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As feministas devem rejeitar a Esquerda e a Direita

Até que um dos lados comece a se perguntar como suas políticas afetarão as mulheres, as feministas devem rejeitar ambos

Por Louise Perry. Traduzido livremente do original publicado em novembro de 2020 no The Critic.


O texto abaixo está situado no contexto da política feminista anglo-saxônica. Acreditamos que as reflexões que ele traz podem ser úteis para pensarmos a política feminista e suas interações com a política partidária institucional brasileira. No que diz respeito a políticas para mulheres, a Esquerda brasileira abraçou o transativismo sem restrições e assedia violentamente as vozes discordantes — conforme já comentamos aqui e aqui; aqui um blog dedicado a expôr esse tipo de perseguição política. Já a Direita atua dentro dos limites exigidos pela legislação quanto a participação das mulheres entre seus correligionários; qualquer ação à Direita envolvendo os interesses compartilhados das mulheres surge do interesse e da necessidade pessoal delas.

Diante da crise e da aparente imediata ruptura democrática do Estado brasileiro, existem alguns bordões circulando entre a Esquerda que sintetizam mais ou menos as seguintes ideias: “se falou ‘nem esquerda, nem direita’ é porque é de direita”; “falou em ‘terceira via’? É de direita!” O texto de Perry, abaixo, é bastante didático ao delinear como os interesses das mulheres estão além e na transversal do espectro político tradicional. Ele também exemplifica o fato de que, entre os seus supostos aliados, tanto à Direita quanto à Esquerda, as mulheres não são vistas como seres humanos completos e de direito e, portanto, não são vistas pelos homens como parceiras legítimas de luta.

Isso acontece porque um real comprometimento com a luta das mulheres não pode ser feito sem prejuízo aos interesses e prerrogativas dos homens. Nenhum dos lados do espectro político parece querer abrir mão disso.

Para qualquer um que duvidasse da influência contínua do Império Americano, a resposta internacional à morte de Ruth Bader Ginsberg serviu como um sóbrio lembrete. O núcleo político britânico do Twitter — sempre focado em eventos americanos — foi imediatamente tomado por especulações febris sobre quem poderia substituí-la na Suprema Corte dos Estados Unidos. O clube de futebol feminino de Glasgow City anunciou que levaria seu nome em sua faixa como uma homenagem a este “ícone feminista e modelo inspirador”.

Mulheres que conheço que não são americanas, que nunca viveram na América e que passaram muito pouco tempo ali, expressaram sua tristeza sincera. A maioria dessas britânicas enlutadas não seria capaz de nomear um único juiz, digamos, na França ou na Austrália, e talvez nem mesmo neste país. Porém, os eventos políticos americanos sempre recebem um status especial. Esse domínio americano tem um efeito de distorção sobre o tom e as prioridades do feminismo neste país, e geralmente às nossas custas, já que feministas britânicas que mantêm seus olhos fixos no outro lado do Atlântico, olhando para a Big Sister America em busca de orientação, muitas vezes falham em lembrar que as feministas americanas não conseguiram muita coisa.

Trata-se de um país sem direitos maternos garantidos pelo Estado, que nunca conseguiu adotar a Emenda da Igualdade de Direitos depois de quase um século de campanha, que está na metade inferior do ranking mundial de representação política feminina e que nunca teve uma chefe feminina do Estado. Sim, produziu algumas das pensadoras feministas mais interessantes e influentes da história. Mas é também a sede mundial da indústria pornográfica.

Feministas americanas passaram quase meio século lutando com unhas e dentes para defender sua mais preciosa e frágil conquista, o caso Roe vs Wade, que desde 1973 impede as legislaturas estaduais de proibir o aborto no primeiro trimestre. A perda de Ginsberg na Suprema Corte pode colocar Roe em perigo, o que foi um dos principais motivos para a ansiedade manifestada após a notícia de sua morte. Mas esta é uma questão feminista que tem muito menos ressonância no continente britânico, uma vez que o aborto de até 28 semanas foi legalizado na Inglaterra, País de Gales e Escócia em 1967. Para as feministas americanas, o aborto é, muito compreensivelmente, a questão preeminente; para as feministas britânicas, não.

Essa diferença particular entre a Grã-Bretanha e a América representa uma diferença mais geral entre os dois países, que teve um efeito importante na história do feminismo anglófono. Simplificando, a direita americana tem um caráter totalmente diferente da direita britânica: é mais barulhenta, mais extrema, mais religiosa e também mais poderosa. Isso representa uma ameaça genuinamente formidável para os defensores de Roe e, de fato, para os defensores de alguns dos princípios feministas mais básicos: os direitos de uma mulher de ganhar dinheiro, possuir propriedade e, de viver uma vida legal e econômica separada completamente da de seu pai ou marido.

O livro de Andrea Dworkin de 1978, Right-Wing Women, dá uma ideia do medo que as feministas americanas têm da direita. Sua questão central — por que qualquer mulher se aliaria à direita? — é respondida em uma única palavra: medo. As mulheres, argumenta Dworkin, têm justificadamente medo do mundo, e os homens de direita prometem mantê-las seguras. Em troca, essas mulheres devem abominar o aborto, o lesbianismo, o anti-racismo e o socialismo.

Ela escreve sobre como conversou com mulheres de direita e achou-as criaturas alienígenas: “As conservadoras eram ridículas, aterrorizantes, bizarras, instrutivas e, como outras feministas relataram, às vezes estranhamente comoventes”. Essas mulheres tinham, na opinião de Dworkin, feito um pacto com o diabo. E ainda assim Dworkin foi capaz de trilhar um caminho que outras feministas americanas parecem incapazes de seguir. Embora ela tenha sido explícita em sua rejeição à direita, ela sempre permaneceu desconfiada da esquerda. É em Right-Wing Women que uma de suas declarações mais famosas pode ser encontrada:

A diferença entre a esquerda e a direita quando se trata de mulheres é apenas sobre em que ponto de nossos pescoços eles devem pisar com suas botas. Para os homens de direita, somos propriedade privada. Para os homens de esquerda, somos propriedade pública.

O erro que as feministas cometem repetidamente, não apenas na América, mas também neste país, é priorizar a animosidade contra a direita em vez de ter uma compreensão clara da atitude que a esquerda assume em relação às mulheres. Os resultados desse erro estão, acho eu, começando a se tornar claros demais para serem ignorados.

Não estou sugerindo que as feministas devam unir forças com a direita, certamente não com a extrema-direita religiosa sobre a qual Dworkin escreveu. Estou sugerindo outra coisa: que as feministas deveriam se libertar tanto da esquerda quanto da direita, uma vez que ambas as tradições políticas eram até muito recentemente inteiramente dominadas por homens e interesses masculinos, o que significa que uma forma produtiva de política feminista precisa ser deliberadamente ortogonal ao espectro político tradicional.

Para as americanas, essa sugestão pode parecer alarmante demais para ser aceita, dado o poder temível de sua direita, que tantas vezes faz com que as feministas voltem correndo para os braços traiçoeiros da esquerda. Mas na Grã-Bretanha, o distanciamento do feminismo tanto da esquerda quanto da direita já pode estar ocorrendo.

O recente triunfo das feministas britânicas contra as reformas propostas para a Lei de Reconhecimento de Gênero (GRA, sigla de Gender Recognition Act) ilustra esse ponto. Em 2017, o governo de Theresa May anunciou uma enquete sobre o processo pelo qual as pessoas “trans” podem mudar seu sexo legal. A preferência de grupos de defesa LGBT como Stonewall é um sistema de auto-identificação, que permitiria às pessoas mudar seu sexo legal com o mínimo de controle: sem consulta psiquiátrica, sem necessidade de “viver como” o sexo oposto por um período antes de fazer um trâmite legal, sem necessidade de qualquer intervenção médica.

A auto-identificação permitiria que qualquer pessoa, a qualquer momento, simplesmente se declarasse membro do sexo oposto, e o governo seria obrigado a reconhecer oficialmente essa declaração. Para os defensores da auto-identificação, este seria um passo bem-vindo no sentido de desmedicalizar e desestigmatizar a identificação como “transgênero”. Para uma parte das feministas, no entanto, isso é considerado profundamente perigoso.

O transativismo se dedica a apresentar as diferenças físicas entre homens e mulheres como triviais e cosméticas, facilmente superáveis por meio de intervenções médicas, ou então totalmente negligenciáveis. Feministas críticas de gênero que se opõem ao ativismo “trans” insistem, em vez disso, que as diferenças são profundamente importantes. As mulheres não apenas têm filhos, mas também são menores e mais fracas do que os homens, o que leva a um desequilíbrio inerente de poder no nível interpessoal. Na verdade, a maioria dos homens pode matar a maioria das mulheres com as próprias mãos, mas não vice-versa.

Feministas críticas das políticas de gênero, portanto, levantaram a questão da facilidade com que homens mal-intencionados poderiam prejudicar as mulheres ao ganhar acesso a espaços exclusivos para elas, como refúgios, prisões e vestiários através de um sistema de auto-identificação. Esses medos não são fantasiosos, uma vez que já se concretizaram mesmo sob o sistema existente e supostamente mais seguro, quando, por exemplo, o agressor sexual em série Karen White (nascido Stephen Terence Wood) foi transferido para uma prisão feminina e posteriormente condenado por agredir sexualmente as presidiárias. Se a auto-identificação for introduzida, podemos esperar um aumento no número de Karen Whites.

No entanto, qualquer pessoa que tenha prestado a mínima atenção neste debate nos últimos anos saberá que as preocupações das feministas críticas de gênero não foram bem recebidas por muitas figuras proeminentes da esquerda, que enquadraram a tensão entre os desejos das pessoas “trans” e os medos das mulheres, não como um conflito desafiador que necessita de deliberação cuidadosa, mas como uma expressão de preconceito feminista. Mulheres com questionamentos às políticas de gênero perderam seus empregos, foram presas e perseguidas pela imprensa simplesmente por criticarem o ativismo trans, e muitas delas ficaram muito, muito zangadas.

Mas essas feministas agora parecem ter triunfado. Como James Kirkup escreveu após o anúncio de que a GRA não seria reescrita para incluir a identificação pessoal:

O anúncio de hoje é o produto de notável organização política de base… A verdadeira oposição política à auto-identificação veio de mulheres “comuns” que viram a proposta como uma ameaça potencial aos seus direitos e posições legais. Algumas delas tiveram contato com esse problema pela rede social Mumsnet… Outras participaram das reuniões da Câmara Municipal do A Woman’s Place UK, um grupo criado por mulheres com raízes no movimento sindical.

A menção ao sindicalismo aqui é importante porque a maioria das feministas britânicas que criticam gênero vêm da esquerda, e muitas estiveram ativamente envolvidas no Partido Trabalhista, no Partido Verde ou em outros grupos políticos explicitamente de esquerda. Feministas de esquerda com críticas a políticas de gênero muitas vezes apontam para esse fato como evidência de que não são motivadas por intolerância, argumentando que é a esquerda dominante que é culpada de hipocrisia por desconsiderar as preocupações muito reais das mulheres.

Essa relação conflituosa com a esquerda é algo que muitos comentaristas americanos parecem achar confuso. Um artigo de 2019 no site da Vox tentou explicar aos leitores as origens de “Terfs” (“Feministas Radicais Trans Exclusionárias”, um termo que a maioria das feministas críticas às políticas de gênero rejeita):

A ideologia “Terf” se tornou a face propriamente dita do feminismo no Reino Unido, ajudada pela liderança da mídia de Rupert Murdoch e The Times de Londres. Qualquer oposição vaga ao pensamento crítico de gênero no Reino Unido traz consigo acusações de “silenciar as mulheres” e um artigo chamativo ou artigo de opinião em um jornal nacional britânico.

O escritor explica a influência do feminismo crítico de gênero na Grã-Bretanha como resultado tanto do “imperialismo histórico” quanto da “influência do movimento cético mais amplo do Reino Unido”. Eu diria que uma explicação muito mais provável é a natureza apartidária do debate na Grã-Bretanha, onde a divisão entre esquerda e direita no debate do GRA não é nada clara. Foi um governo conservador que primeiro propôs as reformas, e um governo conservador que as suspendeu.

Existem defensores e críticos do movimento trans em toda Westminster, onde a ligação com a filiação partidária não é óbvia. Opiniões críticas de gênero podem ser lidas no Spectator e no Morning Star, e enquanto o colunista do Guardian Owen Jones é um dos críticos mais comprometidos do movimento crítico de gênero, a doadora do partido trabalhista britânico J.K. Rowling é hoje em dia sua proponente mais famosa.

Isso significa que as tentativas de desacreditar as feministas críticas às políticas de gênero, associando-as à direita — uma tática que funciona bem na América — simplesmente não vão funcionar aqui. A relação entre a política tradicional de esquerda / direita e este novo movimento feminista é muito nebulosa, e esta é, eu suspeito, a principal razão para o sucesso do movimento. Livre da atração destrutiva do tribalismo, a mensagem crítica de gênero foi capaz de adentrar e atrair apoiadores de todo o espectro político por meio de um simples apelo ao bom senso.

Afinal de contas, apenas um ideólogo comprometido poderia realmente acreditar que permitir que Karen White fosse para uma prisão feminina era uma boa ideia. O argumento crítico de gênero sempre foi persuasivo: ele só precisava de um público disposto a ser persuadido. Na América, a polarização política é muito severa, e a extrema-direita muito assustadora, para permitir um debate apartidário. Na Grã-Bretanha, aparentemente isso ainda é possível.

Mas, apesar de seu eventual sucesso, a batalha sobre o GRA trouxe à tona uma tensão latente entre feministas e a esquerda, de onde veio a mais feroz retórica anti-“terf”, e que provou-se como uma fonte de apoio desigual e inconstante. Algumas feministas de esquerda que criticam o gênero ainda preferem pensar neste incidente como um lapso: um momento de loucura da esquerda, fora do personagem e remediado por meio de um retorno à política esquerdista “adequada”. Eu não tenho tanta certeza.

É verdade que as raízes do feminismo estão intimamente ligadas à esquerda. A Segunda Onda foi, em muitos aspectos, modelada no movimento dos direitos civis dos negros na América e movimentos anticoloniais em outras partes do mundo. E o feminismo radical em particular (do qual surge o feminismo crítico das políticas de gênero) é fundado em um modelo de sociedade que é fundamentalmente marxista, em que as mulheres são entendidas como uma classe oprimida, os homens como a classe opressora, e o trabalho reprodutivo e sexual como os bens que são extraídos coercivamente.

Mas a história é complicada porque, embora a Segunda Onda tenha surgido da esquerda mais ampla, também estava frequentemente em conflito com ela. Por exemplo, em 1969, na contra-posse da Nova Esquerda à posse de Nixon em Washington, feministas que se levantaram para falar foram importunadas por camaradas que gritavam: “Tirem-na do palco e fodam-na!” e “Fodam-na em um beco escuro!” A atitude antagônica de alguns homens de esquerda em relação ao feminismo não é nova.

Além disso, em termos de representação política feminina neste país, o Partido Conservador lidera sem dúvida, tendo agora dado ao país duas primeiras-ministras, bem como a primeira deputada a ocupar o seu lugar, Nancy Astor. Enquanto isso, o Partido Trabalhista ainda não elegeu uma líder feminina.

Feministas ligadas à esquerda protestarão que esse tipo de representação é apenas uma fachada, e que Margaret Thatcher, em particular, não pode ser considerada uma feminista de qualquer tipo. Talvez isso seja verdade, mas também é verdade que algumas das legislações mais importantes na história do feminismo britânico do pós-guerra foram aprovadas sob governos conservadores: a introdução do salário-maternidade obrigatório, a criminalização do controle coercitivo e a proibição da mutilação genital feminina.

O mesmo vale para os governos trabalhistas, que introduziram o pagamento de paternidade e aprovaram as leis de aborto e igualdade de remuneração. Ao mesmo tempo, casos de violência sexual e chauvinismo masculino flagrante podem ser encontrados em organizações de direita e esquerda, incluindo o Trabalhismo e os Conservadores. Totalizar os sucessos e fracassos das diferentes partes não nos dá um vencedor claro.

Alguns leitores se perguntarão por que precisamos somar algo. Já que as mulheres representam pouco mais da metade da população e são claramente um grupo de pessoas tão diverso quanto os homens, com sua própria gama de ideias e prioridades políticas, por que deveríamos nos preocupar em falar de “homens” e “mulheres” quando poderíamos fatiar o bolo político ao longo de alguma outra dimensão? Este é um ponto justo. Mas uma afirmação chave do movimento feminista historicamente — e uma que eu defendo, apesar de minha posição não ortodoxa em muitas questões feministas — é que existem semelhanças importantes o suficiente entre as mulheres para dar a elas um conjunto coerente de interesses políticos.

No passado, esses interesses eram freqüentemente desconsiderados ou atendidos apenas de forma seletiva e não confiável por representantes masculinos de vários tipos. Mas, embora muitas vezes não haja conflito entre os interesses de homens e mulheres, em alguns casos há, ou então, uma questão específica das mulheres (saúde materna, digamos) simplesmente não é considerada pela maioria dos homens e, portanto, é inevitavelmente negligenciada em um ambiente político que não pergunta: “E como isso afetará as mulheres?”

Membros proeminentes da esquerda abraçaram o movimento “trans” porque não se importaram em perguntar: “E como isso afetará as mulheres?” Eles viram a questão como resolvida, a conclusão natural do princípio liberal de autodeterminação, o arco da história sempre se curvando em direção à justiça. E esta não é a única questão em que as mulheres foram deixadas na mão pela esquerda.

A indústria do sexo é outra. Um compromisso central da esquerda desde a década de 1960 tem sido o afastamento das normas sexuais burguesas, e esse compromisso agora se resolveu no princípio de que qualquer ato sexual é benigno, desde que todas as partes (nominalmente) consintam. As críticas feministas da pornografia e da prostituição que não aceitam este princípio, e querem chamar a atenção para os muitos abusos que acontecem dentro da indústria do sexo, são rejeitadas na esquerda. Andrea Dworkin escreveu sobre a dor dessa hipocrisia em 1981:

A nova pornografia é de esquerda; e a nova pornografia é um vasto cemitério onde a esquerda foi para morrer. A esquerda não pode ter suas putas e sua política ao mesmo tempo.

A dureza do sistema de justiça criminal é outra fonte de tensão. A criminologista Barbara Wootton disse certa vez: “Se os homens se comportassem como mulheres, os tribunais estariam ociosos e as prisões vazias”. O crime violento (particularmente o sexualmente violento) é cometido em sua maioria por homens, e as mulheres estão em uma posição única por serem frequentemente vítimas, mas raramente perpetradoras. Isso significa que, como grupo, as mulheres têm um incentivo racional para apoiar políticas duras contra o crime, e essas são políticas que são mais frequentemente apoiadas por partidos de direita, especialmente agora, quando “corte às verba da polícia” se tornou um slogan da moda à esquerda.

Muitos na esquerda se sentem desconfortáveis com essa análise do crime baseada no sexo, porque ela atinge de frente a análise do crime baseada na raça, que via de regra é considerada mais importante. Neste país, vimos isso acontecer de forma mais devastadora em Rotherham e em outras cidades afetadas por gangues de aliciadores de crianças. Agora está claro que parte da razão para o fracasso em perseguir os perpetradores foi o medo, por parte de figuras importantes da polícia e das autoridades locais, de que pudessem ser acusados de racismo.

Essa relutância covarde persistiu entre as grandes mentes da esquerda muito depois que o escândalo foi revelado, o que significa que muitas das jovens vítimas das gangues de aliciamento emergiram de seus abusos e ficaram sem ninguém, abandonadas por aqueles que alegam estar mais preocupados com a proteção dos vulneráveis e marginalizados. Algumas dessas mulheres aderiram a campanhas associadas à extrema-direita, acreditando falsamente que ofereciam segurança, quando na verdade não ofereciam nada disso. Houve feministas de esquerda que estenderam a mão para essas vítimas, mas eram mulheres (como Julie Bindel, a primeira jornalista a escrever sobre a história na imprensa nacional) que já tinham uma relação conflituosa com a esquerda. Como Bindel escreveu, “É precisamente porque a esquerda liberal se recusou a lidar com as questões espinhosas em torno de raça e etnia que tipos como o Ukip são capazes de colonizá-lo com tanto sucesso”.

Não há nada de errado com o anti-racismo, as críticas ao sistema de justiça criminal ou o questionamento das normas sexuais burguesas — todas essas atividades são potencialmente feministas. Mas há um problema quando isso é feito sem que ninguém pergunte: “E como isso afetará as mulheres?” Repetidamente, esta pergunta não foi feita na esquerda.

Em vez de persistir em fazer a pergunta, a solução que muitas feministas filiadas à esquerda chegaram, particularmente na América, foi suprimir o pensamento e, sem pensar, absorver em suas prioridades de campanha tudo o que outros grupos na esquerda exigem. Portanto, quando não há conflito entre o que as feministas querem e o que esses outros grupos desejam — quando, por exemplo, os perpetradores da violência contra mulheres e meninas são homens brancos ricos com segurança e privilégios como Harvey Weinstein — então a visão feminista pode vencer. Mas quando um homem vem de um grupo oprimido com uma classificação mais elevada do que as mulheres na lista de prioridades da esquerda (o que significa, até onde posso dizer, qualquer grupo sob o sol), a maioria das feministas de esquerda se curvará imediatamente a seja lá o que quer que seja exigido por eles. Qualquer mulher que se recuse é condenada como “terf”, “Karen” ou pior.

O filósofo político James Mumford escreve em seu livro recente Vexed: Ethics Beyond Political Tribes sobre a natureza restritiva do que ele chama de “acordo ético em lote” — isto é, a obrigação percebida de assinar um conjunto pré-preparado de ideias políticas, em vez de selecionar cada ideia por seus próprios méritos. O acordo ético em lote produz não apenas tribalismo cego, mas também incoerência, uma vez que as ideias dentro dos lotes tradicionais freqüentemente se contradizem. Mumford incentiva os leitores a resistir:

“Nossa melhor chance de acertar, de alinhar nossa ação com o que é bom, depende de nossa capacidade de descartar nossas identidades políticas e afirmar certos princípios fundamentais em todo o espectro político… Precisamos nos libertar de acordos em lote para determinar os cursos de ação corretos.”

Para as feministas, a filiação à esquerda pode ter ressonância histórica, mas é um acordo ruim. Embora não haja razão para não aceitar certas ideias da esquerda — por exemplo, apoio à tributação redistributiva e um estado de bem-estar generoso — existem outras ideias que conflitam inerentemente com os interesses das mulheres, ou então devem ser moderadas por uma consideração cuidadosa das consequências potenciais.

O feminismo britânico precisa parar de olhar para a América, onde a polarização política cada vez pior significa que as feministas relutam em se desvencilhar de uma relação dolorosa, mas familiar com a esquerda, apesar das repetidas demonstrações de que seus interesses nunca foram, e nunca serão, devidamente respeitados. Minha esperança é que o movimento feminista britânico de base que foi estimulado pelo conflito sobre o GRA consiga o que suas irmãs americanas não conseguiram, ao reconhecer a necessidade de deixar a esquerda. Nem a direita nem a esquerda têm o hábito de perguntar consistentemente: “E como isso afetará as mulheres?” Até que isso aconteça, as feministas devem rejeitar ambas.