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As feministas devem rejeitar a Esquerda e a Direita

Até que um dos lados comece a se perguntar como suas políticas afetarão as mulheres, as feministas devem rejeitar ambos

Por Louise Perry. Traduzido livremente do original publicado em novembro de 2020 no The Critic.


O texto abaixo está situado no contexto da política feminista anglo-saxônica. Acreditamos que as reflexões que ele traz podem ser úteis para pensarmos a política feminista e suas interações com a política partidária institucional brasileira. No que diz respeito a políticas para mulheres, a Esquerda brasileira abraçou o transativismo sem restrições e assedia violentamente as vozes discordantes — conforme já comentamos aqui e aqui; aqui um blog dedicado a expôr esse tipo de perseguição política. Já a Direita atua dentro dos limites exigidos pela legislação quanto a participação das mulheres entre seus correligionários; qualquer ação à Direita envolvendo os interesses compartilhados das mulheres surge do interesse e da necessidade pessoal delas.

Diante da crise e da aparente imediata ruptura democrática do Estado brasileiro, existem alguns bordões circulando entre a Esquerda que sintetizam mais ou menos as seguintes ideias: “se falou ‘nem esquerda, nem direita’ é porque é de direita”; “falou em ‘terceira via’? É de direita!” O texto de Perry, abaixo, é bastante didático ao delinear como os interesses das mulheres estão além e na transversal do espectro político tradicional. Ele também exemplifica o fato de que, entre os seus supostos aliados, tanto à Direita quanto à Esquerda, as mulheres não são vistas como seres humanos completos e de direito e, portanto, não são vistas pelos homens como parceiras legítimas de luta.

Isso acontece porque um real comprometimento com a luta das mulheres não pode ser feito sem prejuízo aos interesses e prerrogativas dos homens. Nenhum dos lados do espectro político parece querer abrir mão disso.

Para qualquer um que duvidasse da influência contínua do Império Americano, a resposta internacional à morte de Ruth Bader Ginsberg serviu como um sóbrio lembrete. O núcleo político britânico do Twitter — sempre focado em eventos americanos — foi imediatamente tomado por especulações febris sobre quem poderia substituí-la na Suprema Corte dos Estados Unidos. O clube de futebol feminino de Glasgow City anunciou que levaria seu nome em sua faixa como uma homenagem a este “ícone feminista e modelo inspirador”.

Mulheres que conheço que não são americanas, que nunca viveram na América e que passaram muito pouco tempo ali, expressaram sua tristeza sincera. A maioria dessas britânicas enlutadas não seria capaz de nomear um único juiz, digamos, na França ou na Austrália, e talvez nem mesmo neste país. Porém, os eventos políticos americanos sempre recebem um status especial. Esse domínio americano tem um efeito de distorção sobre o tom e as prioridades do feminismo neste país, e geralmente às nossas custas, já que feministas britânicas que mantêm seus olhos fixos no outro lado do Atlântico, olhando para a Big Sister America em busca de orientação, muitas vezes falham em lembrar que as feministas americanas não conseguiram muita coisa.

Trata-se de um país sem direitos maternos garantidos pelo Estado, que nunca conseguiu adotar a Emenda da Igualdade de Direitos depois de quase um século de campanha, que está na metade inferior do ranking mundial de representação política feminina e que nunca teve uma chefe feminina do Estado. Sim, produziu algumas das pensadoras feministas mais interessantes e influentes da história. Mas é também a sede mundial da indústria pornográfica.

Feministas americanas passaram quase meio século lutando com unhas e dentes para defender sua mais preciosa e frágil conquista, o caso Roe vs Wade, que desde 1973 impede as legislaturas estaduais de proibir o aborto no primeiro trimestre. A perda de Ginsberg na Suprema Corte pode colocar Roe em perigo, o que foi um dos principais motivos para a ansiedade manifestada após a notícia de sua morte. Mas esta é uma questão feminista que tem muito menos ressonância no continente britânico, uma vez que o aborto de até 28 semanas foi legalizado na Inglaterra, País de Gales e Escócia em 1967. Para as feministas americanas, o aborto é, muito compreensivelmente, a questão preeminente; para as feministas britânicas, não.

Essa diferença particular entre a Grã-Bretanha e a América representa uma diferença mais geral entre os dois países, que teve um efeito importante na história do feminismo anglófono. Simplificando, a direita americana tem um caráter totalmente diferente da direita britânica: é mais barulhenta, mais extrema, mais religiosa e também mais poderosa. Isso representa uma ameaça genuinamente formidável para os defensores de Roe e, de fato, para os defensores de alguns dos princípios feministas mais básicos: os direitos de uma mulher de ganhar dinheiro, possuir propriedade e, de viver uma vida legal e econômica separada completamente da de seu pai ou marido.

O livro de Andrea Dworkin de 1978, Right-Wing Women, dá uma ideia do medo que as feministas americanas têm da direita. Sua questão central — por que qualquer mulher se aliaria à direita? — é respondida em uma única palavra: medo. As mulheres, argumenta Dworkin, têm justificadamente medo do mundo, e os homens de direita prometem mantê-las seguras. Em troca, essas mulheres devem abominar o aborto, o lesbianismo, o anti-racismo e o socialismo.

Ela escreve sobre como conversou com mulheres de direita e achou-as criaturas alienígenas: “As conservadoras eram ridículas, aterrorizantes, bizarras, instrutivas e, como outras feministas relataram, às vezes estranhamente comoventes”. Essas mulheres tinham, na opinião de Dworkin, feito um pacto com o diabo. E ainda assim Dworkin foi capaz de trilhar um caminho que outras feministas americanas parecem incapazes de seguir. Embora ela tenha sido explícita em sua rejeição à direita, ela sempre permaneceu desconfiada da esquerda. É em Right-Wing Women que uma de suas declarações mais famosas pode ser encontrada:

A diferença entre a esquerda e a direita quando se trata de mulheres é apenas sobre em que ponto de nossos pescoços eles devem pisar com suas botas. Para os homens de direita, somos propriedade privada. Para os homens de esquerda, somos propriedade pública.

O erro que as feministas cometem repetidamente, não apenas na América, mas também neste país, é priorizar a animosidade contra a direita em vez de ter uma compreensão clara da atitude que a esquerda assume em relação às mulheres. Os resultados desse erro estão, acho eu, começando a se tornar claros demais para serem ignorados.

Não estou sugerindo que as feministas devam unir forças com a direita, certamente não com a extrema-direita religiosa sobre a qual Dworkin escreveu. Estou sugerindo outra coisa: que as feministas deveriam se libertar tanto da esquerda quanto da direita, uma vez que ambas as tradições políticas eram até muito recentemente inteiramente dominadas por homens e interesses masculinos, o que significa que uma forma produtiva de política feminista precisa ser deliberadamente ortogonal ao espectro político tradicional.

Para as americanas, essa sugestão pode parecer alarmante demais para ser aceita, dado o poder temível de sua direita, que tantas vezes faz com que as feministas voltem correndo para os braços traiçoeiros da esquerda. Mas na Grã-Bretanha, o distanciamento do feminismo tanto da esquerda quanto da direita já pode estar ocorrendo.

O recente triunfo das feministas britânicas contra as reformas propostas para a Lei de Reconhecimento de Gênero (GRA, sigla de Gender Recognition Act) ilustra esse ponto. Em 2017, o governo de Theresa May anunciou uma enquete sobre o processo pelo qual as pessoas “trans” podem mudar seu sexo legal. A preferência de grupos de defesa LGBT como Stonewall é um sistema de auto-identificação, que permitiria às pessoas mudar seu sexo legal com o mínimo de controle: sem consulta psiquiátrica, sem necessidade de “viver como” o sexo oposto por um período antes de fazer um trâmite legal, sem necessidade de qualquer intervenção médica.

A auto-identificação permitiria que qualquer pessoa, a qualquer momento, simplesmente se declarasse membro do sexo oposto, e o governo seria obrigado a reconhecer oficialmente essa declaração. Para os defensores da auto-identificação, este seria um passo bem-vindo no sentido de desmedicalizar e desestigmatizar a identificação como “transgênero”. Para uma parte das feministas, no entanto, isso é considerado profundamente perigoso.

O transativismo se dedica a apresentar as diferenças físicas entre homens e mulheres como triviais e cosméticas, facilmente superáveis por meio de intervenções médicas, ou então totalmente negligenciáveis. Feministas críticas de gênero que se opõem ao ativismo “trans” insistem, em vez disso, que as diferenças são profundamente importantes. As mulheres não apenas têm filhos, mas também são menores e mais fracas do que os homens, o que leva a um desequilíbrio inerente de poder no nível interpessoal. Na verdade, a maioria dos homens pode matar a maioria das mulheres com as próprias mãos, mas não vice-versa.

Feministas críticas das políticas de gênero, portanto, levantaram a questão da facilidade com que homens mal-intencionados poderiam prejudicar as mulheres ao ganhar acesso a espaços exclusivos para elas, como refúgios, prisões e vestiários através de um sistema de auto-identificação. Esses medos não são fantasiosos, uma vez que já se concretizaram mesmo sob o sistema existente e supostamente mais seguro, quando, por exemplo, o agressor sexual em série Karen White (nascido Stephen Terence Wood) foi transferido para uma prisão feminina e posteriormente condenado por agredir sexualmente as presidiárias. Se a auto-identificação for introduzida, podemos esperar um aumento no número de Karen Whites.

No entanto, qualquer pessoa que tenha prestado a mínima atenção neste debate nos últimos anos saberá que as preocupações das feministas críticas de gênero não foram bem recebidas por muitas figuras proeminentes da esquerda, que enquadraram a tensão entre os desejos das pessoas “trans” e os medos das mulheres, não como um conflito desafiador que necessita de deliberação cuidadosa, mas como uma expressão de preconceito feminista. Mulheres com questionamentos às políticas de gênero perderam seus empregos, foram presas e perseguidas pela imprensa simplesmente por criticarem o ativismo trans, e muitas delas ficaram muito, muito zangadas.

Mas essas feministas agora parecem ter triunfado. Como James Kirkup escreveu após o anúncio de que a GRA não seria reescrita para incluir a identificação pessoal:

O anúncio de hoje é o produto de notável organização política de base… A verdadeira oposição política à auto-identificação veio de mulheres “comuns” que viram a proposta como uma ameaça potencial aos seus direitos e posições legais. Algumas delas tiveram contato com esse problema pela rede social Mumsnet… Outras participaram das reuniões da Câmara Municipal do A Woman’s Place UK, um grupo criado por mulheres com raízes no movimento sindical.

A menção ao sindicalismo aqui é importante porque a maioria das feministas britânicas que criticam gênero vêm da esquerda, e muitas estiveram ativamente envolvidas no Partido Trabalhista, no Partido Verde ou em outros grupos políticos explicitamente de esquerda. Feministas de esquerda com críticas a políticas de gênero muitas vezes apontam para esse fato como evidência de que não são motivadas por intolerância, argumentando que é a esquerda dominante que é culpada de hipocrisia por desconsiderar as preocupações muito reais das mulheres.

Essa relação conflituosa com a esquerda é algo que muitos comentaristas americanos parecem achar confuso. Um artigo de 2019 no site da Vox tentou explicar aos leitores as origens de “Terfs” (“Feministas Radicais Trans Exclusionárias”, um termo que a maioria das feministas críticas às políticas de gênero rejeita):

A ideologia “Terf” se tornou a face propriamente dita do feminismo no Reino Unido, ajudada pela liderança da mídia de Rupert Murdoch e The Times de Londres. Qualquer oposição vaga ao pensamento crítico de gênero no Reino Unido traz consigo acusações de “silenciar as mulheres” e um artigo chamativo ou artigo de opinião em um jornal nacional britânico.

O escritor explica a influência do feminismo crítico de gênero na Grã-Bretanha como resultado tanto do “imperialismo histórico” quanto da “influência do movimento cético mais amplo do Reino Unido”. Eu diria que uma explicação muito mais provável é a natureza apartidária do debate na Grã-Bretanha, onde a divisão entre esquerda e direita no debate do GRA não é nada clara. Foi um governo conservador que primeiro propôs as reformas, e um governo conservador que as suspendeu.

Existem defensores e críticos do movimento trans em toda Westminster, onde a ligação com a filiação partidária não é óbvia. Opiniões críticas de gênero podem ser lidas no Spectator e no Morning Star, e enquanto o colunista do Guardian Owen Jones é um dos críticos mais comprometidos do movimento crítico de gênero, a doadora do partido trabalhista britânico J.K. Rowling é hoje em dia sua proponente mais famosa.

Isso significa que as tentativas de desacreditar as feministas críticas às políticas de gênero, associando-as à direita — uma tática que funciona bem na América — simplesmente não vão funcionar aqui. A relação entre a política tradicional de esquerda / direita e este novo movimento feminista é muito nebulosa, e esta é, eu suspeito, a principal razão para o sucesso do movimento. Livre da atração destrutiva do tribalismo, a mensagem crítica de gênero foi capaz de adentrar e atrair apoiadores de todo o espectro político por meio de um simples apelo ao bom senso.

Afinal de contas, apenas um ideólogo comprometido poderia realmente acreditar que permitir que Karen White fosse para uma prisão feminina era uma boa ideia. O argumento crítico de gênero sempre foi persuasivo: ele só precisava de um público disposto a ser persuadido. Na América, a polarização política é muito severa, e a extrema-direita muito assustadora, para permitir um debate apartidário. Na Grã-Bretanha, aparentemente isso ainda é possível.

Mas, apesar de seu eventual sucesso, a batalha sobre o GRA trouxe à tona uma tensão latente entre feministas e a esquerda, de onde veio a mais feroz retórica anti-“terf”, e que provou-se como uma fonte de apoio desigual e inconstante. Algumas feministas de esquerda que criticam o gênero ainda preferem pensar neste incidente como um lapso: um momento de loucura da esquerda, fora do personagem e remediado por meio de um retorno à política esquerdista “adequada”. Eu não tenho tanta certeza.

É verdade que as raízes do feminismo estão intimamente ligadas à esquerda. A Segunda Onda foi, em muitos aspectos, modelada no movimento dos direitos civis dos negros na América e movimentos anticoloniais em outras partes do mundo. E o feminismo radical em particular (do qual surge o feminismo crítico das políticas de gênero) é fundado em um modelo de sociedade que é fundamentalmente marxista, em que as mulheres são entendidas como uma classe oprimida, os homens como a classe opressora, e o trabalho reprodutivo e sexual como os bens que são extraídos coercivamente.

Mas a história é complicada porque, embora a Segunda Onda tenha surgido da esquerda mais ampla, também estava frequentemente em conflito com ela. Por exemplo, em 1969, na contra-posse da Nova Esquerda à posse de Nixon em Washington, feministas que se levantaram para falar foram importunadas por camaradas que gritavam: “Tirem-na do palco e fodam-na!” e “Fodam-na em um beco escuro!” A atitude antagônica de alguns homens de esquerda em relação ao feminismo não é nova.

Além disso, em termos de representação política feminina neste país, o Partido Conservador lidera sem dúvida, tendo agora dado ao país duas primeiras-ministras, bem como a primeira deputada a ocupar o seu lugar, Nancy Astor. Enquanto isso, o Partido Trabalhista ainda não elegeu uma líder feminina.

Feministas ligadas à esquerda protestarão que esse tipo de representação é apenas uma fachada, e que Margaret Thatcher, em particular, não pode ser considerada uma feminista de qualquer tipo. Talvez isso seja verdade, mas também é verdade que algumas das legislações mais importantes na história do feminismo britânico do pós-guerra foram aprovadas sob governos conservadores: a introdução do salário-maternidade obrigatório, a criminalização do controle coercitivo e a proibição da mutilação genital feminina.

O mesmo vale para os governos trabalhistas, que introduziram o pagamento de paternidade e aprovaram as leis de aborto e igualdade de remuneração. Ao mesmo tempo, casos de violência sexual e chauvinismo masculino flagrante podem ser encontrados em organizações de direita e esquerda, incluindo o Trabalhismo e os Conservadores. Totalizar os sucessos e fracassos das diferentes partes não nos dá um vencedor claro.

Alguns leitores se perguntarão por que precisamos somar algo. Já que as mulheres representam pouco mais da metade da população e são claramente um grupo de pessoas tão diverso quanto os homens, com sua própria gama de ideias e prioridades políticas, por que deveríamos nos preocupar em falar de “homens” e “mulheres” quando poderíamos fatiar o bolo político ao longo de alguma outra dimensão? Este é um ponto justo. Mas uma afirmação chave do movimento feminista historicamente — e uma que eu defendo, apesar de minha posição não ortodoxa em muitas questões feministas — é que existem semelhanças importantes o suficiente entre as mulheres para dar a elas um conjunto coerente de interesses políticos.

No passado, esses interesses eram freqüentemente desconsiderados ou atendidos apenas de forma seletiva e não confiável por representantes masculinos de vários tipos. Mas, embora muitas vezes não haja conflito entre os interesses de homens e mulheres, em alguns casos há, ou então, uma questão específica das mulheres (saúde materna, digamos) simplesmente não é considerada pela maioria dos homens e, portanto, é inevitavelmente negligenciada em um ambiente político que não pergunta: “E como isso afetará as mulheres?”

Membros proeminentes da esquerda abraçaram o movimento “trans” porque não se importaram em perguntar: “E como isso afetará as mulheres?” Eles viram a questão como resolvida, a conclusão natural do princípio liberal de autodeterminação, o arco da história sempre se curvando em direção à justiça. E esta não é a única questão em que as mulheres foram deixadas na mão pela esquerda.

A indústria do sexo é outra. Um compromisso central da esquerda desde a década de 1960 tem sido o afastamento das normas sexuais burguesas, e esse compromisso agora se resolveu no princípio de que qualquer ato sexual é benigno, desde que todas as partes (nominalmente) consintam. As críticas feministas da pornografia e da prostituição que não aceitam este princípio, e querem chamar a atenção para os muitos abusos que acontecem dentro da indústria do sexo, são rejeitadas na esquerda. Andrea Dworkin escreveu sobre a dor dessa hipocrisia em 1981:

A nova pornografia é de esquerda; e a nova pornografia é um vasto cemitério onde a esquerda foi para morrer. A esquerda não pode ter suas putas e sua política ao mesmo tempo.

A dureza do sistema de justiça criminal é outra fonte de tensão. A criminologista Barbara Wootton disse certa vez: “Se os homens se comportassem como mulheres, os tribunais estariam ociosos e as prisões vazias”. O crime violento (particularmente o sexualmente violento) é cometido em sua maioria por homens, e as mulheres estão em uma posição única por serem frequentemente vítimas, mas raramente perpetradoras. Isso significa que, como grupo, as mulheres têm um incentivo racional para apoiar políticas duras contra o crime, e essas são políticas que são mais frequentemente apoiadas por partidos de direita, especialmente agora, quando “corte às verba da polícia” se tornou um slogan da moda à esquerda.

Muitos na esquerda se sentem desconfortáveis com essa análise do crime baseada no sexo, porque ela atinge de frente a análise do crime baseada na raça, que via de regra é considerada mais importante. Neste país, vimos isso acontecer de forma mais devastadora em Rotherham e em outras cidades afetadas por gangues de aliciadores de crianças. Agora está claro que parte da razão para o fracasso em perseguir os perpetradores foi o medo, por parte de figuras importantes da polícia e das autoridades locais, de que pudessem ser acusados de racismo.

Essa relutância covarde persistiu entre as grandes mentes da esquerda muito depois que o escândalo foi revelado, o que significa que muitas das jovens vítimas das gangues de aliciamento emergiram de seus abusos e ficaram sem ninguém, abandonadas por aqueles que alegam estar mais preocupados com a proteção dos vulneráveis e marginalizados. Algumas dessas mulheres aderiram a campanhas associadas à extrema-direita, acreditando falsamente que ofereciam segurança, quando na verdade não ofereciam nada disso. Houve feministas de esquerda que estenderam a mão para essas vítimas, mas eram mulheres (como Julie Bindel, a primeira jornalista a escrever sobre a história na imprensa nacional) que já tinham uma relação conflituosa com a esquerda. Como Bindel escreveu, “É precisamente porque a esquerda liberal se recusou a lidar com as questões espinhosas em torno de raça e etnia que tipos como o Ukip são capazes de colonizá-lo com tanto sucesso”.

Não há nada de errado com o anti-racismo, as críticas ao sistema de justiça criminal ou o questionamento das normas sexuais burguesas — todas essas atividades são potencialmente feministas. Mas há um problema quando isso é feito sem que ninguém pergunte: “E como isso afetará as mulheres?” Repetidamente, esta pergunta não foi feita na esquerda.

Em vez de persistir em fazer a pergunta, a solução que muitas feministas filiadas à esquerda chegaram, particularmente na América, foi suprimir o pensamento e, sem pensar, absorver em suas prioridades de campanha tudo o que outros grupos na esquerda exigem. Portanto, quando não há conflito entre o que as feministas querem e o que esses outros grupos desejam — quando, por exemplo, os perpetradores da violência contra mulheres e meninas são homens brancos ricos com segurança e privilégios como Harvey Weinstein — então a visão feminista pode vencer. Mas quando um homem vem de um grupo oprimido com uma classificação mais elevada do que as mulheres na lista de prioridades da esquerda (o que significa, até onde posso dizer, qualquer grupo sob o sol), a maioria das feministas de esquerda se curvará imediatamente a seja lá o que quer que seja exigido por eles. Qualquer mulher que se recuse é condenada como “terf”, “Karen” ou pior.

O filósofo político James Mumford escreve em seu livro recente Vexed: Ethics Beyond Political Tribes sobre a natureza restritiva do que ele chama de “acordo ético em lote” — isto é, a obrigação percebida de assinar um conjunto pré-preparado de ideias políticas, em vez de selecionar cada ideia por seus próprios méritos. O acordo ético em lote produz não apenas tribalismo cego, mas também incoerência, uma vez que as ideias dentro dos lotes tradicionais freqüentemente se contradizem. Mumford incentiva os leitores a resistir:

“Nossa melhor chance de acertar, de alinhar nossa ação com o que é bom, depende de nossa capacidade de descartar nossas identidades políticas e afirmar certos princípios fundamentais em todo o espectro político… Precisamos nos libertar de acordos em lote para determinar os cursos de ação corretos.”

Para as feministas, a filiação à esquerda pode ter ressonância histórica, mas é um acordo ruim. Embora não haja razão para não aceitar certas ideias da esquerda — por exemplo, apoio à tributação redistributiva e um estado de bem-estar generoso — existem outras ideias que conflitam inerentemente com os interesses das mulheres, ou então devem ser moderadas por uma consideração cuidadosa das consequências potenciais.

O feminismo britânico precisa parar de olhar para a América, onde a polarização política cada vez pior significa que as feministas relutam em se desvencilhar de uma relação dolorosa, mas familiar com a esquerda, apesar das repetidas demonstrações de que seus interesses nunca foram, e nunca serão, devidamente respeitados. Minha esperança é que o movimento feminista britânico de base que foi estimulado pelo conflito sobre o GRA consiga o que suas irmãs americanas não conseguiram, ao reconhecer a necessidade de deixar a esquerda. Nem a direita nem a esquerda têm o hábito de perguntar consistentemente: “E como isso afetará as mulheres?” Até que isso aconteça, as feministas devem rejeitar ambas.

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Quem é o dono da bola?

Traduzido de RadFemPrinciples.com.


Estamos dentro de um debate cultural acalorado: os direitos das mulheres e meninas devem estar subordinados aos direitos dos homens, quando eles se “identificam” como mulheres?

Olé!

Atualmente nossos adversários têm a vantagem de jogar em casa, já que foram eles que construíram o campo. Eles nos chamaram de “anti-trans” em vez de “pro-mulher”. Eles sabotaram a Michfest [1] e disseram que o conflito era culpa nossa. Eles inventaram palavras voltadas para interesses dos homens e nos fizeram legitimá-las através do uso. Eles convenceram as mídias sociais de que nossos pontos de vista são extremos em vez de comuns e razoáveis. Eles tiraram o foco dos direitos das mulheres e meninas e o redirecionaram para as preocupações dos homens. Nós mordemos a isca. Agora nós falamos de “autoginefilia” e “pronomes” mais do que falamos de direitos reprodutivos e de manter meninas na escola.

O campo que eles construíram é feito de raciocínio circular, ameaças e jargão. Nós precisamos jogar em um campo diferente — um em que tenhamos vantagem. Este campo é a honestidade, a coragem e a linguagem simples. A vantagem do nosso campo é a verdade e a clareza.

Para vencer essa discussão nós precisamos, em primeiro lugar, nos recusar aos atuais termos e condições do debate, já que foram decididos por nossos opressores. Para tanto, devemos rejeitar não apenas as palavras inventadas “pelo lado deles” (como “cis”) mas também as palavras inventadas pelo “nosso lado” em resposta direta a eles, (como “transativista”).

E o motivo disso é o seguinte: quando criamos nossas próprias palavras — palavras que mais ninguém usa — especificamente com o propósito de refutar argumentos absurdos, nós damos validade a esses argumentos absurdos, e mostramos nossa disposição para participar da estrutura em que esses argumentos surgiram. Mas a estrutura é defeituosa e precisa ser descartada.

Imagine que um grupo de geólogos respeitados se encontre com um grupo enfurecido de criacionistas. Na realidade, os cientistas certamente dariam pouca atenção aos criacionistas, principalmente na esfera pública.

Imagine se em vez de considerar os criacionistas irracionais, os geólogos inventassem palavras para se referir a eles, como, sei lá, ARNGs (ativistas religiosos em negação da geologia), e então usassem essas palavras em documentários científicos e shows de televisão. Os telespectadores iam se perguntar, com razão, por que os geólogos estavam desperdiçando seu tempo. Os cientistas tem a vantagem contra os charlatães religiosos. Os cientistas tem a verdade ao seu lado. A menos que os cientistas se sintam ameaçados, e não deveriam, eles não precisam dessa história de “ARNGs”. Isso exporia uma insegurança da parte deles. Seria melhor se eles gastassem seu tempo para avançar com as questões da geologia em vez de entrar em discussões bobas com seus detratores.

É a mesma coisa quando nós criamos palavras como “transativista”.

Uma abordagem muito melhor seria falar em linguagem simples e insistir em respostas com linguagem simples. Isso desarma as pessoas que não podem se explicar e fortalece aquelas que podem, o que trabalha em nosso favor.

Nós precisamos rejeitar o jargão, mesmo que seja o nosso.

  • O jargão reforça boatos de que pertencemos a uma facção extremista de feminismo, com valores obscuros.
  • Ele dificulta que outros grupos (os que não tem familiaridade com o debate) entendam o que nós estamos dizendo.
  • Ele permite que os dois lados evitem discussões importantes, e faz com que se apoiem em truques semânticos e obscuridade.
  • Ele devolve o poder ao opressor, já que ele está decidindo os termos do debate e nós estamos permitindo que isso aconteça.
  • Ele faz com que pareçamos malvadas para quem está acompanhando. E ser as vilãs não nos interessa.

Reflita se você consegue defender as coisas que afirma em linguagem simples. Você pode, principalmente se levar em conta que todo mundo já concorda conosco. Agora pense se seus adversários podem defender as alegações que fazem sem o uso de uma linguagem de grupo, apoiada em definições mal feitas e mantras repetitivos. Eles não podem. O jargão deles serve para mascarar, desviar e confundir. E funciona.

Usar uma linguagem simples é a coisa mais inteligente, profissional e equilibrada a se fazer. Usar a linguagem do grupo obscurece nossa mensagem e faz com que pareçamos mesquinhas e distanciadas.


[1] Michfest foi um festival feminista exclusivo para mulheres que aconteceu de 1976 a 2015, com as organizadoras e participantes tendo sido boicotadas e atacadas em seus últimos anos de funcionamento.

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“Não havia nada de errado com meu corpo. Quero justiça”

Tradução da entrevista original de Keira Bell para Raquel Rosario Sánchez na Tribuna Feminista. Sanchéz é uma escritora dominicana, especialista em estudos da mulher, gênero e sexualidade.


Quando tinha 14 anos, Keira Bell começou a sentir um imenso incômodo com seu corpo. Não se encaixava nos estereótipos de feminilidade e pensava que o problema era com ela. Odiava a possibilidade de se tornar uma mulher, e pensou que talvez o fato de detestar vestidos rosa e maquiagem indicasse que ela não era uma mulher. E se esse seu incômodo na realidade significasse que ela era um menino?

Em vez de questionar os problemas subjacentes (como a depressão, o ódio por si mesma e autoestima baixa) que ela apresentava com compaixão e cuidado, a Clínica de Gênero para a Infância do NHS (parte do sistema público de saúde da Inglaterra) disse a esta adolescente que ela era sim um homem, e que o melhor tratamento para seu desconforto era começar imediatamente a tomar bloqueadores para deter o desenvolvimento de sua puberdade.

Depois de três consultas (cada uma de apenas uma hora), Keira Bell foi direcionada a percorrer um trajeto que começou com bloqueadores de puberdade aos 16 anos, passou para hormônios do sexo oposto aos 17 anos e culminou em uma mastectomia dupla aos 20 anos. Até o momento, se desconhece o impacto de longo prazo deste tratamento experimental, incluindo seu efeito no desenvolvimento cognitivo e reprodutivo na infância, mas Keira hoje reconhece que esse tratamento médico não resolveu o desconforto que ela sentia.

Hoje, com 23 anos, Keira está processando a Clínica de Gênero Tavistock and Portman, que conduziu seu tratamento e continua diagnosticando centenas de menores de idade. a maioria dessas crianças são meninas que, como ela durante sua adolescência, se sentem confusas a respeito de seu sexo. Keira assegura que as crianças com disforia de gênero que chegam à clínica necessitam de um apoio melhor, e não de um “modelo afirmativo” que automaticamente as encaminhe ao uso de bloqueadores de puberdade e hormônios do sexo oposto.

Keira Bell fez uso de bloqueadores de puberdade e hormônios do sexo oposto, e agora processa a clínica Tavistock do NHS pelos danos causados.

RRS: Querida Keira, obrigada por falar conosco. Existe muito interesse nos países de língua espanhola no tema da medicalização da infância, que é chamada por pessoas adultas de “infância trans”. Você é uma ex-paciente do Gender Identity Development Center (GIDS) para menores de idade no Reino Unido. O que te levou a adentrar as portas desta “clínica de gênero” quando você tinha 16 anos?

KB: Dois anos antes, estive presa em uma depressão e ansiedade severa. Eu me sentia extremamente fora do lugar no mundo. Na realidade eu estava lutando contra a puberdade e contra minha sexualidade. Eu não tinha ninguém com quem conversar sobre esses temas. Me identificava mais com as lésbicas butch e inicialmente senti que havia encontrado a minha tribo.

Porém, aquelas mulheres que eu via na internet pareciam sentir-se bem com seus corpos, tendo relações sexuais etc. Foi assim que acredito que comecei a duvidar de mim mesma e questionar se talvez o problema não fosse outro. Quando topei com o transexualismo, pensei que era esse o meu caso, que eu estava destinada a ser um menino. Tudo isso fazia muito sentido para mim e eu me sentia identificada com essas mulheres (online) que haviam começado a experimentar uma transição médica. Senti que precisava começar a transição médica o mais rápido possível para atingir minha felicidade.

RRS: Você acredita que a internet, particularmente as redes sociais e os fóruns online, estão impulsionando o aumento das adolescentes que buscam trocar de sexo? Como você acha que as pessoas adultas podem questionar as mensagens difundidas por esses sites?

KB: Com certeza, isso tem aumentado exponencialmente na última década. Pelo que tenho visto, as redes sociais frequentemente são realmente danosas para as meninas, adolescentes e para as mulheres jovens.

Quando eu era adolescente, usava os fóruns e redes sociais virtuais como uma forma de descobrir e aprender sobre o mundo, e sei que isso fica certamente cada vez mais comum e extremo à medida que o tempo passa. É extremamente prejudicial.

As mensagens que se transmitem nesses fóruns e redes sociais podem ser questionados pela sensibilização das pessoas. Eu diria para as pessoas adultas que não fiquem caladas, que falem e resistam a essa propaganda que estão impulsionando.

RRS: Legalmente, uma adolescente de 16 anos não tem idade suficiente para conduzir um carro ou para fazer uma tatuagem, porém, somos testemunhas de um encorajamento mundial para considerar menores de idade “suficientemente adultos” para consentir com tratamentos médicos experimentais que alterarão sua vida para sempre. O que você acha que existe por trás desse encorajamento?

KB: Dinheiro.

RRS: Qual foi sua experiência e reação inicial ao uso dos bloqueadores de puberdade aos 16 anos, aos hormônios do sexo oposto aos 17 e à mastectomia mais adiante?

KB: Os bloqueadores hormonais eram vistos como um meio para chegar a um fim, e eu não gostava de tomá-los de modo algum. Estava muito feliz e emocionada de começar com os hormônios do sexo oposto, já que pensei que finalmente poderia começar a viver minha vida como achava que tinha que fazê-lo.

Quando chegou o momento da cirurgia, foi mais uma situação prática. Eu estava farta de usar as faixas apertadas para achatar os meus seios. Era doloroso e inconveniente. Também não gostava do aspecto dos meus seios, nesse momento ainda mais do que antes.

RRS: Olhando para trás, o que você pensa sobre esses anos de sua vida?

KB: Olho para trás com muita tristeza. Não havia nada de errado em meu corpo. Eu simplesmente estava perdida e não contava com apoio adequado. A transição me permitiu a facilidade de me esconder ainda mais de mim mesma. Foi no máximo uma solução temporária…

RRS: Como você acha que a sociedade pode abordar esse desconforto nas crianças e adolescentes, sem recorrer à práticas médicas nocivas?

KB: Precisamos começar pela forma como olhamos a não conformidade aos estereótipos da feminilidade e da masculinidade, e a não conformidade em geral. Quase todas as meninas e adolescentes (se não todas) que querem ou fizeram a transição, sentem que estão em um corpo errado porque não se ajustam a algo que esta sociedade considera importante ou necessário.

É preciso aceitar a não conformidade com esses estereótipos. Os modelos que temos como exemplos também são muito importantes. As jovens lésbicas ou as mulheres bissexuais, principalmente nós que somos negras, não temos muitos modelos a seguir. Também precisamos de um apoio melhor à saúde mental, que é uma grande medida preventiva. Acho que esse ponto se aplica a maioria dos países.

RRS: Ao longo dos anos, muitas pessoas adultas, em particular profissionais da medicina, participaram do seu tratamento. Algum desses profissionais expressou dúvidas ou te sugeriu não tomar essas decisões que alteraram sua vida?

KB: Na minha experiência, quando os profissionais fora da clínica de gênero me viam, hesitavam muito ao lidar comigo, já que (ao menos naquela época) a disforia de gênero ou o desejo de trocar de sexo era algo pouco comum entre os pacientes.

Me encaminharam à clínica de gênero, já que tinham a impressão de que lá se podia dar apoio especializado e terapia em um ambiente neutro. Mas este não é o caso. Uma vez que cheguei, ninguém me questionou em nenhum sentido. Ao contrário, desde o começo afirmavam que eu era mesmo um menino.

RRS: Em algum momento, logo que você se deu conta que a transição de gênero não ajudaria a aliviar o mal-estar que sentia, você tomou a decisão audaciosa de processar legalmente a clínica Tavistock. O que te motivou a tomar essa medida legal?

KB: Eu estava, e estou, desesperada por ver alguma mudança positiva. Fui resultado desse processo e vejo o quão prejudicial ele é, especialmente agora que o ato de medicalizar menores de idade que recusam os estereótipos de feminilidade e masculinidade se tornou um movimento social. Há muitas meninas que se sentem como eu me senti. As verdadeiras necessidades dessas meninas e adolescentes estão sendo ignoradas. Eu quero justiça.

RRS: O que você diria a uma menina ou adolescente que está questionando seu sexo e sente que precisa seguir o caminho da medicalização como única solução para seu desconforto?

KB: Eu me sentiria mal se não fizesse qualquer coisa para desencorajá-la. Nos últimos 10 anos, o ambiente mudou tão drasticamente que em todo o mundo se pergunta onde quer que se vá: “quais são os seus pronomes?” ou “qual o seu gênero?”.

Eu realmente incentivaria essa menina ou adolescente a limitar o seu tempo nas redes sociais, a ir para a natureza e, o mais importante: que pense por si mesma! Na minha opinião, quanto mais você se afastar do egocentrismo, melhor.

RRS: Hoje você é uma inspiração para muitas pessoas, particularmente para as mulheres jovens que também lutam contra a imposição da feminilidade. Qual será seu próximo passo na defesa desse tema?

KB: Ainda não fiz nenhum plano sólido, porque gosto de me mover com liberdade. Mas por agora, quero seguir conscientizando e militando para que, de alguma forma, possamos obter melhor apoio para saúde mental da infância que atravessa esse desconforto.

Agradecemos Keira por nos conceder essa entrevista. Agradecemos pelo seu ativismo valente em defesa dos direitos de meninas e meninos a uma vida livre de estereótipos e por uma melhor proteção da infância. Acompanharemos com interesse a liderança de Keira Bell neste assunto no futuro.

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Artigos inéditos

Por que as mulheres têm rejeitado a esquerda?

Nessas últimas eleições municipais, uma euforia otimista tomava os candidatos e militantes em campanha, uma resposta natural da luta contra a onda conservadora bolsonarista. No entanto, o efeito que repercutiu nas urnas foi o do refortalecimento da direita “normal”: ainda que o bolsonarismo tenha perdido bastante do seu espaço na esfera municipal, a esquerda retrocedeu mais uma vez. Aumentou o número de mulheres concorrentes e eleitas, e houve algumas primeiras nesse pleito. Aumentou também a participação política das mulheres da direita, buscando se colocar como alternativa ou ocupando o posto de vice, fazendo campanhas que se valiam de sua condição de mulher como atributo positivo para os cargos aos quais pleiteavam. “A mulher mais votada do Brasil”, no entanto, não é uma mulher, assim como alguns outros casos que vêm sendo computados na conta delas. Isso significa muito pouca mudança no panorama representativo, porque mesmo que se afirmem mulheres, essas pessoas não se interessam nem apóiam as urgências específicas da nossa condição sexual.

Quadrinho de Tatsuya Ishida.

Ainda que haja a preocupação com alguns temas que afetam mulheres, pelo menos na teoria, é somente quando elas estão à frente desses projetos que eles avançam, como foi o caso da Lei Maria da Penha, cujo projeto foi relatado por Jandira Feghali. O último avanço na legislação do aborto, o caso dos anencéfalos, foi uma decisão do STF de 2013, baseada em uma argüição da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde; perdeu-se no tempo a última vez em que a esquerda fez algum movimento ativo em direção a conquista da autonomia reprodutiva das mulheres. Por outro lado, projetos carentes de embasamento teórico-científico (ou mesmo dados demográficos básicos) que batem de frente com os direitos a princípio garantidos das mulheres e comprometem sua liberdade e segurança — como os PL João Nery e Gabriela Leite — foram discutidos em um momento em que o Brasil vivenciava o finzinho da sua última onda progressista. Quando a esquerda abraça uma “diversidade” baseada em sentimentos e autoidentidades, não há o que lhe faça olhar para a situação das mulheres, ao contrário: os direitos femininos param de importar.

Existe um punhado de interesses imbricados no que se convecionou chamar de “diversidade” e não é à toa que os patrocinadores dessa causa enfiam tanto dinheiro nela: os objetivos de um movimento como o transativismo não se resumem a acabar com o feminismo. O feminismo é, antes, a pedra no sapato deles, as mulheres inconvenientes que aparecem para acabar com a graça. O que o transativismo promove são ideais masculinistas, fetichistas, e até transhumanistas, uma vez que enxergam o corpo humano como descartável ou substituível por próteses, abrindo caminho através das possibilidades plásticas da Medicina e com a bênção de alguns de seus especialistas. O desprezo pela realidade de carne e osso dos corpos das mulheres fica visível quando seus membros se posicionam favoráveis a exploração sexual — vide o PL Gabriela Leite citado acima —, ao mesmo tempo em que se horrorizam com um cafetão lavajatista; ou ainda quando a gravidez subrogada aparece como alternativa para casais homossexuais, que só não virou pauta por essas bandas ainda por mera questão de a esquerda ter sido atropelada pelo trem do bolsonarismo. Nada disso é novidade, apenas fruto de décadas de disputas internas da maioria masculina que controla a esquerda institucional e mulheres buscando participar na política.

Dado que a esquerda se aboletou dessa esfera pública de atuação, as poucas mulheres que resistem são levadas a um discurso de apaziguamento das diferenças — onde foi parar a diversidade? —, tendo que lidar com masculinistas fantasiados de gravata e de batom. Muitas desistem dessa disputa de soma-zero, às vezes obrigadas a se calarem, quando se dão conta de que a esquerda não se interessa pelas mulheres em sua prática política: a esquerda geralmente “endireita” quando o assunto é mulher. A diferença entre o masculinismo praticado pela direita do masculinismo de esquerda é que os homens do lado de “cá” precisam ser um tanto mais criativos — e ridículos, a ponto de não se diferenciarem da sátira — se quiserem continuar se beneficiando da exploração das mulheres ao mesmo tempo em que buscam passar uma imagem moral condizente com os ideais que pregam e afirmam praticar. Existem mil maneiras de ser misógino, eles apenas inventaram mais algumas.

Programa de humor, ou horário eleitoral gratuito?

À direita, até existe a preocupação de formar politicamente as mulheres que se interessam a militar dentro dos termos dos interesses dos partidos, mas essa empolgação é similiar ou pior que na esquerda: como na esquerda, as mulheres se filiam pela vontade de atuar e terminam tendo que alinhar expectativas caso queiram poder fazer qualquer coisa. Mesmo que a tentativa de disputar o espaço político institucional seja louvável e a resistência das eleitas naqueles lugares já conquistados seja essencial para o movimento de libertação das mulheres, é preciso romper esse ciclo masculinista. A esquerda em disputa não tem como ser conquistada com pedidos encarecidos aos companheiros: mulheres reais estão tendo problemas reais em virtude do masculinismo praticado por homens de todo o espectro político que, se de um lado, não se fazem de rogados no que diz respeito ao papel subalterno que reservam às mulheres, de outro, dizem que eles mesmos é que encarnam o nosso papel, e reservam a nós algo não muito diferente. À esquerda e à direita, as mulheres são empurradas para fora: as mulheres são um Terceiro Excluído no diagrama do espectro político.

Isso não significa dizer que “é tudo a mesma coisa”. Historicamente, a esquerda é a posição daqueles que advogam pela mudança, pela emancipação dos povos, pelo fim do sofrimento daqueles oprimidos pelas estruturas de poder. Escolher entre Bolsonaro e Haddad claramente não é “uma escolha muito difícil” para as mulheres feministas. Se é verdade que Haddad está a anos-luz de distância de Bolsonaro, também é verdade que ele nunca se portou como um aliado de mulheres, muito pelo contrário: seu programa da gestão municipal que visava auxiliar na formação de pessoas em situação de prostituição simplesmente não incluía mulheres, o grupo demográfico mais numeroso e prejudicado na exploração sexual.

Mesmo assim, as mulheres continuam sendo admoestadas à fidelidade de uma forma que nem os seus correligionários mais ilustres sustentam. Não se vê por aí o tipo de cobrança que as mulheres sofrem para serem puras e fiéis ao único lado do espectro que lhes promete alguma salvação, nominal e cheia de ressalvas. Por ousarem verbalizar as suas necessidades e priorizar a associação com outras mulheres igualmente interessadas em nossa libertação coletiva, mulheres são forçosamente rotuladas de “direitistas”, ainda que elas é que se mantenham coerentes com o compromisso da mudança social. O espaço que a esquerda costumar “ceder” para as mulheres sempre foi limitado: em geral, elas o tomam por sua própria competência no jogo político, por sua habilidade de navegar esses entraves todos. O transativismo aparece em um momento em que as mulheres brasileiras não se contentam mais com a subordinação que lhes é forçada e lutam em todas as esferas para se libertarem. É justamente por isso que a campanha do transativismo acontece na disputa pelo significado do sujeito político do feminismo; isso não é uma coincidência. Como a esquerda não vai nem pode sair de si mesma, as mulheres se vêem sem opção: a opção é fazer concessões demais a qualquer lado que se escolha.

O que significa “se associar à direita” quando se trata de mulheres, se os interesses das mulheres raramente estão na pauta da esquerda? Os direitos das mulheres são para quem, senão para todas, inclusive para as conservadoras, as esposas perfeitas, as alienadas politicamente…? Por que nem ao menos conversar com mulheres de outra visão e repertório, mas com interesses comuns, nós podemos? O que a esquerda teme que aconteça a elas se se aproximarem de outras mulheres? Quando foi que mulheres realmente conseguiram alguma coisa que não através de uma coalizão ampla, sem interesses masculinos e masculinistas atrapalhando? Liberais de direita e esquerda se valem do “progressismo” e das associações mais espúrias quando conveniente, mas mulheres são desencorajadas a se associarem entre si em troca de uma promessa vazia.

Falta à esquerda voltar às suas raízes e abandonar essas modas que, crias de seu próprio ambiente intelectual, casam direitinho com as políticas neoliberais e individualistas de direita a ponto de serem praticamente indistinguíveis. Cabe a nós, feministas radicais, sermos mais uma vez as portadoras das más notícias: sendo metade da mão de obra, da população, dos eleitores habilitados a votar, metade de todas as pessoas do mundo, não somos nós, mulheres, que lhes devemos fidelidade; a esquerda que lute na recuperação da nossa confiança para trabalharmos juntos. Nós simplesmente não temos porquê nos defender das acusações infundadas do crime de “associação à direita”, porque esse tipo de acusação só serve para tirar de nós um reforço de complacência: não somos nós que temos que convencer mais da metade do eleitorado de que temos uma boa proposta (ou mesmo qualquer proposta) para as mulheres enquanto agimos como um bando perverso. As mulheres não perdem nada se unindo e organizando uma pauta comum em função de seus próprios interesses, uma vez que essas oportunidades nos enriquecem na troca de experiências das diferentes formas de ser mulher e de suas muitas necessidades compartilhadas. Somos nós que estamos só começando, viu, Sabrina!

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Traduções

J.K. Rowling e a Inquisição Anticientífica

A autora Michelle Morales é uma médica anestesista dominicana que se interessou pelo feminismo quando, ao questionar a realidade material de meninas e mulheres, não encontrou palavras nem referências para se expressar. Traduzido do original publicado na Tribuna Feminista.


Quem poderia imaginar a comoção que uma mulher influente causaria ao afirmar um fato biológico que não foi refutado pela ciência e apontar a relevância do sexo para moldar a vida de cada uma das mulheres?

Feministas radicais de todo o mundo aplaudem a bravura de J. K. Rowling e que tenha as mulheres em mente, quando ela poderia facilmente ter ficado quieta. Apesar de seus milhões lhe garantirem mais oportunidades do que a maioria de nós, em vez de escolher a calma de se manter à margem das discussões, ele decidiu entrar no olho do furacão e pediu, entre outras coisas, para ouvir o que tinham a dizer as lésbicas sobre o assunto.

Vendo como esse escândalo se desenvolveu em todas as partes do mundo, é evidente que nesta última onda do movimento global pelos direitos das mulheres, a feminista deve questionar as preocupações de uma mulher vítima de gênero sobre se é prudente permitir entrada de homens que se proclamam mulheres nos abrigos, enquanto uma mídia sensacionalista dá cobertura aos agressores de Rowling e, com isso, dava a todos os que a ameaçavam a satisfação de ver que um homem pôde bater nela. A rota progressista não se concentra na proteção de espaços para as mulheres e na busca do bem-estar emocional das mulheres prejudicadas pela relação de poder entre os sexos nas esferas privadas; em vez disso, exigem que essas mulheres vítimas de violência sexista sejam menos egoístas, que superem seus traumas com os homens e que sejam tolerantes com pessoas com pênis que desejam entrar através de imposições.

Li de uma atriz de televisão chamada Jameela Jamil que desumanizar e apartar pessoas que se identificam como mulheres trans contribui para as experiências traumáticas e violentas que elas vivem. Como alguns indivíduos do sexo masculino devem ser desumanizados quando são reconhecidos pelo nome comum pelo qual são classificados para distingui-los das mulheres, que têm o nome comum de mulheres, e também para diferenciá-los dos machos de outras espécies?

Será que Jameela, e outras pessoas que pensam como ela, procuram reescrever a própria história? Não há registros de sociedades humanas em que as mulheres relegam os homens à alteridade. É exatamente o contrário: são os homens que continuam a se constituir com universalidade humana e nos delegam a alteridade. Coisificadas. Desumanizadas. É claro que, nas imagens que apóiam, as mulheres são substituídas por homens identificados como trans para deturpar nossa história e nos posicionar como mulheres opressoras. Jamil não percebe que, ao agir dessa maneira, ele deixa de fora os verdadeiros autores de violência contra mulheres e pessoas trans. Isso é puro cinismo patriarcal: passar despercebido quando você é um agressor é uma estratégia de poder e eles não enxergam o que lhes está diante do nariz.

No fim das contas, muitos caracteres são escritos nas postagens do Twitter e do Facebook para culpar as mulheres pelo que fazem os cafetões, proxenetas, homofóbicos, parceiros sexuais, depressão e outras condições mentais relacionadas à disforia de gênero. Também estamos saturados de pessoas famosas nas redes sociais que exigem que aceitemos, sob ameaças de violência, que os desejos de alguns homens em relação à sua suposta ‘identidade de gênero’ sejam mais válidos do que a realidade material de mulheres e meninas ao redor do mundo.

Infelizmente, essa atriz famosa não é a única com essa opinião. Existe um círculo progressivo que considera que centrar as mulheres e apontar a hierarquia sexual é discriminação por discurso de ódio. Eles nos classificam como discriminatórias ao argumentar, tentando impor dentro das políticas públicas que é justo fazer abstrações teóricas sobre a condição das mulheres para nos separar de nossa existência concreta, desfazer os termos que nos nomeiam e nos significam, dar pouca importância à hierarquia sexual e contestar o conhecimento científico que comprova nossa materialidade. Terrível!

É terrível que se oponham ao conhecimento verificado e, em vez disso, postulem mentiras. Como médica, sei que, para aplicar a ciência, é preciso selecionar os melhores argumentos científicos, e com isso quero dizer aqueles que podem ser evidenciados. Sabemos com certeza que o sexo biológico é real, porque podemos observá-lo e verificá-lo. Aqueles que argumentam a favor da chamada ‘identidade de gênero’ podem fazer o mesmo?

Neste momento da história, essas pessoas mencionam a palavra “intersexualidade” para nós. As diferenças no desenvolvimento do sexo biológico, uma condição que afeta uma pequena porcentagem de pessoas, não refutam a existência do sexo biológico. Pelo contrário, diferentemente da ‘identidade de gênero’, pode-se observar através da avaliação física e de diferentes análises, pois sua determinação é clínica e genética. Comprovável.

Por outro lado, a identidade de gênero supostamente responde a um sentimento.

Quando a comunidade científica à qual eu pertenço atribuiu injustamente o trabalho da geneticista americana Nettie Stevens a um homem, eles tiveram que retificar, porque, comparando suas observações com as do homem, foi demonstrado que a qualidade da pesquisa dela foi mais robusta, com uma grande quantidade de informações experimentais, trabalhada em detalhes e meticulosamente.

Suas contribuições para a ciência foram consolidadas porque fatos observacionais corroboram sua hipótese. Em suas experiências, a geneticista Nettie Stevens observou e comparou células somáticas na mitose de indivíduos machos e fêmeas de larvas de farinha. Ela descobriu que as fêmeas tinham 10 pares de cromossomos iguais, enquanto os homens tinham 8 pares idênticos e um par assimétrico; ela também descobriu que isso era algo que acontecia em todos os machos e que as fêmeas não forneciam esse pequeno cromossomo. Isso que acabei de descrever é como se chegou à conclusão que esse era o fator determinante do sexo, no nível cromossômico.

Antes da descoberta do cromossomo Y, já havia um debate aberto sobre se o sexo biológico era determinado por fatores ambientais, herança ou exclusivamente pela mãe. Os comentários de Nettie Stevens encerraram esse debate, mas hoje os grupos de pressão política estão tentando voltar no tempo e insistir nas especulações do século XIX para dizer que o sexo é influenciado por fatores socioculturais e de autopercepção.

Em sua ânsia, eles continuam a retroceder ao próprio obscurantismo quando citam a americana Anne Fausto-Sterling, a inventora desses cinco sexos, sem sequer reconhecer que as intenções da bióloga eram irônicas. Ela zombou da linguagem médica depreciativa que era aplicada às pessoas com distúrbios de desenvolvimento sexual nos anos noventa e, em uma declaração divulgada pelo Twitter em fevereiro de 2020, lavou as próprias mãos dizendo que não era responsável pelo fato de que os professores das universidades do norte global não tenham dado aulas de retórica a estudantes universitários, cientistas e juízes, que não detectaram a ironia de sua abordagem.

Os defensores das políticas públicas de ‘identidade de gênero’ se aprofundam no obscurantismo quando pressionam para impedir a realização de pesquisas científicas sobre as repercussões que a terapia com bloqueadores da puberdade e hormônios sexuais cruzados poderia ter em crianças. Ao impedir, também por meio de intimidação e ameaças, o estudo dos fatores que levaram à não-transição das pessoas diagnosticadas com disforia de gênero, uma vez que não há bibliografia suficiente sobre o assunto.

Do que eles têm medo? O lógico é que tanto os profissionais de saúde quanto os usuários do sistema de saúde considerem essas iniciativas de pesquisa um benefício. Quanto mais pesquisas, mais evidências e segurança nos cuidados com as pessoas, como deveria ser na prática médica ética, melhor!

Setores progressistas que defendem o uso de bloqueadores de puberdade em menores de idade três consultas (ou menos) após o diagnóstico de disforia de gênero, estão incentivando a experimentação humana com indivíduos vulneráveis. Os profissionais de saúde que trabalham com crianças e adolescentes que discordam de seu sexo o fazem no escuro, porque não há evidências científicas para apoiar o uso de drogas fortes em doses industriais com meninos e meninas fisicamente saudáveis.

Meninos e meninas chamados de ‘trans’ e abusadores sexuais são os únicos indivíduos para quem, sem condição física ou patológica, a administração de drogas análogas ao hormônio liberador da gonadotropina — ou, como comumente se os conhece, bloqueadores de puberdade — procura justificar-se: o último, com a intenção de condená-los à castração química.

‘Medicina de gênero’ é um dos poucos ramos que realizam sua prática sem evidência explícita, porque carece de precedente e a única bibliografia disponível é a da puberdade precoce, que é extrapolada para casos de disforia de gênero. Por sua vez, essa prática não saudável é apoiada por ativistas que pressionam e intimidam em um esforço para interromper a pesquisa científica e censurar os profissionais de saúde, preocupados com a falta de informações experimentais e com a saúde mental, óssea e cerebral das crianças que estão sendo usadas como cobaias para promover os interesses dos adultos.

Existem estudos de melhor qualidade que sugerem a chamada “espera vigilante” como a melhor alternativa para a medicalização da infância saudável. Esses estudos mostram que aproximadamente 80% das crianças com essa agonia psíquica se recuperam dessa inquietação quando chegam à adolescência.

Como esses profissionais de saúde podem tomar decisões criteriosas sem ter evidências que confirmem a segurança do tratamento? Você já foi questionado por aqueles que seguravam os cartazes que diziam “Protejam as Crianças Trans”? De quê e quem as protegem? De mães, pais, feministas, pessoal de saúde, comunidade científica e cidadãos comuns que questionam a medicalização da vida de crianças sem patologias básicas e sem evidências científicas suficientes para justificar sua hominização?

Quão racional é interpretar como discurso de ódio a preocupação que parentes próximos, ativistas de direitos humanos e pessoas comprometidas com a ciência expressam sobre o assunto?

Validar a ‘identidade de gênero’ é um voto de fé, não uma confirmação científica. Como validar legalmente algo prejudicial à saúde (especialmente à infância) e injusto para as mulheres, porque as deixa desprotegidas perante a lei e submissas ao sexismo?

Gênero não é uma identidade, é uma hierarquia. O gênero nos mostra o privilégio dos homens terem a liberdade de fazer a transição para os estereótipos femininos, quando sabemos muito bem que, tanto no passado quanto no presente, as mulheres devem se esconder em camuflagens masculinas para poder acessar oportunidades para seu desenvolvimento individual, atender às suas necessidades básicas e obter avaliação justa de suas habilidades e talentos, porque são negados ou dificultados por lei, tradição ou preconceito. Caso contrário, olhe para as garotas de Bacha Posh no Afeganistão e no Paquistão, ou na Inglaterra da própria J.K. Rowling.

Não me conformo com uma construção das mulheres que as torna alheias do próprio sexo. Sob essa construção patriarcal, de uma realidade material, nós mulheres somos reduzidos a uma interpretação falsificada. O próprio sexismo não está mais exposto, pois não é mais possível falar de uma opressão que afeta direta e especificamente nossa classe sexual, porque essa realidade será removida na representação que os homens fazem de nós.

As pessoas que dizem que trans que se identificam como mulheres são mais mulheres do que mulheres não estão mais procurando por mulheres no passado ou em lugares remotos, porque o que foi criado pela mente e produzido nas salas de cirurgia se tornou realidade para elas. As pessoas que dizem que os homens também menstruam, párem e têm uma vagina estão apagando as mulheres de suas próprias histórias, lutas e negando suas experiências inerentes a seus corpos, porque uma experiência universal é mitologizada.

Quando a imagem de que as opressões das mulheres afetam os homens da mesma maneira é encorajada, os traços de violência masculina e hierarquia entre os sexos são invisíveis. Quem será o sujeito do feminismo se, de acordo com o neoliberalismo e o pós-modernismo, mulheres e homens estiverem no mesmo nível da pirâmide? Pelo que lutaríamos?