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A pornografia como autoridade sexual: como a terapia sexual promove a pornificação da sexualidade

Traduzido de: TYLER, Meagan. “Pornography as Sexual Authority: How Sex Therapy Promotes the Pornification of Sexuality”. In: Big Porn Inc.: Exposing the Harms of the Global Pornography Industry. Melbourne: Spinifex Press, 2012.

A pornografia se infiltra cada vez mais em vários aspectos de nossas vidas. Frequentemente quando discutimos essa “pornificação” (Paul, 2005), trazemos exemplos que todos podem ver e que são fáceis de se reconhecer: moda, arte, propaganda, programas de TV, filmes. Mas a pornografia também está se infiltrando em áreas que não são tão óbvios para a vida pública, para o dia a dia: desde as práticas empresariais de empresas globais (Davies and Wonke, 2000; Lane, 2000; Rich, 2001) até as práticas em nossas relações íntimas (Dines, 2010; Häggström-Nordin et al., 2005; Paul, 2005; Tydén and Rogala, 2003, 2004).

Esses processos públicos e privados de pornificação não apenas envolvem a crescente exposição e influência da indústria pornográfica como também a intensificação da sua legitimação. Uma das formas mais proeminentes nas quais a pornografia se apresenta como legitimação da área de terapia sexual. Hoje, na terapia sexual, a pornografia não é apenas considerada como uma parte aceitável da prática sexual, mas um modelo sexual ideal a ser seguido. É a pornografia sendo apresentada como a autoridade sexual suprema, e ela oferece sérios riscos à libertação das mulheres. A recomendação de consumo de pornografia pode ser encontrada em muitos livros de auto-ajuda sexual, mesmo aqueles escritos por terapeutas sexuais conhecidos e respeitados (ver por exemplo Heiman and LoPiccolo, 1992; Morrissey, 2005; Zillbergeld, 1993). A pornografia é mais frequentemente recomendada como uma ajuda para os casais. De acordo com os terapeutas Striar and Bartlik, que escreveram sobre o uso da “erotica” na terapia sexual, a pornografia deve ser vista como um modo de “adicionar diversidade a uma relação monogâmica” (Striar e Bartlik, 1999, p. 61). Eles afirmam, particularmente, que ela pode ser benéfica para “casais com fantasias sexuais incompatíveis” (p. 61).

Este é um dos meios mais comuns pelos quais a pornografia é introduzida como parte da terapia sexual. A pornografia é usada para “introduzir o/a cônjuge a uma nova experiência sexual, que ela ou ele poderiam, de outro modo, achar desagradável ou inaceitável” (p. 61). Em casos como este, a pornografia, sob o conselho dos terapeutas, é promovida como uma ferramenta para ser usada quando se quer convencer um/a cônjuge indisposta/o a participar de um ato sexual do qual ela/e não deseja tomar parte. A ideia de que as mulheres deveriam “experimentar” e performar atos sexuais que não desejam se tornou um modelo popular para o comportamento sexual feminino em relações heterossexuais desde a “revolução sexual” dos anos 60. É uma ideia frequentemente reforçada e legitimada através da terapia sexual (ver Jeffreys, 1990). As mulheres ainda são encorajadas por terapeutas a satisfazer sexualmente seus parceiros homens, ainda que não tenham desejo em fazê-lo, ou ainda que experimentem dor ou desconforto (Tyler, 2008).

Por exemplo, em “Becoming Orgasmic”, um manual de auto-ajuda sexual largamente recomendado para mulheres, os terapeutas Heiman e LoPiccolo encorajam as mulheres a tentar sexo anal (uma prática sexual cada vez mais presente na pornografia) caso o parceiro, homem, esteja interessado na prática. O conselho dos terapeutas é: “Se houver algum desconforto, tente novamente em algum outro momento” (Heiman and LoPiccolo, 1992, p. 187). A premissa central é de que a dor e o desconforto das mulheres não é uma razão aceitável para descontinuar a prática, mas na verdade, uma razão para que as mulheres passem por mais “treinamento”, “formatação” e coerção. Em vez de compreender que o uso da pornografia como estratégia coerciva é prejudicial, os sexólogos exaltam as virtudes da pornografia, afirmando por exemplo que ela é útil para “dar ao usuário permissão para emular tal comportamento” (Striar e Bartlik, 1999, p.61). É exatamente o tipo de comportamento que se espera que mulheres imitem da pornografia que expõe ainda mais a forma com que a promoção e legitimação da pornografia na terapia sexual prejudica a libertação das mulheres. Mesmo o material pornográfico “mais respeitável” que é recomendado por terapeutas sexuais, práticas sadomasoquistas e atos como dupla penetração, ou DP como ela é conhecida na indústria pornô, podem ser facilmente encontrados.

Peguemos como exemplo o Sinclair Intimacy Institute, gerenciado por um “conhecido e respeitado sexólogo, Dr. Mark Schoen”(Black, 2006, p. 117). O instituto é constituído majoritariamente por uma loja que vende pornografia recomendada por terapeutas. No site do instituto, clientes são assegurados que a pornografia disponibilizada ali foi aprovada e selecionada por terapeutas que escolhem apenas “produções sexualmente positivas de alta qualidade” (Sinclair Intimacy Institute, 2007). Entre a lista de “produções sexualmente positivas” estão títulos pornográficos conhecidos como “O diabo na carne de Miss Jones”, “Jenna Loves Pain” (Jenna adora Dor) e “Garganta Profunda”. A escolha de Garganta Profunda é particularmente reveladora, dada a quantidade de publicidade em volta das circunstâncias de sua produção. Linda Marchiano (Linda Lovelace, na época da filmagem) detalhou em seu livro Ordel o abuso extensivo que sofreu nas mãos de seu marido e cafetão, explicando como ela era forçada, às vezes sob a mira de uma arma, a atuar em pornografia (Lovelace, 1980). Ela uma vez afirmou que “toda vez que alguém assiste aquele filme, a pessoa está me vendo ser estuprada” (quotada em Dworkin, 1981). Um filme assim ser rotulado como “sexualmente positivo” por terapeutas deveria ser a causa de uma grande preocupação. Mas Garganta Profunda não é um caso isolado. Tanto o diabo na carne de Miss Jones quanto Jenna Loves Pain receberam comentários elogiosos na proeminente revista da indústria pornográfica, Adult Video News. Os editores da Adult Video News (AVN) deram a Miss Jones uma recomendação estrelada, dizendo que “O sexo é universalmente bom e genuinamente agitado, lancinante, com dupla penetração e chicotadas na cena final…” (Pike-Johnson, 2005b, n.p.).

Tenha em mente que esses são os títulos com comportamento recomendados para que os casais assistam e emulem. Como se o título não fosse problemático o bastante, Jenna Loves Pain também recebeu um endosso caloroso da AVN. Seus leitores foram informados que o filme continha não apenas um sadomasoquismo moderado, mas que ela eleva os padrões do que é possível em filmes de BDSM” (Ramone, 2005b, n.p.). Para ser clara, estamos falando de filmes de fetiche que incluem atos de bondagem, disciplina e sadomasoquismo (BDSM) e infelizmente os terapeutas esperam que as mulheres imitem esse comportamento. Striar e Bartlike, por exemplo, informam seus colegas terapeutas que acessórios para facilitar as fantasias de dominação e submissão sexual como “chicotes, coleiras e vendas” (1999, p. 61) devem ser recomendados aos clientes e podem ser facilmente encontrados em sex shops. A promoção da dominação, submissão e outras práticas sadomasoquistas pode ser encontrada mesmo em vídeos de “educação sexual”aprovados por terapeutas. O Sinclair Intimacy Institute produz e distribui alguns dos mais conhecidos títulos do gênero de educação sexual. De acordo com a Dra Judy Seifer, uma das terapeutas do instituto envolvida na produção da série Better Sex (Sexo Melhor), os casais devem usar os vídeos “como livros didáticos. Pare a fita, congele a imagem, como se estivesse relendo um capítulo” (Quotada em Eberwein, 1999, p. 193). Este “livro didático”, no entanto, contém muitas, se não todas, as convenções heterossexuais da pornografia mainstream (Eberwein, 1999), incluindo temática BDSM.

A promoção do sadomasoquismo em vídeos de educação sexual é particularmente óbvia nos Kits de Better Sex do instituto, que incluem vídeos e brinquedos sexuais. Um dos kits se chama “Smart Maid” (Empregadinha Esperta). Consumidores em potencial são informados pelo website que “Se fantasiar e ser sexy para o seu parceiro faz parte de uma relação saudável…” (Sinclair Intimacy Institute, 2007b). O uso de fantasias, no entanto, é esperado unicamente das mulheres: o kit não oferece roupas masculinas. Neste caso em particular espera-se que as mulheres se vistam com uma “fantasia de empregada francesa”. O excitamento sexual advindo da servitude feminina que os homens devem experimentar é ainda destacado pelos detalhes que acompanham a caixa: “A seu dispor! Fantasias sexy e divertidas se realizarão quando ela usar esta fantasia transparente de empregadinha” (Sinclair Intimacy Institute, 2007b). Temáticas de dominação e submissão são também óbvias no kit “Tie Me Up, Tie Me Down” (Me amarre, me amarre), que inclui “algemas japonesas para mãos e pés” e uma venda de couro. A fotografia que acompanha o kit, não surpreendentemente, é a de uma mulher vestida com as assim chamadas “roupas educativas de BDSM” (Sinclair Intimacy Institute, 2007c). A promoção da pornografia na terapia sexual, no entanto, só explica em partes como ela tem sido, cada vez mais, colocada como uma autoridade em assuntos sexuais. Como consequência da legitimação que os terapeutas sexuais deram à pornografia ao longo dos anos – colocando-a como um modelo ideal no qual o sexo heterossexual deve se basear – estrelas pornô tem sido cada vez mais apontadas como “especialistas sexuais”.

Por exemplo, na coleção de 1999 “Sex Tips: Advice from women experts around the world” (Dicas sexuais: conselho de mulheres especialistas do mundo todo) editada pela terapeuta australiana Jo-Anne Baker, estrelas pornô, sadomasoquistas e mulheres prostituídas aparecem ao lado de outros terapeutas como “especialistas” (Baker, 1999). Ainda na intenção de manter essa tendência, muitas revistas masculinas do Reino Unido e EUA deram uma turbinada em suas seções de conselhos sexuais, apresentando estrelas do pornô em vez de terapeutas sexuais (Attwood, 2005, p. 85, mediabistro.com, 2007a, 2007b). Algumas estrelas pornô e mulheres prostituídas até começaram a lançar livros com seus conselhos sexuais. Títulos recentes incluem: “How to have a XXX Sex Life” (Como ter uma vida sexual pornográfica) (Anderson and Berman, 2004), que é baseado em conselhos de mulheres que foram contratadas pela produtora pornográfica Vivid dos EUA; “Sex Secrets of Escorts: Tips from a Pro) (Segredos sexuais de acompanhantes: Dicas de uma profissional) (Monet, 2005), escrito por Veronica Monet, uma ex prostituta e estrela pornô; e “How to Tell a Naked Man What to Do: Sex advice from a woman who knows” (Como dizer a um homem pelado o que fazer: conselhos sexuais de uma mulher que manja) (Royalle, 2004), de Candida Royalle, uma ex estrela pornô de alto nível, que se tornou pornógrafa. Em vez de competir com conselhos sexuais oferecidos por terapeutas com treinamento médio, os conselhos sexuais dados nesses livros frequentemente se baseia em ideias “médicas” sobre o sexo, e além disso, frequentemente reforça essas ideias se apoiando em exemplos de pornografia e prostituição.

A pornografia e a prostituição são promovidas nesses textos como a principal autoridade sexual no sexo, e lá, a erotização da submissão e degradação da mulher são temas recorrentes. Todos os livros de conselhos sexuais escritos por estrelas pornô afirmam que estar envolvida em prostituição e pornografia faz de você uma autoridade sexual, em particular, do sexo bom, do sexo que deve ser imitado. Na mesma linha dessas afirmações estão seções que oferecem dicas e sugestões para as mulheres sobre como melhorar suas próprias vidas sexuais, baseadas em experiências de mulheres prostituídas ou da indústria pornográfica. Como Monet coloca: “Você aprenderá técnicas sexuais que são a base dos serviços sexuais pagos” (Monet, 2005, p. 8). Isto é um grande problema para mulheres, considerando que essas dicas sexuais são baseadas num sistema que envolve um desequilíbrio inerente de poder, um sistema em que na maior parte, homens são os compradores e mulheres são produto (Barry, 1995, Jeffreys, 1997). É um sistema em que as mulheres são pagas para satisfazer sexualmente homens, sem a menor consideração pelo prazer das mulheres (Barry, 1995). Um sistema no qual mulheres são frequentemente abusadas fisicamente, sofrem de dissociação e frequentemente de transtorno de estresse pós traumático (Farley, 2003). É um sistema no qual a desigualdade das mulheres é fixada (Jeffreys, 1997). E ainda assim este é o modelo oferecido para que as mulheres imitem em suas vidas sexuais. Existem pessoas, incluindo os autores destes textos pro-pornografia, que tentam argumentar que na verdade a prostituição e a pornografia são liberadoras e podem acomodar e promover o prazer feminino e a igualdade (ver por exemplo McElroy, 1995; Monet, 2005; Royalle, 2006; Strossen, 1995).

Mas o conselho oferecido nestes textos com frequência mostra o quanto estes argumentos são enganosos. São frequentes as mensagens nos textos das estrelas pornô que imitam a literatura de terapia sexual, reiterando a importância de tentar algo novo para agradar o parceiro ou questionando certas inibições. Um exemplo disso vem do livro da Royalle: “Como dizer a um homem pelado o que fazer”. Ela afirma: “Nunca ache que você tem que fazer uma coisa que não quer fazer. No entanto, é sempre bom estar aberta e pelo menos dar uma chance a novas experiências. Pergunte a si própria qual é exatamente o motivo de você não querer assistir filmes pornográficos…” (2004, p.65). Royalle então explica para as mulheres que, uma vez que tenham concordado em assistir pornografia, provavelmente se depararão com algo que não querem assistir: “Talvez ele queira ver um filme ~sujo~ e você queira um filme mais leve… É simples: Se revezem! E não assista o filme de má vontade” (Royalle, 2004, p. 70). De fato, a suposição de que a princípio as mulheres não vão querer participar dos atos sexuais que são recomendados é evidente na maioria deste tipo de material de conselho sexual. Por exemplo, Monet aconselha as mulheres a “Se dar a chance de ultrapassar seu constrangimento inicial ou mesmo seus sentimentos de desprezo” (Monet, 2005, p.130). Os autores de “Como ter uma vida sexual pornográfica” também oferecem conselhos a respeito de “se libertar da culpa e das inibições” (Anderson e Berman, 2004, p.10). A sugestão, é claro, é de que esses sentimentos de desprezo ou incômodo a respeito de reencenar atos de prostituição ou imitar a pornografia são, de certo modo, infundados.

As mulheres não tem o direito de sentir deste modo e precisam trabalhar na superação de suas “inibições”. A pornografia é a ferramenta sugerida para ajudar as mulheres a aprender a ter reações sexuais mais “apropriadas e positivas”. Em “Como ter uma vida sexual pornográfica” só autores encorajam as mulheres a copiar os diálogos diretamente dos filmes pornô. Eles são francos em informar sobre o apelo sexual que envolve a degradação, explicando que: “quando a maioria das pessoas pensa em ‘falar sacanagem’ elas pensam em usar palavras sujas, até linguagem degradante para que as coisas esquentem. Quando funciona, funciona bem” (Anderson e Berman, 2004, p.49, ênfase da autora). Para exemplos práticos, os leitores são direcionados a assistir o filme pornô “Swoosh” porque o linguajar é mais vulgar, com diálogos como “É isso que você quer, sua put@ imunda?” ou “Aguente, vagabunda” (Anderson e Berman, 2004, p.49). Em uma outra intersecção entre a pornografia e a terapia sexual, um conselho parecido a respeito de “falar sacanagem” é dado pela famosa sexóloga australiana Gabrielle Morrissey em seu popular livro de auto-ajuda sexual, Urge: Hot secrets for great sex (Urgência: Grandes segredos para um ótimo sexo) (2005). Morrissey afirma que falar sacanagem serve à intenção de “esquentar o clima”, e pra apoiar essa afirmação ela apresenta um cenário em que um homem diz a sua parceira sexual: “Traga sua bucet@ molhada aqui, eu quero te f0der muito bem…” (Morrissey, 2005, p.442).

Não fica claro se Morrissey acredita que essa prática excita homens, mulheres, ou ambos, mas ela reconhece que em contextos não sexuais as mulheres consideram essas frases muito ofensivas. Ela comenta que: “Um mulher no quarto pode achar excitante que o homem grite ‘Car@lho, você é uma put@ imunda!’, mas se ele dissesse algo parecido na cozinha, provavelmente receberia um safanão…” Depois ela explica: “Tom, intenção e contexto são tudo” (p. 424). O contexto é importante porque, de acordo com terapeutas sexuais e pornógrafos, a degradação feminina é aceitável desde que seja sexual. Enquanto Morrissey afirma que as mulheres não devem ser abusadas ou ofendidas verbalmente na cozinha, o quarto é colocado como a fronteira final do respeito e da igualdade. O que nos leva novamente ao problema de basear o aconselhamento sexual num modelo de sexualidade que não é a respeito do prazer sexual da mulher, mas sim de sua subordinação sexual. Quando a terapia sexual deu legitimidade à pornografia, os processos de pornificação parecem ter se alimentado ao ponto em que estrelas pornô agora são vistas e aceitas como importantes terapeutas sexuais. Enquanto a pornografia e a terapia sexual continuarem mutuamente reforçando a compreensão de como deve ser o sexo, será necessário que as mulheres se coloquem fora desse modelo e reivindiquem uma sexualidade que é baseada em igualdade e respeito, que fundamentalmente rejeite a pornografia como autoridade sexual. E ao mesmo tempo em que é as dificuldades de desafiar este modelo crescem, cresce também a necessidade e importância de tentarmos.


Referências

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Zillbergeld, Bernie (1993) The New Male Sexuality. Bantam Books, New York.

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Feministas brasileiras

PSOL, manifeste-se também sobre a misoginia!

Queremos que o PSOL se manifeste por seus outros membros também!!

Esta pessoa, Luiza Coppieters, é afiliada ao PSOL e está lançando sua pré-candidatura pelo partido. É uma pessoa que aparentemente está ligada ao feminismo e diz lutar contra a cultura de estupro.

Na semana retrasada nos deparamos com essa pessoa interagindo no perfil de uma mulher religiosa, comentando “imagino ela com cabelo batidinho, umas tattos, com essa carinha, beijando meu umbigo” e que ela devia “ter pegada e fazer o diabo na cama”:

Luiza Coppieters

Luiza Coppieters

Como alguém afiliado ao partido e que diz lutar pela causa feminista pode assediar outra mulher abertamente na internet?

E quando o Tomazine mandou mensagens a uma moça falando de suas genitais, mas apenas o Renato se manifestou? A ala feminina do partido não merece o mesmo respeito que a ala LGBT?

Hailey Kaas, outra pessoa filiada ao PSOL, militante da LSR, também é aparentemente ligada ao feminismo e diz lutar contra a cultura de estupro.

Com enorme choque e surpresa nos deparamos com a divulgação de um post de apologia ao incesto em sua página pessoal. Esta é a página. E este é o post de apologia — caso o link saia do ar: http://imgur.com/fqlwkaI.

Aos que não falam inglês, uma tradução livre:

“Um modo de introduzir seu filho ao sexo é o seguinte: esfregue seu pau entre as bandas da bunda dele. É um jeito bom de coçar a bunda dele e deixá-lo excitado o bastante pra te implorar por mais. Depois disso você pode usar os apelos dele como um momento de ensinamento pra finalmente enfiar o pau no cu dele.
Eu sempre amei fazer isso!”

Estes comportamentos são aceitáveis para o PSOL? Como ficam as mulheres do partido, sabendo que seus membros são capazes de assediar mulheres na internet? E que outro membro divulga material de conteúdo incestuoso? O partido está de acordo? Vocês vão se pronunciar?

A denúncia de uma pessoa transgênero contra uma mulher lésbica será mais importante que nossa denúncia contra o que está mostrado nesse texto?

Vejamos.

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Feminismo indefinido

Tradução livre de: THOMPSON, Denise. Radical Feminism Today. Londres: SAGE, 2001. p. 53-58.

O lugar óbvio de se procurar por definições é, claro, um dicionário, e dicionários feministas existem. Mas eles não são muito mais úteis para esclarecer o significado de feminismo que qualquer outro texto. Por seu propósito ser dar uma visão geral o mais abrangente possível, seu principal critério de seleção é qualquer coisa chamada de ‘feminista’. Como consequência, eles tendem a reproduzir os conflitos e contradições sem resolvê-los. As entradas sob o termo feminismo são tão díspares que são de pouca ajuda ao se buscar um sentido coerente do que o feminismo é.

Geralmente essa é uma estratégia deliberada por parte dos compiladores uma vez que seu objetivo é incluir a maior gama possível a respeito do que as mulheres têm a dizer sobre cada tópico designado por um termo. Mas a palavra feminista tem um status diferente de todas as outras entradas. Quando aparece no título ela provê por definição o foco para todo o resto. Assim, o lugar a se procurar pela definição de ‘feminismo’ neste dicionário é a declaração dos objetivos e intenções das compiladoras. Cheris Kramarae e Paula Treichler, por exemplo, inicialmente os declararam largamente em termos de ‘mulheres’, por exemplo ‘documentando palavras, definições, e conceitualizações que ilustram as contribuições linguísticas das mulheres’ (Kramarae e Treichler, 1985:1). Entretanto, elas estão conscientes de que para os propósitos de um dicionário feminista, referências a mulheres somente não eram suficientes. Elas disseram que chamaram o livro de dicionário feminista em vez de dicionário das mulheres porque estavam particularmente interessadas no que tem sido dito ’em oposição à definição, difamação, e ignorância masculina a respeito das mulheres e suas vidas’’ (p. 12). Em outras palavras, elas estavam cientes de que a necessidade de se focar em mulheres vem das condições da supremacia masculina, ainda que, no interesse da diversidade, a consciência não apareça claramente e indubitavelmente sob a entrada ‘feminismo’ no texto propriamente dito.

Usualmente, porém, essa abordagem pluralista significa que o feminismo acaba por ser definido apenas em termos de mulheres. As editoras de uma obra panorâmica do feminismo australiano disseram que ‘sequer tentaram impôr uma definição singular de feminismo … por causa da diversidade, e do constante movimento, no terreno feminista’. Elas, no entanto, oferecem uma definição de feminismo nos termos de uma preocupação com a opressão das mulheres e com como mudar isso em relação à cidadania das mulheres e a sua participação na vida social (Caine et al., 1998: x). Maggie Humm, também, definiu o feminismo em grande parte em termos de mulheres — ‘direitos iguais para as mulheres’, ’em geral, o feminismo é a ideologia da libertação das mulheres, a teoria do ponto de vista da mulher’, etc. (Humm, 1989). O feminismo também é caracterizado em termos de mulheres no Prefácio: ‘a teoria feminista é fundamentalmente sobre a experiência das mulheres’ (p. xi). Sob o título ‘Dominação’, ela reconhece que ‘Uma parte distinta da teoria feminista contemporânea é sua análise da dominação masculina e toda a teoria feminista é feita de modo a mostrar como a dominação masculina sobre as mulheres pode ser encerrada’’ (p. 55); e há uma entrada para ‘dominação masculina’. Mas essa consciência não é incluída na definição de feminismo.

Sei de apenas um texto que explicitamente aponta a questão de se definir o feminismo. Karen Offen (1988) apresenta o feminismo nos termos da dominação masculina como uma questão crucial das políticas feministas. O feminismo seria ‘uma análise crítica do privilégio masculino e da subordinação das mulheres dentro de qualquer sociedade dada’, e ‘um desafio político à autoridade e à hierarquia masculina em seu mais profundo sentido’’ (pp. 151, 152). Mas sua principal preocupação era porque a palavra ‘feminismo’ tão frequentemente evoca antagonismo. Ela sugere que foi a ênfase individualista que alienou muitas mulheres (e homens), porque desconsiderava a experiência tradicional das mulheres e as diferenças das mulheres em relação aos homens. Ela argumenta que a solução seria reconhecer o importante papel ‘relacional’ que o feminismo desempenhou historicamente. ‘Feminismo relacional’, ela diz, ‘enfatiza os direitos das mulheres enquanto mulheres (definidos principalmente por suas capacidades férteis e nutridoras) em relação aos homens. Ele insiste nas contribuições distintas das mulheres nesses papéis na sociedade de forma ampla e faz reivindicações na comunidade com base nessas contribuições’’ (p. 136 — ênfase da autora). Ela reconhece que argumentos em favor da ‘diferenciação das mulheres e complementariedade dos sexos’ têm sido constantemente apropriados ‘para novamente sancionar o privilégio masculino’ (p. 154). Mas ela acredita que um feminismo que valoriza as capacidades tradicionais das mulheres para amparo e relacionamento terão mais apelo para as mulheres do que um que se baseie somente nos conceitos abstratos (e definidos por homens) de direitos individuais e autonomia pessoal.

Porém, enquanto ela está certa de que há muito o que se valorizar nas capacidades tradicionais das mulheres, ela entende erroneamente a origem do antagonismo relativo ao feminismo. O feminismo irrita, não porque seja muito abstrato e individualista, mas porque identifica a dominação masculina. O problema do feminismo com os papéis tradicionais femininos não é que as mulheres de fato os desempenhem, mas que eles asseguram a subserviência das mulheres aos homens. O problema não é que mulheres sejam nutridoras e cuidadosas (caso sejam), mas que se requeira que as mulheres nutram homens sem reciprocidade. É a perspectiva de as mulheres se recusarem servir aos homens que é tão alienante, para os homens porque irão perder seu reconhecimento não recíproco às mulheres do status ‘humano’, e para as mulheres porque perderão seu único acesso à intimidade e ao status ‘humano’ permitido dentro das condições da supremacia masculina. Mas Offen não reconhece que é a própria oposição do feminismo à supremacia masculina, uma oposição que ela mesma não achou problemática, a origem do antagonismo.

Muito frequentemente os textos feministas se equivocam na questão da dominação masculina, até mesmo, curiosamente, onde ela é explicitamente nomeada. Sandra Harding, por exemplo, reconhece claramente a existência da dominação masculina, uma vez que define ‘sexo/gênero’ como ‘um sistema de dominação masculina tornado possível através do controle masculino do trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres’ (Harding, 1983: 311). “Dominação masculina” é sinônimo a ‘sistema sexo/gênero’ ao longo do artigo. Ela nos diz que é provavelmente imprudente ‘assumir que qualquer coisa que conheçamos como sistema sexo/gênero seja um aspecto universal da vida social humana’’, e então restringe o escopo de sua generalização à ‘vasta maioria de culturas às quais temos acesso histórico’’ (p. 323 n. 10 — ênfase da autora). Assim quaisquer culturas (hipotéticas) que não sejam dominadas por homens, ao que parece, não teriam o ‘sistema sexo/gênero’. Mas se a dominação masculina é a característica comum e invariável do ‘sistema sexo/gênero’, por que há a necessidade de se substituir ‘sistema sexo/gênero’ por ‘dominação masculina’? Dado o quão prevalente é a evasão em se nomear a dominação masculina, essa substituição não é inocente. Muitas vezes ela funciona como uma negação eufemística das relações de poder desafiadas pelo feminismo. Porque ela deveria aparecer em um texto que, ao contrário, identifica claramente as relações de poder, é intrigante.

Enquanto a maioria dos textos auto-identificados feministas que falham em reconhecer a dominação masculina como o principal antagonismo do feminismo o faz implicitamente ou por omissão, há alguns textos que explicitamente argumentam contra isso. Por exemplo, há o argumento de Judith Butler contra o que ela caracteriza como ‘a noção de que a opressão das mulheres tem uma forma singular discernível na estrutura universal ou hegemônica do patriarcado ou da dominação masculina’’. Ela continua dizendo:

A noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada nos últimos anos por sua falha em considerar as atuações da opressão de gênero nos contextos culturais onde ela existe. Onde esses vários contextos foram consultados dentro dessas teorias, têm sido para encontrar ‘exemplos’ ou ‘ilustrações’ de um princípio universal que é assumido desde o princípio. Essa forma de teorização feminista tem sido objeto de crítica por seu esforço em colonizar e apropriar culturas não-ocidentais para apoiar noções altamente ocidentais de opressão, [e] porque tendem também a construir um ‘Terceiro Mundo’ ou até mesmo um oriente no qual a opressão de gênero é sutilmente explicada como sintomática de um barbarismo essencial, não-ocidental. A urgência do feminismo em estabelecer um status universal para o patriarcado no sentido de fortalecer a aparência das próprias demandas do feminismo de ser representativo ocasionalmente tem motivado um atalho para uma universalidade categorial ou fictícia da estrutura de dominação, feita para produzir uma experiência comum de subjugação das mulheres. (Butler, 1990:3–4)

Esse único parágrafo compromete toda a crítica de Butler no texto. A escassez do argumento indica tanto a crença de Butler na natureza auto-evidente da crítica, e seu desprezo pela ‘forma de teorização feminista’ que ela está rejeitando. Nenhuma evidência ou exemplos de ‘universalidade fictícia’ são dados, logo a acusação é impossível de se avaliar nessa instância em particular. Não nos é dito onde ‘a noção de patriarcado universal aparece’, nem onde ela foi criticada. Não podemos então decidir por nós mesmos se há ou não alguma forma de teorização feminista que ‘coloniza e apropria culturas não-ocidentais’ e as constrói como ‘bárbaras’, nem de que formas elas devem ser.

Seu argumento é uma instância da acusação de ‘falso universalismo’, e funciona da mesma maneira que todas as acusações do tipo contra a teoria feminista funcionam, ou seja, negando a dominação masculina. Ela caracteriza o ‘patriarcado’ como uma ‘noção altamente ocidental’. Ela insiste que ele não é apropriado quando aplicado às ‘atuações da opressão de gênero’ e ‘experiência de subjugação das mulheres’ em culturas diferentes das ‘ocidentais’, negando assim que o conceito de ‘patriarcado’ é relevante para culturas outras que não do ‘ocidente’. No entanto, ela reconhece que a ‘opressão de gênero’ e ‘subjugação das mulheres’ existe em culturas outras que não do ‘ocidente’. Mas se a subjugação das mulheres não é resultado da dominação masculina, de onde ela vem? Parece que o ‘universalismo’ só é falso quando o que está sendo ‘universalizado’ é a dominação masculina. Não há problema, ao que parece, em ver a opressão das mulheres como ‘universal’ no sentido de que ela existe em outras culturas que não o ‘ocidente’. O que é proibido sob o risco de ser acusado de ‘falso universalismo’ é nomear o inimigo.

Localizar a causa da subordinação das mulheres na dominação masculina não é ‘universalizar’ uma noção peculiar do ‘ocidente’ e aplicá-la a ‘outras culturas’. Identificar a dominação das mulheres pelos homens (e de alguns homens sobre outros homens) não é afirmar que há somente uma forma singular de dominação masculina. Mesmo no ‘ocidente’, ela tem a multiplicidade de diferentes formas. Onde quer que os interesses dos homens prevaleçam às custas das mulheres, e os interesses de alguns homens prevaleçam sobre os de outros homens, a dominação masculina existe, seja que forma tome. Enquanto algumas vezes ela é violenta e descaradamente desumanizadora, ela também é multifacetada e pervasiva na vida cotidiana. Ela toma diferentes formas em diferentes culturas sob diferentes condições históricas, contanto que a existência ‘humana’ continue a ser definida nos termos dos homens, e que a existência ‘humana’ de alguns homens exista às custas de outros homens, ela continua sendo dominação masculina, em todas as suas ‘infinitas variedades e monótonas similaridades’ (Fraser and Nicholson, 1990:35).1

Essa relutância entre muitas das que se identificam como feministas em nomear e identificar a dominação masculina requer explicação. Uma razão reiterada com frequência é a relutância em se caracterizar as mulheres como ‘vítimas’. Focar na dominação masculina, assim se argumenta, faz dos homens mais poderosos do que realmente são, e só faz as mulheres se sentirem acuadas e indefesas. Insistir na extenção do poder masculino, vê-lo como amplamente pervasivo, vê-lo a todo momento nos violando, invadindo nossas vidas, penetrando nos recôncavos profundos da nossa psique, enraizado nos nossos atos mais íntimos, é retratar as mulheres como nada mais que vítimas passivas e indefesas dos homens, ou assim se diz.

Esse tipo de argumento é comum nos círculos ‘feministas acadêmicos’. Lois McNay, por exemplo, diz que a ‘tendência de se considerar mulheres como vítimas impotentes e inocentes das estruturais sociais patriarcais … impede muitos tipos de análises feministas’ (McNay, 1992: 63, 66). Ela diz que isso falha em ‘considerar o potencial da criatividade das mulheres e sua agência sob restrições sociais’. Isso também é opressivo a algumas mulheres porque não reconhece ‘que gênero não é a única influência determinante na vida das mulheres’, e porque ‘toma as experiências das mulheres brancas como norma e as generaliza’. Ela não dá nenhum exemplo de obra feminista que supostamente exiba tais características porque, ela diz, isso é ‘bem documentado’’ (pp. 63–-4). Ela ainda diz também que há ‘indubitavelmente … estruturas de dominação, em particular construções de gênero, que asseguram a posição subordinada geral das mulheres na sociedade’ (pp. 66-7). Ela não percebe as contradições em se rejeitar ‘estruturas patriarcais sociais’ em conjunto à ‘vítimas impotentes e inocentes’ por um lado, e se aceitar ‘estruturas de dominação de gênero’ e ‘subordinação geral’ das mulheres por outro. Não está claro que tipo de distinção está sendo desenhada aqui.

Argumentos como esse cometem o mesmo erro que supostamente encontram em outros lugares. Eles interpretam as referências à dominação masculina em termos de ser algo monolítico e inevitável. Mas a exposição feminista da vitimização das mulheres tem a intenção de combatê-la, não de mantê-la. Se ela não pode ser nomeada, não pode ser enfrentada. E o projeto das mulheres de criarmos para nós mesmas formas não exclusivas e não opressivas de ser humanas é evidência suficiente de que o feminismo não define as mulheres como somente vítimas. Esse tipo de objeção falha em levar em conta o senso de poder, triunfo ou alívio que vem com uma visão de mundo clara. Falha em levar em conta a necessidade imperiosa que temos de ver o quão ruins realmente estão as coisas, e o senso de libertação que vem com esse conhecimento. Ignora a necessidade política de se saber contra o que estamos lutando, se estamos dispostas a fazer algo. Aqueles com medo de confinar as mulheres à vitimização perpétua parecem ter esquecido (ou nunca tiveram conhecimento) do alívio de se ouvir a respeito de uma opressão como opressão, em vez de uma falha meramente pessoal e idiossincrática. É toda uma libertação em si mesma dar-se conta de que a culpa recai, não sobre as falhas próprias de alguém, mas em uma realidade onde é possível dizer ‘não’. Esse é um passo vital no processo de se desembaraçar de condições opressoras. Todas nós provavelmente chegamos a um ponto de ruptura, um ponto em que já é o bastante e a angústia supera o alívio. Mas a angústia não é aliviada ao se recusar ver a dominação masculina quando ela é manifestadamente presente, ao se chamá-la de algo menos horrendo (como ‘gênero’), ou ao se retratar mulheres como poderosas quando elas não o são. Reconhecer as amarras ao qual se está sujeita é parte intrínseca de se ter consciência da própria agência moral sob opressão (Hoagland, 1988). Agência moral requer uma habilidade de se decidir não apenas o escopo mas os limites da responsabilidade de alguém, a medida em que alguém é ou não responsável, quando se pode agir, quando não se pode.

Assim, nomear a dominação masculina não é retratar as mulheres como nada além de vítimas. As mulheres também podem ser colaboradoras, podem abraçar os significados da supremacia masculina e valorizá-los como seus e os defender vigorosamente. O sistema oferece benefícios e vantagens limitadas, mas não por isso insignificantes. Ele atrai e seduz enquanto oprime. As mulheres também podem ser resistentes corajosas e perspicazes. Há um sentido no qual o desafio do feminismo à dominação masculina não é em nada ‘sobre’ as mulheres. Se refere ao sistema social que certamente opera em detrimento das mulheres, mas ao qual qualquer um pode ser cúmplice e contra o qual qualquer um pode resistir. Mas é importante esclarecer que as mulheres são as suas principais vítimas. Evitar nomear a vitimização é uma falha em se nomear a opressão. Pela mesma lógica, também não poderíamos nomear qualquer uma das grandes opressões na história. Deveríamos evitar falar sobre o Holocausto ou sobre colonialismo? Essas grandes maldades produziram incontáveis milhões de vítimas inocentes e impotentes. Por que essas vítimas podem ser nomeadas assim, mas não as mulheres vítimas da supremacia masculina? Como podemos saber o tamanho do dano feito às mulheres se estivermos proibidas de nomear esse dano? À medida em que o ‘feminismo acadêmico’ suprime qualquer referência às mulheres enquanto vítimas, ele está em conluio com a dominação.


Nota

1. Essas autoras utilizam a expressão ‘opressão das mulheres’, e não ‘patriarcado’ ou ‘dominação masculina’.

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Traduções

Ainda sobre escracho

Texto publicado originalmente no blog More Radical With Age. Traduzido com permissão da autora.


A irmandade é poderosa. Ela mata. Majoritariamente irmãs.
– Ti-Grace Atkinson

Fui lembrada desse ensaio hoje, publicado pela primeira vez em 1976. A autora, escrevendo do meio da Segunda Onda do ativismo feminista, descreve em detalhes desoladores o dano psicológico a longo prazo infligido nas mulheres no coração daquele movimento, pelas relações que deveriam justamente nutri-las, ampará-las e libertá-las. Na primeira vez que encontrei esse ensaio, enquanto estudante da graduação com um vago interesse na história da Segunda Onda mas sem nenhuma experiência direta própria em ativismo feminista, li-o com uma certa fascinação perplexa e desconectada, incapaz de compreender como mulheres podiam fazer isso umas com as outras, ou o que poderia explicar essas dinâmicas devastadoras. Hoje, tendo testemunhado a última rodada brutal e implacável de racha direcionado a uma amada amiga minha, e tendo sido alvo disso ontem mesmo, a familiaridade disso tudo torna esse texto quase doloroso demais para ser lido de novo.

Há um certo pequeno conforto a se tirar da percepção de que nada disso é novo: que minha geração não é unicamente não-saudável ou disfuncional, que não somos incomumente incapazes de demonstrar solidariedade e irmandade umas pelas outras, que essas feministas fenomenais, intrépidas e destemidas cujos escritos e ativismo eu admiro tanto sofreram muito das mesmas tristezas que eu sofro, e iriam empatizar com minha dor. Mas isso é acompanhado da tristeza real de que quase quarenta anos depois que o artigo de Joreen foi publicado, fizemos tão pouco progresso. Estamos repetindo os mesmos erros de nossas ancestrais. Outra geração de mulheres brilhantes, comprometidas e apaixonadas está se desgastando. Sendo morta pelo poder da irmandade.

Todas as tendências que Joreen descreve ainda existem. Ainda rachamos mulheres pela frente, e também pelas costas. Ainda ostracizamos. Ainda denunciamos. Ainda damos falsos relatórios sobre as coisas horríveis que outras mulheres disseram ou fizeram. Ainda interpretamos umas às outras impiedosamente. Ainda temos expectativas ridículas e não-razoáveis umas das outras e usamos isso para justificar a raiva e o abuso onde eles não se justificam. Ainda julgamos umas às outras como culpadas por associação, e vemos amizades e relacionamentos como origem de mácula. Ainda nos juntamos para rachar mulheres como nós, usando-as como escudos para desviar a atenção de nós mesmas. Ainda sussurramos nosso apoio ao alvo da vez via canais fechados, mas não falamos nada publicamente, por medo de ser a próxima da fila. Ainda mascaramos a brutalidade disso tudo atrás do véu da “crítica legítima”.

Claro que agora temos todo um conjunto de novas vias através das quais expressamos essas tendências. Nós blogamos. Reblogamos. Twittamos. Subtweetamos. Storifycamos. Printamos. Chamamos atenção. Nós nos aglomeramos. Mobilizamos nossos seguidores. Parodiamos. Fazemos doxxing. Essa coisa de racha se tornou algo muito mais em tempo real, e muito mais inescapável. Se você está envolvida no feminismo online nos últimos dois anos, você quase que certamente já experienciou essa onda de pânico, o pavor doentio e o pulso acelerado, quando seu telefone explode e suas notificações se exaurem, mensagem atrás de mensagem aparecendo para te dizer que ser humano abominável você é. (Desenvolvemos um novo verbo irregular para descrever o que tipicamente acontece no fim dessas aglomerações: eu dou um tempo do Twitter; você desativa a conta por auto-cuidado; ela esperneia.)

Como Joreen, fico preocupada de lavar nossa roupa suja em público — me deixa triste pensar nos homens rindo de nós enquanto assistem a nós nos despedaçando. Somos todas bem versadas nesses estereótipos sexistas de brigas de mulher e mulheres barraqueiras e “vocês não acham que as mulheres são seus piores inimigos?”, e nós sabemos que cada um desses rachas públicos age de acordo com, e reforça esses estereótipos. Mas quero reiterar o ponto que Joreen apontou em 1976 — nada disso é peculiar ao feminismo. Nada disso é específico das políticas ou das relações das mulheres, e ainda que as pessoas pensem que é, é porque aceitaram esses estereótipos sexistas, e aprenderam a desconsiderar os conflitos entre mulheres como sendo brigas histéricas, enquanto tomam os conflitos entre os homens como sendo indicativos de discordâncias políticas substanciosas sérias. Muitas dessas tendências são exacerbadas pelo fato de que somos mulheres — nossa socialização feminina geralmente não nos prepara para passar pelos conflitos e discordâncias de forma leve, e nossa marginalização política significa que podemos ser inexperientes em organização política comparadas aos homens. (Por outro lado, quando brigamos umas com as outras, nações não entram em guerra). Mas as questões psicológicas e estruturais que causam essas fraturas políticas estão presentes não apenas na política feminista, mas nas políticas de esquerda e progressista em geral.

Em nível individual, o que se encontra na esquerda são pessoas que tendem a ser movidas pelos princípios e convicções, e que têm forte comprometimento moral sustentando suas posturas políticas. Então os tipos de mulheres que são levadas ao feminismo são os tipos de mulheres que têm princípios políticos firmes e fortes a que elas são apaixonadamente comprometidas, e que não raro fazem parte de sua identidade e auto-percepção. Por esse motivo, elas geralmente não estão dispostas a desviar desses princípios para se comprometerem com aqueles com quem elas discordam. Uma vez que princípios políticos são uma questão de convicção moral e identidade pessoal, muitas feministas, e esquerdistas em geral, preferem se afastar do movimento a se desfazerem de seus princípios mesmo que minimamente para cooperarem com pessoas cujos princípios são marginalmente diferentes dos seus. Essa convicção — junto com um bocado de narcisismo em pequenas diferenças — resulta em um deslize inevitável em direção a políticas puristas, onde os indivíduos se tornam mais preocupados em manter suas mãos limpas e suas almas livres de poluição a realmente efetuarem uma mudança real no mundo com que dizem se importar. E uma vez que sua doutrina se tornou mais uma questão de salvação pessoal que teoria política, se torna fácil ver aquelas com quem você discorda não apenas como equivocadas, mas como perversas, más, perigosas. Denúncias e ostracismo são justificados, porque as incrédulas são uma ameaça à pureza da doutrina e à própria identidade, e devem ser impedidas.

Isso combina mais com características estruturais de uma situação em que esquerdistas se encontram — ou seja, o fato de que o sistema é tão completamente injusto, os problemas são tão aparentemente intransponíveis e a mudança que se quer fazer no mundo parece tão profundamente impossível de se realizar que um tipo de desespero e desânimo se abate. A vitória é tão intangível e além do alcance dos esquerdistas, dado que a mudança desejada é nada mais que a completa transformação do panorama político e social. Como feministas, queremos acabar com a violência masculina contra as mulheres, eliminar a exploração do trabalho feminino, e abolir as normas opressivas de gênero. Esses objetivos estão muito longe do nosso alcance, e as vitórias em geral parecem poucas e distantes umas das outras, então não há muita oportunidade para comemorar, ou o sentimento de satisfação e gratidão de uma batalha ganha. Mas enquanto não podemos vencer a guerra contra o patriarcado, estamos a uma distância razoável de vencer a batalha contra nossas amigas. E independente de ganharmos ou não essas batalhas, nós certamente temos algum tipo de resposta; enquanto o patriarcado permanece imóvel diante da nossa fúria, brigar com uma irmã a respeito de alguma discordância pequena é garantia de se conseguir algum tipo de reação. Não surpreende então que desferir socos em nossa irmã seja uma opção mais gratificante e atraente que continuar a bater desesperada e desapercebidamente em nosso inimigo mútuo.

Então, o resultado é que aqueles à esquerda são frequentemente levados a brigar e se rachar, em vez de trabalhar juntos para tentar derrotar seu inimigo comum. E incorporada a essa política progressista está uma justificativa ostensiva de se selecionar um alvo, na forma de um profundo comprometimento com a igualdade e um inerente desprezo pelo poder e pela autoridade. Um dos aspectos mais característicos das ideologias políticas de esquerda é um comprometimento com a igual distribuição de poder e o desmantelamento de hierarquias estabelecidas, e o feminismo não é diferente nesse aspecto — desafiar o poder dos homens sobre as mulheres, assim como desafiar as dinâmicas de poder de raça e classe dentro do nosso próprio movimento, é essencial ao ativismo feminista. Mas uma implicação desse igualitarismo e rejeição de hierarquia é a suspeita insidiosa de qualquer pessoa que obtenha status ou sucesso fora do movimento. Qualquer pessoa na esquerda que consiga alcançar alguma influência política se torna instantaneamente um alvo válido para racha, pois sua influência (ou “plataforma”) é vista como um tipo de privilégio que o movimento se dedica a desmantelar. Para as mulheres, isso é exacerbado pelos estereótipos sexistas a respeito da mulher poderosa: ela é insolente, uma castradora, ela não é feminina nem fodível.

O desfecho disso tudo é que qualquer mulher que demonstre ter algum talento, ambição e determinação e que tenta conseguir algum poder e influência no que ainda é um mundo de homens pode estar desenhando em suas próprias costas um alvo. Ela é um objeto perfeito para se rachar, porque fez o que outras mulheres não conseguiram, e arrumou para si um lugarzinho nesse ambiente dominado por homens. Nada mais pode explicar porque tanta virulência feminista é direcionada ao punhado de mulheres de poder e influência na mídia e na academia, e não aos homens que detém a estrutura de poder e privilégio. Não importa que ela use seu poder para ajudar outras mulheres a avançarem. Não importa que ela tenha noção de que a sorte e o privilégio ajudaram-na a chegar ao sucesso. A mulher com poder e influência é perfeita para se rachar, e será acusada de atropelar os outros em seu caminho em direção ao topo, independente de isso ser ou não verdade. E ao fazer isso, estamos implicitamente dizendo às mulheres que não é feminista ser bem sucedida, ter poder e influência, mesmo que você possa usar esse poder e influência para avançar causas feministas. A coisa mais feminista que você pode fazer é sentar-se e calar a boca. Mas a consequência disso não é uma ruptura do poder estabelecido. A consequência disso é que homens continuam tendo esse poder.

Não tenho nenhuma solução para isso. Acho que esses aspectos explicam porque movimentos de esquerda em geral tendem a conflitos internos, fratura e dissolução, e são parte da razão do porquê a esquerda se despedaça em frangalhos, enquanto a direita apenas toca o barco e consolida seu poder. Também penso que enquanto feministas temos o direito de desafiar as relações de poder e hierarquias estabelecidas, e de manter nossas teorias e ativismo sob escrutínio e reflexão críticos. Mas quarenta anos depois de nossas ancestrais feministas escreverem pela primeira vez a respeito disso, estamos ainda nos despedaçando, e nosso inimigo comum se regozija enquanto isso. Mulheres inteligentes, gentis e compassivas estão se ferindo nessa guerra, e vamos perder nossas brilhantes e melhores vozes enquanto muito poucas mulheres têm estômago para esse infinito, implacável racha e assassinato de reputação daquelas do seu próprio lado.

Como Joreen, experienciei isso por tempo suficiente para que me prejudicasse psicologicamente, me ferisse enquanto pessoa e minasse minhas capacidades enquanto feminista. Independente de isso ser comum, eu não sei, mas fui alvo por vezes o suficiente no passado de modo que isso me dói menos quando é direcionado a mim pessoalmente; o que realmente me aflige agora, o que me faz verter lágrimas de raiva e frustração, é ver isso acontecendo com mulheres que amo. Não estou escrevendo isso para buscar simpatia e compaixão. Nem quero terminar esse texto com uma chamada banal e simplista por solidariedade e coesão em nosso movimento fraturado. Minha aposta é que ou você se atrai por esse tipo de idéia ou não se atrai; se não se atrai, nenhum montante de blogagem angustiada e desanimada vai te fazer mudar de idéia. Quero acreditar que apesar de nossas muitas diferenças e da multiplicidade de experiências que trazemos para a discussão, há comunalidade suficiente entre as mulheres para nos tornar um movimento de classe politicamente coeso capaz de trabalhar em conjunto e formar uma comunidade entre nós.

Se você não se sente assim a meu respeito, respeito seu direito de se organizar sem mim, e te desejo o melhor. De minha parte faço aqui as seguintes promessas:

  • Não participarei em rachas, não importa o quão pouco eu goste da mulher em questão, ou o quanto eu discorde de suas políticas
  • Assumirei que outras mulheres agem de boa fé e interpretarei suas posições de forma caridosa
  • Celebrarei quando uma mulher alcançar sucesso de qualquer tipo — e se eu realmente não conseguir comemorar, guardarei meu desapontamento para mim mesma
  • Colocarei o bem estar das mulheres e o progresso de nossos objetivos comuns acima da minha pureza pessoal

Imagino que esse post me tornará impopular. Que o meu racha comece!

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Resistência

O primeiro ato do movimento das mulheres não se pode precisar na história. Considere apenas que toda vez que duas ou mais mulheres reuniram-se em torno de suas necessidades enquanto classe, ali esteve o feminismo. Enquanto puderam abrir brechas onde quer que conseguissem dentro da escuridão ignorante onde os homens as mantiveram, ali esteve o feminismo. Enquanto resistiram da forma como puderam dentro de seu contexto, ali esteve o feminismo.

No entanto, a luta feminista tem sido reconhecida apenas pelos seus feitos nos últimos duzentos anos. Foi também nesses últimos duzentos anos que as mulheres que se dedicaram à ela nas mais diversas frentes foram chamadas por esse apelido — feministas —, um xingamento que passaram a usar com orgulho, recebido de jornalistas ingleses indignados com as atitudes daquelas mulheres. E por terem ganhado um nome apenas muito recentemente, diz-se que a luta das mulheres é também recente, que antes disso elas apenas agiam como gado, e que pouquíssimas foram as mulheres que se rebelaram e despontaram talentosas.

Há até mesmo quem diga que foram alguns homens — aqueles, tão generosas exceções — quem tão bondosamente abriram mão de seus privilégios em favor das mulheres. É uma coincidência muito grande que toda essa generosidade tenha começado a aparecer justamente quando as mulheres começaram a se alfabetizar em massa, e a dar voz às suas frustrações usando a mídia impressa. Uma coincidência realmente muito interessante se você parar para pensar, porque coincide com o período não muito distante daquele em que se queimavam mulheres por saber demais, mulheres que tinham a vida e a cura em suas mãos. E que logo depois foram atiradas aos montes às fábricas, ganhando metade do que um homem ganha e fazendo ainda mais trabalho.

Hoje, muito tempo depois do primeiro ato feminista, as mulheres estão sendo convencidas de que sua condição é um sentimento tão subjetivo e indefinível que é impossível afirmar com certeza o que é ser uma mulher, principalmente se você for de fato mulher. As mulheres estão sendo convencidas de que liberdade é o modelo de vida que os homens estabeleceram pra si enquanto exploravam a nós, e que é esse o modelo que devem buscar. As mulheres estão aprendendo Novilíngua. As mulheres já nem se reconhecem mais.

Se as mulheres que entregaram os pontos precisam de uma fuga tão flagrantemente falsa para ter um pouco da sensação de liberdade, é compreensível. Não é a primeira vez que as mulheres sofrem baixas desse tipo em sua história. E muito provavelmente não vai ser a última, enquanto esse movimento precisar existir. Ainda não temos de volta o direito de decidir sobre a vida, decidir quem pode e quem não pode nascer, mas já estivemos muito pior.

Mas essa é apenas uma fase. Já fomos (e somos) mortas, mutiladas, estupradas, prostituídas, vendidas, separadas. Isso vai passar. E nós vamos lutar para que no futuro as mulheres não precisem batalhar novamente pelas mesmas coisas que nós estamos batalhando agora. Para que elas sejam fortes onde hoje somos fracas. Para que elas não se deixem convencer por teorias tortas, promessas vazias e montes de nada. Para que elas tenham as estruturas necessárias para aguentarem o backlash — porque ele vem, ele sempre vem.

Vamos continuar gritando sob os escombros disso que chamamos de feminismo. Illegitimi non carborundum. As mulheres resistem.