais explicitamente, “o buraco foi feito para o pau”. Este “argumento”, de maneira “expandida”, mantém que que a extensão lógica da complementaridade heterossexual é a complementaridade heterorrelacional em todas as esferas. Portanto, a construção anatômica na genitália, de acordo com esta maneira de pensar, aponta para a “natural” necessidade de heterorrelações.
Não há, certamente, qualquer fato puramente natural sobre a heterossexualidade, bem como sua versão expandida, a heterorrealidade, que possa ser defendido do ponto de vista da complementaridade biológica. Pode ser significativo para algumas pessoas e para alguns propósitos que o pênis “caiba” na vagina, bem como é significativo, para algumas pessoas e para alguns propósitos, que também “caiba” em outro lugar! Não é necessário que todo pênis “caiba” em toda vagina, e nem que esse “caber” governe a existência pessoal e social, tornando-as heterorrelações. Estas, que derivam sua lógica de tal biologismo, equaciona significado a necessidade. De um ponto de vista Gin/afetivo, é igualmente significativo o testemunho de diversas mulheres: o contato inicial e continuado com o intercurso heterossexual estabelece o “fato” de que, no nível anatômico mesmo, muitos pênis não “cabem” tão precisa e gentilmente em muitas vaginas, e aquilo que chamamos de “natural” é conseguido através de sofrimento repetido, acompanhado de trauma, para as mulheres envolvidas. Em seu capítulo “A iniciação sexual”, em The Second Sex, Simone de Beauvoir relata muitos casos de iniciação sexual para meninas e mulheres, nos quais “a defloração foi uma espécie de estupro… que podia ser dolorosa, mesmo quando voluntária”66. De Beauvoir cita Isadora Duncan:
“Eu confesso que minhas primeiras impressões foram um medo aterrador e uma dor excruciante, como se alguém houvesse arrancado vários dentes ao mesmo tempo… No dia seguinte, o que foi para mim apenas uma experiência dolorida continuou entre meus choros e lágrimas martirizados. Eu senti como se estivesse sendo arregaçada.”67
De Beauvoir comenta: “Em pouco tempo ela passou a gostar, primeiro com seu amante, depois com outros, do arrebatamento que ela liricamente descreve”68. Relações heterossexuais, na primeira descrição, dificilmente parece natural, isto é, ordenada pela natureza, a não ser que o repetido sofrimento seja também algo natural e ordenado pela natureza. Mais ainda, como todo o resto do desenvolvimento da feminilidade forjada pelo homem, o suposto “arrebatamento” da heterossexualidade e das heterorrelações é aprendido. Para muitas mulheres, ele nunca é experimentado, e outras fingem senti-lo.
Uma fonte tão atípica quanto Bruno Bettelheim captura bem o processo de desenvolvimento através do qual repulsa e sofrimento são transformados em arrebatamento e prazer, em sua interpretação do conto de fadas “O rei sapo”.
O conto de fadas, concordando com a criança que o sapo (ou qualquer outra criatura) é nojento, ganha sua confiança, criando, portanto, um vínculo com ele [sic], alimentando a crença de que… no tempo certo, o sapo nojento vai se revelar o mais charmoso companheiro para a vida. E esta mensagem é entregue sem jamais mencionar algo sexual.69
Infelizmente, Bettelheim escolhe o sapo para representar um animal “nojento” para a criança. Animais são sempre destacados por suas caricaturas negativas, opondo-se aos “charmosos” reis e príncipes humanos nos contos de fada hetero-narrativos. Isto posto, todavia, a interpretação de Bettelheim é um paradigma apto para a institucionalização das heterorrelações, isto é, para todos os processos pelos quais a originalidade das mulheres se torna obliterada, e a heterorrelação se consolida.
Phyllis Chesler nos oferece outro tipo de evidência, expondo a mentira da heterossexualdade enquanto um arrebatamento natural:
Casos e histórias clínicas, psicológicas, bem como estudos sociológicos – e nossas próprias vidas – têm documentado a extensão da falta de orgasmos femininos para as mulheres do século XX: ou a falta do tipo “certo” de orgasmos; ou o fato de que não termos tido orgasmo algum, com facilidade nem frequência; ou tendo orgasmos estritamente dentro de monogamias românticas, prostituição legalizada, e auto-degradante; ou apenas depois de um “aprendizado” muito dedicado”.70
O relatório Hite é outro testemunho da falta de satisfação sexual e emocional em relações heterossexuais, e também do fato de que não há nada “natural” em toda a gama de heterorrelações71. E, mais recentemente, Ann Landers reporta que sessenta mil mulheres escreveram cartas para relatar sua insatisfação sexual, e que “de longe, elas preferem ser abraçadas e tratadas com ternura do que ter intercurso com homens”72. Muitas dessas mulheres, 40% mais novas que 40 anos, escreveram cartas enfáticas, contando com 3 ou 4 páginas, quando o questionário de Landers perguntava apenas perguntas de sim ou não. “Muitas delas escreveram ao longo dos anos para dizer que elas estão fartas, que isso é um fardo, uma chateação, insatisfatório… não há qualquer tipo de retorno”73.
O argumento “natural” persiste para heterossexualidade e heterorrealidade porque o intercurso heterossexual está envolvido na reprodução na espécie. Portanto, o argumento da complementaridade genital é propulsionado pelo potencial ou real produto das relações pênis-vagina. Não apenas a heterossexualidade mas uma gama ampliada de heterorrelações , como a família tradicional, a divisão sexual do trabalho, e a criação de crianças definida por gêneros, são racionalizadas enquanto necessárias para a continuação e preservação da raça humana.
A reprodução pode ser obtida de inúmeras formas sem, com isso, ordenar a heterossexualidade como normativa, natural, inescapável, e sem orquestrar heterorrelações como um acompanhamento inevitável deste suposto fato biológico. A reprodução pode ocorrer através no intercurso homem/mulher “normal” numa variedade de contextos que não presumam a contínua heterossexualidade ou contínuas heterorrelações fora da relação reprodutiva. A inseminação artificial é possível, embora seu uso no domínio médico tenha sido amplamente restrito a mulheres heterossexuais casadas. Nestes casos, as heterorrelações, especialmente as que se dão no interior dos casamentos, são usadas para naturalizar e normatizar os métodos de reprodução artificiais, e não o contrário. As novas tecnologias de reprodução são outra forma de procriação que desafiam a “factividade” biológica da heterossexualidade reprodutiva, embora os proponentes que desejam justificar que esse uso da tecnologia reprodutiva, como a reprodução in vitro, continue confinada a casais heterossexuais casados. Esses defensores vão ainda mais longe, alegando que tais tecnologias podem inclusive estabilizar casamentos prejudicados ou ameaçados pela infertilidade74.
Finalmente, se a complementaridade macho-fêmea dos órgãos e da capacidade reprodutiva são os principais argumentos em favor da manutenção e patrocínio das heterorrelações, a questão que deve ser levantada é por que tantas ações fisicamente abusivas são necessárias para reforçar o estado “natural” das heterorrelações. Alguma coisa tão natural nunca deveria ser imposta a tantas mulheres.
NOTAS DE RODAPÉ
- Capítulo 1 de RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001. Tradução: @taticafeminista ↩︎
- Emilie Durkheim, The division of labor in society, trans. Goerge Simpson (New York: Free Press, 1933), p.61.
↩︎ - Otto Weininger, Sex and Character (New York: Putnam, 1975), p.299.
↩︎ - Paula Giddings, When and where I enter: The Impact Of Black Women on Race and Sex in America (New York: Morrow, 1984), p.108
↩︎ - Idem, p.109 ↩︎
- Idem, p.11
↩︎ - Agradeço a Pat Hynes, que em primeiro lugar atentou para este padrão de “linhagem profissional”.
Susan Browen e Cornelia Clapp originaram a linha de zoólogas em Mt. Holyoke College, que durou de 1870 a 1961.
↩︎ - Ver Margaret Rossiter, Women Scientists in America: Struggles and Strategies to 1940 (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1984), pp 18-22. Rossiter dá uma excessiva visibilidade e significância a cientistas casadas, descartando que suas próprias estatísticas apontam que apenas uma pequena fração destas mulheres se casou. O mais lógico seria que o foco de seus estudos recaísse na maioria dos casos – as mulheres solteiras. Perguntas importantes poderiam ser: quais foram as estratégias mobilizadas por tais mulheres para sobreviver e ser bem-sucedidas em suas profissões? Com quem colaboraram? Com quem se aposentaram? Tiveram mulheres como colegas, amigas e/ou amantes que afetaram suas carreiras? Em lugar disso, Rossiter devota páginas para gráficos e estatísticas documentando com quem foram casadas as poucas dessas mulheres que contraíram matrimônio, e em quais ciências se concentraram estas mulheres. Na tabela “Casais notáveis da ciência anterior a 1940”, Rossiter lista os casais pela área de auação da mulher. É algo irônico ver Ruth Benedict e Margaret Mead listadas com seus respectivos maridos cientistas, mas não listadas uma com a outra, uma relação que certamente durou mais que o casamento de Benedict com Stanley, inclusive durando mais que os três casamentos de Mead somados. O livro de Rossiter é anterior à biografia de Mead escrita por Mary Catherine Bateson e Jane Howard, mas esta informação certamente era sabida por muitos antes da publicação de ambos os trabalhos, podendo ter sido investigada e considerada com a mesma atenção que Rossiter dispensa às relações conjugais das cientistas. Ver especialmente pp.141-43 ↩︎
- Ver Edward Hyams, Soil and Civilization (New York: Harper Colophon, 1976), esp 210-12. ↩︎
- Ver, por exemplo, Robert Briffault, The mothers: A Study of the Origins of Sentiments and Institutions, 3 volumes. (New York: Macmillan, 1927); e Lewis Henry Morgan, Ancient Society (New York: World, 1963). ↩︎
- Ver H. J. Mozans, Woman in Science (Cambridge: MIT press, 1974), eps. capítulos 1-9. ↩︎
- Mozans, Woman in Science, capítulo 10. ↩︎
- Raymond Williams, “Culture and Civilization”, The Encyclopedia of Philosophy (reimpressão, New York: Macmillan – The Free Press, 1972) 2: 273.
↩︎ - A cultura das mulheres não tem sido valorizada ou exaltada como diversas tradições étnicas e raciais. Tentativas feministas recentes de fazê-lo frequentemente enfrentaram desprezo e têm sido chamadas de “feminismo cultural”. ↩︎
- Debra Seidman, “The voices of women surviving: The Holocaust, Women and resistance” (Division III thesis, Hampshire College, 1982), p.87. ↩︎
- Seidman, “Voices”, p.96. ↩︎
- Seidman, “Voices”, p.89. ↩︎
- Seidman, “Voices”, p.86. ↩︎
- Seidman. “Voices”, pp.71-72.
↩︎ - Seidman, “Voices”, pp102-3. ↩︎
- Seidman, “Voices”, pp.103-4 ↩︎
- Alice Walker, A cor púrpura (New York: Harcourt, 1982), p.5. ↩︎
- Walker, The color purple, p.9. ↩︎
- Walker, The color purple, p.108. ↩︎
- Deve estar evidente ao longo de todo este trabalho, porém reitero em termos diretos, que a frase mulher original não é usada de nenhuma maneira estática ontológica ou historicamente, nem aloca a amizade feminina em uma instância biológica. As mulheres originais criam sua própria originalidade. Tal originalidade é um estado continuado de desenvolvimento do ser, não algo que mulheres alcancem de repente em algum momento iluminado de verdade feminista. ↩︎
- Conversa com Anne Dallenbaugh, Gloucester, Mass., Outubro de 1980. ↩︎
- Ver Carroll Smith-Rosenberg, “The Female World of Love and Ritual: Relations Between Women in Nineteenth Century America”, Signs: Journal of Women in Culture and Society 1 (Autumn 1975): 1-29
↩︎ - Toni Morrison, Sula (New York: Knopf, 1974).. ↩︎
- Morrison, Sula, p.174. ↩︎
- Ver Nina Auerbach, Communities of Women: An Idea in Fiction (Cambridge: Harvard University Press, 1978), p.63. ↩︎
- FOUCAULT, The Archeology of knowledge. ↩︎
- SPENDER, Dale. Women of ideas and what men have done to them. Londres: Routledge, 1982. p.12 ↩︎
- Conversações com Pat Hynes, Gloucester, Mass., Novembro de 1980. ↩︎
- FOUCAULT, Language. p.171 ↩︎
- FOUCAULT, Language. pp.60-61 ↩︎
- FOUCAULT Language. p.45 ↩︎
- DWORKIN, Andrea. Pornography: men possessing women. New York: Perigee, 1981. p.70 ↩︎
- FOUCAULT Language. p.45 ↩︎
- Sigmund Freud, “Some Psychological Consequences of the Anatomical Distinctions Between the Sexes”, Collected Papers 5:190 ↩︎
- Freud, “Some Psychological consequences”, p.193. ↩︎
- Freud, “On the sexual theories of children”, Collected papers 5:190. ↩︎
- Freud, “The Transformations of Puberty”, Collected Papers, 613. ↩︎
- Dorothy Dinnerstein, The Mermaid and the Minotaur (New York: Harper, 1976), p.44 ↩︎
- Dinnerstein, Mermaid, p.46. ↩︎
- Dinnerstein, Mermaid. p.65. ↩︎
- Dinnerstein, Mermaid. p.225. ↩︎
- Helene Deutsch, The Psychology of Women, citada por Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering (Berkeley: University of California Press, 1978), p.191. ↩︎
- Chodorow, Reproduction, p.193. ↩︎
- Chodorow, Reproduction, p.140. ↩︎
- Chodorow, Reproduction, p.140. ↩︎
- Chodorow interpreta Freud neste aspecto. Citando seu ensaio “Sexualidade feminina” (1931), ela diz: “Freud discorre sobre a maneira pela qual mulheres procuram, em suas relações heterossexuais, recapturar sua relação com suas mães. Ele sugere que na ‘mudança de objeto’ das mulheres, da mãe para o pai, a mãe permanece na condição de primordial objeto interno, de forma que impõem em suas relações com seus pais, e mais tarde com outros homens, as questões que as preocupam em suas relações com suas mães. Elas procuram, nas relações com os homens, gratificações que querem das mulheres”. Reproduction, pp.194-95
↩︎ - Chodorow, Reproduction, p.95. ↩︎
- Chodorow, Reproduction, p.195. Alongando-me nesta questão, podemos perguntar quantas mulheres realmente conhecem os homens que supostamente amam. Esta falta de conhecimento real é colocada em alto relevo pelas observações de Beauvoir sobre a insinceridade do que chamo heterorrelações: “Mulher e homem – mesmo marido e mulher – estão, em algum grau, interpretando papéis um perante o outro, e a mulher, em particular, interpreta o papel que o homem impõe e requer dela; virtude acima de qualquer suspeita, charme, coquetismo, infantilidade, ou austeridade. Nunca na presença do marido ou amante ela pode sentir-se completamente ela mesma”. Simone de Beauvoir, The Second Sex, tradução e edição H. M. Parshley (New York: Bantam, 1952), P.394. ↩︎
- Chodorow, Reproduction. p.198. ↩︎
- Chodorow, Reproduction. p.197. ↩︎
- Dworkin, Pornography, p.151. ↩︎
- Chodorow, Reproduction. p.200. ↩︎
- Chodorow, Reproduction. p.200. ↩︎
- Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, Signs: Journal of Women in Culture and Society 5 (1980): 648. ↩︎
- Chodorow, Reproduction. pp.203-4. ↩︎
- Chodorow, Reproduction, p.208. ↩︎
- Chodorow: Reproduction, p.218.
↩︎ - Dinnerstein, Mermaid, pp.148-49. ↩︎
- Dado que a maior parte dos homens não tem ideia ou treinamento consistente e responsável para a maternagem, as mulheres, abdicando da primazia de seus laços com os filhos, poderiam se deparar com a necessidade de se tornar “mães” para que os homens pudessem aprender a sê-lo. ↩︎
- Uso as palavras “visível” e “imediata” propositadamente. Mães, enquanto conduítes visíveis e imediatas das heterorrelações, não são conduítes primários. Chodorow observa: “… tanto do ponto de vista psicanalista e clínico quanto do social psicológico… os pais geralmente tipificam seus filhos segunbdo o sexo com mais consciência que as mães, acompanhando os papéis de gênero… eles encorajam cmportamento heterossexual feminino em filhas jovens.” Reproduction, p.118. Todavia, o encorajamento paterno às heterorrelações é frequentemente menos visível que o das mães, porque o pai é mais distante e menos visível enquanto pai. ↩︎
- De Beauvoir, Second Sex, p.360. ↩︎
- Duncan, como citada por Beauvoir, Second Sex, p.360. ↩︎
- De Beauvoir, Second Sex, p.360. ↩︎
- Bruno Bettelheim, The uses of Enchantment (New York: Knopf, 1976), p.219. ↩︎
- Phyllis Chesler, Women and Madness (New York: Doubledar, 1972), pp. 46-47. ↩︎
- Shere Hite, The Hite Report: A Nationwide Study of Female Sexuality (New York: Dell, 1981). ↩︎
- “60,000 Women Tell Ann Landers Sex is Not Fulfilling”, Greenfield Recorder, 15 de janeiro de 1985, p.1. ↩︎
- “60,000 Women”, p.12. É claro, os “experts” responderam dizendo que o questionário de Landers era “perigoso”, “tendencioso” e ameaçava “nos levar de volta à era Vitoriana”. Ver “Sex Experts: Landers Reader Poll Dangerous”, Greenfield Recorder, 16 de janeiro de 1985, p.8.
↩︎ - Não advogo em favor do desenvolvimento ou uso destas tecnologias. Em outros escritos teóricos e políticos, me opus a estes desenvolvimentos e usos. Em vez disso, estou desafiando a “naturalidade” ou biologismo da assim-chamada argumentação natural-reprodutiva que, acredito, é repelida por tais tecnologias.
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