Categories
Traduções

Ainda sobre escracho

Texto publicado originalmente no blog More Radical With Age. Traduzido com permissão da autora.


A irmandade é poderosa. Ela mata. Majoritariamente irmãs.
– Ti-Grace Atkinson

Fui lembrada desse ensaio hoje, publicado pela primeira vez em 1976. A autora, escrevendo do meio da Segunda Onda do ativismo feminista, descreve em detalhes desoladores o dano psicológico a longo prazo infligido nas mulheres no coração daquele movimento, pelas relações que deveriam justamente nutri-las, ampará-las e libertá-las. Na primeira vez que encontrei esse ensaio, enquanto estudante da graduação com um vago interesse na história da Segunda Onda mas sem nenhuma experiência direta própria em ativismo feminista, li-o com uma certa fascinação perplexa e desconectada, incapaz de compreender como mulheres podiam fazer isso umas com as outras, ou o que poderia explicar essas dinâmicas devastadoras. Hoje, tendo testemunhado a última rodada brutal e implacável de racha direcionado a uma amada amiga minha, e tendo sido alvo disso ontem mesmo, a familiaridade disso tudo torna esse texto quase doloroso demais para ser lido de novo.

Há um certo pequeno conforto a se tirar da percepção de que nada disso é novo: que minha geração não é unicamente não-saudável ou disfuncional, que não somos incomumente incapazes de demonstrar solidariedade e irmandade umas pelas outras, que essas feministas fenomenais, intrépidas e destemidas cujos escritos e ativismo eu admiro tanto sofreram muito das mesmas tristezas que eu sofro, e iriam empatizar com minha dor. Mas isso é acompanhado da tristeza real de que quase quarenta anos depois que o artigo de Joreen foi publicado, fizemos tão pouco progresso. Estamos repetindo os mesmos erros de nossas ancestrais. Outra geração de mulheres brilhantes, comprometidas e apaixonadas está se desgastando. Sendo morta pelo poder da irmandade.

Todas as tendências que Joreen descreve ainda existem. Ainda rachamos mulheres pela frente, e também pelas costas. Ainda ostracizamos. Ainda denunciamos. Ainda damos falsos relatórios sobre as coisas horríveis que outras mulheres disseram ou fizeram. Ainda interpretamos umas às outras impiedosamente. Ainda temos expectativas ridículas e não-razoáveis umas das outras e usamos isso para justificar a raiva e o abuso onde eles não se justificam. Ainda julgamos umas às outras como culpadas por associação, e vemos amizades e relacionamentos como origem de mácula. Ainda nos juntamos para rachar mulheres como nós, usando-as como escudos para desviar a atenção de nós mesmas. Ainda sussurramos nosso apoio ao alvo da vez via canais fechados, mas não falamos nada publicamente, por medo de ser a próxima da fila. Ainda mascaramos a brutalidade disso tudo atrás do véu da “crítica legítima”.

Claro que agora temos todo um conjunto de novas vias através das quais expressamos essas tendências. Nós blogamos. Reblogamos. Twittamos. Subtweetamos. Storifycamos. Printamos. Chamamos atenção. Nós nos aglomeramos. Mobilizamos nossos seguidores. Parodiamos. Fazemos doxxing. Essa coisa de racha se tornou algo muito mais em tempo real, e muito mais inescapável. Se você está envolvida no feminismo online nos últimos dois anos, você quase que certamente já experienciou essa onda de pânico, o pavor doentio e o pulso acelerado, quando seu telefone explode e suas notificações se exaurem, mensagem atrás de mensagem aparecendo para te dizer que ser humano abominável você é. (Desenvolvemos um novo verbo irregular para descrever o que tipicamente acontece no fim dessas aglomerações: eu dou um tempo do Twitter; você desativa a conta por auto-cuidado; ela esperneia.)

Como Joreen, fico preocupada de lavar nossa roupa suja em público — me deixa triste pensar nos homens rindo de nós enquanto assistem a nós nos despedaçando. Somos todas bem versadas nesses estereótipos sexistas de brigas de mulher e mulheres barraqueiras e “vocês não acham que as mulheres são seus piores inimigos?”, e nós sabemos que cada um desses rachas públicos age de acordo com, e reforça esses estereótipos. Mas quero reiterar o ponto que Joreen apontou em 1976 — nada disso é peculiar ao feminismo. Nada disso é específico das políticas ou das relações das mulheres, e ainda que as pessoas pensem que é, é porque aceitaram esses estereótipos sexistas, e aprenderam a desconsiderar os conflitos entre mulheres como sendo brigas histéricas, enquanto tomam os conflitos entre os homens como sendo indicativos de discordâncias políticas substanciosas sérias. Muitas dessas tendências são exacerbadas pelo fato de que somos mulheres — nossa socialização feminina geralmente não nos prepara para passar pelos conflitos e discordâncias de forma leve, e nossa marginalização política significa que podemos ser inexperientes em organização política comparadas aos homens. (Por outro lado, quando brigamos umas com as outras, nações não entram em guerra). Mas as questões psicológicas e estruturais que causam essas fraturas políticas estão presentes não apenas na política feminista, mas nas políticas de esquerda e progressista em geral.

Em nível individual, o que se encontra na esquerda são pessoas que tendem a ser movidas pelos princípios e convicções, e que têm forte comprometimento moral sustentando suas posturas políticas. Então os tipos de mulheres que são levadas ao feminismo são os tipos de mulheres que têm princípios políticos firmes e fortes a que elas são apaixonadamente comprometidas, e que não raro fazem parte de sua identidade e auto-percepção. Por esse motivo, elas geralmente não estão dispostas a desviar desses princípios para se comprometerem com aqueles com quem elas discordam. Uma vez que princípios políticos são uma questão de convicção moral e identidade pessoal, muitas feministas, e esquerdistas em geral, preferem se afastar do movimento a se desfazerem de seus princípios mesmo que minimamente para cooperarem com pessoas cujos princípios são marginalmente diferentes dos seus. Essa convicção — junto com um bocado de narcisismo em pequenas diferenças — resulta em um deslize inevitável em direção a políticas puristas, onde os indivíduos se tornam mais preocupados em manter suas mãos limpas e suas almas livres de poluição a realmente efetuarem uma mudança real no mundo com que dizem se importar. E uma vez que sua doutrina se tornou mais uma questão de salvação pessoal que teoria política, se torna fácil ver aquelas com quem você discorda não apenas como equivocadas, mas como perversas, más, perigosas. Denúncias e ostracismo são justificados, porque as incrédulas são uma ameaça à pureza da doutrina e à própria identidade, e devem ser impedidas.

Isso combina mais com características estruturais de uma situação em que esquerdistas se encontram — ou seja, o fato de que o sistema é tão completamente injusto, os problemas são tão aparentemente intransponíveis e a mudança que se quer fazer no mundo parece tão profundamente impossível de se realizar que um tipo de desespero e desânimo se abate. A vitória é tão intangível e além do alcance dos esquerdistas, dado que a mudança desejada é nada mais que a completa transformação do panorama político e social. Como feministas, queremos acabar com a violência masculina contra as mulheres, eliminar a exploração do trabalho feminino, e abolir as normas opressivas de gênero. Esses objetivos estão muito longe do nosso alcance, e as vitórias em geral parecem poucas e distantes umas das outras, então não há muita oportunidade para comemorar, ou o sentimento de satisfação e gratidão de uma batalha ganha. Mas enquanto não podemos vencer a guerra contra o patriarcado, estamos a uma distância razoável de vencer a batalha contra nossas amigas. E independente de ganharmos ou não essas batalhas, nós certamente temos algum tipo de resposta; enquanto o patriarcado permanece imóvel diante da nossa fúria, brigar com uma irmã a respeito de alguma discordância pequena é garantia de se conseguir algum tipo de reação. Não surpreende então que desferir socos em nossa irmã seja uma opção mais gratificante e atraente que continuar a bater desesperada e desapercebidamente em nosso inimigo mútuo.

Então, o resultado é que aqueles à esquerda são frequentemente levados a brigar e se rachar, em vez de trabalhar juntos para tentar derrotar seu inimigo comum. E incorporada a essa política progressista está uma justificativa ostensiva de se selecionar um alvo, na forma de um profundo comprometimento com a igualdade e um inerente desprezo pelo poder e pela autoridade. Um dos aspectos mais característicos das ideologias políticas de esquerda é um comprometimento com a igual distribuição de poder e o desmantelamento de hierarquias estabelecidas, e o feminismo não é diferente nesse aspecto — desafiar o poder dos homens sobre as mulheres, assim como desafiar as dinâmicas de poder de raça e classe dentro do nosso próprio movimento, é essencial ao ativismo feminista. Mas uma implicação desse igualitarismo e rejeição de hierarquia é a suspeita insidiosa de qualquer pessoa que obtenha status ou sucesso fora do movimento. Qualquer pessoa na esquerda que consiga alcançar alguma influência política se torna instantaneamente um alvo válido para racha, pois sua influência (ou “plataforma”) é vista como um tipo de privilégio que o movimento se dedica a desmantelar. Para as mulheres, isso é exacerbado pelos estereótipos sexistas a respeito da mulher poderosa: ela é insolente, uma castradora, ela não é feminina nem fodível.

O desfecho disso tudo é que qualquer mulher que demonstre ter algum talento, ambição e determinação e que tenta conseguir algum poder e influência no que ainda é um mundo de homens pode estar desenhando em suas próprias costas um alvo. Ela é um objeto perfeito para se rachar, porque fez o que outras mulheres não conseguiram, e arrumou para si um lugarzinho nesse ambiente dominado por homens. Nada mais pode explicar porque tanta virulência feminista é direcionada ao punhado de mulheres de poder e influência na mídia e na academia, e não aos homens que detém a estrutura de poder e privilégio. Não importa que ela use seu poder para ajudar outras mulheres a avançarem. Não importa que ela tenha noção de que a sorte e o privilégio ajudaram-na a chegar ao sucesso. A mulher com poder e influência é perfeita para se rachar, e será acusada de atropelar os outros em seu caminho em direção ao topo, independente de isso ser ou não verdade. E ao fazer isso, estamos implicitamente dizendo às mulheres que não é feminista ser bem sucedida, ter poder e influência, mesmo que você possa usar esse poder e influência para avançar causas feministas. A coisa mais feminista que você pode fazer é sentar-se e calar a boca. Mas a consequência disso não é uma ruptura do poder estabelecido. A consequência disso é que homens continuam tendo esse poder.

Não tenho nenhuma solução para isso. Acho que esses aspectos explicam porque movimentos de esquerda em geral tendem a conflitos internos, fratura e dissolução, e são parte da razão do porquê a esquerda se despedaça em frangalhos, enquanto a direita apenas toca o barco e consolida seu poder. Também penso que enquanto feministas temos o direito de desafiar as relações de poder e hierarquias estabelecidas, e de manter nossas teorias e ativismo sob escrutínio e reflexão críticos. Mas quarenta anos depois de nossas ancestrais feministas escreverem pela primeira vez a respeito disso, estamos ainda nos despedaçando, e nosso inimigo comum se regozija enquanto isso. Mulheres inteligentes, gentis e compassivas estão se ferindo nessa guerra, e vamos perder nossas brilhantes e melhores vozes enquanto muito poucas mulheres têm estômago para esse infinito, implacável racha e assassinato de reputação daquelas do seu próprio lado.

Como Joreen, experienciei isso por tempo suficiente para que me prejudicasse psicologicamente, me ferisse enquanto pessoa e minasse minhas capacidades enquanto feminista. Independente de isso ser comum, eu não sei, mas fui alvo por vezes o suficiente no passado de modo que isso me dói menos quando é direcionado a mim pessoalmente; o que realmente me aflige agora, o que me faz verter lágrimas de raiva e frustração, é ver isso acontecendo com mulheres que amo. Não estou escrevendo isso para buscar simpatia e compaixão. Nem quero terminar esse texto com uma chamada banal e simplista por solidariedade e coesão em nosso movimento fraturado. Minha aposta é que ou você se atrai por esse tipo de idéia ou não se atrai; se não se atrai, nenhum montante de blogagem angustiada e desanimada vai te fazer mudar de idéia. Quero acreditar que apesar de nossas muitas diferenças e da multiplicidade de experiências que trazemos para a discussão, há comunalidade suficiente entre as mulheres para nos tornar um movimento de classe politicamente coeso capaz de trabalhar em conjunto e formar uma comunidade entre nós.

Se você não se sente assim a meu respeito, respeito seu direito de se organizar sem mim, e te desejo o melhor. De minha parte faço aqui as seguintes promessas:

  • Não participarei em rachas, não importa o quão pouco eu goste da mulher em questão, ou o quanto eu discorde de suas políticas
  • Assumirei que outras mulheres agem de boa fé e interpretarei suas posições de forma caridosa
  • Celebrarei quando uma mulher alcançar sucesso de qualquer tipo — e se eu realmente não conseguir comemorar, guardarei meu desapontamento para mim mesma
  • Colocarei o bem estar das mulheres e o progresso de nossos objetivos comuns acima da minha pureza pessoal

Imagino que esse post me tornará impopular. Que o meu racha comece!

Categories
Sem categoria

Resistência

O primeiro ato do movimento das mulheres não se pode precisar na história. Considere apenas que toda vez que duas ou mais mulheres reuniram-se em torno de suas necessidades enquanto classe, ali esteve o feminismo. Enquanto puderam abrir brechas onde quer que conseguissem dentro da escuridão ignorante onde os homens as mantiveram, ali esteve o feminismo. Enquanto resistiram da forma como puderam dentro de seu contexto, ali esteve o feminismo.

No entanto, a luta feminista tem sido reconhecida apenas pelos seus feitos nos últimos duzentos anos. Foi também nesses últimos duzentos anos que as mulheres que se dedicaram à ela nas mais diversas frentes foram chamadas por esse apelido — feministas —, um xingamento que passaram a usar com orgulho, recebido de jornalistas ingleses indignados com as atitudes daquelas mulheres. E por terem ganhado um nome apenas muito recentemente, diz-se que a luta das mulheres é também recente, que antes disso elas apenas agiam como gado, e que pouquíssimas foram as mulheres que se rebelaram e despontaram talentosas.

Há até mesmo quem diga que foram alguns homens — aqueles, tão generosas exceções — quem tão bondosamente abriram mão de seus privilégios em favor das mulheres. É uma coincidência muito grande que toda essa generosidade tenha começado a aparecer justamente quando as mulheres começaram a se alfabetizar em massa, e a dar voz às suas frustrações usando a mídia impressa. Uma coincidência realmente muito interessante se você parar para pensar, porque coincide com o período não muito distante daquele em que se queimavam mulheres por saber demais, mulheres que tinham a vida e a cura em suas mãos. E que logo depois foram atiradas aos montes às fábricas, ganhando metade do que um homem ganha e fazendo ainda mais trabalho.

Hoje, muito tempo depois do primeiro ato feminista, as mulheres estão sendo convencidas de que sua condição é um sentimento tão subjetivo e indefinível que é impossível afirmar com certeza o que é ser uma mulher, principalmente se você for de fato mulher. As mulheres estão sendo convencidas de que liberdade é o modelo de vida que os homens estabeleceram pra si enquanto exploravam a nós, e que é esse o modelo que devem buscar. As mulheres estão aprendendo Novilíngua. As mulheres já nem se reconhecem mais.

Se as mulheres que entregaram os pontos precisam de uma fuga tão flagrantemente falsa para ter um pouco da sensação de liberdade, é compreensível. Não é a primeira vez que as mulheres sofrem baixas desse tipo em sua história. E muito provavelmente não vai ser a última, enquanto esse movimento precisar existir. Ainda não temos de volta o direito de decidir sobre a vida, decidir quem pode e quem não pode nascer, mas já estivemos muito pior.

Mas essa é apenas uma fase. Já fomos (e somos) mortas, mutiladas, estupradas, prostituídas, vendidas, separadas. Isso vai passar. E nós vamos lutar para que no futuro as mulheres não precisem batalhar novamente pelas mesmas coisas que nós estamos batalhando agora. Para que elas sejam fortes onde hoje somos fracas. Para que elas não se deixem convencer por teorias tortas, promessas vazias e montes de nada. Para que elas tenham as estruturas necessárias para aguentarem o backlash — porque ele vem, ele sempre vem.

Vamos continuar gritando sob os escombros disso que chamamos de feminismo. Illegitimi non carborundum. As mulheres resistem.

Categories
Traduções

Saindo do culto trans

Texto publicado originalmente no blog Purple Sage; traduzido com permissão da autora.

Quando saí do armário como lésbica, foi durante a época da inclusão, quando mais e mais letras foram adicionadasà sopa de letrinhas LGBTQ porque cada minoria sexual precisava de representação. Parecia óbvio que deveríamos incluir a todos — uma vez que nós mesmos sofríamos ostracismo e sabíamos o quão ruim era ser excluído. Queríamos justiça social, queríamos amor e respeito a todas as minorias. Não importa que outra letra fosse adicionada ao acrônimo “queer”, a incluíamos sem questionar. Conheci pessoas de todos os tipos durante minha época na universidade — homens gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, assexuais, pessoas de gênero fluído, etc. Eu acreditava que estávamos trabalhando juntos e ganhando aceitação das pessoas hétero. Durante esse tempo também comecei a aprender sobre o feminismo. A princípio, as várias blogueiras feministas que eu estava lendo não pareciam divergir muito entre si. Mas nos últimos anos, um grande golfo começou a nos dividir. Os assuntos que nos separavam era a indústria do sexo e as políticas transgêneras. Nunca comprei a idéia de que a prostituição era um trabalho que precisava ser sindicalizado — eu era capaz de ver prontamente que se tratava de violência. Mas comprei a idéia da transgeneridade por um bom tempo. Eu acreditava, como éramos ensinados a acreditar, que as pessoas trangêneras eram apenas outra minoria sexual que, como os gays e as lésbicas, precisavam lutar contra a discriminação. Eu queria muito ajudar qualquer grupo minoritário a superar a opressão. Fui ensinada que as pessoas transgêneras tinham nascido no corpo errado e precisavam modificar seus corpos para que correspondessem à imagem interna que tinham de si mesmos. Sou uma pessoa de mente aberta e não tinha nenhum problema em acreditar nisso. Mas um monte de irmãs feministas não estavam abertas a essa idéia. Comecei a entrar em brigas com outras feministas. Queria que elas enxergassem que estavam sendo violentas com uma minoria perseguida, e que isso não era compatível com o feminismo. Eu era contra as “TERFs”. Fui ensinada que estava fazendo a coisa certa.

Foi impossível não fazer pesquisas sobre a transgeneridade porque foi impossível conter as muitas perguntas que continuavam surgindo e eram difíceis de responder. Feministas me desafiavam em discussões perguntando “O que é uma mulher?”. Descobri que não conseguiria responder essa questão. Li livros sobre transgeneridade e finalmente me decidi que “mulher” era uma categoria social, mas isso nunca foi fácil de explicar. Entrei em brigas amargas em comentários de tópicos. Chamei outras mulheres de transfóbicas. Isso me fazia sentir muito, muito mal. Nós mulheres deveríamos estar trabalhando juntas e em vez disso estávamos nos rasgando umas às outras em pedaços. Achei que as coisas que o feminismo radical falava eram exageradas. Não parecia possível que mulheres trans estivessem tentando invadir os espaços das mulheres para nos machucar porque pensei que eram apenas outra minoria sexual perseguida, como os gays e as lésbicas. Pensei que eram apenas mulheres que aconteceu de nascerem com as partes erradas. Qualquer ataque a qualquer uma das letras do acrônimo GLBTQ parecia um ataque a mim, porque eu estava naquele acrônimo também. Achei que todas as pessoas representadas sob o guarda-chuva queer eram iguais — pessoas inocentes enfrentando discriminação.

Transativistas estão constantemente à procura de qualquer coisa que possam condenar como transfóbica. A princípio eram coisas óbvias. Pessoas trans têm direito à emprego, moradia e cuidados médicos, e não deveriam ser vítimas de violência. Claro! Mas as coisas que eram condenadas como transfóbicas comecaram a ficar menos óbvias. Chamar alguém pelo pronome errado se tornou fóbico também. E então, não colocar pessoas trans no centro de todas as conversas se tornou fóbico. Daí, falar sobre biologia e anatomia também se tornou fóbico. Eu era contra as “TERFs” até que um dia li no Twitter que insinuar que mulheres menstruam é transfóbico, e percebi — segundo esse princípio, sou uma TERF. Eu sei que mulheres menstruam e que quem menstrua é mulher, e isso é suficiente para ser uma TERF. A coisa toda começou a degringolar aí. Se todo mundo que tem consciência de que mulheres menstruam são TERF, então todo mundo é TERF. Tudo mundo no mundo inteiro. Isso não faz sentido, uma vez que a maioria das pessoas não é feminista radical.

Sabendo que qualquer uma pode ser chamada de TERF por qualquer coisinha, e que não precisa sequer ser feminista radical para ser caluniada dessa maneira, me fez levar o acrônimo muito menos a sério. Comecei a ficar cada vez mais curiosa pelo que as então chamadas TERFs estavam falando. Os transativistas dizem que as feministas radicais sentem ódio pelas pessoas trans, mas toda vez que eu lia um post de blog de uma feminista radical ele era bem fundamentado, claramente explicado, baseado em fatos, destacava nuances e era compassivo. Nunca encontrei de fato a tal fobia que os escritos das feministas radicais supostamente deveriam conter. O que muitas feministas radicais estão dizendo na verdade é que não concordam com as políticas transgêneras porque as políticas transgêneras em geral são prejudiciais às mulheres, mas elas não desejam que nenhum mal aconteça a quem é transgênero. Elas estão apenas se preocupando com as mulheres, o que é algo que as feministas sempre fizeram.

Quando eu brigava com as chamadas “TERFs” online, elas me mandavam artigos de jornal sobre mulheres trans que cometeram crimes contra mulheres. Eu ignorava isso no começo, pensando que eram histórias exageradas ou que eram casos isolados. Mas com o tempo, os casos isolados começaram a se acumular. Começaram a formar um padrão. Depois de um tempo eu simplesmente não poderia negar que mulheres trans podiam ser violentas com mulheres, da mesma forma que os homens são. Então, lendo as palavras das próprias mulheres trans, no Twitter ou em outras redes sociais, uma coisa se mostrou muito clara: mulheres trans se comportam exatamente como homens. Algumas delas não fazem qualquer tentativa de se comportar da forma que as mulheres se comportam ou de sequer tentar entendê-las, e são abertamente hostis à elas.

O fato de que algumas “mulheres trans” são homens violentos e misóginos que tentam se misturar entre outras mulheres realmente destrói a teoria do “sexo cerebral” e a de “nascido no corpo errado”. Estes homens claramente não são mulheres. Não faz qualquer sentido que tais homens tentem convencer a todos de que são mulheres. A única explicação possível para homens violentos e misóginos alegarem que são mulheres é para que possam entrar nos espaços das mulheres para nos perseguir e conseguir mimos e atenção. É óbvio que seu real objetivo é se infiltrar quando se olha pro ativismo deles. Eles não fazem qualquer tentativa de criar espaços para mulheres trans, ou de defender que elas tenham abrigos, empregos e moradia. Tudo o que tentam fazer é entrar nos espaços exclusivos para mulheres. E estão de fato conseguindo muita atenção da mídia, dos profissionais de medicina, e dos ativistas de gênero.

Tenho visto pessoas entrarem na ideologia trans e perderem a cabeça completamente. Cruzei com pessoas que realmente acreditavam que sexo biológico não existe e que não podiam ter acesso a cuidados médicos a menos que um doutor validasse sua identidade de gênero. Imagine, estar em um país rico com sistema de saúde disponível, e recusá-lo só porque o médico quer tratar seu corpo físico baseado em sua real biologia, em vez de tratá-lo baseado em seus sentimentos? O quão ridículo e absurdo é dizer que você não tem assistência médica quando na realidade tem, e quando há pessoas em países pobres que realmente não têm? Cruzei com homens que serviram no exército, tiveram carreiras fantásticas nas Exatas, foram pais de muitos filhos, e então decidiram que eram mulheres durante esse tempo todo. O quê?! E tenho visto lésbicas que fazem ativismo lésbico, participam da comunidade lésbica, fazem casamentos lésbicos, e de repente dizem que eram homens o tempo todo. Muito disso é puro nonsense, mas se você questionar será chamada de TERF e dirão que você está oprimindo pessoas. É como o criacionismo: inventam falsas evidências que não se sustentam quando verificadas, dizem que a ciência é intolerante com suas crenças, dizem que são perseguidos quando não conseguem forçar suas crenças a outras pessoas, e tentam silenciar e destruir os incréus. Transativismo é um culto religioso.

O efeito que o transativismo tem causado no feminismo é como o de um cavalo de Tróia. Ele entrou silenciosamente ao longo dos anos e então explodiu nos anos 2010, e agora as feministas estão divididas e brigando entre si. Gastamos metade do tempo discutindo se mulheres trans são mulheres e se tal pedacinho do feminismo é “transfóbico”, e isso significa que não estamos mais lutando pela libertação das mulheres. O feminismo deveria libertar as fêmeas humanas da opressão. Não deveríamos estar gastando tempo algum preocupadas com os sentimentos de gênero de homens abusivos. E o fato de que os transativistas geralmente são pró-prostituição deveria nos dizer alguma coisa. Essas pessoas estão lutando pelos direitos dos HOMENS. Agora que vi o que vi, voltei para o verdadeiro feminismo, aquele que luta por mulheres. Não estou mais confusa sobre o que é uma mulher. Uma mulher é uma fêmea humana adulta, como sempre foi. Aprendi algo muito importante: minhas irmãs sempre devem vir em primeiro lugar. Realmente sinto muito pela hostilidade que usei para me expressar com mulheres que têm noção de que mulheres trans são homens. Gostaria de voltar no tempo. Tenho usado uma tag em alguns posts chamada “auge trans”. Auge trans é o ponto em que os transativistas finalmente ficam tão ridículos que até mesmo seus antigos aliados não podem mais apoiá-los. Isso foi o que aconteceu comigo e sei que vai acontecer com mais gente.

Categories
Sem categoria

O Ideal de Beleza

Trecho de “A Dialética do Sexo”, de Shulamith Firestone.

Toda sociedade promoveu um certo ideal de beleza acima de todos os outros. Qual seja este ideal não importa, porque todo ideal exclui a maioria. Os ideais, por definição, são moldados em qualidades raras. Por exemplo, na América, a moda atual de modelos franceses, ou o ideal erótico da Loura Voluptuosa, são moldados a partir de qualidades verdadeiramente raras. Poucas americanas são de origem francesa, a maioria não parece, nem nunca parecerá francesa. Morenas voluptuosas podem descorar o cabelo (como fez Marilyn Monroe, a rainha da sexualidade), mas as louras não podem aumentar suas curvas à vontade — e a maioria delas, anglo-saxã, simplesmente não tem essa conformação. Se e quando, através de métodos artificiais, a maioria consegue espremer-se dentro da forma ideal, o ideal muda. Se ele fosse atingível, como poderia ser bom?

A exclusividade do ideal de beleza serve a uma função política clara. Alguém — na maioria mulheres — ficará de fora. E ficarão disputando, porque, como vimos, só foi permitido às mulheres alcançar a individualidade, através da aparência — atributos definidos como “bons”, não por amor à detentora deles, mas por causa de sua maior ou menor aproximação de um padrão externo. Essa imagem, definida pelos homens (e comumente por homens homossexuais, em geral misóginos da pior espécie), torna-se o ideal. O que acontece? As mulheres, em todo lugar, se apressam em comprimir-se no sapatinho de cristal, forçando e mutilando o corpo com dietas e programas de beleza, roupas e maquiagem, qualquer coisa para se tornarem a garota sonhada do príncipe joão-ninguém. Mas elas não têm escolha. Se não conseguem amoldar-se, os castigos são enormes. Sua legitimidade social está em perigo.

Assim, as mulheres tornam-se cada vez mais parecidas. Mas, ao mesmo tempo, espera-se que elas expressem sua individualidade, através da aparência física. Assim, elas ficam oscilando, tentando, ao mesmo tempo, expressar sua semelhança e sua singularidade. s exigências da privatização Sexual contradizem as exigências do Ideal de Beleza, provocando intensa neurose feminina, em torno da aparência pessoal.

Mas, mesmo esse conflito tem uma função política importante. Quando as mulheres começam a ficar cada vez mais parecidas, diferentes apenas pelo grau em que elas se distinguem de um papel ideal, elas podem ser mais facilmente estereotipadas como classe. Elas se parecem, pensam similarmente, e, pior ainda, são tão burras, que acreditam não serem parecidas.

Categories
Feministas brasileiras

Patriarcado-Racismo-Capitalismo

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. p. 60-63.

Já se viu que, historicamente, o patriarcado é o mais antigo sistema de dominação-exploração. Posteriormente, aparece o racismo, quando certos povos se lançam na conquista de outros, menos preparados para a guerra. Em muitas destas conquistas, o sistema de dominação-exploração do homem sobre a mulher foi estendido aos povos vencidos. Com freqüência, mulheres de povos vencidos eram transformadas em parceiras sexuais de guerreiros vitoriosos ou por estes violentadas. Ainda na época atual isto ocorre. Quando um país é ocupado militarmente por tropas de outra nação, os soldados servem-se sexualmente de mulheres do povo que combatem. Este fenômeno aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, dele resultando muitos filhos de soldados norte-americanos com mulheres japonesas. O mesmo se passou durante a guerra do Vietnã, havendo lá deixado os soldados norte-americanos muitos frutos destas uniões sexuais esporádicas e sem compromisso.

Desta sorte, não foi o capitalismo, sistema de dominação-exploração muitíssimo mais jovem que os outros dois, que “inventou” o patriarcado e o racismo. Para não recuar demasiadamente na história, estes já existiam na Grécia e na Roma antigas, sociedades nas quais se fundiram com o sistema escravocrata. Da mesma maneira, também se fundiram com o sistema feudal. Com a emergência do capitalismo, houve a simbiose, a fusão, entre os três sistemas de dominação-exploração, acima analisados separadamente. Só mesmo para tentar tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno, podem-se separar estes três sistemas. Na realidade concreta, eles são inseparáveis, pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denomi­nado patriarcado-racismo-capitalismo.

Há quem use expressões como capitalismo patriarcal, patriarcado capitalista, capitalismo racial, racismo capitalista. Neste livro, rejeitam-se estes conceitos pelas razões a seguir expostas.

Quando se usa um destes sistemas de dominação-exploração na forma substantiva e outro na forma adjetiva, como, por exemplo, na expressão capitalista patriarcal, está-se atribuindo maior importância ao capitalismo, deixando em plano secundário o patriarcado. O mesmo se passa com a expressão capitalismo racista. No primeiro caso, o patriarcado apenas qualifica o capitalismo, assim como no segundo o racismo exerce esta função de qualificação. Há também quem tome o patriarcado, o mais antigo sistema de dominação-exploração, e o qualifique com os sistemas de produção surgidos ao longo da história. Nesta linha de raciocínio, tem-se o patriarcado escravista, o patriarcado feudal e, finalmente, o patriarcado capitalista. Neste caso, privilegia-se o patriarcado, em prejuízo dos sistemas produtivos com os quais ele foi-se fundindo através dos tempos. Como se verá mais adiante, o ato de atribuir prioridade a um dos três sistemas mencionados tem sérias conseqüências do ponto de vista das estratégias de luta dos contingentes humanos oprimidos, dominados, explorados.

Há uma razão muito forte para que não se proceda pelo raciocínio da priorização, do privilegiamento de um sistema de dominação-exploração. É que, na realidade concreta, observa-se, de fato, uma simbiose entre eles. Esta fusão ocorreu em tal profundidade, que é praticamente impossível afirmar que tal discriminação provém do patriarcado, ao passe que outras se vinculam ao sistema de classes sociais e ou ao racismo.

Se o patriarcado fosse regido por leis específicas, independentes das leis capitalistas, o homem continuaria a ser o único provedor das necessidades da família, não havendo mulher trabalhando remuneradamente. Pelo menos, não haveria mulher trabalhando fora do lar, podendo ganhar algum dinheiro com trabalho no domicílio. Ora, foi o capitalismo que, com a separação entre o local de moradia e o local de trabalho, criou a possibilidade de as mulheres saírem de casa para trabalhar. Isto não significa que as mulheres, antes do advento do capitalismo, fossem ociosas. Ao contrário, trabalhavam na produção e conservação dos alimentos, teciam, confeccionavam roupas, enfim, realizavam atividades hoje executadas pela indústria. À medida que estas atividades foram sendo industrializadas, as mulheres tiveram necessidade de sair de casa para ganhar seu sustento e o de seus dependentes, ou, então, para colaborar no orçamento doméstico.

Assim, é correto afirmar-se que as mulheres se transformam, crescentemente, em trabalhadoras extralar. Não é correto dizer-se que as mulheres penetraram no mundo do trabalho a partir do ad­vento do capitalismo, pois isto significaria que elas não exerciam tarefas produtivas em outros regimes. Nestes, que precederam historicamente o capitalismo, não apenas as mulheres, mas também os homens desenvolviam muitas atividades-trabalho no interior da casa e em seus arredores. Além das atividades desenvolvidas no seio da família, há que se mencionar o trabalho agrícola, realizado, na época, nas imediações da casa, uma vez que as sociedades de então eram eminentemente agrárias.

Por outro lado, se as leis capitalistas vigorassem independente­mente do patriarcado e do racismo, o desemprego dentre os homens seria muito mais alto que dentre as mulheres. Para provar a vali­dade deste argumento, nem se necessita recorrer ao fato de que as mulheres aceitam trabalhar em péssimas condições e por salários aviltados. Basta pensar que, dado o treinamento que recebem para a execução de tarefas tidas como exclusivamente femininas, as mulheres tem maior agilidade nos dedos. Em virtude disto, são muito requisitadas para o desempenho de atividades nas quais o rendimen­to do trabalho aumenta em função da mencionada agilidade. Pode-se lembrar, também, que a atividade de educar, na medida em que é entendida como um prolongamento da função de socializar os filhos, absorve grandes contingentes de mulheres. O mesmo se passa no setor da saúde. Não fora, pois, a forte ideologia que situa o ho­mem como o chefe da família e seu provedor, os interesses empre­sariais na contratação de trabalhadoras teriam grandes probabilida­des de se realizar. Tal conduta deixaria à margem do mercado de trabalho um gigantesco contingente masculino. Há que se ponderar, porém, que as vantagens oferecidas por mulheres no desempenho de certas atividades não derivam nem de sua anatomia, nem de sua fisiologia. São, ao contrário, vantagens adquiridas ao longo do processo de socialização a que são submetidas.

Estes comentários revelam como é impossível isolar a responsabilidade de cada um dos sistemas de dominação-exploração fundidos no patriarcado-racismo-capitalismo pelas discriminações diariamente praticadas contra mulheres. De outra parte, convém notar que a referida simbiose não é harmônica, não é pacifica. Ao contrário, trata-se de uma unidade contraditória. Se o patriarcado e o racismo contém elementos capazes de permitir a maximização dos lucros capitalistas, estes mesmos elementos contém o consumo das classes trabalhadoras dentro de limites bastante estreitos. Ora, so­bretudo num país de economia dependente como o Brasil, a comercialização de produtos industriais realiza-se, principalmente, no mercado interno. Para dar escoamento a estes produtos é, pois, necessário elevar a capacidade aquisitiva, o poder de compra das classes trabalhadoras.

Ao exaltar as qualidades sexuais das mulheres negras, o branco não apenas transformou-as em objeto da satisfação de seus desejos, mas também produziu o mulato. Este produto híbrido, que atualmente constitui cerca de 39% da população brasileira, introduziu cunhas na supremacia do branco sobre o negro. Ele constitui a lembrança permanente de que o branco acasalou-se com negras, o que debilita muitíssimo as justificativas para as discriminações contra não-brancos. O mulato mostra, assim, uma violenta contradição do patriarcado-racismo-capitalismo. Não obstante sua lógica contraditória, este sistema simbiótico de dominação-exploração continua vivo. Cabe, pois, indagar sobre as forças de sua conservação.