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Origens da amizade feminina: no início, havia a mulher

De Janice Raymond, traduzido livremente de A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection1 por @taticafeminista.


‘Young Girls’ (1932) de Amrita Shergil.

O que uma mulher pensa das mulheres é a prova de sua natureza.

George Meredith, Diana of the Crossways

Eu sou a responsável por ter esta amizade com Ethel Waters, porque eu trabalhei por isto… Sou sua amiga, e sua língua está em minha boca. Posso falar seus sentimentos por ela, ainda que Ethel Waters se saia muito bem ao falar por si própria.

Zora Neale Hurston, Dust tracks on a Road

Jezabel, aquela tagarela avoada, costumava passar muito de seu Tempo com a cabeça para fora da Janela, gritando “Uoo Hoo” para os Rapazes a caminho da Guerra e da Morte. E alguns atravessaram sua Porta, e outros seguiram em frente, ainda que não tenham sido muitos – sejamos francas. Assim as coisas se passavam quando a Rainha de Sabá passou sob sua janela, e Jezebel, inclinando-se sobre o beiral, gritou “Uoo Hoo”. E este foi seu último “Uoo hoo”

Djuna Barnes, Ladies Almanack

DE ACORDO COM O HOMEM

Homens sempre entenderam que é importante começar pelo começo. Os acadêmicos desenvolveram elaboradas teorias sobre origens, mitos de criação, e esquemas evolutivos que reivindicam chegar ao início insondável da raça humana. Em todos estes esquemas, mulher e homem evoluem para serem um para o outro. De acordo com o homem, a mulher não é para a mulher. Dentro de uma heterorrealidade, Gin/afetos não têm status de origem.

Antes da mulher, havia o homem. Todas as crônicas masculinas da origem humana, ignorando ou desdenhando evidências biológicas, colocam o homem no começo e no próprio engendramento da existência humana. A Bíblia Hebraica conta:

Yahweh Deus moldou o homem do pó do solo… Yahweh Deus disse “Não é bom que o homem esteja só. Vou-lhe fazer uma ajudante…”. Assim, Yahweh Deus adormeceu o homem profundamente. E enquanto este dormia, ele tirou uma de suas costelas. Yahweh Deus esculpiu a costela que tirara do homem em uma mulher, e a trouxe para o homem. O homem exclamou: “Isto, enfim, é osso do meu osso, carne da minha carne! Isto vai se chamar mulher, pois isto foi feito do homem”.

(Gen. 2:18-24)

Esta passagem foi interpretada como uma prova mítica de que o homem é o ser humano primordial. Ela também estabelece que a relação humana primordial se dá entre macho e fêmea. 

A narrativa do Gênesis sugere, involuntariamente, a improdutividade da homorrelação anterior, existente entre um deus masculino e o macho humano. Parecia que sua relação “homem a homem” era algo lúgubre, uma vez que, do ponto de vista bíblico, a mulher se torna o ser necessário para aplacar a solidão do homem. Desde então, os homens pronunciaram que a relação humana original é a heterorrelação, apagando as evidências de sua broderagem. Portanto, a narrativa normal de atos amorosos e sentimentais existem pretensa e privativamente entre homens e mulheres. 

De acordo com o homem, a sociedade original consiste em um homem e uma mulher consonantes e consortes entre si. Tal relação é construída sobre uma teoria da evolução social que enrijece os papéis sexuais e o comportamento social. Durkheim, por exemplo, liga a evolução da sociedade, com sua transformação de solidariedade mecânica em solidariedade orgânica, à evolução da “solidariedade conjugal” no matrimônio e à “evolução” da diferenciação sexual. Grupos sociais mais antigos, no qual as funções das mulheres não eram nitidamente diferentes das funções dos homens, e onde não havia a imposição de constrições conjugais, eram computadas como fracas. A real sociedade evoluiu com a divisão do trabalho e sua proporcional submersão das mulheres na família, com a projeção do homem na esfera pública. O papel da divisão do trabalho “não é apenas o de embelezar ou melhorar as sociedades, mas fornecer às sociedades os próprios meios de sua existência”2. Para Durkheim, e para todos os homens funcionalistas, uma sociedade real não pode se estabelecer até que tenha passado por sua fase patriarcal, ou como eles chamam, sociedade orgânica. O grupo social primordial é heterorrelacional, ou seja, baseado nos arranjos sociais e comportamentais entre homens e mulheres. 

De acordo com o homem, a construção da civilização se desenrola como um drama heterorrelacional. O homem assume a tarefa de construtor mundial porque o homem é o ator/ativista original. No script evolutivo Freudiano, o homem é o iniciador da civilização por ter o mais alto libido. Uma vez que mulheres tenham pouca iniciativa sexual, de acordo com o psicanalista, e uma vez que o nascimento da cultura envolve sublimação sexual de uma sexualidade que apenas homens possuem, a mulher não pode conceber vida civilizada. O papel heterorrelacional feminino é de atriz coadjuvante nas produções culturais masculinas. 

De acordo com o homem, as origens da consciência começam na academia heterorrelacional, com um homem mentor e uma mulher estudante. É o homem quem introduz a mulher na consciência de si própria e do cosmos. No interior desta escola heterorrelacional, o homem desperta a si e à mulher à consciência do Self, dos outros, da sexualidade e, mais tarde, à linguagem e às ideias. Na Bíblia Hebraica o homem nomeia e dá existência às coisas quando se torna consciente de seu rebanho, bestas selvagens, pássaros nos céus e da mulher, fruto de sua costela. A consciência masculina confere existência porque é o homem quem desperta primeiro para a consciência de si, A mulher é trazida à vida e conscientizada desta pelo homem. 

A mulher é porque o homem aceitou seu papel evolutivo como iniciador sexual (fodedor). Um dos mais flagrantes misóginos antissemitas, o escritor Otto Weininger, atribui a própria existência da mulher ao reconhecimento masculino e à aceitação da sexualidade masculina. 

Quando o homem se tornou um ser sexual, ele formou a mulher. Que a mulher simplesmente exista acontece simplesmente porque o homem aceitou sua sexualidade. A mulher é meramente o resultado de sua afirmação; é sexual em si mesma. A existência da mulher é dependente da existência do homem; quando o homem, enquanto homem, se contrapõe à mulher, ser sexual, ele está dando forma a ela, invocando-a a existir.3

Esta é uma justificativa das mais arrogantes para a naturalidade e primazia das heterorrelações. De acordo com Weininger, e mais discretamente outros, não só a mulher, mas toda a sua existência afetiva é trazida à vida pelo homem. Portanto, o homem tem sido e sempre será seu destino. Para as mulheres, o caso amoroso primordial é entre homem e mulher. A relação natural que homens têm prescrito às mulheres é a mulher para o homem. 

O homem tem nomeado a hetero-afeição como a relação primordial para as mulheres. Isto é primordial pois os homens, como pessoa original, é também o iniciador original. Isto lhe confere o direito de chamar as coisas e as criaturas à vida por si próprio. De acordo com o homem, a mulher é o receptáculo primordial. Ela não é a pessoa original e, portanto, não pode originar. Suas origens e suas afinidades originais são estabelecidas pelos homens. “Teu desejo será para teu marido, e ele o dominará sobre você” (Gen 3:16). As origens masculinas conferem originalidade, mas apenas para o homem. Uma vez que o homem se concebe como ser original, apenas ele pode originar.

DE ACORDO COM A MULHER

A genealogia da amizade feminina – a linhagem das mulheres que têm sido primordiais umas para as outras – conta uma história diferente. Trata-se da linhagem de mulheres que têm sido essenciais uma para a outra. Eu uso a palavra primordial, tanto no sentido denotativo quanto no conotativo. No sentido conotativo, quer dizer significativo, proeminente, memorável, aquilo que não se pode esquecer, emocionante, crítico, vital, essencial. Tal palavra caracteriza amizades que são originais e independentes, bem como fundamentais e radicais. 

A genealogia da amizade feminina é também a história de mulheres que têm interpretado a palavra primordial em um sentido mais denotativo; isto é, as amizades das mulheres são marcadas por uma mensuração, uma mensuração radicada na mulher. Neste sentido denotativo, as mulheres que são primordialmente uma para a outra colocam isto em primeiro lugar: primordial em termos de importância; primordial em termos de atenção, afeição, atividade; primordial em não permitir a interferência masculina; primordial significa em primeiro lugar, aquilo que dá forma à mais fina fibra da existência feminina; e primordial no sentido de reapropriar-se da memória de uma atração original às mulheres, que pertence ao estado original do Gin/afeto, seu desenvolvimento e crescimento. 

As maneiras pelas quais as mulheres têm colocado umas às outras em primeiro lugar têm sido diversas. Repetidamente, todavia, muitas mulheres têm feito seus Eus, bem como os de outras mulheres, primordiais, sejam elas lésbicas, heterossexuais ou celibatárias. Esta primordialidade é exemplificada na existência de clubes de mulheres negras, fundados no século XIX. Tais clubes, particularmente em sua primeira geração de sócias, eram compostos de

“mulheres de raça” cujo compromisso primordial era o fim da opressão racial através de um comprometimento mulher-identificado, negro e forte. The Woman’s Era, uma publicação de mulheres negras do século XIX, fez esta notável declaração em 1874, acerca dos clubes: “Os clubes farão as meninas pensar seriamente sobre seus futuros, e não apenas sobre suas opções de casamento.”4 Um quarto das 108 sócias de clubes estudadas por Paula Giddings em seu estudo sobre o impacto da mulher negra sobre as concepções de raça e sexo nos Estados Unidos nunca se casaram. Muitas das mais dinâmicas sócias casaram-se relativamente tarde, entre elas Mary Church Terrell e Ida Wells-Barnett. E apenas 25% das mulheres estudadas pela autora tiveram filhos. 

Têm havido várias interpretações acerca do por quê, por exemplo, as sócias dos clubes se casaram tarde. Giddings sugere que muitas mantinham visões tradicionais sobre casamento, portanto acreditavam que mulheres “jamais deveriam negligenciar lar, marido e filhos para entrar na vida profissional ou qualquer causa no mundo público, por mais justa que fosse”5. Assim, estas mulheres retardaram o casamento enquanto foi possível, até que pudessem se dedicar completamente a seus deveres de mãe e esposa e ao que a sociedade esperava delas enquanto mulheres. No entanto, podemos interpretar a questão sob outro ângulo, afirmando que tais mulheres se casaram tarde porque colocaram mulheres em primeiro lugar na cronologia de seus compromissos. Assim, casaram-se apenas depois de considerar cumprido o seu trabalho junto às mulheres. Seu compromisso junto às mulheres veio em primeiro lugar, seja em termos de idade, seja em termos de prioridades. 

Para além disso, algumas sócias, como Ida Wells-Barnett, depois de declarar suas intenções de aposentarem-se do trabalho no clube para devotarem-se completamente à família, duraram poucos meses na “aposentadoria” marital. Mesmo algumas das mais conservadoras mulheres dos clubes, como Margaret Murray Washington, eram céticas acerca das “alegrias da maternidade”6. É ainda mais significativo o fato de que 25% dessas mulheres exerceram sua liberdade de não se casar. 

Outro exemplo de mulheres que colocaram umas às outras em primeiro lugar é o fenômeno da “linhagem profissional”, instaurado por algumas das primeiras gerações de cientistas mulheres dos Estados Unidos7. Em seu livro Women Scientists in America, Margaret Rossiter pesquisa um sistema estabelecido por mulheres cientistas em universidades femininas através do qual mulheres serviam como mentoras para mulheres estudantes, supervisionavam a seleção para estudantes de graduação, seguiam seu progresso de perto, e contratavam-nas, mais tarde, como suas colegas de trabalho. Com o tempo, as “protegidas” chegariam à posição de mentoras e seguiriam o mesmo processo de identificar e promover outras sucessoras femininas. 

Algumas destas “cadeias de protegidas” duraram várias gerações e ajudaram no estabelecimento de reputações em âmbito nacional para o departamento envolvido. Elas também influenciaram muitas mulheres que não eram graduadas a estudar ciência. Por exemplo, em 1932, as professoras de astronomia no Vassar College eram todas alunas (diretas ou não) de Maria Mitchell, a astrônoma que havia sido indicada para lecionar ali em 1865. 

Para completar seu quadro de “linhagens profissionais”, Rossiter descreve como a cientista sênior, confiante em suas sucessoras, aposentava-se em um chalé no próprio campus. Um setor ou laboratório receberia seu nome, e uma de suas “protegidas” escreveria seu obituário no momento de sua morte8

As origens da amizade feminina estão na liberdade feminina, e um importante aspecto desta é a liberdade de ser para mulheres. É importante para a genealogia da amizade feminina que mulheres clamem por esta liberdade de sermos para Nós Mesmas e uma para a outra. As maneiras pelas quais estes aspectos primordiais são aumentados e intensificados realçam a originalidade da amizade feminina. Uma genealogia da amizade feminina revela muitas das maneiras pelas quais mulheres têm sido para Si Mesmas e para outras mulheres. 

As origens da amizade feminina estão também na cultura feminina. Nossa cultura está no passado, no presente e em curso, portanto as origens da amizade feminina não estão confinadas em algum lugar estático e originário, uma era dourada do Gin/afeto. Como já apresentado na “Introdução”, a vitalidade da “alteridade” feminina está enraizada na cultura que as mulheres têm criado com e para outras mulheres através da história e em todas as culturas. A palavra “cultura” tem diversos sentidos – social, intelectual, artístico. Etimologicamente, vem do latim cultura, significando cultivar o solo. Desde a pré-história, as mulheres são quem originalmente cultiva o solo9, e esta é uma metáfora para representar as muitas procuras e conquistas da cultura das mulheres. Portanto, nós também temos as mulheres como cultivadoras dos grupos sociais, isto é, da sociedade, como nos apresentam as hipóteses do matriarcado, que creditam as mulheres pelo próprio aspecto gregário humano10; mulheres, enquanto cultivadoras da mente, criando uma cultura feminina do pensamento que incluiu o início da ciência, matemática e filosofia11; e mulheres como cultivadoras da arte, tais como tecelagem, cerâmica e pintura12. Em última análise, na evolução de seu uso e em seu moderno desenvolvimento, a cultura veio a significar “a totalidade do modo de vida, material, intelectual, espiritual, de uma dada sociedade”13

As origens da amizade feminina podem ser encontradas na “totalidade do modo de vida, material, intelectual e espiritual”, que as mulheres têm cultivado umas com as outras. Uma genealogia do Gin/Afeto clama por essa “totalidade no modo de vida” que tem, para diversas mulheres, representado uma tentativa de pensar sob novas formas sobre a vida social, moral e intelectual das mulheres. Como a acepção moderna de cultura tem dado grande valor às tradições particulares de certos povos, assim deve proceder também a genealogia da amizade feminina, colocando especial valor nas especificidades culturais femininas – isto é, a comunalidade feminina e suas particulares maneiras de existir umas para as outras – através de uma diversidade étnica, racial e nacional14. Como nenhuma tradução cultural pode ser assimilada pela ideia simples e linear de civilização, também a cultura da amizade feminina não pode ser mais absorvida por ideias católicas de amizade em geral. A cultura da amizade feminina tem proposta, paixão e política distintivas. Suas origens podem ser encontradas naquelas esferas onde as mulheres eram e são livres para ser umas para as outras e onde as mulheres provêm umas às outras o senso de diferença, importância, autonomia e afeição. 

Na tentativa de subjugar os povos, uma das armas mais destrutivas do colonialismo era extinguir as tradições culturais de um grupo. Isto foi diversas vezes realizado com violência abrupta, como quando os símbolos, artefatos, criações e crenças foram imediatamente obliterados. Porém, com maior frequência, foi feito ao longo de um grande período de tempo, durante o qual este mesmo conjunto de especificidades culturais foi apagado em um andamento progressivo. Enquanto mulheres re-membram e re-criam a cultura do Gin/afeto em nossas vida, nos tornamos recém nascidas para nossos Eus e para as outras. 

Uma das maneiras pelas quais os homens distorceram e desmembraram as origens da amizade feminina foi a institucionalização de um sistema de primogenitura no qual não apenas o filho primogênito é considerado e reconhecido, herdando o reino de seu pai, como a relação pai/filho é elencada como o modelo das relações importantes entre homens. A primogenitura patriarcal é a estratégia para alavancar as tradições homorrelacionais nas quais toda sorte de pai lega a toda sorte de filhos as chaves para seus reinos. A primogenitura patriarcal não apenas invisibiliza as primogênitas como as relações mãe/filha. Este laço potencialmente Gin/afetivo é privado de seu poder e serve como um arquétipo para a sucessão das afinidades femininas. Em vez disso, as mulheres são ensinadas a negar sua afeição por mulheres. O amor desfeito das mulheres é como filhas sem herança. Apenas os homens são reconhecidos e gratificados com a afeição feminina. 

Os homens herdaram a terra e seus reinos masculinos de dinheiro, educação, prestígio profissional, poder político. Os homens herdaram também, apenas por terem nascido no sexo masculino, o “direito” ao afeto feminino. A amizade feminina pode devolver às mulheres o direito de primogenitura, estabelecendo a primordialidade de seus Eus e de outras mulheres, dizendo que nós existimos, temos memória de nossas origens Gin/afetivas, e que nós herdaremos a terra retomando nossa afeição perdida, umas pelas outras, e por Nós Mesmas. 

O SIGNIFICADO E A IMPORTÂNCIA DA BUSCA PELAS ORIGEN

As origens da amizade feminina são as origens do feminismo radical. Enquanto as mulheres não reclamarem e reconhecerem a afeição original entre nossos Eus, o feminismo ficará carente daquilo que o filósofo Henri Bergson chamou de “um ímpeto original pela vida” (un élan original de la vie), isto é, um ímpeto original pela própria vida – vitalidade feminista. Quando as mulheres deixarem de acreditar na primazia e primordialidade heterorrelacionais, verão que o primeiro objetivo do feminismo não é aproximar homens e mulheres, mas aproximar mulheres. A amizade feminina é o processo pelo qual este objetivo é realizado. E tal processo começa no começo, quando mulheres eram orgulhosas de suas relações com outras mulheres – e onde mulheres ainda forem orgulhosas. 

O significado primário de origem no Oxford English Dictionary é “o ato de elevar… derivação… O fato de advir de um ancestral ou raça particular”. Além da comunalidade da opressão, as mulheres têm um Gin/afeto ancestral, uma sobrevivência ancestral, força e orgulho umas das outras. 

Outra definição do termo origem vem da matemática, significando “um ponto fixo de onde começa o movimento” (Oxford English Dictionary). As origens da amizade feminina são também encontradas onde mulheres se tornaram “pontos fixos” para o movimento das outras mulheres. As mulheres se voltaram para suas parentes e amigas mulheres, frequentemente em momentos críticos da vida, e encontraram fontes estáveis de força. Muito frequentemente, esta força transformou-se na coragem para continuar. 

Em uma tese original e tocante chamada “As vozes das mulheres sobreviventes: o holocausto, mulheres e resistência”, Debra Seidman mostra como a realidade da resistência foi profundamente enraizada nas relações entre mulheres nos campos de concentração. Ela cita as memórias de Isabella Leitner em Auschwitz, na qual a autora e suas três irmãs de sangue foram encarceradas. Leitner descreve como elas tornaram a sobrevivência mutuamente viável:

Ter irmãs vivas, não estar sozinha, foi uma bênção também, mas atormentada a cada dia, a cada hora: Quando este dia acabar, ainda haverá quatro de nós? Se você não tiver irmãs, você não tem a pressão, a responsabilidade absoluta de chegar viva ao fim do dia. Quantas vezes esta responsabilidade nos manteve vivas? Não sei dizer. Só posso dizer que, naquelas tantas vezes que caí na seleção, eu sabia que tinha que voltar para as minhas irmãs, mesmo quando eu estava cansada demais para brigar pela minha volta, quando ir pelo caminho da fumaça teria sido mais fácil, quando eu quis esse caminho, quando ele me pareceu desejável. Mas naqueles momentos, eu sabia também que minhas irmãs, sabendo que eu tinha sido escolhida, não apenas queriam que eu voltasse, mas esperavam que eu voltasse. O fardo de viver à altura daquelas expectativas era meu, e era incrível.15

Quando a guerra estava no fim, os nazistas evacuaram os campos de concentração e forçaram seus prisioneiros a marchar no frio glacial do terreno alemão e polonês, com quase nenhuma comida ou roupas. Em uma destas marchas, uma das quatro irmãs morreu. Aqueles que a viram antes de sua morte lembram-se de tê-la visto dizer: “Minhas irmãs, essas escaparam. Que os deuses estejam com elas e ajudem em cada passo deste caminho”16. Muito do trabalho de Seidman retrata a força de tais laços femininos, que existiam não apenas entre irmãs de sangue como entre muitas mulheres que tinham ancestralmente ajudado umas às outras, tornando-se “pontos fixos” de existência.

Nos campos, as mulheres eram aterrorizadas, obrigadas a testemunhar a tortura de outras mulheres sem esperança; com isso, pretendia-se ensinar a elas a não atuar em conjunto aspirando a vitória… aceitando suas limitações, as mulheres, todavia, seguiram acreditando ser possível ajudar umas às outras. É esta convicção – de que elas poderiam fazer o que estivesse ao seu alcance, quando estivesse a seu alcance, mesmo sabendo que não poderiam fazer tudo, mesmo sabendo que não poderiam viver a vida de outra mulher por ela – que caracteriza as sobreviventes mulheres.17

Como Seidman acrescenta, “não é que as mulheres tenham ajudado uma à outra e que homens não o tenham feito”18, mas que a experiência feminina nos campos estava inextricavelmente atrelada ao fato de que eram mulheres. 

Mulheres não podiam escapar de seu papel social enquanto objetos sexuais nos campos, onde cada aspecto da tortura e degradação era sexualizado. Elas claramente tinham um conjunto de circunstâncias passadas e presentes com o qual lidar, diferentemente dos homens. Elas também enfrentaram desafios diferentes, tanto quanto diferentes possibilidades de resistência.19

Elie Wiesel, que havia se tornado porta-voz de sobreviventes, havia dito que, depois de Auschwitz, a literatura, a amizade e a esperança não eram mais possíveis. A partir de sua pesquisa sobre sobreviventes femininas, Seidman observa que “as mulheres contam outra história”20. Embora seus registros retratem o completo horror das atrocidades dos campos de concentração, em geral,

as mulheres não perdem a esperança… Para aquelas de nós que vivem o mundo depois de Auschwitz, nossa tarefa é a de re-definir e re-afirmar a necessidade de esperança, amizade e poesia. Os registros das sobreviventes nos contam que tais coisas ainda são possíveis. As mulheres falam de esperança, elas nos mostram exemplos de sua amizade, elas até mesmo cantam e recitam poesia em Auschwitz21

Em seu tocante livro A cor púrpura, Alice Walker retrata outra relação entre irmãs de sangue na qual elas são pontos fixos uma para a outra. Seu Gin/afeto significa sobrevivência para a irmã mais nova, Nettie, e uma fuga da situação opressiva. Quando a irmã mais velha,

Celie, se dá conta de que o padrasto, que a estuprou e engravidou, tem planos semelhantes para Nettie, ela jura tomar conta da mais nova “com ajuda de Deus”22. “Eu pedi a ele para me levar, em vez de levar Nettie”23. Eventualmente, Nettie deixa a casa dos pais com Celie, mas as irmãs são forçadas a se separar pelo marido da mais velha. Nettie, então, muda-se para África, onde ajuda a construir uma escola. As cartas que Nettie escreve a Celie expressam, de muitas maneiras, a gratidão da mais nova para com a mais velha: “Sinto sua falta, Celie. Penso sobre quando você se sacrificou por mim. Eu te amo com todo meu coração”24

A cor púrpura mostra que a amizade feminina tem um poder capaz de gerar uma dinâmica de resposta mútua que liberta e fortalece movimentos de todos os tipos. Atrair é causar um movimento em direção a algo. No sentido matemático de origem, as mulheres precisam ser centros do movimento, do deslocamento genuíno, em direção uma à outra, e não meramente afastando-se de situações opressivas criadas por homens. 

As origens da amizade feminina revelam mulheres originais25. Uma mulher original mapeia seu próprio princípio nos mais profundos confins de seu Eu e no de outras mulheres. Ela se ergue através da história como uma antítese às mulheres fabricadas pelo homem na criação patriarcal. Enquanto mulher original, ela toma para si o poder de originar. A construção social da realidade tem sido “causada” pelos homens, que vêem a si próprios trazendo o amor e a vida das mulheres à existência. O poder masculino para originar todas as coisas tem sido um ato primordial de patri-gênese que resultou no homem nomeando a si próprio enquanto criados dos afectos femininos, que posteriormente ele redirecionou para si. Pata fazê-lo, no entanto, os homens tiveram de fabricar seus próprios mitos da origem feminina e suas próprias histórias de criação. Ele teve de desmembrar a memória feminina e mesmo seu desejo de lembrar de suas origens e de seu Eu e sua atração por outras como Ela. Portanto, como apontou Anne Dellenbaugh, a criação masculina da mulher foi, dificilmente, criativa. Foi desintegradora, isto é, desintegrou a percepção feminina de si mesma e a origem feminina junto a outras mulheres26

O pior efeito de desintegração causado pela criação masculina da mulher tem sido a erosão da integridade feminina. Escrevo, em outro momento, acerca da integridade original, significando um potencial feminino para a Auto-criação, não sujeita ao homem e seus artefatos de estereótipos e papéis sexuais delegados a mulheres – que eu agora chamaria de heterorrealidade. O “pecado original” masculino, se quisermos chamá-lo assim, tem sido a contaminação da mulher original, bem como de suas origens junto a outras mulheres. Portanto, Gin/afeto, que é um ato original, tornou-se o maior tabu de todas as ações femininas. Em troca, a cumplicidade feminina – seu “pecado original” – tem sido negar suas origens e negar sua amizade original junto a outras mulheres.

As mulheres precisam fazer do Gin/afeto um evento primordial, isto é, uma prioridade em suas vidas. A separação primordial em suas duas palavras constituintes lança uma luz sobre a amizade feminina. Prima, significando primeira, sugere um retorno feminino às maneiras pelas quais elas têm sido primárias nas vidas umas das outras. Gin/afeto, como um evento contínuo primordial, engendra uma genealogia de mulheres que são primárias umas para as outras de variadas maneiras, como as já abordadas neste trabalho. 

Prima também significa “mais ativa, próspera e bem sucedida etapa da vida de alguém” (Oxford English Dictionary). Mulheres que são amigas estão, portanto, no primo estágio da vida, não permitindo a si mesmas serem tuteladas em toda sorte de heterorrelações. Em lugar disso, estas mulheres reconhecem que o estágio primo em suas vidas, aquele que é primário, original, ativo e próspero, será encontrado junto a outras mulheres. A história das mulheres e a literatura feminina estão repletas de exemplos de amizades femininas que têm sido primárias para muitas vidas, de muitas mulheres. Por exemplo, o trabalho de Carroll Smith-Rosenberg encontrando diários e cartas de mulheres do século XIX, retrata inúmeras mulheres que nitidamente preferiram a companhia de suas amigas à de seus maridos27

O romance Sula, de Toni Morrison, revela a amizade entre Nel e Sula, que Nel passa a reconhecer como prima em sua vida. “Era como recuperar a visão de um olho que tivesse sido afetado pela catarata. Sua velha amiga tornara-se seu lar. Sula. Que lhe provocara riso, que lhe inspirara a ver as coisas velhas com novos olhos, em cuja presença ela se sentia esperta, gentil, e um pouco obscena”28. A declaração de Nel ao fim do romance está ainda mais endereçada para a primazia desta relação: ” ‘Todo aquele tempo, todo aquele tempo, pensei que sentia saudades de Jude’. E a perda pressionava o peito e subia pela garganta. ‘Nós era menina junta’, lamentava, ‘menina, menina, menina”‘29

Em Little Women, o universo maternal e sororário das meninas March é primo para suas vidas. Este mundo se torna desordenado e desintegrado inicialmente pela morte de Beth que, como evidencia Nina Auerbach, estabelece o contexto de mortes maritais das demais irmãs30 e do fim da ordem primordial do Gin/afeto. 

Em matemática, o número primo é um número positivo inteiro que só pode ser dividido por um e por ele mesmo. Dentre os números, é indivisível de uma maneira única. Em um nível menos literal, pode-se dizer que ele não pode ser dividido dele mesmo. Se nos movermos do contexto dos números para o contexto da amizade feminina, mulheres que são primas nas vidas umas das outras não deixam que homens as dividam. Esta é a ordem prima. É a ordenação feminina da existência, feita autonomamente. 

Dentro de uma hétero-ordem, as mulheres não têm se Auto-ordenado. Muitas mulheres viveram vidas desordenadas, falhando em colocar os homens no lugar adequado em relação a si próprias. Portanto, a tarefa mais essencial na recuperação das origens da amizade feminina é a restauração da ordem prima. As mulheres devem estabelecer uma ordem de existência de nossa própria confecção, na qual nossos afetos sejam Auto-direcionados, e na qual sejamos verdadeiramente primas uma para as outras. 

A questão da ordem é irrevogavelmente ligada à questão das origens, e a questão das origens levanta a mais importante questão na pesquisa pelas pistas do Gin/afeto. Um método genealógico busca nos lugares mais improváveis as evidências desta amizade. Surepreendentemente, a hétero-teoria e as disciplinas da heterorrealidade nos dão muitas epifanias acerca das origens da amizade feminina. A questão da história, mais especificamente da meta-história, torna-se um necessário ponto de partida.

META-HISTÓRIA E MICHEL FOUCAULT 

Já existiram várias teorias sobre o que é a história. Em geral, o grandioso passado patriarcal tem conformado seus participantes e não-participantes a algum propósito ou plano subliminar (teleológico) ou tem usado leis e fórmulas generalizantes (evolucionismo científico) para explicar a história. Mesmo o historicismo, que buscava ver todo o conhecimento e formas de experiência em um contexto histórico de mudanças constantes, promoveu a crença de que uma compreensão adequada acerca de qualquer fenômeno podia ser alcançada apenas apreciando vários fenômenos dentro de um paradigma de desenvolvimento. Cada evento seria, assim, percebido em termos de um processo maior do qual o evento seria uma fase ou uma parte. 

A historiografia moderna tem proposto desafios a tais teorias tradicionais. Michel Foucault, influenciado pelo trabalho de Nietzsche, concentrou-se em uma teoria da história como descontinuidade. É importante analisar o trabalho de Foucault, pois este teórico tem escrito sobre história e meta-história de uma maneira que a princípio suscita o interesse e pode aparentar ser útil às feministas acadêmicas em busca das origens da amizade feminina. Suas ideias de descontinuidade, transgressão, origens e genealogia, consideradas abstratamente, são atraentes. Ainda assim, elas não podem ser dissociadas de seus ícones de descontinuidade, transgressão e afeto. 

Foucault ataca, de uma maneira muitas vezes evasiva, a busca por um significado maior, total, grandes unidades de sentido, e continuidades que têm sido objeto da preocupação de tradições historiográficas e historiadores. Em alternativa, propõe que a matéria da história seja a desordem das coisas.31 Interrupções, deslocamento, transformações e rupturas seriam o objeto próprio da história, para Foucault. 

Se a pesquisadora feminista tentar usar a noção foucaultiana de história como descontinuidade na procura pelas origens no gin/afeto, sua primeira pergunta precisa ser: descontínuo de que e/ou de quem? Mulheres têm sido desde sempre arrebanhadas em descontinuidade com seus próprios Eus, com seus passados femininos e feministas, cujas continuidades nunca estamos autorizadas a saber. Foucault falha em perceber as desnecessárias e indesejadas descontinuidades entre mulheres para quem a opressão tem sido contínua, e é através da continuidade dessa opressão que as mulheres têm sidos coagidas à descontinuidade da história das mulheres em geral, e da história do gin/afeto em particular. Dale Spender declarou, com afiada objetividade, qual é o problema da descontinuidade histórica entre mulheres:

É perturbador reconhecer que o que hoje temos em comum com as mulheres do passado é nossa experiência em sermos silenciadas e interrompidas; nossa experiência de tornarmo-nos membros de uma sociedade na qual as mulheres não têm um passado observável, herança, onde nossa experiência tem existido no vácuo.32

Diante disso, a adulação de Foucault à descontinuidade é, na melhor das hipóteses, abstrata, e na pior, ignorante em relação às descontinuidades reais nas vidas das mulheres. Como Pat Hynes propõe em alternativa, “a história das mulheres é/precisa ser descontínua com a história patriarcal, mas contínua em relação a si própria”.33 

Se, como propõe Foucault, descontinuidades e rupturas são a matéria da história, então as origens do gin/afeto serão encontradas nas descontinuidades históricas das mulheres em relação aos homens. A continuidade da amizade feminina tornou possível às mulheres as interrupções e deslocamentos de uma história feita pelo homem, de uma hetero-realidade. 

Foucault não encontra seus heróis da descontinuidade entre mulheres. Seus transgressores modelares são o Marquês de Sade e Georges Bataille. Depois de lermos Andrea Dworkin e seu paradigmático trabalho sobre pornografia, que contém longas análises desses dois homens e seu trabalho pornográfico, reconhecemos que o “filosofar” sobre pornografia e pornógrafos pelos olhos de teóricos de alta reputação como Foucault acoberta uma multitude de “transgressões” que de nenhuma forma oferece uma nova teoria da história, apenas reforça as tradições. Foucault é fascinado pela “ausência de Deus e o jogo epidérmico da perversidade. Um deus morto e a sodomia são as portas abertas para uma nova elipse da metafísica… Sade e Bataille”34

A Sade, Foucault atribui a maior transformação na linguagem e na história:

A data desta transformação se insinua toscamente com o aparecimento, ao final do século XVIII, das obras de Sade. Não é sua predileção comum pela crueldade o que nos preocupa aqui… tais linguagens são comumente arrastadas para fora de si mesmas por um arrebatamento, pelo inarticulado, pelo deslumbramento, estupefação, êxtase, atordoamento, pura violência, gestos sem palavras… Essa reivindicação da linguagem de nos contar não é simplesmente a quebra de uma série de proibições, mas a procura pelos limites do possível.35

É preciso compreender que “um arrebatamento, pelo inarticulado, pelo deslumbramento, estupefação, êxtase, atordoamento, pura violência, gestos sem palavras” são todos obtidos através de corpos femininos degradados, mutilados, e inclusive mortos, de mulheres que, sem dúvidas, sentiram-se arrebatadas, impossibilitadas de se articular na linguagem, estupefatas e idiotizadas. Para “estupefação e êxtase”, essas experiências pertencem ao Marquês de Sade. Foucault, todavia, não está preocupado com a “comum predileção de Sade pela crueldade”. Afinal, a crueldade é muito “comum”, isto é, ordinária, quando comparada com a questão da linguagem, tão mais intelectualmente importante. Foucault transmuta a tortura sadeana, os estupros, seu abuso sexual infantil ininterrupto, brutalidade e assassinato em “transmutação” da linguagem, desafio, descontinuidade e transgressão. 

Sade é creditado não apenas por criar uma nova linguagem como por criar uma nova teoria historiográfica. Para Foucault, a linguagem transgressiva de Sade tem imenso pelo histórico:

… na raiz da sexualidade, do movimento que nada pode nunca limitar, uma experiência singular toma forma: a transgressão. Talvez isso um dia torne-se decisivo para nossa cultura, uma parte tão importante de seu solo quanto a experiência da contradição o foi nos tempos primórdios do pensamento dialético.36 

Tal assunto é, de fato, matéria intelectual velha. Ao declarar estar foerecendo uma nova linguagem e um novo método para a história, Foucault não desafia a continuidade hétero-histórica – o obsoleto abuso, degradação, mutilação de mulheres encontrado em Sade e em todas as heterorrelações da supremacia masculina histórica. Foucault se perfila a um longo desfile de homens que, como Andrea Dworkin ressalta, mantêm o trabalho de Sade vivo por quase dois séculos “porque homens literautos, artísticos e intelectuais o adoram, e pensadores políticos da esquerda o apontam como um avatar da liberdade”37

Georges Bataille é outro desses heróis da transgressão e descontinuidade para Foucault. Em seu ensaio “Um prefácio à transgressão”, foi originalmente publicado em “Hommage à Georges Bataille”, que homenageia a peça de Bataille História do olho. Brevemente, nesta pornografia casca-grossa, o olho, assunto de grande fascinação, toma a forma de um ovo cozido cuja gema é chupada para fora, mijada, depois engolida do fundo de uma privada, pelo protagonista. Há também o olho de um toureiro pendurado de sua cabeça enquanto Simone, uma grande personagem feminina da história, tem um orgasmo. E, para ilustrar a epítome da transgressão e do sacrilégio, Bataille se concentra no olho de um padre assassinado, que Simone gentilmente insere em sua bunda. 

Para Foucault, o olho acumula o significado da experiência interior. Também se torna uma figura “no cerne da transgressão do próprio limite”. Foucault iguala o olho sem núcleo ou virado ao contrário com a filosofia de Bataille acerca da linguagem:

O olho, em uma filosofia da reflexão, deriva da capacidade de observar o poder de se tornar cada vez mais interiorizado em relação a si próprio… Este movimento de introjeção é finalmente resolvido em um centro imaterial onde as formas intangíveis da verdade são criadas e combinadas, no coração da supremacia do sujeito. [grifo da autora]38

O “sujeito soberano”, o olho do homem, pode ver tudo, exceto o objeto soberano – a mulher. Foucault “filosofa” que a morte é o limite que o olho incessantemente transgride. Enquanto isso, as formas materiais e tangíveis da verdade – que mulheres são abusadas, lesadas, que elas morrem, que os intelectuais encontram na morte o significado do sexo, que a força é romantizada por levar mulheres à morte – são apagadas e invalidadas por Foucault. Aqui temos fetiche como filosofia, fingindo expandir a visão humana e os limites da transgressão. Foucault nos leva a acreditar que um ovo cozido em uma privada é um profundo símbolo de transgressão, que representa “nossa” experiência íntima, interior. Nunca é perguntado se quem é essa visão íntima. Nunca é perguntado de quem são os limites transpostos. O olho dele certamente não é o olho dela. 

Tais são as transgressões, deslocamentos, transformações e descontinuidades da linguagem e da história que Foucault nos encoraja a perseguir. Sade de Bataille supostamente nos conduziriam a uma nova era, que Foucault mais tarde viria a chamar de “história efetiva”. Homens podem revelar essa “nova” e “efetiva” história. Mulheres que têm olhos, olhos reais, reconhecem esta como sendo a velha conversa. 

Em nossas procuras historiográficas, nós feministas precisamos encontrar as reais descontinuidades, e as transgressões que cometemos contra a heterohistória, que as mulheres amigas alcançaram – que mulheres não estão, não são e não foram sempre em relação ou em relacionamentos para com os homens, seja por escolha ou seja por coerção; porque somos fortes, e não apenas por termos sido vitimizadas por homens. A explicação para o gin/afeto não é a abnegação heterorrelacional, como os psicólogos teorizaram; ela é a saúde e a atratividade independente que caracteriza a amizade feminina. 

Ao passo que as mulheres reconquistam sua história autônoma, precisamos também nos dar conta de que a hétero-história é a real descontinuidade e transgressão nas vidas das mulheres e nas suas amizades com as outras. Os laços masculinos e as amarras masculinas sobre as mulheres interromperam o curso e a corrente da história e da cultura do Gin/afeto. Os campos acadêmicos do conhecimento heterorrelacional “disciplinaram” a memória e a realidade do Gin/afeto, subtraindo-o das vidas das mulheres. 

PISTAS FORNECIDAS PELAS DISCIPLINAS HETERORRELACIONAIS: PSICOLOGISMOS 

O primeiro fundamento da teoria freudiana acerca da sexualidade feminina é que a feminilidade é defeituosa. Cedo em sua vida, a jovem menina se dá conta da máxima adversidade feminina – falta-lhe um pênis – e isto se ramifica por todas as áreas da existência feminina, em todo o mundo. Trata-se de uma suposta tragédia que assombrará a jovem por toda a vida.

Elas reparam no pênis de um irmão ou amiguinho, impactante e visível, de grandes proporções, e é arrebatada pela percepção de que se trata de seu complementar, superior a seu imperceptível órgão, e deste momento em diante, cai vítima da inveja pelo pênis.39

Neste esquema, pode-se dizer que a mulher desenvolve não apenas um senso de inferioridade e desdém de si própria, como em relação a outras mulheres. Pois a menina, de início, culpará a mãe “que a mandou neste mundo insuficientemente equipada” e que é “quase sempre responsabilizada pela sua ausência de pênis”40

De acordo com Freud, o amadurecimento da mulher a redireciona para o homem depois que ela rejeita seu próprio sexo, personificado pela mãe. Este é o início da fase edipiana das meninas. Presumindo que sua mãe a castrou, ela direciona sua atenção ao pai e, através dele, para outros homens. Para Freud, a maior tarefa edipiana é o ajuste da jovem, amadurecendo-a para a heterossexualidade. Freud deixa evidente que meninas são primordiais para a heterossexualidade. A bem da verdade, podemos inferir de seu trabalho que uma complexa estrutura precisa ser construída para a maturação heterossexual acontecer. É importante compreender, neste contexto, que a produção da heterossexualidade feminina é parte de um projeto maior – a construção das heterorrelações em geral. 

Os maiores pilares desta estrutura consistem em três níveis. Não apenas a menina precisa ultrapassar a inveja do pênis para chegar a uma heterossexualidade feminina normal; ela precisa, também, substituir seu primeiro amor – mãe/mulher – com outro, isto é, o pai/homem. Simultaneamente, ela precisa transferir sua sexualidade do clitóris (ativo) para a vagina (passiva). Freud define a afinidade pela estimulação do clitóris como uma “regressão patológica” que aleija “as funções sexuais de muitas mulheres”41. Freud ainda afirma que “a principal zona erógena da menina é o clitóris”42. Para que a menina se transforme em mulher, ela precisa “reprimir” a sexualidade clitoriana durante a puberdade. 

Dorothy Dinnerstein, em The Mermaid and the Minotaur, um trabalho que tem sido amplamente usado em Women’s Studies e em círculos femininas, adere à teoria freudiana da transferência do amor da mãe/mulher para o pai/homem, frisando, porém, esta mudança de uma forma diferente da que usa Freud. “O amor original da menina… era, como o do menino, uma mulher. Sobre esta imagem erótica prototípica, a imagem do homem precisa ser superimposta”43. Diferentemente de Freud, Dinnerstein desenvolve a ideia de que o amor original da menina era uma mulher e que o amor pelo homem é secundário. Mais ainda, Dinnerstein observa, “Dar-se conta de que se é uma fêmea destinada a competir com outras fêmeas pelos recursos eróticos masculinos é descobrir-se condenada a renegar o primeiro amor”44

Há, portanto, no trabalho de Dinnerstein, um senso da real tragédia que confronta a menina: ela precisa renunciar seus sentimentos primordiais de Gin/afeto para se tornar uma mulher “normal”; ela precisa abandonar a outra pessoa (um homem) o amor que por direito e origem pertencia a outra mulher; e “ela precisa interromper sua continuidade em relação ao seu primeiro sentimento de jovem, pelo qual ela viverá de luto”45. O que foge, contudo, à percepção de Dinnerstein é que as meninas também são amputadas de sua própria história e cultura de Gin/afeto e das possibilidades de fortalecer esta realidade em sua vida. 

Pode-se interpretar a análise de Dinnerstein da teoria edipiana como um conjunto importante de pistas no sentido de uma genealogia da amizade feminina: que o amor pelas mulheres é primordial para elas; que as mulheres seguirão com raiva, tornando-se ambivalentes, uma vez que suprimem o Gin/afeto; e que as mulheres podem passar suas vidas tentando reconquistar esse amor, embora de jeitos contorcidos e convolutos. Todavia, através de todos os esclarecimentos e variações sobre o tema edipiano, o que ela, afinal, esclarece é a ausência de amor entre mulheres, e não sua presença. Seu livro é, afinal, dirigido no sentido de melhorar os “arranjos sexuais” prevalentes, isto é, “a colaboração macho/fêmea para manter a loucura da história”46

Outros comentadores de Freud tomam um caminho distinto. Helene Deutsch, que fez ainda mais esforços que Freud para promulgar a teoria do masoquismo feminino, divergia de Freud no que tange a teoria edipiana:

Não é correto afirmar que a menininha abre mão de seu primeiro amor materno em favor do amor paterno. Ela apenas e gradualmente o inclui nesta aliança, desenvolvendo a partir da exclusividade do amor mãe/filha uma relação triangular pais/filha, continuando esta, bem como continuando a primeira, ainda que de forma enfraquecida e menos elementar, mas ao longo de toda a vida47.

Nancy Chodorow, em The Reproduction of Mothering, outra obra extensamente usada em Women’s Studies, segue Deutsch em acentuar o que chamo de permanência do Gin/afeto entre as mulheres. “Para as meninas, portanto, não há também uma mudança absoluta de objeto, nem ligação exclusiva para com seus pais”48. As meninas nunca assumem “compromissos finais e absolutos com o amor heterossexual, enquanto compromisso emocional, independentemente de fazerem compromissos finais com a escolha de objeto genital”49

A psicologia tradicional tem focado na ambivalência feminina em relação a outras mulheres, isto é, o fato de que as mulheres não nutrem confianca por outras mulheres, invejam-nas; Chodorow enfatiza que muitas mulheres se sentem profundamente ambivalentes sobre amar outras mulheres porque uma atração original e poderosa compete com a competitividade feminina pela atração heterossexual imposta. 

As meninas não podem “rejeitar” suas mães e mulheres em favor de seus pais e homens, e não o fazem, mas permanecem em um triângulo bissexual através da infância, adentrando a puberdade. Elas tomam uma resolução sexual em favor dos homens e de seus pais, mas retêm um forte triângulo emocional50

Chodorow, evidentremente, suprime o fato de que muitas mulheres não “permanecem no triângulo bissexual”, e que este conceito não descreve a realidade daquelas mulheres que não participam deste arranjo triangular. Mais ainda, qualquer mulher que permaneça no triângulo não fez qualquer “resolução” em favor da heterossexualidade, mas foi coagida a tal “resolução” ou ainda, resignou-se a ela. 

Chodorow teoriza que a transferência, por parte da menina, do amor mãe/mulher para o pai/homem não pode ser adequadamente completada, por uma série de razões. Comparativamente falando, o pai não é tão física e emocionalmente disponível quanto a mãe. Freud, também, reconheceu isto ao dizer que as mulheres em relações heterossexuais procuram homens por “gratificações que elas querem receber das mulheres”51. Todavia, como a mãe não dispensa a menina o mesmo amor que dispensa ao menino, a filha se volta para outro lugar – seu pai – buscando “a mesma confirmação de sua especialidade que seu irmãozinho recebe da mãe”52. Ao mesmo tempo, a filha procura escapar de sua mãe, para desenvolver um senso de individualidade e discrição, que também é encontrado quando ela se volta para os homens. “Ela se torna mais capaz de fazê-lo pois sua distância significa que ela não o conhece”53

Refutando o estereótipo social de que mulheres são as românticas, e homens, os racionalistas no amor, Chodorow deixa evidente que “as mulheres adquiriram uma capacidade real para a racionalidade e distância em relações heterossexuais, qualidades construídas desde suas tenras relações com homens”54. Ela cita evidências clínicas e sociológicas para sustentar este argumento. “A maior parte dos estudos argumenta… que o aparente romantismo é uma resposta emocional e ideológica à sua dependência econômica real”55. Para além do racionalismo econômico, Chodorow pode ter citado outros poderes sociais e psicológicos que os homens exercem sobre as mulheres para torná-las mais “racionalistas” em atribuir primazia às heterorrelações. Como enumerou Andrea Dworkin, os homens, para além do poder do dinheiro, têm o poder do Eu, por mais parasítico que seja; o poder da força física, mobilizado contra as mulheres; o poder de aterrorizar e inculcar medo; o poder de nomear, inicialmente analisado pelo trabalho de Mary Daly; o poder de possuir mulheres e tudo que vem delas; e o poder do sexo, isto é, da foda – tirar, forçar e conquistar.56 

À distância entre mulheres e homens, Chodorow justapõe as afinidades que mulheres desenvolvem entre si. Mulheres passam mais tempo na companhia de outras mulheres do que homens passam tempo com outros homens. Citando Wayne Booth em suas descobertas e escritos sobre grupos de libertação masculina, a autora alega que as amizades femininas são “mais ricas afetivamente do que as masculinas”57. Em muitas culturas, as mulheres que são parentes são também amigas. “No entanto, relações afetivas profundas são difíceis de se encontrar na rotina diária, em curso, na vida das mulheres. As relações lésbicas tendem a recriar emoções e conexões mãe/filha, mas a maior parte das mulheres é heterossexual”58. Embora Chodorow mencione a preferência heterossexual, “tabus contra a homossexualidade” e dependência econômica para com homens enquanto razões que tornam difícil a primazia das relações entre mulheres, a frase “a maior parte das mulheres é heterossexual” é uma vasta e rasa simplificação. Adrienne Rich atentou a complexidade de forma mais detalhada:

A suposição de que “a maioria das mulheres são heterossexuais de modo inato” coloca-se como um obstáculo teórico e político para o feminismo. Permanece como uma suposição defensável, em parte porque a existência lésbica tem sido apagada da história ou catalogada como doença, em parte porque tem sido tratada como algo excepcional, mais do que intrínseco. Mas, isso também se dá, em parte, porque ao reconhecer que para muitas mulheres a heterossexualidade pode não ser uma “preferência”, mas algo que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido por força, o que é um passo imenso a tomar se você se considera livremente heterossexual “de modo inato”. No entanto, o fracasso de examinar a heterossexualidade como uma instituição é o mesmo que fracassar ao admitir que o sistema econômico conhecido como capitalista ou o sistema de casta do racismo são mantidos por uma variedade de forças, incluindo tanto a violência física como a falsa consciência. Tomar passo a favor do questionamento da heterossexualidade como uma “preferência” ou “escolha” das mulheres – e, assim, fazer o trabalho intelectual e emocional que vem a seguir – irá exigir coragem de uma qualidade especial das feministas que se definem como heterossexuais, mas acho que a recompensa será grande: uma libertação do pensamento, a exploração de novos caminhos, a dissolução de outro grande silêncio, uma nova claridade nas relações interpessoais.59 

No âmbito das relações pessoais, Chodorow reconhece que “os desejos das mulheres por intensidade e primazia das relações não tende a outras mulheres, tanto por causa de tabus internos e externos sobre a homossexualidade, quanto por conta do isolamento das mulheres em relação ao seu clã feminino (especialmente mães), bem como outras mulheres”60. Mais do que isso, a falta de resposta afetiva que as mulheres encontram nas heterorrelações, o que Chodorow chama de “as contradições da heterossexualidade”, ajudam a promover essa mesma normatividade das heterorrelações. Para ter uma afetividade profunda, as mulheres buscam sustento emocional nas crianças, sendo portanto orientadas na direção da família e da maternidade. “Portanto, a indisponibilidade afetiva masculina e uma flexibilização do comprometimento heterossexual ajudam a assegurar a maternidade”61.

Se a análise de Chodorow não fosse tão psicanalítica para fatores pessoais e tão economicista para os sociais, ela teria nomeado “os tabus internos e externos sobre a homossexualidade” todos os obstáculos erguidos contra o continuum de Gin/afeto em uma cultura heterorrelacinal. E ela teria nomeado o suposto “isolamento feminino” em relação a outras mulheres como segregação e dissociação feminina. 

Chodorow e Dinnerstein nos dão as pistas para as origens da primazia do Gin/afeto, ao que parece, sem pretender fazê-lo. O máximo objetivo, como fica aparente em ambos livros, é o de impulsionar e manter os falidos pais das heterorrelações. Elas desejam reorganizar a instituição do parentesco para trazer os homens à responsabilidade. Ambas argumentam que a ausência masculina da criação é responsável por desordens individuais e sociais. Se tal desequilíbrio social fosse sanado, dizem elas, e homens tomassem igual parte na criação dos filhos, toda sorte de salvação aconteceria. Chodorow argumenta:

… esta dependência nela [mãe/mulher] e esta primária identificação não seriam criadas, em primeiro lugar, se homens tomassem para si responsabilidades também primárias na criação. As crianças poderiam ser dependentes, desde o princípio, de pessoas de ambos os gêneros, e estabeleceriam um senso de Self independente em relação a ambos.62

Dinnerstein argumenta: 

Quando a criança, uma vez nascida, é uma responsabilidade tão grande para o homem quanto para a mulher, as tenras vicissitudes da carne – cuja lida fundamenta as bases para nossa lida com a morte – não terá nenhuma relação especial com qualquer gênero.63

O que Dinnerstein e Chodorow nos dizem é que, uma vez mais, os homens serão nossos salvadores. Quando os homens forem tão presentes quanto mulheres na criaça dos filhos, os sofrimentos e ambivalências do desenvolvimento infantil que são hoje impingidos na mulher, a culpa em que ela incorre sendo a primeira cuidadora, e a gama de “nós heterossexuais” e “arranjos sexuais” não irá acontecer. 

O que isto afinal significa é que, mais uma vez, as heterorrelações precisam ser o foco das vidas femininas e que mulheres deveriam devotar-se à reconstrução de novas formas de heterorrelação. Não há qualquer percepção, e muito menos prescrição, de que mulheres devam criar novas formas de relação entre mulheres. Tendo desenvolvido alguns insights notáveis sobre a atração original entre mulheres, e tendo dado algumas pistas sobre por que mulheres orientam tal atração em direção aos homens, ambas falham em enfatizar a importância da afeição feminina uma pela outra como primária e paradigmática. 

Em lugar disso, Dinnerstein e Chodorow apresentam uma implícita e invisível exortação de que mulheres se tornem, outra vez, mães dos homens. Mas desta vez, as mulheres precisam se tornar mães para que os homens também se tornem mães, pois se as mulheres não o fizerem, quem fará? Esta é a agenda não admitida, e talvez não premeditada, de ambos livros.64 Dinnerstein e Chodorow nos apresentam em teoria aquilo que filmes tais como Kramer vs. Kramer nos oferece em filme. Todos os três nos apresentam o pai completo, carinhoso e “humanizado”. Nenhum deles nos diz onde ele vai aparecer. 

O maior problema não é que as mulheres sejam as principais encarregadas do cuidado com as crianças. Em lugar disso, o maior problema é que as mulheres são as mais visíveis e imediatas conduítes da heterorrealidade, enquanto são as que menos se beneficiam de tal sistema65. Enquanto mulheres retrocederem para a formação daquilo que Dinnerstein e Chodorow chamam de conflito edipiano feminino, e que eu chamo de heterorrealidade – a canalização do amor feminino, da energia e do poder para os homens – nada vai mudar radicalmente. Até as mulheres “maternarem” para o amor e cuidado para outras mulheres, o sistema de heterorrealidade feminina não vai se transformar. 

Se as mulheres originais, que experimentam o amor primário por suas mães (mulheres) não fossem confrontadas com a mãe (mulheres) e moldadas nestes relacionamentos pelas mesmas mães (mulheres), mas em vez disso fossem confrontadas pela mãe enquanto uma mulher amiga que coloca mulheres em primeiro lugar em sua vida, então o Gin/afeto prevaleceria na realidade. As jovens meninas tirariam conclusões bastante diferentes sobre seus sentimentos e seu Self em relação a outras mulheres. 

Não é a inclusão dos homens na parentalidade que vai restaurar (entre outros desequilíbrios a falta de amizade feminina, porque então, presumivelmente, as mulheres seriam livres para não odiar ou para ser ambivalentes sobre outras mulheres. Em lugar disso, dividir a parentalidade nas presentes circunstâncias realça a supremacia masculina, pois dá aos homens mais poder do que eles já têm, agora na forma de poder emocional no seio da família. Continuar ignorando a falta de poder feminino em todas as outras instituições sociais e prescrever a parentalidade masculina como solução para nossos “arranjos sexuais” desiguais, é uma visão bastante torta. Mais ainda, onde o homem é retratado como sensível e cuidadoso, a mãe está geralmente deslocada. O que surge disso é uma versão mais “humana” e “comovente” da broderagem. Ao menos, tal é a imagem cinematográfica em Ordinary People e Kramer vc. Kramer, dois filmes populares do início da década de 1980, que retratavam o pai sensível. Neste, a mãe está fisicamente ausente pois deixou o marido para “se descobrir”, para descobrir seu caminho no mundo, abandonando um casamento conturbado. Naquele, a mãe está emocionalmente ausente na vida do filho, apesar de estar fisicamente presente no casamento. Ambos contêm cenas comoventes e chorosas de momentos pai/filho, nas quais o pai emerge não apenas no papel de pai, como também no de mãe. O tema mítico da maternidade masculina ganha vida. 

O que Dinnerstein e Chodorow nos mandam procurar é o “homem moderno”. Mas o homem moderno é, de muitas formas, o antigo homem. Em primeiro lugar, ele é um homem, e não uma mulher, e as mulheres têm tradicionalmente se engajado em procurar homens, por mais modernos e sensíveis que sejam. Em segundo lugar, ele se liga a seus semelhantes, mesmo sob a influência dessa sensibilização. Vemos esta broderagem em curso no novo “macho sensível” dos filmes, e podemos esperar disso uma forma rejuvenescida de broderagem no contentamento da visão de Dinnerstein e Chodorow de co-parentalidade. Mulheres estão sendo orientadas a novas formas de heterorrealidade aqui. E o que não se está discutindo é que homens serão encorajados a criar novas formas de broderagem porque isso lhes dá espaço para mais intimidade entre homens, que serão estabelecidas agora sob a forma de sensibilização. A intimidade masculina, adicionada à presente solidariedade masculina baseada no dinheiro, no poder e na força física, resultará na institucionalização das homorrelações masculinas. Os relacionamentos femininos permanecerão secundários ao imperativo de criar novas heterorrelações. Quaisquer destas relações ocorridas entre mulheres dentro deste “novo” contexto heterorrelacional serão, tais como as antigas, secundárias. Elas, tampouco, serão vividas com primazia. 

Para ambos homens e mulheres, o amor pelas mulheres continuará sendo mantido em seu lugar apropriado, não se permitindo que interfira nos laços vitais entre homens. Homens, “libertando-se” para sentir emoções, serão aptos a manifestar seu amor por outros homens em novas formas. Mulheres, sendo reorientadas a novas formas de heterorrelação, serão igualmente redirecionadas aos homens, e ficarão ainda mais confinadas e impedidas de manifestar Gin/afeto. 

Na análise final,as teorias de Dinnerstein e Chodorow mantêm o presente sistema de heterorrealidade. Elas inclusive lhe dão nova força, embora não seja intencional, a certamente não se trata de uma prescrição articulada fazê-lo. No entanto, a broderagem persistirá e prosperará, acordando para novas formas de heterorrelações, uma vez que as homorrelações podem ser apenas reforçadas na ausência de um foco sobre a primazia das relações entre mulheres. 

Não há nada em tais obras que coloque em primeiro lugar as relações das mulheres entre si. Não há uma definitiva e conclusiva prescrição para o estreitamento do Gin/afeto que se compare à sua idealização das heterorrelações. A menina ou mulher não recebe nenhuma oferta de encorajamento à sua atração original por mulheres. Mais uma vez, mas agora mais sutilmente, ela é encorajada a ser para os homens.

PISTAS DAS DISCIPLINAS SOBRE HETERORRELAÇÕES: BIOLOGISMOS 

Argumentos da biologia têm-se provado muito poderosos na manutenção das heterorrelações e, por conseguinte, na supressão do Gin/afeto. Entre os argumentos biológicos mais comumente aceitos para a primazia das heterorrelações estão as teorias da complementaridade biológica. Tais teorias mantêm que a natureza fez a mulher para o homem, o que está evidente na correspondência anatômica de seus órgãos sexuais – em uma linguagem mais reducionista, “a vagina foi feita para o pênis”, ou mais explicitamente, “o buraco foi feito para o pau”. Este “argumento”, de maneira “expandida”, mantém que que a extensão lógica da complementaridade heterossexual é a complementaridade heterorrelacional em todas as esferas. Portanto, a construção anatômica na genitália, de acordo com esta maneira de pensar, aponta para a “natural” necessidade de heterorrelações. 

Não há, certamente, qualquer fato puramente natural sobre a heterossexualidade, bem como sua versão expandida, a heterorrealidade, que possa ser defendido do ponto de vista da complementaridade biológica. Pode ser significativo para algumas pessoas e para alguns propósitos que o pênis “caiba” na vagina, bem como é significativo, para algumas pessoas e para alguns propósitos, que também “caiba” em outro lugar! Não é necessário que todo pênis “caiba” em toda vagina, e nem que esse “caber” governe a existência pessoal e social, tornando-as heterorrelações. Estas, que derivam sua lógica de tal biologismo, equaciona significado a necessidade. De um ponto de vista Gin/afetivo, é igualmente significativo o testemunho de diversas mulheres: o contato inicial e continuado com o intercurso heterossexual estabelece o “fato” de que, no nível anatômico mesmo, muitos pênis não “cabem” tão precisa e gentilmente em muitas vaginas, e aquilo que chamamos de “natural” é conseguido através de sofrimento repetido, acompanhado de trauma, para as mulheres envolvidas. Em seu capítulo “A iniciação sexual”, em The Second Sex, Simone de Beauvoir relata muitos casos de iniciação sexual para meninas e mulheres, nos quais “a defloração foi uma espécie de estupro… que podia ser dolorosa, mesmo quando voluntária”66. De Beauvoir cita Isadora Duncan:

“Eu confesso que minhas primeiras impressões foram um medo aterrador e uma dor excruciante, como se alguém houvesse arrancado vários dentes ao mesmo tempo… No dia seguinte, o que foi para mim apenas uma experiência dolorida continuou entre meus choros e lágrimas martirizados. Eu senti como se estivesse sendo arregaçada.”67 

De Beauvoir comenta: “Em pouco tempo ela passou a gostar, primeiro com seu amante, depois com outros, do arrebatamento que ela liricamente descreve”68. Relações heterossexuais, na primeira descrição, dificilmente parece natural, isto é, ordenada pela natureza, a não ser que o repetido sofrimento seja também algo natural e ordenado pela natureza. Mais ainda, como todo o resto do desenvolvimento da feminilidade forjada pelo homem, o suposto “arrebatamento” da heterossexualidade e das heterorrelações é aprendido. Para muitas mulheres, ele nunca é experimentado, e outras fingem senti-lo. 

Uma fonte tão atípica quanto Bruno Bettelheim captura bem o processo de desenvolvimento através do qual repulsa e sofrimento são transformados em arrebatamento e prazer, em sua interpretação do conto de fadas “O rei sapo”.

O conto de fadas, concordando com a criança que o sapo (ou qualquer outra criatura) é nojento, ganha sua confiança, criando, portanto, um vínculo com ele [sic], alimentando a crença de que… no tempo certo, o sapo nojento vai se revelar o mais charmoso companheiro para a vida. E esta mensagem é entregue sem jamais mencionar algo sexual.69

Infelizmente, Bettelheim escolhe o sapo para representar um animal “nojento” para a criança. Animais são sempre destacados por suas caricaturas negativas, opondo-se aos “charmosos” reis e príncipes humanos nos contos de fada hetero-narrativos. Isto posto, todavia, a interpretação de Bettelheim é um paradigma apto para a institucionalização das heterorrelações, isto é, para todos os processos pelos quais a originalidade das mulheres se torna obliterada, e a heterorrelação se consolida. 

Phyllis Chesler nos oferece outro tipo de evidência, expondo a mentira da heterossexualdade enquanto um arrebatamento natural: 

Casos e histórias clínicas, psicológicas, bem como estudos sociológicos – e nossas próprias vidas – têm documentado a extensão da falta de orgasmos femininos para as mulheres do século XX: ou a falta do tipo “certo” de orgasmos; ou o fato de que não termos tido orgasmo algum, com facilidade nem frequência; ou tendo orgasmos estritamente dentro de monogamias românticas, prostituição legalizada, e auto-degradante; ou apenas depois de um “aprendizado” muito dedicado”.70

O relatório Hite é outro testemunho da falta de satisfação sexual e emocional em relações heterossexuais, e também do fato de que não há nada “natural” em toda a gama de heterorrelações71. E, mais recentemente, Ann Landers reporta que sessenta mil mulheres escreveram cartas para relatar sua insatisfação sexual, e que “de longe, elas preferem ser abraçadas e tratadas com ternura do que ter intercurso com homens”72. Muitas dessas mulheres, 40% mais novas que 40 anos, escreveram cartas enfáticas, contando com 3 ou 4 páginas, quando o questionário de Landers perguntava apenas perguntas de sim ou não. “Muitas delas escreveram ao longo dos anos para dizer que elas estão fartas, que isso é um fardo, uma chateação, insatisfatório… não há qualquer tipo de retorno”73

O argumento “natural” persiste para heterossexualidade e heterorrealidade porque o intercurso heterossexual está envolvido na reprodução na espécie. Portanto, o argumento da complementaridade genital é propulsionado pelo potencial ou real produto das relações pênis-vagina. Não apenas a heterossexualidade mas uma gama ampliada de heterorrelações , como a família tradicional, a divisão sexual do trabalho, e a criação de crianças definida por gêneros, são racionalizadas enquanto necessárias para a continuação e preservação da raça humana. 

A reprodução pode ser obtida de inúmeras formas sem, com isso, ordenar a heterossexualidade como normativa, natural, inescapável, e sem orquestrar heterorrelações como um acompanhamento inevitável deste suposto fato biológico. A reprodução pode ocorrer através no intercurso homem/mulher “normal” numa variedade de contextos que não presumam a contínua heterossexualidade ou contínuas heterorrelações fora da relação reprodutiva. A inseminação artificial é possível, embora seu uso no domínio médico tenha sido amplamente restrito a mulheres heterossexuais casadas. Nestes casos, as heterorrelações, especialmente as que se dão no interior dos casamentos, são usadas para naturalizar e normatizar os métodos de reprodução artificiais, e não o contrário. As novas tecnologias de reprodução são outra forma de procriação que desafiam a “factividade” biológica da heterossexualidade reprodutiva, embora os proponentes que desejam justificar que esse uso da tecnologia reprodutiva, como a reprodução in vitro, continue confinada a casais heterossexuais casados. Esses defensores vão ainda mais longe, alegando que tais tecnologias podem inclusive estabilizar casamentos prejudicados ou ameaçados pela infertilidade74

Finalmente, se a complementaridade macho-fêmea dos órgãos e da capacidade reprodutiva são os principais argumentos em favor da manutenção e patrocínio das heterorrelações, a questão que deve ser levantada é por que tantas ações fisicamente abusivas são necessárias para reforçar o estado “natural” das heterorrelações. Alguma coisa tão natural nunca deveria ser imposta a tantas mulheres.


NOTAS DE RODAPÉ

  1. Capítulo 1 de RAYMOND, Janice. A Passion for Friends: Toward A Philosophy of Female Affection. Melbourne: Spinifex Press, 2001. Tradução: @taticafeminista ↩︎
  2.  Emilie Durkheim, The division of labor in society, trans. Goerge Simpson (New York: Free Press, 1933), p.61.
    ↩︎
  3. Otto Weininger, Sex and Character (New York: Putnam, 1975), p.299.
    ↩︎
  4. Paula Giddings, When and where I enter: The Impact Of Black Women on Race and Sex in America (New York: Morrow, 1984), p.108
    ↩︎
  5. Idem, p.109 ↩︎
  6. Idem, p.11
    ↩︎
  7. Agradeço a Pat Hynes, que em primeiro lugar atentou para este padrão de “linhagem profissional”. 
    Susan Browen e Cornelia Clapp originaram a linha de zoólogas em Mt. Holyoke College, que durou de 1870 a 1961. 
    ↩︎
  8. Ver Margaret Rossiter, Women Scientists in America: Struggles and Strategies to 1940 (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1984), pp 18-22. Rossiter dá uma excessiva visibilidade e significância a cientistas casadas, descartando que suas próprias estatísticas apontam que apenas uma pequena fração destas mulheres se casou. O mais lógico seria que o foco de seus estudos recaísse na maioria dos casos – as mulheres solteiras. Perguntas importantes poderiam ser: quais foram as estratégias mobilizadas por tais mulheres para sobreviver e ser bem-sucedidas em suas profissões? Com quem colaboraram? Com quem se aposentaram? Tiveram mulheres como colegas, amigas e/ou amantes que afetaram suas carreiras? Em lugar disso, Rossiter devota páginas para gráficos e estatísticas documentando com quem foram casadas as poucas dessas mulheres que contraíram matrimônio, e em quais ciências se concentraram estas mulheres. Na tabela “Casais notáveis da ciência anterior a 1940”, Rossiter lista os casais pela área de auação da mulher. É algo irônico ver Ruth Benedict e Margaret Mead listadas com seus respectivos maridos cientistas, mas não listadas uma com a outra, uma relação que certamente durou mais que o casamento de Benedict com Stanley, inclusive durando mais que os três casamentos de Mead somados. O livro de Rossiter é anterior à biografia de Mead escrita por Mary Catherine Bateson e Jane Howard, mas esta informação certamente era sabida por muitos antes da publicação de ambos os trabalhos, podendo ter sido investigada e considerada com a mesma atenção que Rossiter dispensa às relações conjugais das cientistas. Ver especialmente pp.141-43 ↩︎
  9. Ver Edward Hyams, Soil and Civilization (New York: Harper Colophon, 1976), esp 210-12. ↩︎
  10. Ver, por exemplo, Robert Briffault, The mothers: A Study of the Origins of Sentiments and Institutions, 3 volumes. (New York: Macmillan, 1927); e Lewis Henry Morgan, Ancient Society (New York: World, 1963). ↩︎
  11. Ver H. J. Mozans, Woman in Science (Cambridge: MIT press, 1974), eps. capítulos 1-9. ↩︎
  12. Mozans, Woman in Science, capítulo 10. ↩︎
  13.  Raymond Williams, “Culture and Civilization”, The Encyclopedia of Philosophy (reimpressão, New York: Macmillan – The Free Press, 1972) 2: 273.
    ↩︎
  14.  A cultura das mulheres não tem sido valorizada ou exaltada como diversas tradições étnicas e raciais. Tentativas feministas recentes de fazê-lo frequentemente enfrentaram desprezo e têm sido chamadas de “feminismo cultural”. ↩︎
  15. Debra Seidman, “The voices of women surviving: The Holocaust, Women and resistance” (Division III thesis, Hampshire College, 1982), p.87. ↩︎
  16.  Seidman, “Voices”, p.96. ↩︎
  17. Seidman, “Voices”, p.89. ↩︎
  18.  Seidman, “Voices”, p.86. ↩︎
  19.  Seidman. “Voices”, pp.71-72. 
    ↩︎
  20. Seidman, “Voices”, pp102-3. ↩︎
  21. Seidman, “Voices”, pp.103-4 ↩︎
  22. Alice Walker, A cor púrpura (New York: Harcourt, 1982), p.5. ↩︎
  23. Walker, The color purple, p.9. ↩︎
  24. Walker, The color purple, p.108. ↩︎
  25. Deve estar evidente ao longo de todo este trabalho, porém reitero em termos diretos, que a frase mulher original não é usada de nenhuma maneira estática ontológica ou historicamente, nem aloca a amizade feminina em uma instância biológica. As mulheres originais criam sua própria originalidade. Tal originalidade é um estado continuado de desenvolvimento do ser, não algo que mulheres alcancem de repente em algum momento iluminado de verdade feminista. ↩︎
  26.  Conversa com Anne Dallenbaugh, Gloucester, Mass., Outubro de 1980. ↩︎
  27. Ver Carroll Smith-Rosenberg, “The Female World of Love and Ritual: Relations Between Women in Nineteenth Century America”, Signs: Journal of Women in Culture and Society 1 (Autumn 1975): 1-29
    ↩︎
  28. Toni Morrison, Sula (New York: Knopf, 1974).. ↩︎
  29. Morrison, Sula, p.174. ↩︎
  30.  Ver Nina Auerbach, Communities of Women: An Idea in Fiction (Cambridge: Harvard University Press, 1978), p.63. ↩︎
  31. FOUCAULT, The Archeology of knowledge. ↩︎
  32. SPENDER, Dale. Women of ideas and what men have done to them. Londres: Routledge, 1982. p.12 ↩︎
  33. Conversações com Pat Hynes, Gloucester, Mass., Novembro de 1980. ↩︎
  34. FOUCAULT, Language. p.171 ↩︎
  35. FOUCAULT, Language. pp.60-61 ↩︎
  36. FOUCAULT Language. p.45 ↩︎
  37. DWORKIN, Andrea. Pornography: men possessing women. New York: Perigee, 1981. p.70 ↩︎
  38.  FOUCAULT Language. p.45 ↩︎
  39. Sigmund Freud, “Some Psychological Consequences of the Anatomical Distinctions Between the Sexes”, Collected Papers 5:190 ↩︎
  40. Freud, “Some Psychological consequences”, p.193. ↩︎
  41. Freud, “On the sexual theories of children”, Collected papers 5:190. ↩︎
  42.  Freud, “The Transformations of Puberty”, Collected Papers, 613. ↩︎
  43. Dorothy Dinnerstein, The Mermaid and the Minotaur (New York: Harper, 1976), p.44 ↩︎
  44. Dinnerstein, Mermaid, p.46. ↩︎
  45. Dinnerstein, Mermaid. p.65. ↩︎
  46. Dinnerstein, Mermaid. p.225. ↩︎
  47.  Helene Deutsch, The Psychology of Women, citada por Nancy Chodorow, The Reproduction of Mothering (Berkeley: University of California Press, 1978), p.191. ↩︎
  48. Chodorow, Reproduction, p.193. ↩︎
  49. Chodorow, Reproduction, p.140. ↩︎
  50. Chodorow, Reproduction, p.140. ↩︎
  51. Chodorow interpreta Freud neste aspecto. Citando seu ensaio “Sexualidade feminina” (1931), ela diz: “Freud discorre sobre a maneira pela qual mulheres procuram, em suas relações heterossexuais, recapturar sua relação com suas mães. Ele sugere que na ‘mudança de objeto’ das mulheres, da mãe para o pai, a mãe permanece na condição de primordial objeto interno, de forma que impõem em suas relações com seus pais, e mais tarde com outros homens, as questões que as preocupam em suas relações com suas mães. Elas procuram, nas relações com os homens, gratificações que querem das mulheres”. Reproduction, pp.194-95
    ↩︎
  52. Chodorow, Reproduction, p.95. ↩︎
  53. Chodorow, Reproduction, p.195. Alongando-me nesta questão, podemos perguntar quantas mulheres realmente conhecem os homens que supostamente amam. Esta falta de conhecimento real é colocada em alto relevo pelas observações de Beauvoir sobre a insinceridade do que chamo heterorrelações: “Mulher e homem – mesmo marido e mulher – estão, em algum grau, interpretando papéis um perante o outro, e a mulher, em particular, interpreta o papel que o homem impõe e requer dela; virtude acima de qualquer suspeita, charme, coquetismo, infantilidade, ou austeridade. Nunca na presença do marido ou amante ela pode sentir-se completamente ela mesma”. Simone de Beauvoir, The Second Sex, tradução e edição H. M. Parshley (New York: Bantam, 1952), P.394. ↩︎
  54.  Chodorow, Reproduction. p.198. ↩︎
  55. Chodorow, Reproduction. p.197. ↩︎
  56. Dworkin, Pornography, p.151. ↩︎
  57. Chodorow, Reproduction. p.200. ↩︎
  58. Chodorow, Reproduction. p.200. ↩︎
  59. Adrienne Rich, “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, Signs: Journal of Women in Culture and Society 5 (1980): 648. ↩︎
  60.  Chodorow, Reproduction. pp.203-4. ↩︎
  61. Chodorow, Reproduction, p.208. ↩︎
  62. Chodorow: Reproduction, p.218.
    ↩︎
  63. Dinnerstein, Mermaid, pp.148-49. ↩︎
  64. Dado que a maior parte dos homens não tem ideia ou treinamento consistente e responsável para a maternagem, as mulheres, abdicando da primazia de seus laços com os filhos, poderiam se deparar com a necessidade de se tornar “mães” para que os homens pudessem aprender a sê-lo. ↩︎
  65. Uso as palavras “visível” e “imediata” propositadamente. Mães, enquanto conduítes visíveis e imediatas das heterorrelações, não são conduítes primários. Chodorow observa: “… tanto do ponto de vista psicanalista e clínico quanto do social psicológico… os pais geralmente tipificam seus filhos segunbdo o sexo com mais consciência que as mães, acompanhando os papéis de gênero… eles encorajam cmportamento heterossexual feminino em filhas jovens.” Reproduction, p.118. Todavia, o encorajamento paterno às heterorrelações é frequentemente menos visível que o das mães, porque o pai é mais distante e menos visível enquanto pai. ↩︎
  66. De Beauvoir, Second Sex, p.360. ↩︎
  67. Duncan, como citada por Beauvoir, Second Sex, p.360. ↩︎
  68. De Beauvoir, Second Sex, p.360. ↩︎
  69. Bruno Bettelheim, The uses of Enchantment (New York: Knopf, 1976), p.219. ↩︎
  70. Phyllis Chesler, Women and Madness (New York: Doubledar, 1972), pp. 46-47. ↩︎
  71.  Shere Hite, The Hite Report: A Nationwide Study of Female Sexuality (New York: Dell, 1981). ↩︎
  72. “60,000 Women Tell Ann Landers Sex is Not Fulfilling”, Greenfield Recorder, 15 de janeiro de 1985, p.1. ↩︎
  73. “60,000 Women”, p.12. É claro, os “experts” responderam dizendo que o questionário de Landers era “perigoso”, “tendencioso” e ameaçava “nos levar de volta à era Vitoriana”. Ver “Sex Experts: Landers Reader Poll Dangerous”, Greenfield Recorder, 16 de janeiro de 1985, p.8. 
    ↩︎
  74. Não advogo em favor do desenvolvimento ou uso destas tecnologias. Em outros escritos teóricos e políticos, me opus a estes desenvolvimentos e usos. Em vez disso, estou desafiando a “naturalidade” ou biologismo da assim-chamada argumentação natural-reprodutiva que, acredito, é repelida por tais tecnologias.
    ↩︎
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Traduções

Terapia e como ela minimiza a prática do Feminismo Radical

Por Celia Kitzinger, traduzido livremente de Radically Speaking.


Uma das grandes percepções do feminismo da segunda onda foi o reconhecimento de que “o pessoal é político”, uma frase cunhada pela primeira vez por Carol Hanisch em 1971. Com isso, queríamos dizer que todas as nossas atividades pequenas, pessoais e do dia a dia tinham um significado político, quer fosse intencional ou não. Aspectos de nossas vidas que antes eram vistos como puramente “pessoais” – trabalho doméstico, sexo, relacionamentos com filhos e pais, mães, irmãs e amantes – eram moldados e influenciados pelo contexto social mais amplo.

O slogan… significava, por exemplo, que quando uma mulher é obrigada a ter relações sexuais com o marido, isso é um ato político, pois reflete as dinâmicas de poder no relacionamento: as esposas são propriedade a que os maridos têm total acesso.

(Rowland: 1984, p. 5)

Uma compreensão feminista de “política” significava desafiar a definição masculina de política como algo externo (ligado a governos, leis, protestos com bandeiras e marchas) em direção a uma compreensão da política como algo central para nosso ser, afetando nossos pensamentos, emoções e as escolhas aparentemente triviais do dia a dia sobre como vivemos. O feminismo significava tratar o que havia sido percebido como questões meramente “pessoais” como preocupações políticas.

Este artigo explora a forma como o slogan “o pessoal é político” é utilizado na escrita psicológica feminista, com referência especial à terapia. O crescimento das terapias feministas (incluindo livros de autoajuda, co-aconselhamento, grupos de doze passos e assim por diante, bem como terapia individual) foi rápido e atraiu críticas de muitas feministas preocupadas com suas implicações políticas (Cardea: 1985; Hoagland: 1988; Tallen: 1990a e b; Perkins: 1991). No entanto, muitas psicólogas feministas (tanto pesquisadoras quanto profissionais) afirmam explicitamente sua crença de que “o pessoal é político”.

Esse princípio tem “prevalecido como um pilar fundamental da terapia feminista” (Gilbert: 1980), e metodologias qualitativas muitas vezes têm sido adotadas pelas feministas precisamente porque permitem acesso à experiência “pessoal”, cujas implicações “políticas” podem ser extraídas por meio da pesquisa. Seria incomum encontrar uma psicóloga feminista que negasse acreditar que “o pessoal é político”, apesar da existência de críticas feministas a algumas de suas implicações (como a universalização falsa da experiência das mulheres, por exemplo, veja hooks: 1984, e a tendência irônica de algumas mulheres de perceberem as categorias “pessoal” e “político” do slogan como polarizadas e em competição, veja David: 1992). No entanto, a concordância generalizada com esse slogan entre psicólogas feministas esconde uma variedade de interpretações. Este artigo ilustra quatro dessas interpretações psicológicas divergentes de “o pessoal é político” e argumenta que, longe de politizar o pessoal, a psicologia personaliza o político, concentra a atenção na “revolução interna”, foca em “validar a experiência das mulheres” em detrimento da análise política dessa experiência e busca “empoderar” as mulheres, em vez de conceder poder político real.

Duas ressalvas antes de entrar em meu argumento principal

Primeiro, este artigo não pretende apresentar uma visão abrangente de toda a psicologia feminista – uma área imensa e em crescimento. Além disso, ao contrário de outras críticas (por exemplo, Jackson: 1983; Sternhall: 1992; Tallen: 1990a e b), este artigo não é um ataque a uma marca específica de psicologia, nem uma discussão de dentro da disciplina (por exemplo, Burack: 1992). Pelo contrário, seu objetivo é estar fora do quadro disciplinar da psicologia e chamar a atenção para os problemas políticos inerentes ao próprio conceito de “psicologia feminista”.

Segundo, “não parece justo”, disse um árbitro, “zombar das instituições que ajudam as mulheres a viverem suas vidas com menos dor.” Muitas mulheres foram ajudadas pela terapia. Já ouvi mulheres o suficiente dizerem “ela salvou minha vida” para me sentir quase culpada por desafiar a psicologia. Muitas mulheres dizem que foi apenas com a ajuda da terapia que elas se tornaram capazes de sair de um relacionamento abusivo, livrar-se de medos incapacitantes e ansiedades, ou parar o abuso de drogas. Qualquer coisa que salve a vida das mulheres, qualquer coisa que as deixe mais felizes, deve ser feminista – não é mesmo? Bem, não. É possível remendar as mulheres e capacitá-las a fazer mudanças em suas vidas sem nunca abordar as questões políticas subjacentes que causam esses problemas pessoais em primeiro lugar. “Eu costumava reclamar com meu marido para fazer o trabalho doméstico e nada acontecia”, disse uma mulher de Minnesota a Harrit Lerner (1990, p. 15); “agora estou em um programa intensivo de tratamento para co-dependência e estou me afirmando muito. Meu marido está mais prestativo porque ele sabe que sou codependente e apoia minha recuperação”. Para essa mulher, a explicação psicológica (“sou codependente e preciso me recuperar”) foi mais bem-sucedida do que a explicação feminista (o trabalho das mulheres como trabalho doméstico não remunerado para os homens, Mainardi: 1970) em criar mudanças. Com a ideia de si mesma como doente, ela conseguiu fazê-lo fazer o trabalho doméstico. Como Carol Tavris (1992) diz,

as mulheres recebem muito mais simpatia e apoio quando definem seus problemas em termos médicos ou psicológicos do que em termos políticos.

A explicação da codependência esconde o que as feministas veem como a verdadeira causa de nossos problemas – a supremacia masculina. Em vez disso, somos informadas de que a causa está em nossa própria “codependência”. Isso não é feminismo. Embora seja claro que “muitas mulheres tenham sido ajudadas pela terapia”, também é claro que muitas mulheres foram ajudadas e se sentem melhores consigo mesmas como resultado de (por exemplo) fazer dieta, comprar roupas novas ou entrar em um culto religioso. Historicamente, como aponta Bette Tallen (1990a, p. 390), as mulheres têm “procurado refúgio em instituições como a igreja católica ou o exército. Mas isso significa que essas são instituições que devem ser plenamente abraçadas pelo feminismo?” As razões por trás da corrida para a psicologia e os benefícios que ela oferece (bem como o preço que ela exige) são discutidos com mais detalhes em outro lugar (Kitzinger e Perkins: 1993). Neste artigo, foco mais estreitamente nas interpretações psicológicas do slogan “o pessoal é político” e nas implicações disso para o feminismo.

A personalização do Político

Nessa interpretação de “o pessoal é político”, em vez de politizar o “pessoal”, o “político” é personalizado. Preocupações políticas, políticas nacionais e internacionais, e grandes desastres sociais, econômicos e ecológicos são reduzidos a questões psicológicas pessoais e individuais.

Essa tradução completa do político para o pessoal é característica não apenas da psicologia feminista, mas da psicologia em geral. Nos EUA, um grupo de vinte e dois profissionais gastou três anos e $73.500 para concluir que a falta de autoestima é a causa raiz de “muitos dos principais males sociais que nos afligem hoje” (The Guardian: 13 de abril de 1990). A violência sexual contra mulheres é abordada criando sessões de treinamento de habilidades sociais e gerenciamento da raiva para estupradores (agora disponíveis em sessenta prisões na Inglaterra e no País de Gales, The Guardian: 21 de maio de 1991), e o racismo se torna algo para desabafar em uma oficina de aconselhamento (Green: 1987). Muitas pessoas agora pensam em questões sociais e políticas importantes em termos psicológicos.

Na verdade, toda a vida pode ser vista como um grande exercício psicológico. Lá em 1977, Judi Chamberlin apontou que hospitais psiquiátricos tendem a usar o termo “terapia” para descrever absolutamente tudo o que acontece dentro deles:

… fazer as camas e varrer o chão podem ser chamados de “terapia industrial”, ir a uma dança ou filme é “terapia recreativa”, drogar os pacientes é “quimioterapia” e assim por diante. Hospitais mentais de custódia, que oferecem muito pouco tratamento, frequentemente fazem referência à “terapia de ambiente”, como se o próprio ar do hospital fosse de alguma forma curativo .

(1977, p. 131)

Uma década mais tarde, com a principal clientela da psicologia não mais nos hospitais mentais, mas na comunidade, tudo em nossas vidas é traduzido para a “terapia”. Ler livros se torna “biblioterapia”; escrever (Wenz: 1988), manter um diário (Hagan: 1988) e fazer arte são todos atribuídos a funções terapêuticas. Até mesmo tirar fotos é agora uma técnica psicológica: a “fototerapeuta” feminista Jo Spence se baseou nas teorias psicanalíticas de Alice Miller (1987) e defende a cura (entre outras “feridas”), “a ferida da vergonha de classe” por meio da fotografia. E embora a leitura, a escrita e a fotografia sejam atividades comuns, em sua manifestação terapêutica elas exigem orientação especializada: “Eu não acho que as pessoas possam fazer isso com amigos ou sozinhas… elas nunca terão a segurança de trabalhar sozinhas como terão trabalhando com um terapeuta, porque elas encontrarão seus próprios bloqueios e não conseguirão superá-los” (Spence: 1990, p. 39). Embora não queiramos negar que a leitura, a escrita, a arte, a fotografia, entre outros, possam fazer algumas pessoas se sentirem melhor consigo mesmas, é perturbador encontrar tais atividades sendo avaliadas em termos puramente psicológicos. Como feministas, costumávamos ler para aprender mais sobre a história e a cultura feministas; escrever e pintar para nos comunicarmos umas com as outras. Essas eram atividades sociais direcionadas para fora; agora elas são tratadas como explorações do eu. O sucesso do que fazemos é avaliado em termos de como nos faz sentir. Condições sociais são avaliadas em termos de como a vida interior dos indivíduos responde a elas. Compromissos políticos e éticos são julgados pelo grau em que melhoram ou prejudicam nosso senso individual de bem-estar.

As terapeutas feministas agora “prescrevem” atividades políticas para suas clientes – não por seu valor político inerente, mas como remédios milagrosos. As “Diretrizes para a Terapia Feminista” oferecidas pela terapeuta Marylou Butler no Manual de Terapia Feminista (1985) incluem a sugestão de que as terapeutas feministas devem “encaminhar para centros de mulheres, grupos de conscientização e organizações feministas, quando isso seria terapêutico para as clientes” (p. 37). A Conscientização – a prática de tornar o pessoal político – nunca foi destinada a ser “terapia” (Sarachild: 1978). Mulheres que participam do ativismo feminista com o objetivo de se sentirem melhores consigo mesmas provavelmente ficarão desapontadas. Ao enviar mulheres para grupos feministas, cujos objetivos primários são ativistas e não terapêuticos, as terapeutas estão fazendo um desserviço tanto à suas clientes quanto ao feminismo.

Nossos relacionamentos também são considerados não em termos de suas implicações políticas, mas sim em termos de suas funções terapêuticas. A terapia costumava nomear o que acontecia entre um terapeuta e um cliente. Agora, como Bonnie Mann aponta, isso descreve com precisão o que acontece entre muitas mulheres em interações diárias: “qualquer atividade organizada por mulheres é encaixada em uma estrutura terapêutica. Seu valor é determinado com base em se é ou não ‘curativo'”:

Eu frequentemente vi uma conversa honesta se transformar em uma interação terapêutica diante dos meus olhos. Por exemplo: eu menciono algo que me incomodou, machucou ou foi difícil para mim de alguma forma. Algo muda. Vejo a mulher com quem estou a assumir o papel de amiga de apoio. É como se uma fita se encaixasse em seu cérebro, sua voz muda, posso vê-la começar a me ver de maneira diferente, como uma vítima. Ela começa a recitar as frases: “Isso deve ter sido muito difícil para você”, ou “Isso deve ter sido tão invalidante” ou “O que você acha que precisa para se sentir melhor com isso?” Eu conheço muito bem a fita correspondente que supostamente deve se encaixar em meu próprio cérebro: “Acho que só precisava te dizer o que estava acontecendo comigo”, ou “Ajuda ouvir você dizer isso, parece muito validador”, ou “Acho que só preciso ficar sozinha e me cuidar um pouco”.

(1987, p. 47)

As formas psicológicas de pensamento saíram do consultório do terapeuta, dos grupos de AA e dos livros de autoajuda, dos workshops de experiência e das sessões de renascimento para invadir todos os aspectos de nossas vidas. O político foi completamente personalizado.

A revolução de Dentro para Fora

Outra interpretação comum da máxima “o pessoal é político” no contexto da psicologia feminista é algo assim:

A atividade supostamente “pessoal” da terapia é profundamente política, porque aprender a se sentir melhor sobre nós mesmas, elevar nossa autoestima, aceitar nossas sexualidades e nos reconciliarmos com quem realmente somos – tudo isso são atos políticos em um mundo heteropatriarcal. Com o ódio às mulheres ao nosso redor, é revolucionário nos amarmos, curarmos as feridas do patriarcado e superarmos a autossupressão. Se todos se amassem e se aceitassem, de modo que mulheres (e homens) não projetassem mais uns nos outros seus próprios ódios reprimidos, teríamos uma mudança social real.

Este é um argumento muito comum, recentemente reiterado no livro “Revolução de Dentro para Fora” de Gloria Steinem. Como aponta Carol Sternhall em uma análise crítica, “O objetivo de toda essa psicoterapia moderna e psicodélica não é simplesmente se sentir melhor consigo mesmo – ou melhor, é, porque se sentir melhor com todas as nossas partes agora é a chave para a revolução mundial” (1992, p. 5).

Neste modelo, o “eu” é naturalmente bom, mas precisa ser desenterrado de sob as camadas de opressão internalizada e curado das feridas infligidas por uma sociedade heteropatriarcal. Apesar de suas diferenças evidentes em outras áreas, a terapeuta feminista lésbica Laura Brown (1992) compartilha a noção de “verdadeiro eu” de Gloria Steinem. Ela escreve, por exemplo, sobre a “luta da cliente para recuperar seu eu das armadilhas do patriarcado” (pp. 241-42), ao “descascar as camadas do treinamento patriarcal” (p. 242) e “curar as feridas da infância” (p. 245); na terapia com Laura Brown, uma mulher é ajudada a “se conhecer” (p. 246), a ir além de seu “eu acomodado” (p. 243) e descobrir seu “verdadeiro eu” (p. 243) (ou “eu interior fingido” p. 245) e viver “em harmonia consigo mesma” (p. 243). Na maioria da psicologia feminista, esse eu interior é caracterizado como uma linda e espontânea menininha. Entrar em contato e nutri-la é o primeiro passo para criar uma mudança social: é uma “revolução de dentro para fora”.

Esse conjunto de ideias tem raízes no “movimento de crescimento” dos anos 1960, que enfatizava a liberação pessoal e o “potencial humano”. Naquela época, a imagem central era de uma “sociedade doente” vagamente definida.

“O Sistema” foi envenenado pelo seu materialismo, consumismo e falta de preocupação com o indivíduo. Essas coisas foram internalizadas pelas pessoas; mas sob as camadas de “porcaria” em cada pessoa repousava um “eu natural” essencial que poderia ser alcançado por meio de várias técnicas terapêuticas. O que isso sugere é que a mudança revolucionária não é algo que precisa ser construído, criado ou inventado com outras pessoas, mas que é de alguma forma natural, adormecido em cada um de nós individualmente e só precisa ser liberado.

(Scott e Payne: 1984, p. 22)

A absurdidade de levar esse argumento de “revolução de dentro para fora” a sua conclusão lógica é ilustrada por um projeto, descendente de um programa terapêutico popular, que propôs acabar com a fome. Não, como poderia parecer sensato, por meio da organização de cozinhas comunitárias, distribuição de pacotes de comida para os famintos, campanhas para que países empobrecidos fossem liberados de suas dívidas nacionais ou patrocínio de cooperativas agrícolas. Em vez disso, oferece o simples expediente de fazer indivíduos assinarem cartões dizendo que eles estão “dispostos a serem responsáveis por fazer do fim da fome uma ideia cujo tempo chegou.” Quando um número não revelado de pessoas tiver assinado esses cartões, um “contexto” terá sido criado em que a fome de alguma forma acabará (citado em Zilbergeld: 1983, pp. 5–6). Claro, Laura Brown, assim como muitas outras terapeutas feministas, provavelmente também quereria desafiar a obscenidade desse projeto. No entanto, a lógica de seus próprios argumentos permite precisamente esse tipo de interpretação.

Tais abordagens estão muito distantes da minha própria compreensão de “o pessoal é político”. Eu não acredito que a mudança social aconteça de dentro para fora. Não acredito que as pessoas tenham crianças interiores esperando para serem nutridas, reparentadas, e que sua bondade natural seja liberada para o mundo, sob as camadas de opressão internalizada. Pelo contrário, como argumentei em outros lugares (Kitzinger: 1987; Kitzinger e Perkins: 1993), nossos eu interiores são construídos pelos contextos sociais e políticos em que vivemos e, se quisermos alterar o comportamento das pessoas, é muito mais eficaz mudar o ambiente do que psicologizá-las individualmente. No entanto, como Sarah Scott e Tracey Payne (1984, p. 24) apontam, “quando se trata de fazer terapia, é essencial que cada técnica seja vista pelas mulheres como seus ‘verdadeiros’ e ‘sociais’ eus como distintos.” Isso significa que o processo de tomar decisões éticas e políticas sobre nossas vidas é reduzido à suposta “descoberta” de nossos verdadeiros eus, a honra de nossos “desejos do coração”. A compreensão política de nossos pensamentos e sentimentos é ocultada, e nossas escolhas éticas são moldadas em um quadro terapêutico em vez de político. Um conjunto de condições sociais repressivas tornou a vida difícil para mulheres e lésbicas. No entanto, a solução da “revolução de dentro para fora” é melhorar os indivíduos, em vez de mudar as condições.

A psicologia sugere que só depois de se curar você mesmo, você pode começar a curar o mundo. Discordo disso. As pessoas não precisam ser seres humanos perfeitamente funcionais e auto-realizados para criar mudanças sociais. Pense nas feministas que você conhece que foram influentes no mundo e que trabalharam com afinco e eficácia pela justiça social: Todas elas se amaram e se aceitaram? A grande maioria daqueles admirados por seu trabalho político continua lutando pela mudança não porque alcançaram a autorrealização (nem para atingi-la), mas por causa de seus compromissos éticos e políticos, e muitas vezes apesar de seus próprios medos, dúvidas pessoais, angústias pessoais e auto ódio. Aqueles que trabalham para uma “revolução externa” muitas vezes não estão mais “em contato com seus verdadeiros eu” do que aqueles fixados na mudança interna: essa observação não deve ser usada (como às vezes é) para desacreditar seu ativismo, mas sim para demonstrar que a ação política é uma opção para todos nós, independentemente do nosso estado de bem-estar psicológico. Espere até que seu mundo interno esteja resolvido antes de direcionar sua atenção para o externo, e você está, de fato, “esperando pela revolução” (Brown: 1992).

Validar a Experiência das Mulheres

Uma terceira versão psicológica de “o pessoal é político”, aplicada à terapia, é mais ou menos assim:

A política se desenvolve a partir da experiência pessoal. O feminismo deriva das próprias histórias de vida das mulheres e deve refletir e validar essas histórias. As realidades das mulheres sempre foram ignoradas, negadas ou invalidadas sob o heteropatriarcado; a terapia serve para testemunhar, afirmar e validar a experiência das mulheres. Como tal, ela torna o pessoal político.

A política da terapia, de acordo com essa abordagem, não envolve mais do que “validar”, “respeitar”, “honrar”, “celebrar”, “afirmar”, “prestar atenção” ou “testemunhar” (essas palavras são geralmente usadas de forma intercambiável) a “experiência” ou “realidade” de outra mulher.

Esse processo de “validação” supostamente tem enormes implicações: “Quando honramos nossos clientes, eles se transformam” (Hill: 1990, p. 56).

Obviamente, faz muito sentido nos ouvirmos e estarmos dispostas a entender o significado da experiência de outras mulheres. Costumávamos fazer isso em Grupos de Conscientização, e agora fazemos isso na terapia. Por ter sido transformada em uma atividade terapêutica, ela agora carrega todos os riscos de abuso de poder endêmicos ao empreendimento terapêutico (Kitzinger e Perkins: 1993, capítulo 3; Silveira: 1985). Em particular, os terapeutas são seletivos sobre quais experiências irão ou não validar na terapia. Aquelas emoções e crenças de uma cliente que são mais similares às do terapeuta são “validadas”; as outras são mais ou menos sutilmente “invalidadas”.

Poucas terapeutas feministas, por exemplo, irão validar sem críticas uma sobrevivente de abuso sexual infantil que fala sobre ser a culpada pelo estupro na infância devido ao seu comportamento sedutor; em vez disso, é provável que lhe seja oferecida uma análise sobre a forma como a culpabilização da vítima opera sob o heteropatriarcado. Da mesma forma, poucas terapeutas feministas validarão a experiência de uma mulher que diz estar doente e pervertida por ser lésbica: em vez disso, como a própria Laura Brown (1992) argumenta, seus “pensamentos disfuncionais” (p. 243) serão questionados e a terapia será direcionada para modificá-los para a crença de que “o patriarcado ensina que o lesbianismo é mal como um meio de controlar socialmente todas as mulheres e reservar recursos emocionais para homens e instituições dominantes (uma análise que ofereci, em várias formas, para mulheres que questionavam em voz alta em meu consultório por que se odeiam tanto por serem lésbicas)” (Brown: 1992, p. 249). Embora afirmem “validar” todas as realidades das mulheres, na verdade, apenas um subconjunto, consistindo das realidades com as quais o terapeuta concorda, é aceito como reflexão “verdadeira” da realidade. As outras são “invalidadas”, quer como “cognições defeituosas” (Padesky: 1989) ou como “distorções patriarcais” (Brown: 1992, p. 242).

Em outras palavras, toda essa conversa sobre “validar” e “honrar” a realidade das clientes é um disfarce fino para a moldagem terapêutica da experiência das mulheres em termos das próprias teorias do terapeuta.

De qualquer forma, a “experiência” é sempre percebida por meio de uma estrutura teórica (implícita ou explícita) dentro da qual ganha significado. Sentimentos e emoções não são simplesmente respostas imediatas, não socializadas e auto-autenticadoras. Eles são socialmente construídos e pressupõem certas normas sociais. A “experiência” nunca é “bruta”; ela está embutida em uma teia social de interpretação e reinterpretação. Ao encorajar e perpetuar a noção de “experiência” pura, não corrompida e pré-socializada e emoção natural surgindo de dentro, os terapeutas disfarçaram ou obscureceram as raízes sociais de nossos “eus internos”. Colocar a “experiência” além do debate dessa maneira é profundamente antifeminista precisamente porque nega as fontes políticas da experiência e as torna puramente pessoais. Quando a psicologia simplesmente “valida” emoções específicas, ela as retira de um quadro ético e político.

Empoderamento

Uma quarta interpretação psicológica de “o pessoal é político” se baseia na noção de “empoderamento”. Ela segue mais ou menos assim:

A terapia nos capacita a agir politicamente. Elevar a conscientização pessoal por meio da terapia permite que os indivíduos liberem suas energias psíquicas em direção a uma mudança social criativa. Através da terapia, lésbicas podem adquirir tanto a consciência feminista quanto a autoconfiança para se envolver em ação política. Muitas ativistas políticas radicais feministas são empoderadas a continuar através de seu auto cultivo contínuo na terapia.

Aquelas em terapia muitas vezes usam essa justificativa: de acordo com Angela Johnson (1992, p. 8), a terapia (junto com a escalada) “me dá energia para continuar meu ativismo com renovado entusiasmo.” E as terapeutas concordam. De acordo com a psicóloga clínica Jan Burns (1992, p. 230), escrevendo sobre a psicologia do atendimento à saúde lésbica, “parece intuitivamente razoável que um indivíduo possa preferir se envolver na autoexploração antes de escolher se envolver em ações mais políticas, e pode de fato precisar disso antes de ser capaz de tomar outras medidas”. Laura Brown (1992) diz que muitos de seus clientes “têm muito pouco a contribuir para a luta maior da qual muitos estão desengajados quando os vejo pela primeira vez” (p. 245). Sua cliente, “Ruth”, foi ajudada a entender que a “cura final reside em sua participação em uma mudança cultural, não apenas pessoal” (p. 246) e Laura Brown mostrou a ela como “levar seu processo de cura para uma esfera mais ampla” (p. 245). Como resultado da terapia, suas “energias” foram “liberadas” (p. 245) e ela se tornou uma palestrante, poetisa e professora sobre mulheres e guerra, além de se envolver em ativismo público contra a guerra. Da mesma forma, a psicóloga clínica Sue Holland (1991), em um artigo intitulado “Dos sintomas privados à ação pública”, promove um modelo de terapia no qual o cliente passa de “paciente/vítima ‘doente’ e passivo” no início do tratamento para o “reconhecimento da opressão localizada no ambiente objetivo”, o que leva a um “desejo coletivo de mudança” em que “energias psíquicas podem… ser direcionadas para inimigos estruturais” (p. 59).

De acordo com essa interpretação, o “pessoal” consiste em “energias psíquicas” (nunca claramente definidas) que operam de acordo com um modelo hidráulico. Há uma quantidade fixa de “energia” que pode ser bloqueada, liberada ou redirecionada por outros canais. O “político” é simplesmente um desses “canais”. A terapia pode (e alguns diriam que deve) direcionar a energia feminista ao longo de “canais políticos”. Muitas vezes, é claro, ela não faz isso, e as mulheres permanecem perpetuamente focadas internamente, um problema notado com pesar pelas terapeutas lésbicas/feministas mais radicais. Mas, segundo elas, sua terapia resulta em suas clientes se tornando ativas politicamente.

Longe de incorporar a noção de que “o pessoal é político”, essas ideias dependem de uma separação radical entre os dois. O aspecto “pessoal” da terapia é distinguido do trabalho “político” de participar de marchas, e ao terem separado o “pessoal” e o “político” dessa maneira, os dois são então examinados quanto ao grau de correlação.

O argumento de “empoderamento” ignora totalmente a política da própria terapia. É visto simplesmente como um hobby (como a escalada) ou uma atividade pessoal sem implicações éticas ou políticas em si mesma. Desprovido de significado político intrínseco, é avaliado apenas em termos de suas consequências presumidas para a “política” – definida em termos da velha variedade de bandeira acenando do antigo movimento de esquerda masculino. Se “o pessoal é político”, o próprio processo de fazer terapia é político, e esse processo (não apenas seus resultados alegados) deve ser criticamente avaliado em termos políticos.

Em conclusão, e apesar da frequência com que as terapeutas feministas afirmam rotineiramente que “o pessoal é político”, parece completamente errado afirmar que esse objetivo é um “pilar da terapia feminista” (Gilbert: 1980). Certamente, as noções de “revolução de dentro”, a importância de “validar” a realidade das mulheres e “empoderar” as mulheres para o ativismo político são centrais para o pensamento de muitas psicólogas feministas. Essas ideias sobrepostas e inter-relacionadas estão entrelaçadas em grande parte na teoria e na prática psicológica lésbica/feminista. No entanto, tais noções estão longe da perspectiva radical feminista de que “o pessoal é político” e muitas vezes são interpretadas em contradição direta com essa perspectiva. Muitas vezes, promovem conceitos ingênuos dos mecanismos pelos quais a mudança social é alcançada; envolvem a aceitação acrítica de “verdadeiros sentimentos” e/ou “reinterpretações” manipulativas da vida das mulheres em termos preferidos pelo psicólogo; levam as mulheres a reverter a definições “externas” de política em contraposição ao aspecto “pessoal” da terapia; e nos deixam carentes de linguagem ética e política. Reconhecer que o pessoal realmente é político significa rejeitar a psicologia.

Reconheço que algumas mulheres cuja política eu admiro e respeito não rejeitaram a psicologia: muitas estão “em terapia” ou são provedoras de terapia. Essa observação às vezes é usada para contestar nossos argumentos. Depois de ler um capítulo (Kitzinger e Perkins: 1993) que cita o processo judicial de Nancy Johnson contra o governo dos EUA por condenar as pessoas de Utah ao câncer (por causa do armazenamento nuclear), um leitor comentou que Nancy Johnson agora trabalha como curandeira psíquica de uma maneira que eu provavelmente consideraria politicamente problemática. “Acho que a situação é mais complicada do que você apresentou: Feminismo e psicologia não parecem ser mutuamente exclusivos”, disse ele. Obviamente, ativistas feministas às vezes são praticantes ou consumidoras de psicologia: muitas feministas claramente acham possível incluir ambos em suas vidas. Mas, assim como os defensores da saúde às vezes fumam cigarros; os ecologistas às vezes jogam lixo; e os pacifistas às vezes batem em seus filhos. A coexistência observada de duas visões ou comportamentos na mesma pessoa não os torna lógicamente éticos ou politicamente compatíveis.

O debate sobre a compatibilidade ética e política das diferentes ideias e comportamentos das pessoas é uma parte importante do que a discussão política feminista é. Meu argumento é que o feminismo e a psicologia não são eticamente ou politicamente compatíveis. Não significa necessariamente que as mulheres envolvidas na psicologia sejam apolíticas ou antifeministas. Muitas levam a sério o feminismo e estão profundamente engajadas em atividades políticas. Mas, na medida em que organizam suas vidas com base em ideias psicológicas e na medida em que limitam seus pensamentos e ações ao que aprendem da psicologia, estão negando o princípio feminista fundamental de que “o pessoal é político”.

KITZINGER, Celia. Terapia e como ela Minimiza a Prática do Feminismo Radical. IN: BELL, D.; KLEIN, R. (eds) Radically Speaking: Feminism Reclaimed. Melbourne: Spinifex Press, 1996. Tradução livre.

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Traduções

O sexo cotidiano: coerção e consentimento

Por Sheila Jeffreys, traduzido livremente de Penile Imperialism.


Thérèse e Edmondo Morbilli, por Edgar Degas (1865)

O direito sexual masculino se expressa mais claramente no casamento e na convivência heterossexual. Através das instituições da heterossexualidade e do casamento em todas as suas formas, desde a óbvia escravidão sexual até a “união estável” e as uniões mais informais, os homens adquirem o direito de acesso sexual constante, bem como o controle da reprodução e cuidado infantil e do trabalho doméstico não remunerado. Em alguns países, os maridos não têm mais a propriedade total dos corpos de suas esposas e o direito de fazer o que quiserem com eles, embora isso ainda persista em muitas jurisdições. No Reino Unido, por exemplo, o estupro no casamento é agora um crime, mas o contrato não escrito que está na base do casamento é de propriedade. Este contrato era claro na lei do século XIX e fez com que as feministas questionassem se havia alguma diferença significativa entre o status das esposas e o dos escravos.

Argumentarei que, embora a maioria das mulheres no casamento e em relacionamentos heterossexuais agora tenham o direito de acusar seus parceiros de estupro, o direito do sexo masculino, ou direito conjugal, como era chamado na lei, ainda permanece. Este capítulo trata dos encontros sexuais que geralmente não são chamados de estupro, mas sexo indesejado ou coercitivo ou, por serem tão normativos, sexo “cotidiano”. A relação de poder de dominação masculina e subordinação feminina constrói o sexo que acontece nas relações heterossexuais e o exercício de diversas formas de força garantem que as mulheres não tenham direito à autodeterminação em relação aos seus corpos. O escopo deste capítulo é limitado aos ‘direitos conjugais’ na cultura dominante do Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, mas já escrevi sobre esse problema em outros países e regimes religiosos em outros lugares (Jeffreys, 2012a).

A origem do direito do sexo masculino no casamento

As feministas do século XIX escreveram poderosamente sobre como o status das mulheres casadas se assemelhava ao dos escravos (Thompson e Wheeler, 1970, publicado originalmente em 1825). Na lei, as mulheres não tinham o direito de recusar o uso sexual, não tinham direito a qualquer liberdade de movimento sem o consentimento de seus maridos, a possuir dinheiro ou ferramentas de uma profissão ou à guarda dos filhos. Como diz Carole Pateman:

Até o final do século XIX, a posição legal e civil de uma esposa assemelhava-se à de uma escrava. Pela doutrina legal comum do casamento, uma esposa, como um escravo, estava civilmente morta (Pateman, 1988: 119).

Os direitos sexuais do marido eram chamados de “direitos conjugais” na lei. Eles foram descritos pelo jurista Lord Hale em 1778, 

“o marido não pode ser culpado de estupro cometido por si mesmo em sua esposa legítima, pois pelo consentimento e contrato matrimonial, a esposa se deu a ele neste sentido” (citado em Pateman, Ibid: 123).

De fato, como explica Pateman, até 1884, uma esposa poderia ser presa por recusar os direitos conjugais do marido. Ela afirma que 

“O direito conjugal do marido é o exemplo mais claro da maneira pela qual a origem moderna do direito sexual como direito político é traduzida pelo contrato de casamento ao direito de cada membro da fraternidade na vida cotidiana” (Ibid: 123).

William Thompson e Anna Wheeler, em seu manifesto feminista de 1825, procuraram explicar a condição de escravas das mulheres no casamento e como isso diferia de outras formas de escravidão e outras formas de trabalho, dizendo que os desejos sexuais dos homens os levavam a instituir “estabelecimentos de reprodução isolados, chamados de vida conjugal”, em vez de usar as mulheres apenas como trabalhadoras (Ibid: 123). A penetração vaginal de uma mulher é tão central para o casamento heterossexual, por exemplo, que a não consumação, como é chamada, ainda é uma base para a anulação (GOV.UK n.d., acessado em 26 de abril de 2021).

Feministas fizeram campanha nas décadas de 1970 e 1980 para remover da lei a isenção de estupro conjugal, que dizia que um marido não poderia estuprar sua esposa. Tiveram sucesso no Reino Unido em 1992 como resultado de uma decisão da Câmara dos Lordes, em vez de uma mudança na lei (Hart, 2014). A isenção de estupro conjugal persistiu em metade dos países da Commonwealth Britânica até 2019, bem como em muitos outros países do mundo (Sisters for Change, 2019).

A partir desse momento, tanto na lei quanto na teoria, as mulheres no Reino Unido, que supostamente teriam sido libertadas pela revolução sexual, deveriam ser capazes de rejeitar o sexo indesejado nos relacionamentos. Mas, como veremos neste capítulo, o sexo indesejado continua a ser um problema muito sério e a erotização da igualdade não ocorreu. O que mudou é que as práticas mais abusivas e assassinas que foram popularizadas pelos movimentos de direitos sexuais dos homens e pela indústria do sexo foram disseminadas no sexo cotidiano de tal forma que as mulheres estão sendo extremamente pressionadas pelos homens  para permitir práticas como  sexo anal e estrangulamento em seus corpos. A marcha progressiva da ‘revolução sexual’ levou a uma situação em que muitas mulheres e jovens adolescentes em relações heterossexuais estão experimentando sérias dores e humilhações.

A heterossexualidade compulsória

O sexo só pode ser entendido como voluntário se as mulheres tiverem uma escolha real quanto a entrar em relacionamentos heterossexuais. As teóricas feministas lésbicas questionaram o grau de escolha que as mulheres são capazes de exercer e argumentaram que a heterossexualidade é uma instituição política que é social e politicamente construída e imposta às mulheres (Hawthorne, 1976/2019; Rich, 1980; Wilkinson e Kitzinger, 1993; Jeffreys, 1990). Ela é, como explicou Adrienne Rich,  “compulsória” (Rich, 1980). Essas teóricas argumentam que a heterossexualidade não é simplesmente um direcionamento do desejo sexual para o sexo oposto, uma orientação sexual. Em vez disso, é a base institucional da dominação masculina porque permite a extração de muitas formas de trabalho não remunerado para os homens: sexual, reprodutivo, emocional e trabalho doméstico. É funcional à dominação masculina também, mantendo mulheres individuais sob o controle de homens individuais e separadas umas das outras. É, dizem elas, imposta em vez de livremente escolhida. As alternativas, lesbianismo ou solteirice, são difamadas, punidas ou tornadas invisíveis ao serem excluídas da cultura e da sociedade. O movimento de libertação lésbica dos anos 1970 e 1980 permitiu que muitas mulheres deixassem a heterossexualidade e se tornassem lésbicas. Por várias décadas, uma cultura, teoria e comunidade positivamente lésbica existiram nas quais as lésbicas podiam encontrar irmandade e força  (Jeffreys, 2018a). Essa cultura e comunidade não existem mais para apoiar as mulheres no orgulho de serem lésbicas e o lesbianismo agora é comumente entendido como o resultado da biologia, o que não permite escolha (Ibid).

Durante a maior parte da história recente no ocidente, as mulheres foram obrigadas a entrar em casamentos ou outras formas de relacionamentos heterossexuais por uma necessidade econômica urgente. Embora o imperativo financeiro não seja mais tão poderoso, há muitas forças que encaminham as mulheres para a instituição da heterossexualidade, como ser criada em famílias heterossexuais onde qualquer alternativa provavelmente será excluída ou rejeitada, sistemas de educação que não mencionam a história, cultura ou existência de lésbicas, e a ausência de lesbianismo aberto entre professoras e outros possíveis modelos. As vantagens dos relacionamentos lésbicos não são divulgadas na educação sexual para crianças, como uma maior chance de compartilhamento de cuidados infantis e tarefas domésticas, evitando a violência masculina em casa, a falta de necessidade de contracepção, a maior possibilidade de prazer sexual com outras mulheres que entendem os corpos das mulheres e não são dedicadas apenas à sua própria satisfação. Os romances lésbicos não são estudados. Existem novas forças envolvidas em fazer o lesbianismo desaparecer e fazer com que uma nova geração de mulheres jovens evite a palavra lésbica (Morris, 2017). Por exemplo, jovens lésbicas estão sendo medicinalmente modificadas ao serem identificadas como meninos pelos médicos com a conivência do sistema escolar. Elas estão passando por uma ‘terapia de conversão’, como veremos em um capítulo posterior (Jeffreys, 2018a).

Este capítulo pressupõe que a heterossexualidade é uma instituição em que as mulheres não estão em posição de escolher livremente se desejam entrar ou rejeitar. Considerando que todas as forças e punições muito significativas das sociedades masculinas dominantes se juntam para forçar as mulheres à heterossexualidade, não é de surpreender que o sexo que ocorre nela muitas vezes não seja escolhido livremente ou adequado aos interesses das mulheres, mas imposto pela força. Ele ocorre, proeminentemente, em uma relação de poder.

Sexo pênis na vagina (piv)

O casamento é legalmente baseado na entrada do pênis na vagina. Essa forma de sexo, no entanto, tem muitas contra-indicações para as mulheres e poucas vantagens. As teóricas e pesquisadoras feministas postularam que o coito não é adequado para o prazer sexual das mulheres e apresenta problemas para a saúde e segurança das mulheres (Jeffreys, 1990; Dworkin, 1987). Uma pesquisa no Reino Unido descobriu que 80% das mulheres não conseguiam atingir o orgasmo apenas com essa prática (Delvin e Webber, 2017).

No entanto, o que Alex Comfort chamou de “o bom e velho casamento” ainda é a prática preferida dos homens e comumente vista como a essência do sexo. Pesquisadoras feministas têm procurado estabelecer por que o sexo com pênis na vagina sobreviveu como a forma primária e “natural” de se engajar em relações heterossexuais, apesar do fato de ser inadequado para o prazer das mulheres, requerer a tecnologização do corpo com contracepção, e ter o risco de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Elas examinaram as diferentes formas de força envolvidas para garantir que muitas mulheres deem aos homens acesso a seus corpos, por mais relutantes que estejam. Um estudo procurou entender por que coito continuou a ser o principal ato sexual, apesar de

os efeitos colaterais das formas mais eficazes de contracepção e das implicações sociais, psicológicas e de saúde da gravidez não planejada e indesejada ou do aborto

(Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 36).

Como explicam esses pesquisadores, a vagina é 

apresentada como a melhor parte do corpo da mulher para atender às necessidades sexuais do pênis. É um encaixe que foi ‘projetado’, os órgãos são ‘construídos para se prenderem uns aos outros’, e a prática é vista como mais natural do que o uso da boca ou da mão de uma mulher

(Ibid: 41).

A maioria das razões dadas pelas quais o sexo com pênis na vagina é natural são, dizem eles, biológicas ou procriativas. Tais razões não se relacionam, é claro, com o prazer sexual das mulheres. A pesquisa reconhece que muitas mulheres não têm escolha sobre permitir ou não o sexo na vagina por causa da violência e do controle masculino, mas se concentra nas forças mais sutis que induzem as mulheres a permitir que seus corpos sejam usados dessa maneira, “nosso interesse aqui é em entender mais sobre as normas que regem as relações sexuais em situações que não parecem envolver coerção direta” (Ibid: 37).

O modelo de consentimento

O sexo cotidiano que pode ser profundamente indesejado pelas mulheres, ou mesmo doloroso e angustiante, é justificado pela noção de ‘consentimento’. A própria ideia de que os encontros sexuais requerem ‘consentimento’, em vez de serem experiências de prazer mutuamente desejadas, torna clara a dinâmica de poder da heterossexualidade. Os homens heterossexuais não têm problema em saber se consentiram o uso de seus corpos por mulheres, porque a exigência de submeter seus corpos ao prazer de outro não existe para eles. No sexo heterossexual, espera-se que o homem inicie o sexo e que a mulher concorde ou discorde de seus avanços e demandas por meio do mecanismo de consentimento. Supõe-se que iniciação e consentimento sejam iguais, mas na verdade representam os comportamentos de dominação e submissão. Catharine MacKinnon rejeita a ideia de que o consentimento forneça qualquer tipo de proteção ou vantagem para as mulheres. Como ela explica:

O consentimento é supostamente a forma das mulheres controlarem a relação sexual, diferente mas igual à prática da iniciativa masculina. O homem propõe, a mulher dispõe. Até mesmo o ideal não é recíproco… esse modelo não imagina uma situação em que a mulher tenha controle ou escolhas a fazer.

(MacKinnon, 1989: 174)

Fora do contexto do sexo, o consentimento é o mecanismo que justifica a aplicação de um procedimento que pode colocar em risco a saúde e a vida; um comportamento que é arriscado. Assim, os formulários de consentimento são usados regularmente para cirurgias ou para práticas em que há risco de divulgação de informações confidenciais. O consentimento não é entendido como algo que ocorre entre iguais, mas como indício de desigualdade. Apesar disso, como explica Carole Pateman

[As] relações mais íntimas das mulheres com os homens são regidas pelo consentimento; as mulheres consentem com o casamento, e a relação sexual sem o consentimento da mulher constitui crime de estupro

(Pateman, 1989: 72).

Expliquei o problema com o conceito em 1993:

A ideia de consentimento implica em um modelo de sexualidade em que uma pessoa, geralmente homem, usa o corpo de outra pessoa que não está necessariamente interessada sexualmente e possivelmente relutante e angustiada, como um recurso sexual. É um modelo dominante/submisso e ativo/passivo… O consentimento é uma ferramenta para negociar a desigualdade nas relações heterossexuais. Espera-se que as mulheres tenham seus corpos usados, mas a ideia de consentimento faz com que esse uso e abuso pareçam justos e justificados.

(Jeffreys, 1993: 178)

O conceito de consentimento molda o sexo heterossexual. Espera-se que a mulher disponibilize seu corpo sem objeções para que um homem possa usá-lo para se satisfazer, mas seu próprio prazer e até mesmo sua presença psicológica não são necessários. Ela pode, como a literatura sexológica sugere, estar com a cabeça inteiramente em outro lugar. Ela pode estar lendo um livro durante o procedimento ou estar pintando as unhas dos pés (Jeffreys, 1990).

Um modelo de sexualidade que se baseia na noção de que uma pessoa tem a iniciativa e a outra pode apenas dar ou negar consentimento é profundamente desigual e simplesmente replica as relações de poder social de dominação masculina. No entanto, o conceito de consentimento forma a base das leis internacionais sobre estupro, agressão sexual e crimes sexuais contra menores de idade. A lei tanto replica esse modelo de desigualdade sexual quanto o promove e molda. A legislação atual do Reino Unido sobre estupro, a Lei de Ofensas Sexuais de 2003, é baseada em um modelo de iniciação/consentimento (Legislation.gov.uk, 2003). Na Seção 1, afirma que:

Uma pessoa (A) comete um delito se –

(a) ele penetra intencionalmente a vagina, o ânus ou a boca de outra pessoa (B) com seu pênis, e

(b) B não consente com a penetração, e 

(c) A não tem motivo razoável para acreditar que B consente.

Um outro problema com a legislação do Reino Unido é que ela continua a tradição dentro da dominação masculina de definir se uma mulher foi estuprada de acordo com o que acontece na cabeça de um homem, incluindo uma cláusula de ‘motivo razoável para acreditar’. A legislação revela a influência de um movimento feminista ao acrescentar a necessidade por parte do homem de tentar averiguar se a mulher que ele penetrou estava consentindo:

(2) Se uma convicção é justificável deve ser determinada tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo quaisquer passos que A tomou para verificar se B consente.

O conceito não apenas mede o que é um estupro muito mais pelo que um homem considera do que pelo que uma mulher experimentou, mas também define sexo aceitável como o que um homem faz a uma mulher, que pode ser totalmente passiva e desejar estar em outro lugar. Os sentimentos dela não entram na definição.

Fabricando o consentimento

As meninas e mulheres, membras da casta sexual subordinada, alvos da iniciativa sexual de membros da casta sexual superior, supostamente têm o direito de recusar. Mas esse direito de recusar ou aceitar o consentimento de uma mulher é construído a partir de sua posição nas relações de poder da dominação masculina. São muitas as razões pelas quais o consentimento de uma menina ou mulher não é livre e todas se relacionam com sua posição subordinada. Elas incluem como meninas e mulheres são treinadas para se curvarem aos homens, para não deixá-los irritados e para não se expressarem de forma assertiva perto de homens. Algumas das razões tradicionais pelas quais as mulheres não são iguais em relacionamentos heterossexuais podem ter sido um pouco amenizadas no Reino Unido nos últimos cinquenta anos, com o resultado de que as mulheres agora têm muito mais independência econômica. Muitas outras, no entanto, permanecem, como as formas pelas quais os homens mantêm o controle por meio da violência, ameaça ou as mais variadas formas de coerção. Na década de 1980, pesquisadoras feministas formularam um vasto entendimento das forças que estão envolvidas na construção do que a lei penal e os perpetradores masculinos entendem como consentimento, ou seja, a ausência de uma recusa direta por parte de uma mulher para permitir que seu corpo seja usado como um receptáculo.

O primeiro exemplo desse tipo de trabalho é a pesquisa de Diana Russell em seu livro de 1982, Rape in Marriage. Ela descobriu que, nos EUA, o estupro de esposas com força ou ameaça de violência era comum:

Em meu estudo financiado pelo governo federal… 14 por cento das mulheres que se casaram uma vez ou mais relataram ter sido estupradas por seus maridos

(Russell, 1982/1989: XXII).

É importante ressaltar que ela também prestou atenção às maneiras pelas quais as esposas foram forçadas a aceitar o acesso sexual de seus maridos, o que não se encaixava na definição usual de estupro e que as próprias esposas viam como consensual. As muitas razões que as mulheres deram para terem que ‘consentir’ podem ser resumidas em algumas categorias. Uma delas era que as mulheres sentiam que tinham que permitir o acesso sexual de seus maridos porque esse era seu dever de esposa, parte do contrato. Como uma esposa explicou:

Quando estou dormindo, não quero ser incomodada. Ele não me forçou, mas se eu não quisesse, ele faria de qualquer forma. Eu não gostei. Eu disse apenas ‘pode fazer, mas eu não estou no clima’

(Ibid: 82).

Outra queria agradar o marido:

Às vezes, meu marido quer fazer coisas que eu não quero fazer ou que são desconfortáveis para mim. Certas posições são desconfortáveis ou cansativas para mim, como ficar de pé. Não é forçado como estupro, mas às vezes, quando digo não, ele nunca me força, mas talvez eu faça mesmo assim para agradá-lo

(Ibid: 82).

Outro motivo era evitar discussões e a raiva do marido:

Eu simplesmente não queria fazer e ele queria, então fizemos sexo. Eu disse que não queria e não ajudei o sexo a acontecer, mas por outro lado, não fui forçada. Isso provavelmente acontece muito com pessoas casadas. (Você se sentiu forçada?) Sim, me senti forçada a fazer isso. Não fisicamente. Mas você não pode simplesmente começar a brigar com seu marido. Não estávamos nos comunicando bem. Era a noite de nosso casamento e eu estava muito, muito bêbada

(Ibid: 83).

A raiva de um marido podia ser expressa em retraimento emocional e as mulheres faziam questão de evitar isso:

Houve um número razoável (de experiências sexuais indesejadas) um ano antes de nos separarmos. Parei de querer fazer amor, e era uma pressão constante. (Força física?) Não, não houve coerção física; foi apenas retraimento emocional ou nenhum contato físico

(Ibid: 77).

Outra forma de força que o marido poderia exercer era a ameaça de infidelidade:

Eu estava cansada. Eu estava trabalhando muito. Eu queria dormir. Como ele é meu marido, não pude dizer não. Eu nunca disse ‘estou com dor de cabeça’ como as americanas, porque senão ele iria procurar em outro lugar

(Ibid: 83).

No final do século XX, as pesquisas feministas como a de Russell criaram uma compreensão das dinâmicas de poder nas relações heterossexuais e contribuíram para o sucesso de campanhas feministas em muitos países para criminalizar o estupro marital. Mas outras forças estavam trabalhando ao mesmo tempo para consolidar esse sexo de dominação masculina, incluindo a liberação das indústrias de prostituição e pornografia, a promoção de parafilias como BDSM (Bondage, Disciplina, Sadomasoquismo) e o apoio a essas práticas pelos profissionais da terapia sexual. A compreensão feminista que estava sendo construída com tanto cuidado não era páreo para essas forças. Apesar de toda a excelente pesquisa e campanha em torno da violência sexual, os muitos sucessos do Movimento de Libertação das Mulheres não mudaram a maneira como as mulheres eram forçadas a “consentir” ao sexo. O sexo como um direito legal do marido deu lugar ao sexo por “consentimento”.

A derrota do trabalho feminista ficou clara na pesquisa de Lynn Phillips com estudantes universitárias (Phillips, 2000). Ela entrevistou jovens estudantes, de 19 a 21 anos, que fizeram um curso de estudos feministas e aprenderam sobre a violência masculina. Se alguma mulher estivesse em posição de lutar contra o estupro, deveriam ser essas estudantes que estavam bem informadas e preparadas, mas elas sofreram estupros que não podiam nomear e muito sexo abusivo, violento e doloroso que não conseguiam evitar em seus relacionamentos sexuais cotidianos. Um aspecto importante da construção da sexualidade feminina que Lynn Phillips descobriu em suas entrevistas foi que as jovens praticavam atos sexuais com homens se guiando detalhadamente pelo que achavam que seus parceiros desejavam, e não por qualquer coisa que elas estivessem sentindo:

As participantes relataram repetidamente que suas decisões sobre como se apresentar fisicamente, como e quando fazer ruídos e como mover seus corpos foram determinadas muito menos por suas próprias sensações corporais do que por seus cálculos mentais do que os homens gostariam que eles fizessem

(Phillips , 2000: 108).

As universitárias descreveram em detalhes para Phillips as estratégias que usavam para sobreviver a experiências sexuais muito insatisfatórias com homens abusivos e indiferentes. Algumas estratégias foram adotadas para que o homem parasse sem ela precisar mostrar que não gostava do que ele estava fazendo.

Às vezes, demora demais… Então, eventualmente, finjo que não consigo manter os olhos abertos e que gostaria de poder, porque estou amando muito isso. Assim eu não firo os sentimentos dele… Dessa forma, eu não pareço frígida ou muito esquisita

(Ibid: 146).

Uma estudante fez um relato sobre quando estava sendo usada sexualmente, ela não queria transar, estava sentindo dor, ela chorou e ele não notou:

Então eu fiquei deitada embaixo dele, chorando, enquanto ele fazia. Eu não sentia que poderia dizer não, mas esperei que ele me visse chorando e simplesmente parasse, não sei, por culpa ou preocupação ou algo assim, talvez até pena. Ele não parou, claro. Ele simplesmente continuou e depois disse: ‘Você não gostou?’ E eu disse: ‘Sim, foi bom’

(Ibid: 145).

Um motivo pelo qual as alunas se sentiram compelidas a atender os homens foi o fato de que eles poderiam se tornar violentos se seus avanços fossem rejeitados:

Alguns caras ficam furiosos quando seus egos masculinos são feridos. Eu simplesmente não posso correr esse risco

(Ibid: 139).

Phillips descobriu que as universitárias reformulavam sua experiência sexual para que não tivessem que pensar em si mesmas como tendo sido estupradas, embora o que elas descrevessem muitas vezes se encaixasse na definição legal de agressão sexual. Ela diz que das 27 mulheres que descreveram experiências que envolveram violência e coerção, 25 delas – ou 93 por cento – não chamavam nenhuma de suas experiências de abuso ou vitimização. Em vez disso, recorreram a várias formas de assumir, elas mesmas, a responsabilidade pelo que os homens lhes fizeram ou, pelo menos, de sobreviver à violência. Elas fizeram muito esforço para ter uma resposta sexual ao serem usadas sexualmente, porque isso significaria que não foi estupro. Um jovem de 19 anos explicou:

Se eu pudesse apenas encontrar uma maneira de me excitar, saberia que estava envolvida e isso não seria realmente como um estupro

(Ibid: 144).

Uma jovem de 21 anos disse quase a mesma coisa:

Eu estava pensando que, se eu conseguisse me excitar, seria consensual, como uma boa experiência

mas isso foi em uma situação em que o homem a forçou violentamente à submissão:

Eu me envolvi em uma situação em que fui para o apartamento deste cara, e estávamos nos beijando e tal, mas eu não queria fazer sexo, mas ele sim. Foi uma luta longa e tudo mais. E ele me bateu e tudo, e então eu pensei: ‘Ok, tudo bem’. Eu cedi, sabe, porque se eu realmente tentasse lutar e acabasse sendo espancada, o que eu diria para a minha mãe?

(Ibid: 143).

A mesma mulher aprendeu uma técnica quando criança para fazer um homem que a estava assediando sexualmente se apressar e acabar logo com isso:

Eu aprendi bem cedo, por volta dos treze anos, eu acho, a fazer o boquete perfeito. Eu também sei fazer a punheta perfeita, para que eu possa tirar os homens de cima de mim e acabar logo com isso. Dessa forma, estou totalmente no controle. Porque uma vez que eles gozem, então você está livre… Com sorte, se você jogar as cartas certas, eles simplesmente irão cair no sono

(Ibid: 141).

Ela aprendeu a amenizar as piores condições do uso sexual que fazem do seu corpo, mas não foi capaz de recusar.

As experiências de violência sexual que as mulheres se recusaram a ver como estupro incluíram a seguinte situação em que uma mulher foi asfixiada pela mão de um homem e sofreu fortes dores quando foi penetrada pela primeira vez:

Eu pensei, estou pronta para fazer isso… Ele estava, tipo, me ignorando completamente, e nós não estávamos mais nos agarrando (ela chora e soluça). Ele estava apenas enfiando o pau dentro de mim, e tampando a minha boca com a mão, então eu não podia falar nada… Só posso dizer que nunca senti tanta dor na minha vida… Depois que ele gozou, o que não demorou muito, graças a Deus, ele apenas rolou para o lado, parecendo tão orgulhoso de si mesmo. Ele me disse: ‘Você quer que eu te acompanhe até sua casa?’

(Ibidem: 94).

Outra mulher descreveu uma agressão sexual dolorosa que ela se recusou a chamar de estupro:

Eu penso nisso principalmente como uma noite muito ruim. Se você está me perguntando se eu acho que fui estuprada, não, eu realmente não chamaria isso assim. Quero dizer, fui forçada, sim, e me machuquei, e as coisas não saíram como eu queria, mas eu estava no carro com ele. Foi tudo muito complicado. Quero dizer, eu estava lá, poderia ter escolhido não ir. Então não, eu realmente não chamo isso de estupro.

(Ibid: 154).

As jovens que sofrem essas agressões sexuais aprenderam a crítica feminista da violência masculina em seus cursos feministas, mas, no caso dessa mulher, o ensino permitiu que ela se diferenciasse das mulheres que ela via como verdadeiras vítimas, em vez de se ver como uma:

Eu só agradeço a Deus por não ter passado por algo tão extremo quanto as mulheres que são abusadas… Nós estudamos isso nas aulas de feminismo. Às vezes eu apanhava e era humilhada pelo meu namorado, mas não era espancada como muitas mulheres são.

(Ibid: 158)

Uma razão dada para negar o estupro foi que admitir ser uma vítima era humilhante:

Se eu me considerasse uma vítima, seria como se eu fosse apenas uma garotinha burra que perdeu a cabeça. Na época, eu queria provar para mim mesma o quão adulta eu era, não queria nem pensar que poderia ter sofrido abuso … porque então eu seria ingênua e estúpida.

(Ibid: 95)

Em outro estudo, as pesquisadoras feministas descobriram que a principal razão pela qual as mulheres eram usadas sexualmente quando não queriam era a pressão social para agradar aos homens ou para não parecer frígida. Uma mulher falou sobre se sentir forçada a dizer sim por medo de ser “rotulada e julgada (como frígida) se dissesse ‘não'” (Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 43). “É isso que devo fazer, é isso que preciso fazer para manter o respeito ou a amizade deles.” Outra forma de pressão que encontraram em suas entrevistas foi a necessidade das mulheres de “agradar sexualmente seus homens”, pelo menos estando sexualmente ‘disponível’ ou enfrentar a “consequência previsível de que ele procurará em outro lugar para ter suas ‘necessidades sexuais’ atendidas”. As pesquisadoras comentam:

Se o papel da mulher nas relações heterossexuais é construído em torno da necessidade de agradar seus parceiros masculinos, então a relação sexual pode não ser uma escolha real

(Ibid: 48).

É provável que todas as experiências angustiantes aqui descritas tenham sido vistas pelas mulheres como ‘consensuais’.

O ensino do consentimento

A falsa ideia de que o ‘consentimento’ indica a atividade sexual desejada está por trás do ‘treinamento de consentimento’, que é a solução preferida por governos, universidades e outras instituições para lidar com o problema do assédio sexual. No treinamento de consentimento, homens e mulheres aprendem a buscar e dar um consentimento inequívoco antes que a atividade sexual ocorra. O governo do Reino Unido, por exemplo, lançou uma campanha “para ajudar a combater o estupro, educando jovens homens sobre a necessidade de consentimento antes do sexo” em 2006. O jornal The Guardian citou uma porta-voz do Ministério do Interior dizendo: “Dar consentimento é uma ação, não uma omissão, e cabe a todos garantir que o parceiro concorde com a atividade sexual” (Travis, 2006). Mas, é claro, embora o ‘consentimento’ possa ser ativo, a mulher que consente pode se sentir forçada a concordar em ser usada passivamente ou a simular entusiasmo. O conceito de consentimento usado por tais campanhas é notavelmente simplista. A União Nacional dos Estudantes (NUS) do Reino Unido lançou uma campanha com objetivo semelhante em 2015, chamada Eu amo o consentimento:

A campanha das mulheres da NUS e a Sexpression UK se uniram para criar um programa educacional de consentimento que visa facilitar conversas e campanhas positivas, informadas e inclusivas sobre consentimento em universidades e faculdades em todo o Reino Unido.

A definição de consentimento do programa é: “Uma pessoa consente se concorda por escolha própria e tem a liberdade e capacidade de fazer essa escolha” (NUS, 2015, ênfase no original). O treinamento de consentimento é onipresente, mas falho pois assume a iniciativa sexual masculina e que as relações entre homens e mulheres são baseadas na igualdade, em vez das relações de poder.

Uma notável pesquisa de Celia Kitzinger e Hannah Frith, de 1999, procura mostrar por que o treinamento de consentimento pode não funcionar (Kitzinger e Frith, 1999). Elas apontam que a “teoria da má comunicação”, que fundamenta esses programas, não descreve com precisão o que acontece entre homens e mulheres na atividade sexual. Essa teoria acredita que as mulheres não são suficientemente incisivas ao expressar seu “não” ao sexo e que os homens são facilmente confundidos em pensar que podem prosseguir quando uma mulher não deseja fazê-lo. Elas explicam que

o ensino de “habilidades de recusa” é comum a muitos programas de prevenção de estupro em encontros, treinamentos de assertividade e habilidades sociais para jovens mulheres. A suposição subjacente a esses programas é que as jovens mulheres acham difícil recusar a atividade sexual indesejada e um objetivo comum é ensinar as mulheres a dizer “não”, de forma clara, direta e sem desculpas

(Kitzinger e Frith, 1999: 293).

Boas pesquisas feministas qualitativas mostram as falhas na teoria da má comunicação, apontando que formas complexas de entendimento social estão em jogo quando as pessoas tomam essas decisões, que podem, na verdade, ser prejudicadas pela exigência de que as mulheres rejeitem de modo duro e explícito (Beres, 2020). O problema mais grave com essa teoria é que ela culpa as mulheres pela violência sexual que sofrem, sugerindo que tudo o que elas precisam fazer para evitar a agressão é tornar sua recusa mais clara. Pode ser por essa razão que o treinamento de consentimento é o preferido como resposta à violência sexual, porque culpa as vítimas, as mulheres, sem exigir nenhuma mudança no comportamento dos perpetradores, os homens.

Kitzinger e Frith utilizaram a análise da conversa (AC) para examinar a maneira como os jovens falam sobre consentimento. Elas apontam que

os resultados empíricos da AC demonstram que as recusas são interações conversacionais complexas e finamente organizadas, e não são adequadamente resumidas pelo conselho de apenas dizer não

(Kitzinger e Frith, 1999:294).

Elas observam que em interações cotidianas, tanto homens quanto mulheres não usam recusas diretas quando solicitados a fazer algo, porque isso é ofensivo. Eles tendem a usar atrasos, hesitações e desculpas em vez disso. A análise da conversa depende da atenção cuidadosa aos pequenos detalhes da fala, como breves pausas, hesitações, falsos começos e autocorreções, bem como “paliativos” – frases usadas para “acalmar” um homem para que ele não se sinta tão ofendido. Além disso, eles apontam que dizer simplesmente “não” sem prestar atenção às regras sociais que geralmente se aplicam em todas as situações pode colocar as mulheres em perigo, causando uma reação de raiva em um homem que interpreta a recusa como grosseria. A teoria da má comunicação oferece uma forma de defesa para estupradores no tribunal: eles podem argumentar que não entenderam porque a mulher não sinalizou sua falta de consentimento com bastante clareza. Mas isso não ajuda as mulheres.

Kitzinger e Frith explicam que “apenas dizer não” é visto como grosseria e “as mulheres jovens sabem disso” (Ibid: 305). Os programas de prevenção de estupro que insistem em ‘apenas dizer não’, ‘são profundamente problemáticos na medida em que ignoram e anulam formas culturalmente normativas de indicar recusa’ (Ibid). A evidência, dizem elas, ‘é que as pessoas geralmente ouvem recusas sem que a palavra ‘não’ seja necessariamente pronunciada” (Ibid). Elas concluem que “a raiz do problema não é que os homens não entendam as recusas sexuais, mas que eles não gostam delas” (Ibid: 310). Elas fundamentam essa ideia com pesquisas que registram as reações de meninos adolescentes e homens jovens que foram questionados sobre quais seriam suas reações se as mulheres os recusassem. A agressividade sexual (que apresentavam) era bastante extrema”. Elas concluíram que “o problema da coerção sexual não pode ser solucionado pela mudança do modo com que as mulheres falam” (Ibid: 311).

A diferença do desejo sexual entre homens e mulheres

A noção de ‘consentimento’ é necessária por causa do que tem sido chamado pelos sexólogos de ‘diferença do desejo’. Talvez não fosse necessário se não houvesse um problema de imposição de algo indesejado a parceiros relutantes, se as mulheres estivessem tão entusiasmadas em serem penetradas quanto os homens estavam em penetrá-las. Sexólogos no início do século XX buscaram descrever, quantificar e curar o que eles viam como o principal impedimento ao direito sexual masculino – a falta de interesse ou recusa das mulheres em responder com entusiasmo suficiente a serem penetradas pelos homens. Como vimos no Capítulo 1, eles inventaram uma série de termos para descrever o problema enquanto buscavam por uma solução.

A resistência das mulheres era vista como política e a derrota dessa resistência era a principal tarefa da ciência do sexo e da prática da terapia sexual ao longo do século XX. As demandas importunas dos homens, por outro lado, eram vistas como naturais e não eram questionadas. No século XXI, sexólogos inventaram um novo termo para descrever o que antes era chamado de frigidez, “diferença de desejo”. A “diferença” é atribuída às mulheres. Os homens não precisam mudar, mas a falta de interesse das mulheres deve ser medicalizada e tratada. As mulheres não conseguem simplesmente rejeitar o sexo que não desejam, porque o direito sexual masculino exige que elas concedam acesso.

Na pesquisa sobre “Negociação de diferenças de desejo sexual para mulheres em relacionamentos de parceria”, uma entrevistada explica que a “negociação” é um problema relacionado ao direito sexual masculino, já que as parceiras femininas não fazem as mesmas exigências. Ela também explica que o tipo de pressão que os homens colocam sobre as mulheres para que elas permitam o uso de seus corpos não existe em relacionamentos lésbicos:

Eu achei que com os caras [o sexo] é algo que eles querem imediatamente, mas nas minhas experiências com as garotas eu sinto que não há pressão alguma. Com homens, sempre senti essa pressão para ter sexo, enquanto com minha namorada nunca tive essa pressão

(Fahs, Swank e Shambe, 2020:233).

As pesquisadoras concluem que as relações de poder de dominação masculina persistem dentro de relacionamentos heterossexuais, apesar dos avanços que o movimento feminista alcançou para as mulheres na esfera pública. No âmbito privado/doméstico, eles afirmam que

as mulheres se sentem “presas” em estereótipos sexuais e dinâmicas de poder que não necessariamente as beneficiam, mesmo quando expressam consciência sobre o dano dessas normas. Em outras palavras, as mulheres continuam suportando o sexo pelo qual não sentem entusiasmo ou “aguentando” o sexo que parece chato ou pouco recíproco, mesmo quando estão obtendo progressos em outros aspectos de suas vidas

(Ibid: 236).

A forma como o que é chamado de “diferença de desejo” afeta as mulheres é explorada em uma pesquisa na qual dez mulheres em relacionamentos de longo prazo foram entrevistadas sobre sua prática sexual (Hayfield e Clarke, 2012). As autoras apontam que o problema com a forma como a falta de interesse das mulheres pelo sexo é apresentada é que ela vê a “falta de desejo” das mulheres como problemática em vez de apontar o “desejo excessivo” dos homens como um problema (Ibid: 68). Algumas das mulheres entrevistadas tinham desejo sexual por seus parceiros, mas a maioria não tinha. Uma comentou “Nunca me vi com um impulso sexual, muito raramente”, e outra afirmou “Não acho que eu tenha um impulso sexual muito alto”. Ambas essas mulheres e muitas das outras, explicam as pesquisadoras, tinham “pouco interesse em sexo”, mas todas sentiam que o interesse sexual era desejável e lamentavam a sua falta. As pesquisadoras apontam que há um imperativo coital que posiciona o sexo de pênis na vagina como essencial para os homens e algo em torno do qual as mulheres devem ajustar suas vidas. Isso é acompanhado por um “imperativo de orgasmo”. Como Gavey, McPhillips e Braun acima, elas apontam que a exigência de fazer sexo com pênis na vagina sobrepõe todo conhecimento de quão problemático pode ser para a saúde das mulheres, embora

a relação sexual com penetração vaginal apresenta riscos diretos (por exemplo, ISTs, HIV/AIDS, gravidez indesejada) e riscos indiretos (por exemplo, câncer cervical causado por ISTs específicas, efeitos colaterais de contraceptivos, consequências sociais e psicológicos de gravidez indesejada)

(Ibid: 71).

Elas expressam sua perplexidade de que

existe uma expectativa de que as mulheres (e homens) participem regularmente em um ato, mesmo quando ele tem o potencial de prejudicar sua saúde e bem-estar, e quando pode não ser prazeroso para ambas as partes envolvidas.

As entrevistadas explicaram que fizeram uma ‘escolha’ “de estar passivamente presentes no sexo para satisfazer as ‘necessidades’ de seus parceiros” (Ibid).

Terapia sexual

As duas principais forças envolvidas na construção do sexo cotidiano são a pornografia e a terapia sexual. Essas duas indústrias estão interligadas e abraçam os mesmos valores na aplicação do direito sexual masculino e da obediência feminina. Como resultado da “diferença do desejo”, é provável que muitas mulheres prefiram ler um bom livro ou terminar um quebra-cabeça em vez de buscar conexão sexual. Para obter seus direitos sexuais, então, os homens devem se impor às mulheres. É trabalho das mulheres negociar a iniciativa sexual dos homens, seja ao caminhar na rua ou no local de trabalho, onde pode ser chamado de “assédio sexual”, ou em relacionamentos. Quando essa iniciativa acontece em casa, nunca é chamada de assédio, embora haja muitas evidências de pesquisas feministas e literatura de aconselhamento sexual que as mulheres o experimentam dessa forma. As mulheres em relacionamentos heterossexuais provavelmente serão o objeto da iniciativa sexual dos homens e têm a escolha de cumprir ou pensar em uma razão para recusar. As dinâmicas de poder do sexo heterossexual são tais que simplesmente dizer que não estão com vontade não é suficiente. Uma tarefa central dos terapeutas sexuais é garantir que as mulheres reajam adequadamente às demandas sexuais dos homens em vez de buscar um hobby mais interessante.

Um exemplo do site de aconselhamento psicológico online, Psychcentral, ilustra isso bem. Em 2017, uma mulher escreveu ao site explicando que estava em um relacionamento de longo prazo com um homem, tinha quatro filhos e sua vida sexual tinha sido boa, mas

[Naquela noite] eu estava cansada e queria assistir um pouco de TV e ir dormir, meu namorado queria fazer sexo, e quando eu disse que não estava com vontade… ele ficou violento e tentou me dar um tapa na cara. E fez algum comentário do tipo ‘você vai pagar por isso’, brincando ou não

(Randle, 2019).

Ela diz que “fazem sexo com bastante frequência”, mas quando ela não “está a fim” uma vez ou outra, ele “fica bravo ou violento”. O conselho que ela recebe é simpático à situação do marido: “Ele fica bravo porque se sente rejeitado. O sexo aparentemente é muito importante para ele”. A terapeuta não demonstra preocupação com a violência e não dá conselhos sobre como a mulher pode manter a si mesma e seus filhos em segurança. Em vez disso, ela aconselha a mulher a satisfazer as demandas sexuais do homem, desde que sejam “razoáveis”: “Você tem que aprender a garantir o atendimento de uma quantidade razoável da necessidade dele, mas ele não pode esperar que você atenda 100% do desejo sexual dele”. A tarefa da terapia sexual aqui é claramente defender o direito sexual masculino. A terapia sexual é divulgada em revistas e livros para mulheres, bem como em tratamento individual. A terapeuta sexual mais conhecida na Austrália é Bettina Arndt.

A ‘diferença de desejo’ e mulheres idosas

Esse disciplinamento cruel das mulheres a serviço do direito sexual masculino fica claro no trabalho de Arndt, Os diários sexuais (Arndt, 2009). Arndt não é uma terapeuta sexual qualificada, mas isso não a impediu de exercer sua profissão de maneira proeminente na mídia australiana. Seu livro surgiu de sua preocupação de que muitas mulheres ficavam entediadas com o sexo em relacionamentos de longo prazo e rejeitavam as demandas de seus parceiros. Ela recrutou 98 casais na Austrália com mais de 60 anos para escrever diários nos quais descreviam se e quando o sexo acontecia e como eles, os homens e mulheres, se sentiam sobre isso. Ela embarcou em seu projeto porque estava preocupada que homens idosos sofriam com suas parceiras femininas limitando o que ela chama de “suprimento de sexo”, ou seja, não dando aos homens acesso às suas vaginas. Ela explica suas motivações da seguinte forma:

O que mais escuto é a respeito de negociar o suprimento de sexo. Como os casais lidam com a pressão do homem que deseja e espera enquanto tudo o que ela quer é a felicidade do sono ininterrupto? É um drama noturno que acontece em quartos de todos os lugares, a fonte de grande tensão e infelicidade

(Arndt, 2009: 2).

No entendimento dela, as mulheres são a oferta e podem abrir ou fechar o acesso em detrimento daqueles que razoavelmente esperam receber a oferta, os homens. Ela estava alarmada com a resistência das mulheres. No caso de um “casal em que o marido quer sexo duas vezes por dia”, ela explica que “eles estão fazendo algumas vezes por semana” e a mulher diz: “ainda prefiro ler um livro” (Ibid: 3). O direito das mulheres à autodeterminação não foi reconhecido pelo parceiro ou por Arndt.

Arndt descobriu que para as esposas, fornecer “suprimento” aos seus maridos quando não desejavam fazê-lo era uma experiência extremamente angustiante. Uma mulher escreveu:

Acho que ter relações sexuais quando você realmente não quer é a coisa mais horrível. Antes eu ainda respondia e até tinha orgasmos mesmo sem querer, mas agora não tenho mais nenhuma resposta, então é horrível. Por dentro, estou gritando para acabar rapidamente

(Ibid: 4).

Arndt aconselha as mulheres que elas devem “simplesmente fazer” quer queiram ou não. Outra mulher forneceu uma descrição gráfica de sua repulsa a esse conselho:

Odeio essa ideia! Por que diabos as mulheres deveriam simplesmente fazer isso quando não têm desejo? São elas que têm que lidar com o frio escorrendo entre as pernas, as infecções urinárias, as infecções fúngicas, a dor causada pela mucosa seca, o tédio de todo o processo… simplesmente fazer isso é um tipo de uma provação quando você tem mais de 40 anos e as secreções secaram.

Ela acrescentou: “Não há nada de errado comigo, então por que devo ser tratada como se eu fosse a anormal?… Por que os homens não podem ser tratados por sua libido mais alta?” (Ibid: 291).

Arndt expressa grande simpatia pelos homens cujas parceiras não desejam ser usadas para o sexo. Ela explica que: “Com meus diários sexuais, foram as histórias dos homens que realmente me chocaram” (Ibid: 5). Os homens realmente sofriam, ela disse, e “Eles ficam atordoados ao descobrir que suas necessidades são completamente ignoradas. Muitas vezes isso sai em um grito de raiva e decepção” (Ibid: 6). Eles esperam acesso contínuo e não acham que as mulheres devem ser capazes de mudar de ideia à medida que envelhecem. Como um homem coloca, “O que faz as mulheres pensarem que, na metade do jogo, podem mudar as regras para atender às suas próprias necessidades e esperar que o macho aceite?” (Ibid: 6). Arndt comenta: “É apenas quando você ouve os homens falando honestamente sobre o que é estar no lado receptor que você percebe o impacto do desprezo com o qual estamos tratando eles” (Ibid: 8). Se Arndt tivesse alguma simpatia pelas mulheres, ela poderia ver que o desprezo não vinha das esposas, mas sim dos maridos que estavam determinados a usar os corpos de suas esposas como ajudas de masturbação.

A razão para se chegar a essa situação lamentável, quando algumas mulheres achavam razoável poder recusar o acesso sexual dos homens aos seus corpos, segundo ela, foi o feminismo. Arndt afirma que:

O direito das mulheres de dizer ‘não’ foi consagrado em nossa história cultural há quase cinquenta anos. Mas simplesmente não funcionou para a vida sexual de um casal depender da frágil e fraca libido feminina. O direito de dizer ‘não’ precisa dar lugar a dizer ‘sim’ com mais frequência – desde que tanto homens quanto mulheres acabem desfrutando da experiência. A noção de que pode estar no melhor interesse das mulheres parar de racionar o sexo certamente vai causar controvérsia, mas este é um problema que merece atenção séria

(Ibid: 12).

Era simplesmente absurdo, segundo ela, que os parceiros fizessem outras coisas um pelo outro, como cozinhar pratos favoritos ou assistir a programas de TV que não gostavam, quando as mulheres não permitiam o acesso sexual de seus maridos: “Por que, então, somos tão mesquinhos quando se trata de ‘fazer amor’, que deveria ser a expressão máxima desse cuidado mútuo?” (Ibid: 14). Recusar o sexo era algo egoísta, ela considerava. Arndt lamenta o fato de que tantas das mulheres de seus diários não estavam dispostas a fazer o trabalho sexual de seduzir seus maridos com performances usando lingerie sexy, mesmo enquanto cozinhavam, e a razão, novamente, é que o feminismo as desencorajou: “De alguma forma, a sedução veio a ser vista como um ato anti-feminista, uma traição da igualdade bem diferente de outros gestos de cuidado” (Ibid: 17). A sedução se assemelha às técnicas de prostituição, projetadas para excitar os homens por meio das mulheres interpretando papéis.

O livro de Arndt é uma visão muito útil do que acontece nos casamentos de casais mais velhos. A questão que ela ilustra tão bem a partir das palavras das mulheres em seus diários é a maneira como as esposas se sentem quando os homens exercem sua iniciativa sexual indesejada, comportamento que poderia ser chamado de assédio sexual no relacionamento. O assédio sexual é um termo geralmente limitado ao comportamento dos homens em relação às mulheres em lugares públicos, como o local de trabalho ou a rua, e não se aplica ao que os parceiros masculinos fazem com as mulheres em suas casas. No entanto, a experiência para as mulheres que são assediadas, embora compreenda diferentes elementos relacionados ao fato de o perpetrador ser um parceiro, parece ser semelhante a outras formas da prática em seu desconforto e na angústia que causa. Em um caso, a esposa descreve sua angústia: “Esta manhã eu estava no chuveiro quando ele saiu para o trabalho; ele veio me beijar, o que foi adorável. Mas ele teve que me esfregar na vagina, o que me deixa louca!” O assédio sexual era frequente na cama e seu marido estava jubilante com isso, dizendo: “Às vezes, à noite, nos últimos anos, até comecei a deslizar minha mão em sua calcinha enquanto ela está dormindo e apenas toco seus pelos pubianos” (Ibid: 33). Outra mulher também descreve como perturbador o assédio sexual de seu marido: “Quando ele começa a mexer nas minhas partes íntimas, sinto vontade de chicoteá-lo com uma raquete de mosquitos!” (Ibid: 169).

O papel de Arndt em impor o direito ao sexo masculino em nome dos homens mais velhos foi recompensado pelo governo. Em janeiro de 2020, ela recebeu uma homenagem do Dia da Austrália, ostensivamente por “serviços à ‘equidade de gênero’ por meio da defesa dos homens” (Zhou, 2020).

A medicalização da “disfunção sexual”

A falta de interesse das mulheres em serem penetradas por um parceiro do sexo masculino e sua incapacidade de sentir prazer na atividade foram medicalizadas com a entrada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) do que era chamado de ‘disfunções sexuais’ (Mitchell et al., 2016). Os problemas descritos pelas mulheres neste capítulo são chamados de ‘transtornos’. Um deles é o ‘Transtorno Orgásmico Feminino’, o que significa que a mulher está doente porque não tem orgasmo durante o sexo com penetração vaginal, e outro é o ‘Transtorno de Interesse/Excitação Sexual Feminino’, que transforma a preferência de uma mulher por assistir televisão em um problema médico (Couples and Sexual Health Laboratory, 2016). A medicalização da falta de resposta ‘correta’ das mulheres às iniciativas sexuais dos homens fazia parte de uma medicalização geral da ‘disfunção sexual’ nos anos 90, que visava obter lucros para médicos e empresas farmacêuticas.

Inicialmente, o mercado-alvo consistia em homens que não tinham o tipo de ereção que lhes permitia se sentir adequadamente masculinos; mas a solução oferecida, o medicamento Viagra, criou ainda mais problemas para as mulheres. Leonore Tiefer, a sexóloga feminista dos EUA, explica que,

em 1998, em mais uma grande reviravolta, uma nova era da farmacologia sexual foi inaugurada com a aprovação governamental do Viagra, um medicamento para tratar a impotência que rapidamente alcançou níveis incríveis de reconhecimento global.

Tiefer diz que o desenvolvimento do Viagra foi resultado do falocentrismo, a noção de que ereções rígidas que permitissem a penetração de parceiras femininas simbolizavam a masculinidade (Tiefer, 2006a). O Viagra para homens foi lucrativo e exacerbou a ‘diferença de desejo’, à medida que os homens buscavam agir com sua nova potência nos corpos de suas parceiras femininas. As mulheres não desejantes foram transformadas em ‘pacientes’ que precisavam de tratamento (Tiefer, 2001). A solução foi seguir a criação do Viagra para homens com uma tentativa de criar um ‘Viagra’ feminino (Tiefer e Hartley, 2003).

Tiefer iniciou uma campanha composta por cientistas sociais feministas para combater a medicalização da sexualidade feminina em 2000 (Tiefer, 2006b). A campanha, intitulada A Nova Visão, era contra “A rápida incursão da influência da indústria farmacêutica na pesquisa sobre sexo e na educação profissional.” Seu objetivo, ela diz, era

expor as decepções e consequências do envolvimento da indústria na pesquisa sobre sexo, na educação sexual profissional e nos tratamentos sexuais, e gerar alternativas conceituais e práticas ao modelo médico prevalente da sexualidade

(Ibid).

A campanha continuou, com conferências e tentativas de proibir o uso de drogas que foram usadas para curar a ‘disfunção sexual’ das mulheres, geralmente formas de testosterona, proibidas para este uso até 2017, quando o site da campanha foi arquivado. As acadêmicas envolvidas na campanha A Nova Visão argumentaram firmemente que as supostas ‘disfunções sexuais’ das mulheres eram social e politicamente construídas. Elas disseram que o diagnóstico do DSM não reconhecia

aspectos relacionais da sexualidade feminina, que muitas vezes estão na raiz das satisfações e problemas sexuais, por exemplo, desejos por intimidade, desejos de agradar um parceiro ou, em alguns casos, desejos de evitar ofender, perder ou irritar um parceiro

(Working Group on a New View of Women’s Sexual Problems, 2017).

A campanha, no entanto, não deixa claro que o termo ‘relacional’ se refere a problemas que surgem das relações de poder. Ao se concentrar em como os problemas sexuais das mulheres podem ser resolvidos sem recorrer a drogas, eles prestam um grande serviço às mulheres, mas não questionam a suposição de que a falta de interesse das mulheres em satisfazer o direito sexual masculino constitui um problema. Eles não vão tão longe a ponto de sugerir que as demandas dos homens, em vez da resistência das mulheres, requerem tratamento.

Acadêmicas feministas questionaram a forma como a falta de orgasmo das mulheres durante a penetração é tratada na terapia sexual. Hannah Frith, por exemplo, argumenta que os orgasmos femininos não são “naturais”. Ela escreve sobre a construção social do orgasmo, isto é, a maneira como a realização do orgasmo, e especificamente o orgasmo vaginal, foi elevada a uma posição de importância primordial na literatura sobre a sexualidade feminina e na terapia sexual. Isso, segundo ela, simplesmente reproduz o modelo masculino de sexo e confirma que o sexo é e deve ser a penetração vaginal. Ela explica que as mulheres frequentemente têm que “trabalhar” para atingir o orgasmo, realizando os exercícios recomendados pelos terapeutas sexuais e se esforçando muito.

Efeitos do uso do Viagra masculino nas mulheres

A medicalização da sexualidade masculina através do desenvolvimento do Viagra criou um problema para as mulheres (Potts, Gavey, Grave e Vares, 2003). Este medicamento foi visto como totalmente positivo para os homens, pois curou a impotência e permitiu que homens, mesmo os mais velhos, se envolvessem em relações sexuais de penetração vaginal. A pesquisa sobre o Viagra e seus efeitos preocupou-se apenas com as vantagens que oferecia aos homens, como a oportunidade de se sentir mais “masculino” e dominante, e ignorou quaisquer efeitos negativos que possa ter em suas parceiras femininas. A pouca pesquisa feita por estudiosas feministas sobre as implicações do desejo renovado dos homens por acesso sexual às vaginas de suas esposas sugere que o medicamento constituiu, em muitos casos, um sério retrocesso. A pesquisa utilizando entrevistas com 27 mulheres cujos parceiros masculinos usavam Viagra revelou as muitas desvantagens que elas sofreram (Ibid). Para algumas mulheres mais velhas, o fato de seus maridos não poderem mais se envolver em relações sexuais de penetração vaginal foi um alívio, o que significava que elas não seriam mais importunadas e poderiam se dedicar a hobbies mais prazerosos. Para muitas, também, estar na pós-menopausa significava que as relações sexuais de penetração vaginal eram dolorosas ou desconfortáveis e elas não reagiam favoravelmente às demandas renovadas de seus maridos por acesso sexual.

As mulheres entrevistadas para este estudo falaram de seus maridos as incomodando para terem relações sexuais de penetração vaginal quando já estavam acostumadas a não ter que fazê-lo e preferiam, se ainda estivessem sendo sexuais com seus parceiros, relações sexuais não-vaginais que foram projetadas para lhes dar satisfação em vez de uma prática dedicada ao orgasmo masculino. As mulheres falaram do sofrimento que seus parceiros causaram a elas exigindo a penetração, porque eles tinham pago muito pelo medicamento e precisavam aproveitar a ereção antes que os efeitos desaparecessem. As mulheres mais velhas que estavam muito felizes por não terem mais que ser penetradas, falaram da dor que a retomada dessa prática lhes causou. Uma mulher de 60 anos disse: “Às vezes pode durar muito tempo e eu estou pensando “oh, está demorando demais, e está ficando… dolorido” (Ibid: 704).

As autoras comentam que existem estudos que sugerem uma conexão entre o uso de Viagra pelos homens e a ocorrência de infecções urinárias em suas esposas, o que é chamado de “cistite da lua de mel”. Uma mulher de 65 anos disse:

[E]le teria relações sexuais naquela noite e novamente na manhã seguinte e … ele pode ter mais relações sexuais do que eu, porque fico dolorida… Eu só tive candidíase uma vez e outra vez tive uma infecção urinária… Eu estava urinando sangue, então presumo que ter relações sexuais tenha algo a ver com isso

(Ibid: 704).

As pesquisadoras explicam que “as mulheres pós-menopáusicas podem experimentar mais secura vaginal, o que exacerba o início desse tipo de cistite” e que existem outros problemas de saúde causados ​​pelo sexo prolongado, como “dor pélvica inferior e irritação e rasgamento da parede vaginal” (Ibid: 704).

Algumas das entrevistadas disseram que usavam lubrificantes, conforme aconselhadas, para aliviar o desconforto, mas isso não resolveu o problema. Uma entrevistada de 51 anos disse que a relação sexual era dolorosa por causa de uma doença, e que estava tentando cumprir o conselho dado na literatura médica que estava lendo, que dizia que as mulheres mais velhas deveriam permitir o acesso sexual para que seus maridos não “percam ‘a prática'” (Ibid: 704). As mulheres falaram que não queriam fazer sexo ou estavam cansadas, mas tinham que “acompanhar” para não ferir os sentimentos dos homens. Uma mulher de 65 anos descreveu como seu marido não falava com ela por 24 horas se ela não quisesse ser usada sexualmente, pois isso o fazia “desperdiçar” um medicamento caro.

Sexo anal

O desenvolvimento da indústria da pornografia mudou a natureza do sexo a que os homens sentem ter direito nos relacionamentos, de modo que as práticas que manifestamente nada têm a ver com o prazer das mulheres, e são dolorosas e prejudiciais à saúde, podem ser letais e outrora teriam sido incomuns na prática heterossexual, foram normalizadas. Essas práticas incluem sexo anal, estrangulamento (chamado por seus normalizadores de ‘brincadeira’) e outras formas de práticas sadomasoquistas, eufemisticamente chamadas de ‘sexo violento’. O sexo anal, que antes era raro nas relações heterossexuais na Anglosfera, tornou-se agora uma parte aceitável do uso masculino do corpo feminino, de acordo com a literatura sexológica e de aconselhamento sexual. Foi normalizado por ter a dor que causa descrita como uma disfunção sexual com um nome especial próprio, anodispareunia, o que implica que a pessoa que sente a dor é o problema e não a prática em si (Hollows, 2007).

A literatura sugere que a prática foi disseminada a partir da pornografia (Stulhofer e Adjukovic, 2011) e é comum na subcultura BDSM entre homens gays. Existe uma considerável literatura médica sobre a dor que o sexo anal causa em homens gays, mas para alguns homens gays há uma compensação, porque a prática oferece satisfações particularmente sadomasoquistas (Grabski e Kasparek, 2020). Os ‘ativos’ podem se ver como dominantes e em um papel masculino, enquanto os ‘passivos’, apesar da dor que possam sentir, podem experimentar os prazeres masoquistas de se sentir ‘como uma mulher’, ou seja, subordinados (Jeffreys, 1990). Nenhuma dessas satisfações está disponível para as mulheres, que geralmente falam apenas sobre a dor e o desconforto do sexo anal e o trabalho que têm que realizar para permitir que os homens as usem dessa maneira.

Um artigo de revista sexológica sobre ‘anodispareunia’ deixa claro que o sexo anal é doloroso e desagradável para as mulheres (Stulhofer e Adjukovic, 2011). Os autores definem ‘anodispareunia’ como “dor debilitante persistente durante a relação sexual anal” (Ibid: 349). Eles observam que “o sexo anal está se tornando cada vez mais comum entre mulheres e homens heterossexuais”, mas descobriram que para a maioria das mulheres o sexo anal era doloroso e elas não queriam fazê-lo. O aumento da prática foi marcante. Eles observam que uma pesquisa realizada nos EUA em 2002-3 constatou que 35% das mulheres tinham experiência de sexo anal, enquanto na década anterior a figura era apenas de 23%.

Eles também realizaram uma pesquisa com 2.002 mulheres jovens na Croácia sobre a experiência delas com sexo anal em 2010, na qual descobriu-se que 62,3% delas haviam sido penetradas analmente. Mostrou-se que, embora quase metade, 48,8%, tenha sido forçada a encerrar sua primeira experiência de “intercurso anorretal” devido à dor ou desconforto, a maioria das mulheres, 62,3%, continuou a se submeter às exigências dos homens. Os pesquisadores consideraram que a representação comum do sexo anal na pornografia online explicava o aumento da prática. Eles descobriram que, das 788 mulheres que afirmaram ter continuado a praticar sexo anal, apenas 61, ou 7,7%, relataram que nunca sentiram dor ou desconforto durante o intercurso anal receptivo, e entre as mulheres com dois ou mais episódios de intercurso anorretal no ano anterior, apenas 18 ou 3,6%, estavam livres de qualquer dor ou desconforto (Ibid: 352).

Embora o sexo anal tenha consideráveis desvantagens para as mulheres, ele se tornou tão normalizado nas últimas décadas que passou a ser visto como uma prática sexual cotidiana. Conselhos sobre como fazê-lo são onipresentes em uma variedade de fontes de mídia, especialmente em sites de saúde. Alguns desses recursos detalham os danos. O Medical News, por exemplo, explica que a penetração anal é um problema para a pessoa penetrada, seja ela masculina ou feminina, porque “o ânus não possui as células que criam o lubrificante natural que a vagina possui. Também não tem a saliva da boca” e diz que “a mucosa retal também é mais fina do que a da vagina” (Nall, 2019). Ele lista os riscos que envolvem a saúde, como infecção bacteriana por lacerações na mucosa retal, incontinência, risco de ISTs e, potencialmente, o dano muito grave de fístula.

Algumas fontes de mídia, no entanto, minimizam firmemente seus danos. Um exemplo é a cobertura do sexo anal na Teen Vogue, uma revista para adolescentes do sexo feminino. Um artigo publicado pela primeira vez em 2017 chamava-se ‘Um guia para o sexo anal’ (Engle, 2017/2019). Isso provocou considerável controvérsia na mídia, com os pais dizendo que ele não era adequado para crianças. A justificativa para o artigo foi que as meninas estariam fazendo sexo anal de qualquer maneira, então precisavam saber como fazê-lo. O artigo começa dizendo:

O sexo anal, embora muitas vezes estigmatizado, é uma maneira perfeitamente natural de se engajar na atividade sexual… Então, se você está um pouco preocupado em experimentar ou está tendo problemas para entender o apelo, saiba que não é estranho ou nojento

(Ibid).

O artigo não mostra nenhuma consciência de que a atividade heterossexual ocorre dentro de uma estrutura de poder que torna difícil para as mulheres, ainda mais para as meninas, impedir os homens de fazer o que querem, por medo de violência, de perder o namorado ou simplesmente de não agradá-lo como deveriam. A Teen Vogue promove a prática dizendo: “O ânus está cheio de terminações nervosas que, para algumas pessoas, dão sensações incríveis quando estimuladas”. Ela reconhece que o sexo anal provavelmente será difícil e desconfortável, se não doloroso, para a adolescente, então uma série de instruções é dada sobre como o músculo anal ficará rígido e objetos de vários tamanhos devem ser inseridos para soltá-lo, e então a penetração deve ocorrer muito lentamente com o auxílio de lubrificação. Por meio desse tipo de trabalho, espera-se que as meninas transformem seus ânus em tubos de masturbação para seus usuários masculinos.

As adolescentes em cujos corpos essas práticas serão provavelmente executadas quando os rapazes experimentarem seu repertório sexual estão em uma posição muito pior para exercer um “não” do que as mulheres mais velhas cujas dificuldades com o consentimento foram delineadas anteriormente neste capítulo. Há evidências de que as adolescentes são particularmente vulneráveis à violência sexual de parceiros masculinos. Uma pesquisa de 2015 com meninas de 13 a 17 anos em cinco países europeus descobriu que mais de quatro em cada dez foram coagidas a atos sexuais. Nas entrevistas, muitas crianças disseram que a pressão para fazer sexo era tão persistente que se tornou ‘normal’. Katie, uma jovem de 15 anos que participou da pesquisa na Inglaterra, disse aos pesquisadores: “Tive relacionamentos em que não podia sair com meus amigos porque eles ficavam com raiva de mim. Eu fui estuprada e outras coisas assim” (Topping, 2015).

Um artigo do British Medical Journal de 2014 descreve as experiências de sexo anal de adolescentes no Reino Unido com idades entre 16 e 18 anos (Marston e Lewis, 2014). As motivações e consequências para meninos e meninas eram extremamente diferentes. Foi descrito como sendo prazeroso para os meninos e um indicador de realização sexual, enquanto para as mulheres era uma fonte de dor ou reputação prejudicada. Um rígido duplo padrão estava em operação. Onde antes os homens competiam entre si para penetrar uma garota vaginalmente e assim obter uma vitória sobre ela da qual pudessem se gabar, o sexo vaginal agora era muito comum e não era mais um desafio. Os jovens passaram para o sexo anal. Os meninos do estudo descreveram o sexo anal como “algo que fazemos para uma competição” e “cada buraco é um gol”. Em contraste, tanto homens quanto mulheres disseram que as mulheres arriscavam sua reputação pelo mesmo ato (Ibid: 3). Os meninos descreveram como forçaram uma menina relutante a passar por uma penetração que ela desconfiava que seria dolorosa:

Shane nos disse que se uma mulher dissesse ‘não’ quando ele começasse a ‘colocar o dedo’, ele poderia continuar tentando: ‘Eu posso ser muito persuasivo […]. Como às vezes você continua, apenas continua até que elas se cansem e deixem você fazer de qualquer maneira’. Um ‘não’ verbal da mulher não impediu necessariamente as tentativas de penetração anal

(Ibid: 3).

O fato de a penetração em uma mulher poder causar danos consideráveis ao seu esfíncter anal não é necessariamente um impedimento, pois existe um grande nicho de pornografia dedicado especificamente a mostrar os danos (Shrayber, 2014).

Neste capítulo, eu examinei o sexo ‘consensual’ que ocorre em relacionamentos heterossexuais. Eu descrevi as muitas forças que permitem aos homens exercer seu direito sexual, mesmo quando as mulheres não querem participar, a dor, humilhação e simples irritação que muitas sentem quando não têm uma maneira realista de dizer não, e as repercussões abusivas que podem experimentar caso se recusem.

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Ódio às mulheres da esquerda à direita

Tradução do texto que Andrea Dworkin escreveu para o livro The Sexual Liberals and their Attack on Feminism em 1990.


Faz bastante tempo desde que nos reunimos para debater o que queremos dizer com “feminismo” e por que a luta pela libertação das mulheres importa tanto para nós, que dedicamos nossas vidas a ela: não três horas da tarde de sábado; não uma carta aqui e outra ali; não um “meu deus, não me diga” enraivecido. Nós realmente não achamos nossas vidas triviais. Imagina só. E nós não achamos que os crimes cometidos contra nós sejam menores ou insignificantes. E isso significa que fizemos um progresso fenomenal em entender que somos seres humanos que têm direitos neste planeta; que ninguém pode tirar esses direitos de nós; e que nós fomos lesadas pela subordinação sistemática das mulheres, pelo abuso sexual sistemático a que fomos expostas. E estamos politicamente organizadas para reagir e mudar a sociedade na qual vivemos, desde suas estruturas.

Acho que, enquanto feministas, temos uma maneira de olhar os problemas que outras pessoas parecem não compreender. Para dar nomes aos bois, a direita e a esquerda parecem não entender o que é isso que as feministas estão tentando fazer. Feministas estão tentando destruir uma hierarquia sexual, uma hierarquia racial, uma hierarquia econômica, nas quais mulheres estão sendo prejudicadas, desempoderadas, e nas quais a sociedade celebra a crueldade infligida contra nós, que nos recusa integridade corporal e uma vida digna.

Agora, este não é um problema que a esquerda considera que tem de ser resolvido. Vocês devem ter notado. E não é algo que a direita considere um problema. A direita ainda nem chegou ao ponto de dizer que o problema não importa, diferentemente da esquerda, porque esta última é sempre vanguardista. Como a esquerda é vanguardista, pode ficar lá na frente dizendo “bom, sim, entendemos o problema; ele só não é particularmente importante”. A direita, como os dinossauros que são, simplesmente nega o problema. E nós, mulheres, temos que escolher entre uma coisa e a outra.

Então, feministas olham a sociedade na qual vivemos e tentam entender como vamos combater o poder masculino. E para tentar entender como travaremos esta batalha, temos que entender como ele se organiza, como ele funciona. Como o poder masculino sobrevive? Como resolve suas questões? Como se mantém enquanto sistema de poder?

Ao olhar o poder masculino, olhar todas as suas instituições, tentando entender como funcionam, concluímos que é como colocar areia em seus tanques de gasolina; temos que fazer com que não funcionem. Então tentamos compreender como podemos fazer isso.

Devemos olhar para o papel da direita em manter o poder dos homens sobre as mulheres e olhar para o papel da esquerda em manter o poder masculino: não devemos olhar para o que dizem, mas para o que fazem. Então, deveremos ir além da realidade tal como eles nos apresentam quando falam, e frequentemente falam, de um jeito ou de outro: “gatinhas, a gente sabe o que é melhor pra vocês. Estamos agindo para defender seus melhores interesses”. A direita vai te prometer um marido que – sim, é verdade, você terá de obedecer, mas que vai ter que te amar por obedecer. Agora, há circunstâncias – essas sob as quais você vive – nas quais as mulheres vão considerar que esta não é uma oferta ruim. Porque você corta o número de homens que você deve obedecer, de bilhões para apenas um.

E a esquerda fará o que eles acreditam ser uma ótima proposta, eles dirão: “ei gatinhas – a não ser que eles estejam sendo particularmente progressistas no momento, e então eles dirão ‘vadias’, porque esta é a ideia deles de liberdade – e eles se dirigirão a nós em qualquer tom de voz que esteja na moda entre eles, e eles nos dirão – bom, o que a gente vai fazer é dar a vocês o direito ao aborto, contanto que continuem sexualmente acessíveis para nós. E se vocês embarreirarem esse acesso, se começarem com esse mimimi de um movimento autônomo de mulheres, nós vamos retirar todo apoio que já demos um dia: financeiro, político, social, tudo o que demos um dia para que vocês ganhassem o direito de abortar. Porque se esse direito não significa acesso aos corpos de vocês, gatinhas, então vocês vão ficar sem ele”. E é isso que eles têm feito nos últimos 15 anos.

Então as feministas chegam e dizem: bem, vamos entender como essas pessoas desejam o que desejam. Nós vamos abordar o problema politicamente. Isto significa que vamos tentar isolar e descrever sistemas de exploração que trabalham contra nós, do nosso ponto de vista, enquanto pessoas lesadas por eles. Isto significa que embora estejamos por baixo, e eles por cima, estamos procurando pelas vulnerabilidades deles. E quando as encontramos – e nós as encontramos anatomicamente, inclusive – nós vamos mover todos os nossos músculos, qualquer que seja nossa posição, e nós vamos tirar esse cara, em qualquer uma de suas manifestações coletivas, de cima da gente.

E isto significa que, politicamente, estamos organizando uma resistência política à supremacia masculina. Nós costumávamos falar em fazer revolução. Nós sorrimos e gargalhávamos e estávamos muito deslumbradas. Achávamos que seria fácil. Nós não compreendíamos, por algum motivo, que as pessoas no poder não iam gostar da revolução tanto quanto nós estávamos gostando. Eles pararam de se divertir quando começamos a nos organizar. Bom, eles foram ficando mais e mais chateados quando começaram a ver que eram vulneráveis, que a supremacia masculina não era apenas gigantesca e monolítica, que não tinha sido dada a eles por Deus nem pela natureza. Deus é a direita, a natureza é a esquerda.

E começou a parecer que, se por um lado, uma revolução da noite para o dia não seria possível, uma resistência consistente, séria e organizada às instituições do poder masculino que oprimem as mulheres, isto seria possível. Nós começamos a perceber e eles começaram também.

Então começaram os dias difíceis do movimento de mulheres. As pessoas de quem tentávamos tirar o poder não iam continuar nos atacando das maneiras que eram autorizados a atacar por milhares de anos. Eles iam se articular politicamente para nos refrear. E foi isso que fizeram.

Quando falo sobre resistência, estou falando de resistência politicamente organizada. Não estou falando de uma coisa intermitente. Não estou falando de sentimentos. Não estou falando de sentir, no seu coração, e viver seu dia normalmente, cheia de ideias decentes, boas e maravilhosas. Estou falando de quando você coloca o seu corpo e sua mente na reta e quando se compromete com anos de luta para mudar a sociedade em que vive. Isso não significa apenas mudar os homens que você conhece para que eles tenham boas maneiras – embora isto não seja mau. Faz quinze anos. As maneiras deles podem até ter melhorado consideravelmente. Mas não é isto que faz uma resistência política. Uma resistência política segue em frente noite e dia, clandestina ou abertamente, onde as pessoas podem ver e onde não podem. Passa de uma geração para outra. É ensinada. Encorajada. Celebrada. É inteligente. Experimentada. Comprometida. E um dia vencerá. Vencerá.

Nós encarnamos, também, uma resistência pessoal à dominação masculina. Fazemos isso da maneira como conseguimos. E parte do problema dos últimos anos tem sido sugerir que, tanto uma forma quanto a outra, resistência política ou pessoal, vai ser suficiente, porque feminismo seria um estilo de vida. Você é uma mulher jovem e moderna. Claro que você é feminista. Feminismo não significa isso. Feminismo é a prática política de lutar contra a supremacia masculina, em benefício das mulheres enquanto classe, incluindo todas as mulheres de quem você não gosta, de quem não quer estar perto,incluindo as mulheres que eram suas melhores amigas e com quem você agora não quer mais nenhum contato. Não importa quem são as mulheres individualmente. Todas elas estão igualmente vulneráveis ao estupro, espancamento, como as crianças estão vulneráveis ao incesto. Mulheres mais pobres têm mais vulnerabilidade à prostituição, o que é basicamente uma forma intolerável de exploração numa sociedade igualitária, a sociedade pela qual estamos lutando.

Parte do que fazemos nesta resistência da qual estou falando é a recusa em colaborar com o poder masculino. Recusa em sermos usadas por eles. Recusa em sermos as garotinhas deles. Recusa em colaborar para fazer nossas vidas ficarem um pouquinho mais fáceis. Recusa em colaborar com esse poder mesmo que seja para ganhar uma plataforma para falar nesta sociedade. Um ventríloquo poderia estar movendo seus lábios, se você for uma mulher à frente de um poder masculino. Você não está trabalhando em favor das suas irmãs. Você está trabalhando pros caras. E você está facilitando que eles prejudiquem as mulheres. É muito difícil não colaborar com o poder masculino, porque ele está em todo lugar. Onipresente.

Parte de ter uma resistência feminista ao poder masculino inclui expandir a base da resistência para outras mulheres, mulheres com quem você não tem tanto em comum, mulheres com quem você não tem nada em comum. Fazer proselitismo ativamente, em diálogo com mulheres de muitos pontos de vista diferentes, porque a vida delas tem valor, porque a sua vida também tem. Esse é o porquê.

Nós precisamos romper as barreiras políticas convencionais, as linhas que os homens traçaram para nos dividir. “Nossas meninas estão ali; vamos chamá-las de Democratas, socialistas, vamos chamar do que der na telha. Aquelas meninas estão lá, e são as meninas deles. As meninas do nosso lado não podem falar com as meninas deles”. Bom, se as meninas de qualquer um dos lados falasse com as outras, elas acabariam constatando que estão ferradas do mesmo jeito pelo mesmo tipo de homem.

E aí quando olhamos para a experiência vivida das mulheres – que é o que feministas fazem, e nem a direita, nem a esquerda fazem – o que percebemos? Percebemos que mulheres por todo o espectro político, quaisquer que sejam suas ideologias, são estupradas e que mulheres experimentam espancamento dentro e fora de casamentos. Encontramos um grande número de mulheres adultas que foram vítimas de incesto, descobrimos que o número de vítimas de incesto neste país [EUA] está crescendo [1]. Neste momento, especialistas acreditam que dezesseis mil novos casos de incesto de pais contra filhas – o que é apenas um dos tipos de incesto – ocorram todos os anos.

A experiência real das mulheres inclui a prostituição, a experiência real das mulheres inclui a pornografia. E quando olhamos para a experiência real das mulheres – e quando não aceitamos o blablabla que os homens nos forçam goela abaixo sobre o que nossas vidas supostamente seriam – o que encontramos, por exemplo, quando olhamos a pornografia, é que podemos traçar gerações de mulheres sexualmente abusadas. E encontramos diferentes gerações sendo abusadas: meninas, jovens mulheres, mães e avós. A pornografia não tinha que estar em todas as ruas para funcionar como parte do abuso sexual de mulheres na sociedade. Estou apenas lembrando vocês do que vocês já sabem: que a maior parte dos abusos sexuais acontece em ambiente privado. Acontece, para dizer a verdade, onde não podemos ver. E a conquista impressionante do movimento de mulheres foi dizer “não vamos mais respeitar sua privacidade, seu estuprador”.

As mulheres estão isoladas em seus lares. Não quer dizer que não possam sair; podemos. Mas as coisas acontecem conosco principalmente em nossos lares. O lar é o lugar mais perigoso para mulheres em nossa sociedade. Mais mulheres morrem em seus lares do que em qualquer outro lugar. Uma mulher é espancada nos EUA – casada ou coabitando – a cada dezoito segundos [2]. O lar é um lugar perigoso para mulheres.

E antes do movimento de mulheres, as mulheres que eram estupradas, espancadas, não sabiam que as demais também o eram. Acontecia para ela, sozinha no mundo. Por quê? Porque ela fez alguma coisa; porque ela era alguma coisa errada; porque fez algo errado; porque era má, de algum jeito. O problema – a violência – era efetivamente escondida pela supremacia masculina. O fato é que você podia dar a volta em qualquer quarteirão da cidade e encontrar massas de mulheres que tinham precisamente as mesmas experiências, com precisamente as mesmas violências masculinas, precisamente pelos mesmos motivos. E o motivo – de fato, há apenas um – é que elas são mulheres. É isso. São mulheres. A sociedade está organizada não apenas para punir mulheres como para proteger os homens que punem. É isto que estamos tentando mudar.

Agora, em termos de lidar com a direita e a esquerda e o ódio às mulheres, quero falar com vocês especialmente sobre pornografia e algumas estratégias que a envolvem, onde a esquerda e a direita se unem para resguardá-la, para manter mulheres subordinadas através da pornografia, e manter o abuso sexual que ela causa, protegidos e bem.

A pornografia existia no lar e era usada para o abuso sexual. Estava disponível em grupos exclusivamente masculinos. Muitas de nós, ao crescer (se hoje temos entre 40 e 50 anos) não víamos pornografia. Ela não saturava o nosso ambiente como agora. Como resultado, faltava uma peça quando tentávamos decifrar o abuso sexual. Nunca havia jeito para entendermos como os valores dos estupradores eram compartilhados, como compartilhavam técnicas para abusar das mulheres, ou como a racionalização do abuso era comunicada. Como os homens aprendiam essas coisas? Essas coisas não caíam do céu. Não achamos que caíam. Acho que algumas pessoas pensavam assim: junto aos Dez Mandamentos, veio a pornografia: é assim que se bate na mulher, é assim que se amarra uma mulher.

Mas não, nós não achamos que aconteceu assim. Então: lá estão as mulheres como propriedade privada, possuídas por homens, em casas, isoladas. E para lidar com este problema chamado pornografia temos algo chamado “leis de obscenidade”. E o que essas leis fazem, quando funcionam, é esconder a pornografia de mulheres e crianças. Impedem-nos de ver a pornografia. Não previnem que a pornografia seja usada contra nós por homens que nos abusam. Homens podem acessá-la e usá-la. Mas nós não a vemos, não falamos sobre ela, não nos organizamos a respeito dela, não aprendemos com ela como a supremacia masculina funciona. Não conseguimos fazê-lo. 

Uma das maneiras pelas quais a estrutura social protegeu a supremacia masculina foi a estratégia direitista de usar leis de obscenidade para manter a pornografia em segredo para mulheres e crianças enquanto a disponibilizava para o uso masculino privado, em grupos inteiramente masculinos.

Nós temos essa estranha noção que aparece de vez em quando no movimento de mulheres, e que é uma grande trivialização das nossas vidas; essa noção errada de que existe uma divisão fenomenologicamente real do mundo entre mulheres boas e mulheres más. E temos algumas mulheres esquerdistas orgulhosíssimas de serem reconhecidas, percebidas e consideradas enquanto más. Malvadonas. A realidade, porém, é que você pode fazer tudo neste mundo para ser uma mulher boa mas quando você está no privado, em casa, com seu marido privado que você atraiu através de sua conformidade com o que se estipulou como “uma boa mulher”, quando ele começa a bater em você, ele te bate porque você é má. E a premissa que subjaz à sociedade é de que todas as mulheres são más, que temos uma natureza que é má e que, portanto, merecemos punição. E você pode ser a mais malvadona mulher da esquerda – o que, na esquerda, equivale a ser uma mulher boa – e quando o esquerdista começa a bater em você, ele te bate porque você é uma mulher, porque você é má enquanto mulher, não enquanto má esquerdista; você é má porque você é mulher e merece ser punida.

A manifestação desse princípio pode ser observada nas instituições. Peço que o considerem em relação à pornografia, pois nela não existe nada que puna suficientemente uma mulher por ser mulher. A natureza mesma do ser mulher é extrair prazer sexual de sua punição. Você não tem que pedir pra ser transformada numa menina malvada. Você vive sob a supremacia masculina, você é uma. Você é mulher: o que há de odioso em você – em você, que te define – é a razão pela qual homens te machucam. É a razão pela qual eles não dizem “estou batendo em um ser humano, estou machucando um ser humano”. Eles dizem “estou punindo uma vagabunda, estou punindo uma puta”. Eles dizem o que a pornografia diz: “Você gosta disso, né. Há algo em você que se satisfaz com isso”.

Então, quando você busca ajuda, pensando que é uma pessoa que não gosta de ser machucada, o psicólogo diz: “Há algo em você que gostou, né?”. Você diz “Nossa, não. Eu não gostei”. E ele diz “Bom, você não está sendo honesta consigo própria e certamente não conhece a si mesma muito bem”. E você vai ao seu yogi, e pode contar, ele vai te dizer a mesma coisa. É um pouco desencorajador, não? Mesmo os vegetarianos acham que se você é uma mulher, você é má.

Supostamente, temos essa natureza que clama pelo abuso. Pornografia é sobre nos punir a ponto de nos aniquilar por sermos mulheres e tanto esquerda quanto direita têm um papel a cumprir na proteção da pornografia. Eles atuam em harmonia para que sejamos punidas. Esta batalha pública entre direita e esquerda é, do nosso ponto de vista, uma distração. Cada um dos lados tem um papel em nos manter por baixo. E o que importa é sabermos qual parte cabe a cada um deles.

O que acontece quando “leis de obscenidade” são implementadas é que juízes de direita – essas pessoas autoritárias que supostamente odeiam pornografia mais do que tudo neste mundo (acreditar nisso é comprar gato por lebre) – estabelecem uma fórmula legal que protege a pornografia. Ao definir obscenidade, eles estabelecem a fórmula que pornógrafos usarão para proteger a pornografia uma vez publicada. A Suprema Corte afirma “faça isso assim e assado, dessa maneira e daquela. Enquanto você tiver isto, isto e aquilo, a gente não põe a mão em vocês”.

Nessa hora, aparecem os esquerdistas, escritores de vanguarda, que se juntam ao coro e dizem “então está bem, vamos produzir um material socialmente redentor que vai estar de acordo com as fórmulas que os direitistas elaboraram”. E, aqui e ali, um escritor direitista vai fazer algo também. William Buckley ou qualquer um. Ele não recusa dinheiro; feministas recusam dinheiro. Pessoas que não recusam dinheiro não são feministas.

Assim, temos esse estupendo contrato social entre direita e esquerda – eles, que fingem estar lutando um contra o outro o tempo todo – que, na verdade, podem colocar no papel qualquer quantidade de exploração do ódio às mulheres, tortura, crueldade e selvageria em suas revistas, bastando embrulhá-la com um aviso de que sim, a publicação está de acordo com os padrões estabelecidos pela Suprema Corte. Basta isso. Eles nem precisam ser plenamente alfabetizados para fazê-lo. Eles, os homens de direita e os homens de esquerda, fazem isso em conjunto. E se você se deixar distrair pela briguinha de masculinidades que eles estão sempre travando, você não verá o fato de que, quando se trata de elaborar este produto chamado pornografia, eles estão de acordo.

O ódio às mulheres contido na pornografia não importa para nenhum dos lados. O ódio às mulheres não é tóxico – para usar uma palavra da moda [3] – nem à direita, nem à esquerda, e isto se refere tanto a mulheres sendo usadas como bichinhos de estimação, como coelhinhos e gatinhas, ou mulheres sendo torturadas. Os caras estão de bem com tudo isso. De ambos os lados.

A maneira pela qual os pornógrafos tocam seus negócios de fato tem a ver com a administração municipal em território nacional. Nós temos prefeituras em cidades por todo o país – compostas por Democratas e Republicanos – que estão tomando decisões inacreditáveis sobre nossas vidas todos os dias. A maior parte de nós é nariz-em-pé demais para prestar atenção nessas coisas. Nós temos ideologias sobre as quais pensar. Nós temos pautas políticas maiores para abocanhar. Enquanto isso, eles estão dando pedaços das cidades aos pornógrafos, naquelas prefeiturazinhas pequenas que não significam nada para nós.

Então você tem os políticos locais que se levantam, como de costume, contra a pornografia, à direita e à esquerda. Os liberais estão chocados – simplesmente chocados – mas precisam defender a pornografia. Eles precisam. Por quê? Quando perguntamos, eles mudam de assunto. O zoneamento é a permissão legal para explorar e traficar mulheres. É isso o que zoneamento significa. O zoneamento não impede a pornografia, apenas a restringe a um bairro específico. A maneira como os pornógrafos conseguem vasto poder municipal é que eles comparecem às reuniões de zoneamento. Eles vão, os advogados deles vão. Eles descobrem quais partes de quais cidades são destinadas para o desenvolvimento da cidade, quer seja no centro comercial, um projeto de moradias ou o projeto de um shopping. Eles vão e compram terra. Eles mantêm a terra refém até que as leis da cidade os favoreçam. Então eles conseguem vender o produto deles – que é o ódio às mulheres – em partes da cidade oficialmente autorizadas. E quais são as partes da cidade que eles ganham? Os lugares com menores concentrações de pessoas brancas, ou com brancos pobres.

Por exemplo, Minneapolis é uma cidade cuja população é 96% branca e 4% racializada, majoritariamente povos originários e negros e negras. Como explicar que 100% da pornografia é produzida nesta última área? Quero dizer que, se a pornografia estivesse caindo do céu, não seria assim.

É isso que acontece. Os lugares onde a pornografia é produzida são economicamente devastados. Negócios legítimos vão embora. Homens e todas as partes da cidade vêm, durante a noite, comprar pornografia e caçar mulheres. Crimes violentos contra mulheres e crianças crescem nesses bairros. Ninguém sai de outros bairros para visitar estes, a não ser que queiram pornografia. Logo temos uma nova forma de segregação espacial na cidade criada pelos efeitos sociais da pornografia. Temos um aumento de violência contra mulheres e crianças.

Então, esquerda e direita cooperam de maneira clandestina. Temos os Republicanos, que às vezes são Democratas, falando dos valores da propriedade. Eles vão proteger o valor da propriedade. Mas quem esses valores protegem? Protegem brancos ricos. É por isso que a pornografia vai parar onde vai parar. E então a esquerda se levanta, furiosa, e fala ‘como vocês podem fazer isso, queremos equidade econômica, não queremos devastação econômica aqui’. A esquerda não faz nada, porque enquanto a direita está defendendo a propriedade, a esquerda está defendendo o discurso.

Temos, agora, em várias municipalidades, uma nova forma de segregação criada pela pornografia. Novas áreas de danos econômicos criados pela pornografia. E temos um novo desespero para as pessoas que vivem ali.

Qual é o papel do Estado nisso tudo? As pessoas gostam de falar do papel do Estado. É abençoadamente abstrato. É como um teste de Rorschach, você pode dizer o que quiser. Ninguém sabe se está certo ou errado. O que eu gostaria de dizer, portanto, é que podemos olhar para um Estado, em particular, este sob o qual vivemos. Podemos olhar atentamente para como ele funciona e como veio a existir.

Algo que parece estar claro é que nem a direita, nem a esquerda, acredita que o papel do Estado é criar justiça econômica ou sexual. Isto parece nítido. Igualdade não é mais um objetivo da esquerda, se isso implicar mulheres. A esquerda desautorizou a igualdade enquanto objetivo, e para a direita, isto sequer foi um objetivo.

E esta é a realidade, e imploro para que vocês pensem nisso quando escutarem sobre a Primeira Emenda. Imploro para pensarem como a Constituição foi manufaturada para proteger a escravidão como instituição; manufaturada para não impedir a escravidão, para não interferir, para não danificar a compra e venda de seres humanos. Não é uma surpresa que o Estado regulado por esta Constituição seja profundamente insensível a crimes de compra e venda de seres humanos.

E eu devo lembrá-los que os Pais Fundadores eram – muitos deles – donos de escravos. Mas especialmente James Madison, que manufaturou a Primeira Emenda, não apenas possuía escravos, como se gabava de gastar doze ou treze dólares anuais para mantê-los vivos, ao passo que lucrava 257 dólares por ano em cima de cada escravo que possuía.

A Primeira Emenda não tem nada a ver com a proteção de direitos das pessoas que foram historicamente gado neste país. E não é uma surpresa que agora a Primeira Emenda esteja protegendo pessoas que compram e vendem seres humanos: A Primeira Emenda está protegendo os pornógrafos. E nos dizem que a liberdade de expressão deles fortalece a nossa. Veja só, eles pegam uma mulher, dez mulheres, trinta mulheres, colocam mordaças em nossas bocas, penduram a gente em algum lugar, e nossa liberdade de expressão ficou maior! Isso desafia a compreensão, mas eles juram de pés juntos que é verdade. Eu sigo dizendo que não é.

Por favor, entendam que agora vivemos em um país onde as cortes estão ativamente protegendo a pornografia e os negócios pornográficos. Quando a lei municipal de direitos civis foi aprovada em Indianapolis, a cidade foi processada uma hora depois, simplesmente por tê-la aprovado. Ela nunca foi usada. A cidade foi processada pela aprovação.

O primeiro juiz, numa corte federal do distrito, era uma juíza apontada por Reagan, uma mulher, uma mulher de direita. Em sua decisão, ela disse que a discriminação sexual não pode pesar mais que a Primeira Emenda. Esta é a posição da direita. A Primeira Emenda é mais importante do que qualquer dano infligido às mulheres. Esta primeira decisão foi apelada. Outro juiz apontado por Reagan, Frank Easterbrook, escreveu o apelo da corte que derrubou a lei municipal. Ele disse que a pornografia faz, de fato, tudo que dizemos que ela faz. Que promove dano e estupro. Ele disse que a pornografia leva a menores salários para as mulheres, que é uma afronta às mulheres, um insulto, uma injúria. Então disse que tudo isto atesta o poder da pornografia como discurso. A possibilidade de a pornografia machucar mulheres é a razão mesma pela qual precisa ser protegida. Um direitista, libertariano, apontado por Reagan.

Sendo assim, e sua teoria diz que a direita é contra a pornografia e usará quaisquer meios para impedi-la de existir, me parece que a realidade te força a mudar tua teoria, pois essa teoria está errada. Tanto direita quanto esquerda concordam que a mulher pendurada em algum lugar é discurso masculino. Discurso de alguém. Vocês entendem que, uma vez transformadas em discurso, viramos propriedade masculina enquanto discurso na era da tecnologia? Uma vez tecnologizadas, somos legalmente seu gado.

Supostamente, a esquerda não está nem aí para o livre mercado. Quero dizer: o livre mercado não é uma invenção da esquerda, certo? Quero dizer, o livre mercado significa vender o que se pode vender, você vende um monte, você aumenta os preços e lucra tanto quanto pode. E o mercado te diz o que é popular, o que não é, o que você pode ou não pode fazer. E se um monte de gente morrer porque eles não valem muito, esse é o custo, porque o maior valor reside na competição do livre mercado.

Talvez você já tenha ouvido a esquerda falar do livre mercado das ideias. Você não deve apenas vender porcos ou gado ou cebolas ou maçãs ou carros, no livre mercado. Existe um livre mercado de ideias. Neste mercado, as ideias competem. E as ideias boas vencem as ruins.

Você talvez pense como eu pensava, que as ideias são inefáveis, não uma commodity. Digo, você não pode pegar ideias no ar e colocá-las no mercado, vendê-las e dizer ‘pesa tanto, então vou vender por tal valor’. O que constatamos é que, se você analisar de quais ideias a esquerda está falando, eles estão falando de mulheres. Eles querem dizer que mulheres estão sendo objetificadas na pornografia, sendo usadas, exploradas. Esse é o tal ‘livre mercado das ideias’. E as ideias são estranhamente parecidas com a gente. Nós somos as ideias, e os caras têm um ‘livre mercado’ para nós. Eles efetivamente têm.

A verdade é que a opressão é uma realidade política. É um estado de arranjos de poder no qual algumas pessoas estão por baixo, e elas são exploradas e usadas pelas pessoas que estão por cima, ou que estão em cima delas. Neste país, onde tudo tem que ser psicologizado, e a seguir usado por sociólogos, nós não falamos de opressão como uma realidade política. Em vez disso, falamos de pessoas como vítimas. Dizemos que Fulana ou Ciclana foi vitimizada. Fulana foi vítima de estupro. É uma palavra sem problema algum. Verdadeira. Se você foi estuprada, foi vitimizada. Pode apostar. Você foi a vítima. Não significa que seja metafisicamente uma vítima, e seu Ser, como se fosse uma parte intrínseca de sua essência e existência. Ser uma vítima significa que alguém te machucou. Eles prejudicaram você.

E se isso acontece com você sistematicamente por você ter nascido mulher, isso significa que você vive em um sistema político que usa a dor e a humilhação para te controlar e prejudicar. Uma das coisas que nos aconteceram é que um monte de gente nos disse que somos vítimas porque nos sentimos assim. Nós sentimos isso, é um estado de espírito, é uma reação emocional desproporcional. Nós sentimos isso. Não é algo que nos aconteceu; em vez disso, nós estamos num estado de espírito ruim. E as feministas somos responsáveis por esse estado de espírito, porque fazemos com que mulheres se sintam vitimizadas.

Quando apontamos que um estupro acontece a cada três minutos [nos EUA] [4] , que uma mulher apanha a cada dezoito segundos, e dez bilhões de dólares são gastos para assistir esses estupros, por diversão, dólares gastos para vê-las sendo exploradas e objetificadas por diversão, e se você não se sente um pouco lesada, um pouco diminuída, me parece que você não apenas é uma vítima, como já está meio morta, totalmente anestesiada e é verdadeira tola. 

A exploração é real e identificável, e lutar contra ela te deixa forte, e não o contrário. A violação sexual é real, e é intolerável, lutar contra ela te faz forte, e não fraca. E a direita como a esquerda – tanto faz se é a Phyllis Schlafly dando palestra sobre como você não teria sido assediada se tivesse sido virtuosa, ou a esquerda explicando que você deveria celebrar sua sexualidade, esquecendo sobre estupro, deixando isso pra lá, pra não trazer bad vibes, não se vitimizando – ambos querem mulheres aceitando o status quo, para viver no status quo e não se organizarem politicamente na resistência sobre a qual eu falei antes. Porque o primeiro passo em resistir à exploração é reconhecê-la, vê-la, sabe-la, e não mentir sobre onde ela aperta o seu calo.

O segundo passo é se importar o suficiente com outras mulheres. Se hoje você está bem, e ontem você estava bem, mas a sua irmã, a que está pendurada em uma árvore, não estiver bem, você vai lá cortar a corda.

O feminismo é a oposição ao ódio às mulheres para, assim, construir uma sociedade realmente igualitária. E não pode haver qualquer movimento de mulheres enraizado na defesa política do ódio às mulheres. Aqueles que acham tudo bem odiar as mulheres – não são feministas. Não são. Aqueles que acham tudo bem de vez em quando, aqui e ali, onde eles gostam, onde eles têm prazer – especialmente prazer sexual – com o ódio às mulheres, não são feministas também. E as pessoas que acham o ódio às mulheres terrível em certos lugares, mas tudo bem na pornografia, porque pornografia causa orgasmos, essas pessoas não são feministas. Pornografia causa orgasmos em pessoas que odeiam mulheres – com certeza. E pessoas que odeiam tanto as mulheres que acreditam que sua exploração seja discurso ou ideia não são feministas. Pessoas que acreditam que mulheres não são exatamente humanas, tão humanas quanto eles, ou que as mulheres na pornografia não são tão humanas quanto eles, não são feministas. Qualquer um que defenda aqueles que odeiam as mulheres, que produza ódio às mulheres, que produzam pornografia, que celebrem ódio às mulheres no sexo, essas pessoas não são feministas.

Eu gostaria de ver este movimento retornar ao que chamo de feminismo primitivo. É simples. Muito simples. Significa que quando algo fere mulheres, feministas se colocam contra isso. O ódio às mulheres prejudica as mulheres. Pornografia é ódio às mulheres. Pornografia prejudica as mulheres. Feministas são contra a pornografia, e não a favor.

DWORKIN, Andrea. “Woman-Hating Right and Left”. IN: LEIDHOLDT, D. and RAYMOND, J. The Sexual Liberals and their Attack on Feminism. New York: Teachers College Columbia University, 1990. Tradução por @taticafeminista.


Notas:

[1] No Brasil, 40% dos casos de pedofilia são cometidos pelos pais. (https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/ministerio-divulga-dados-de-violencia-se xual-contra-criancas-e-adolescentes)

[2] No Brasil, em 2020, foram espancadas 17 milhões de mulheres, o que equivale a 8 mulheres por minuto. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

[3] No original, “ofender” foi a palavra usada por Dworkin. Mesmo que “tóxico” e “ofender” não sejam sinônimos, nem mesmo estejam na mesma classe gramatical, o adjetivo “tóxico” tem sido usado frequentemente para designar o que se podem considerar comportamentos desagradáveis, ofensivos ou violentos. E, claro, nem a direita nem a esquerda acham que a pornografia seja “tóxica”.

[4] Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dez minutos uma mulher foi estuprada no Brasil em 2021.

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As feministas devem rejeitar a Esquerda e a Direita

Até que um dos lados comece a se perguntar como suas políticas afetarão as mulheres, as feministas devem rejeitar ambos

Por Louise Perry. Traduzido livremente do original publicado em novembro de 2020 no The Critic.


O texto abaixo está situado no contexto da política feminista anglo-saxônica. Acreditamos que as reflexões que ele traz podem ser úteis para pensarmos a política feminista e suas interações com a política partidária institucional brasileira. No que diz respeito a políticas para mulheres, a Esquerda brasileira abraçou o transativismo sem restrições e assedia violentamente as vozes discordantes — conforme já comentamos aqui e aqui; aqui um blog dedicado a expôr esse tipo de perseguição política. Já a Direita atua dentro dos limites exigidos pela legislação quanto a participação das mulheres entre seus correligionários; qualquer ação à Direita envolvendo os interesses compartilhados das mulheres surge do interesse e da necessidade pessoal delas.

Diante da crise e da aparente imediata ruptura democrática do Estado brasileiro, existem alguns bordões circulando entre a Esquerda que sintetizam mais ou menos as seguintes ideias: “se falou ‘nem esquerda, nem direita’ é porque é de direita”; “falou em ‘terceira via’? É de direita!” O texto de Perry, abaixo, é bastante didático ao delinear como os interesses das mulheres estão além e na transversal do espectro político tradicional. Ele também exemplifica o fato de que, entre os seus supostos aliados, tanto à Direita quanto à Esquerda, as mulheres não são vistas como seres humanos completos e de direito e, portanto, não são vistas pelos homens como parceiras legítimas de luta.

Isso acontece porque um real comprometimento com a luta das mulheres não pode ser feito sem prejuízo aos interesses e prerrogativas dos homens. Nenhum dos lados do espectro político parece querer abrir mão disso.

Para qualquer um que duvidasse da influência contínua do Império Americano, a resposta internacional à morte de Ruth Bader Ginsberg serviu como um sóbrio lembrete. O núcleo político britânico do Twitter — sempre focado em eventos americanos — foi imediatamente tomado por especulações febris sobre quem poderia substituí-la na Suprema Corte dos Estados Unidos. O clube de futebol feminino de Glasgow City anunciou que levaria seu nome em sua faixa como uma homenagem a este “ícone feminista e modelo inspirador”.

Mulheres que conheço que não são americanas, que nunca viveram na América e que passaram muito pouco tempo ali, expressaram sua tristeza sincera. A maioria dessas britânicas enlutadas não seria capaz de nomear um único juiz, digamos, na França ou na Austrália, e talvez nem mesmo neste país. Porém, os eventos políticos americanos sempre recebem um status especial. Esse domínio americano tem um efeito de distorção sobre o tom e as prioridades do feminismo neste país, e geralmente às nossas custas, já que feministas britânicas que mantêm seus olhos fixos no outro lado do Atlântico, olhando para a Big Sister America em busca de orientação, muitas vezes falham em lembrar que as feministas americanas não conseguiram muita coisa.

Trata-se de um país sem direitos maternos garantidos pelo Estado, que nunca conseguiu adotar a Emenda da Igualdade de Direitos depois de quase um século de campanha, que está na metade inferior do ranking mundial de representação política feminina e que nunca teve uma chefe feminina do Estado. Sim, produziu algumas das pensadoras feministas mais interessantes e influentes da história. Mas é também a sede mundial da indústria pornográfica.

Feministas americanas passaram quase meio século lutando com unhas e dentes para defender sua mais preciosa e frágil conquista, o caso Roe vs Wade, que desde 1973 impede as legislaturas estaduais de proibir o aborto no primeiro trimestre. A perda de Ginsberg na Suprema Corte pode colocar Roe em perigo, o que foi um dos principais motivos para a ansiedade manifestada após a notícia de sua morte. Mas esta é uma questão feminista que tem muito menos ressonância no continente britânico, uma vez que o aborto de até 28 semanas foi legalizado na Inglaterra, País de Gales e Escócia em 1967. Para as feministas americanas, o aborto é, muito compreensivelmente, a questão preeminente; para as feministas britânicas, não.

Essa diferença particular entre a Grã-Bretanha e a América representa uma diferença mais geral entre os dois países, que teve um efeito importante na história do feminismo anglófono. Simplificando, a direita americana tem um caráter totalmente diferente da direita britânica: é mais barulhenta, mais extrema, mais religiosa e também mais poderosa. Isso representa uma ameaça genuinamente formidável para os defensores de Roe e, de fato, para os defensores de alguns dos princípios feministas mais básicos: os direitos de uma mulher de ganhar dinheiro, possuir propriedade e, de viver uma vida legal e econômica separada completamente da de seu pai ou marido.

O livro de Andrea Dworkin de 1978, Right-Wing Women, dá uma ideia do medo que as feministas americanas têm da direita. Sua questão central — por que qualquer mulher se aliaria à direita? — é respondida em uma única palavra: medo. As mulheres, argumenta Dworkin, têm justificadamente medo do mundo, e os homens de direita prometem mantê-las seguras. Em troca, essas mulheres devem abominar o aborto, o lesbianismo, o anti-racismo e o socialismo.

Ela escreve sobre como conversou com mulheres de direita e achou-as criaturas alienígenas: “As conservadoras eram ridículas, aterrorizantes, bizarras, instrutivas e, como outras feministas relataram, às vezes estranhamente comoventes”. Essas mulheres tinham, na opinião de Dworkin, feito um pacto com o diabo. E ainda assim Dworkin foi capaz de trilhar um caminho que outras feministas americanas parecem incapazes de seguir. Embora ela tenha sido explícita em sua rejeição à direita, ela sempre permaneceu desconfiada da esquerda. É em Right-Wing Women que uma de suas declarações mais famosas pode ser encontrada:

A diferença entre a esquerda e a direita quando se trata de mulheres é apenas sobre em que ponto de nossos pescoços eles devem pisar com suas botas. Para os homens de direita, somos propriedade privada. Para os homens de esquerda, somos propriedade pública.

O erro que as feministas cometem repetidamente, não apenas na América, mas também neste país, é priorizar a animosidade contra a direita em vez de ter uma compreensão clara da atitude que a esquerda assume em relação às mulheres. Os resultados desse erro estão, acho eu, começando a se tornar claros demais para serem ignorados.

Não estou sugerindo que as feministas devam unir forças com a direita, certamente não com a extrema-direita religiosa sobre a qual Dworkin escreveu. Estou sugerindo outra coisa: que as feministas deveriam se libertar tanto da esquerda quanto da direita, uma vez que ambas as tradições políticas eram até muito recentemente inteiramente dominadas por homens e interesses masculinos, o que significa que uma forma produtiva de política feminista precisa ser deliberadamente ortogonal ao espectro político tradicional.

Para as americanas, essa sugestão pode parecer alarmante demais para ser aceita, dado o poder temível de sua direita, que tantas vezes faz com que as feministas voltem correndo para os braços traiçoeiros da esquerda. Mas na Grã-Bretanha, o distanciamento do feminismo tanto da esquerda quanto da direita já pode estar ocorrendo.

O recente triunfo das feministas britânicas contra as reformas propostas para a Lei de Reconhecimento de Gênero (GRA, sigla de Gender Recognition Act) ilustra esse ponto. Em 2017, o governo de Theresa May anunciou uma enquete sobre o processo pelo qual as pessoas “trans” podem mudar seu sexo legal. A preferência de grupos de defesa LGBT como Stonewall é um sistema de auto-identificação, que permitiria às pessoas mudar seu sexo legal com o mínimo de controle: sem consulta psiquiátrica, sem necessidade de “viver como” o sexo oposto por um período antes de fazer um trâmite legal, sem necessidade de qualquer intervenção médica.

A auto-identificação permitiria que qualquer pessoa, a qualquer momento, simplesmente se declarasse membro do sexo oposto, e o governo seria obrigado a reconhecer oficialmente essa declaração. Para os defensores da auto-identificação, este seria um passo bem-vindo no sentido de desmedicalizar e desestigmatizar a identificação como “transgênero”. Para uma parte das feministas, no entanto, isso é considerado profundamente perigoso.

O transativismo se dedica a apresentar as diferenças físicas entre homens e mulheres como triviais e cosméticas, facilmente superáveis por meio de intervenções médicas, ou então totalmente negligenciáveis. Feministas críticas de gênero que se opõem ao ativismo “trans” insistem, em vez disso, que as diferenças são profundamente importantes. As mulheres não apenas têm filhos, mas também são menores e mais fracas do que os homens, o que leva a um desequilíbrio inerente de poder no nível interpessoal. Na verdade, a maioria dos homens pode matar a maioria das mulheres com as próprias mãos, mas não vice-versa.

Feministas críticas das políticas de gênero, portanto, levantaram a questão da facilidade com que homens mal-intencionados poderiam prejudicar as mulheres ao ganhar acesso a espaços exclusivos para elas, como refúgios, prisões e vestiários através de um sistema de auto-identificação. Esses medos não são fantasiosos, uma vez que já se concretizaram mesmo sob o sistema existente e supostamente mais seguro, quando, por exemplo, o agressor sexual em série Karen White (nascido Stephen Terence Wood) foi transferido para uma prisão feminina e posteriormente condenado por agredir sexualmente as presidiárias. Se a auto-identificação for introduzida, podemos esperar um aumento no número de Karen Whites.

No entanto, qualquer pessoa que tenha prestado a mínima atenção neste debate nos últimos anos saberá que as preocupações das feministas críticas de gênero não foram bem recebidas por muitas figuras proeminentes da esquerda, que enquadraram a tensão entre os desejos das pessoas “trans” e os medos das mulheres, não como um conflito desafiador que necessita de deliberação cuidadosa, mas como uma expressão de preconceito feminista. Mulheres com questionamentos às políticas de gênero perderam seus empregos, foram presas e perseguidas pela imprensa simplesmente por criticarem o ativismo trans, e muitas delas ficaram muito, muito zangadas.

Mas essas feministas agora parecem ter triunfado. Como James Kirkup escreveu após o anúncio de que a GRA não seria reescrita para incluir a identificação pessoal:

O anúncio de hoje é o produto de notável organização política de base… A verdadeira oposição política à auto-identificação veio de mulheres “comuns” que viram a proposta como uma ameaça potencial aos seus direitos e posições legais. Algumas delas tiveram contato com esse problema pela rede social Mumsnet… Outras participaram das reuniões da Câmara Municipal do A Woman’s Place UK, um grupo criado por mulheres com raízes no movimento sindical.

A menção ao sindicalismo aqui é importante porque a maioria das feministas britânicas que criticam gênero vêm da esquerda, e muitas estiveram ativamente envolvidas no Partido Trabalhista, no Partido Verde ou em outros grupos políticos explicitamente de esquerda. Feministas de esquerda com críticas a políticas de gênero muitas vezes apontam para esse fato como evidência de que não são motivadas por intolerância, argumentando que é a esquerda dominante que é culpada de hipocrisia por desconsiderar as preocupações muito reais das mulheres.

Essa relação conflituosa com a esquerda é algo que muitos comentaristas americanos parecem achar confuso. Um artigo de 2019 no site da Vox tentou explicar aos leitores as origens de “Terfs” (“Feministas Radicais Trans Exclusionárias”, um termo que a maioria das feministas críticas às políticas de gênero rejeita):

A ideologia “Terf” se tornou a face propriamente dita do feminismo no Reino Unido, ajudada pela liderança da mídia de Rupert Murdoch e The Times de Londres. Qualquer oposição vaga ao pensamento crítico de gênero no Reino Unido traz consigo acusações de “silenciar as mulheres” e um artigo chamativo ou artigo de opinião em um jornal nacional britânico.

O escritor explica a influência do feminismo crítico de gênero na Grã-Bretanha como resultado tanto do “imperialismo histórico” quanto da “influência do movimento cético mais amplo do Reino Unido”. Eu diria que uma explicação muito mais provável é a natureza apartidária do debate na Grã-Bretanha, onde a divisão entre esquerda e direita no debate do GRA não é nada clara. Foi um governo conservador que primeiro propôs as reformas, e um governo conservador que as suspendeu.

Existem defensores e críticos do movimento trans em toda Westminster, onde a ligação com a filiação partidária não é óbvia. Opiniões críticas de gênero podem ser lidas no Spectator e no Morning Star, e enquanto o colunista do Guardian Owen Jones é um dos críticos mais comprometidos do movimento crítico de gênero, a doadora do partido trabalhista britânico J.K. Rowling é hoje em dia sua proponente mais famosa.

Isso significa que as tentativas de desacreditar as feministas críticas às políticas de gênero, associando-as à direita — uma tática que funciona bem na América — simplesmente não vão funcionar aqui. A relação entre a política tradicional de esquerda / direita e este novo movimento feminista é muito nebulosa, e esta é, eu suspeito, a principal razão para o sucesso do movimento. Livre da atração destrutiva do tribalismo, a mensagem crítica de gênero foi capaz de adentrar e atrair apoiadores de todo o espectro político por meio de um simples apelo ao bom senso.

Afinal de contas, apenas um ideólogo comprometido poderia realmente acreditar que permitir que Karen White fosse para uma prisão feminina era uma boa ideia. O argumento crítico de gênero sempre foi persuasivo: ele só precisava de um público disposto a ser persuadido. Na América, a polarização política é muito severa, e a extrema-direita muito assustadora, para permitir um debate apartidário. Na Grã-Bretanha, aparentemente isso ainda é possível.

Mas, apesar de seu eventual sucesso, a batalha sobre o GRA trouxe à tona uma tensão latente entre feministas e a esquerda, de onde veio a mais feroz retórica anti-“terf”, e que provou-se como uma fonte de apoio desigual e inconstante. Algumas feministas de esquerda que criticam o gênero ainda preferem pensar neste incidente como um lapso: um momento de loucura da esquerda, fora do personagem e remediado por meio de um retorno à política esquerdista “adequada”. Eu não tenho tanta certeza.

É verdade que as raízes do feminismo estão intimamente ligadas à esquerda. A Segunda Onda foi, em muitos aspectos, modelada no movimento dos direitos civis dos negros na América e movimentos anticoloniais em outras partes do mundo. E o feminismo radical em particular (do qual surge o feminismo crítico das políticas de gênero) é fundado em um modelo de sociedade que é fundamentalmente marxista, em que as mulheres são entendidas como uma classe oprimida, os homens como a classe opressora, e o trabalho reprodutivo e sexual como os bens que são extraídos coercivamente.

Mas a história é complicada porque, embora a Segunda Onda tenha surgido da esquerda mais ampla, também estava frequentemente em conflito com ela. Por exemplo, em 1969, na contra-posse da Nova Esquerda à posse de Nixon em Washington, feministas que se levantaram para falar foram importunadas por camaradas que gritavam: “Tirem-na do palco e fodam-na!” e “Fodam-na em um beco escuro!” A atitude antagônica de alguns homens de esquerda em relação ao feminismo não é nova.

Além disso, em termos de representação política feminina neste país, o Partido Conservador lidera sem dúvida, tendo agora dado ao país duas primeiras-ministras, bem como a primeira deputada a ocupar o seu lugar, Nancy Astor. Enquanto isso, o Partido Trabalhista ainda não elegeu uma líder feminina.

Feministas ligadas à esquerda protestarão que esse tipo de representação é apenas uma fachada, e que Margaret Thatcher, em particular, não pode ser considerada uma feminista de qualquer tipo. Talvez isso seja verdade, mas também é verdade que algumas das legislações mais importantes na história do feminismo britânico do pós-guerra foram aprovadas sob governos conservadores: a introdução do salário-maternidade obrigatório, a criminalização do controle coercitivo e a proibição da mutilação genital feminina.

O mesmo vale para os governos trabalhistas, que introduziram o pagamento de paternidade e aprovaram as leis de aborto e igualdade de remuneração. Ao mesmo tempo, casos de violência sexual e chauvinismo masculino flagrante podem ser encontrados em organizações de direita e esquerda, incluindo o Trabalhismo e os Conservadores. Totalizar os sucessos e fracassos das diferentes partes não nos dá um vencedor claro.

Alguns leitores se perguntarão por que precisamos somar algo. Já que as mulheres representam pouco mais da metade da população e são claramente um grupo de pessoas tão diverso quanto os homens, com sua própria gama de ideias e prioridades políticas, por que deveríamos nos preocupar em falar de “homens” e “mulheres” quando poderíamos fatiar o bolo político ao longo de alguma outra dimensão? Este é um ponto justo. Mas uma afirmação chave do movimento feminista historicamente — e uma que eu defendo, apesar de minha posição não ortodoxa em muitas questões feministas — é que existem semelhanças importantes o suficiente entre as mulheres para dar a elas um conjunto coerente de interesses políticos.

No passado, esses interesses eram freqüentemente desconsiderados ou atendidos apenas de forma seletiva e não confiável por representantes masculinos de vários tipos. Mas, embora muitas vezes não haja conflito entre os interesses de homens e mulheres, em alguns casos há, ou então, uma questão específica das mulheres (saúde materna, digamos) simplesmente não é considerada pela maioria dos homens e, portanto, é inevitavelmente negligenciada em um ambiente político que não pergunta: “E como isso afetará as mulheres?”

Membros proeminentes da esquerda abraçaram o movimento “trans” porque não se importaram em perguntar: “E como isso afetará as mulheres?” Eles viram a questão como resolvida, a conclusão natural do princípio liberal de autodeterminação, o arco da história sempre se curvando em direção à justiça. E esta não é a única questão em que as mulheres foram deixadas na mão pela esquerda.

A indústria do sexo é outra. Um compromisso central da esquerda desde a década de 1960 tem sido o afastamento das normas sexuais burguesas, e esse compromisso agora se resolveu no princípio de que qualquer ato sexual é benigno, desde que todas as partes (nominalmente) consintam. As críticas feministas da pornografia e da prostituição que não aceitam este princípio, e querem chamar a atenção para os muitos abusos que acontecem dentro da indústria do sexo, são rejeitadas na esquerda. Andrea Dworkin escreveu sobre a dor dessa hipocrisia em 1981:

A nova pornografia é de esquerda; e a nova pornografia é um vasto cemitério onde a esquerda foi para morrer. A esquerda não pode ter suas putas e sua política ao mesmo tempo.

A dureza do sistema de justiça criminal é outra fonte de tensão. A criminologista Barbara Wootton disse certa vez: “Se os homens se comportassem como mulheres, os tribunais estariam ociosos e as prisões vazias”. O crime violento (particularmente o sexualmente violento) é cometido em sua maioria por homens, e as mulheres estão em uma posição única por serem frequentemente vítimas, mas raramente perpetradoras. Isso significa que, como grupo, as mulheres têm um incentivo racional para apoiar políticas duras contra o crime, e essas são políticas que são mais frequentemente apoiadas por partidos de direita, especialmente agora, quando “corte às verba da polícia” se tornou um slogan da moda à esquerda.

Muitos na esquerda se sentem desconfortáveis com essa análise do crime baseada no sexo, porque ela atinge de frente a análise do crime baseada na raça, que via de regra é considerada mais importante. Neste país, vimos isso acontecer de forma mais devastadora em Rotherham e em outras cidades afetadas por gangues de aliciadores de crianças. Agora está claro que parte da razão para o fracasso em perseguir os perpetradores foi o medo, por parte de figuras importantes da polícia e das autoridades locais, de que pudessem ser acusados de racismo.

Essa relutância covarde persistiu entre as grandes mentes da esquerda muito depois que o escândalo foi revelado, o que significa que muitas das jovens vítimas das gangues de aliciamento emergiram de seus abusos e ficaram sem ninguém, abandonadas por aqueles que alegam estar mais preocupados com a proteção dos vulneráveis e marginalizados. Algumas dessas mulheres aderiram a campanhas associadas à extrema-direita, acreditando falsamente que ofereciam segurança, quando na verdade não ofereciam nada disso. Houve feministas de esquerda que estenderam a mão para essas vítimas, mas eram mulheres (como Julie Bindel, a primeira jornalista a escrever sobre a história na imprensa nacional) que já tinham uma relação conflituosa com a esquerda. Como Bindel escreveu, “É precisamente porque a esquerda liberal se recusou a lidar com as questões espinhosas em torno de raça e etnia que tipos como o Ukip são capazes de colonizá-lo com tanto sucesso”.

Não há nada de errado com o anti-racismo, as críticas ao sistema de justiça criminal ou o questionamento das normas sexuais burguesas — todas essas atividades são potencialmente feministas. Mas há um problema quando isso é feito sem que ninguém pergunte: “E como isso afetará as mulheres?” Repetidamente, esta pergunta não foi feita na esquerda.

Em vez de persistir em fazer a pergunta, a solução que muitas feministas filiadas à esquerda chegaram, particularmente na América, foi suprimir o pensamento e, sem pensar, absorver em suas prioridades de campanha tudo o que outros grupos na esquerda exigem. Portanto, quando não há conflito entre o que as feministas querem e o que esses outros grupos desejam — quando, por exemplo, os perpetradores da violência contra mulheres e meninas são homens brancos ricos com segurança e privilégios como Harvey Weinstein — então a visão feminista pode vencer. Mas quando um homem vem de um grupo oprimido com uma classificação mais elevada do que as mulheres na lista de prioridades da esquerda (o que significa, até onde posso dizer, qualquer grupo sob o sol), a maioria das feministas de esquerda se curvará imediatamente a seja lá o que quer que seja exigido por eles. Qualquer mulher que se recuse é condenada como “terf”, “Karen” ou pior.

O filósofo político James Mumford escreve em seu livro recente Vexed: Ethics Beyond Political Tribes sobre a natureza restritiva do que ele chama de “acordo ético em lote” — isto é, a obrigação percebida de assinar um conjunto pré-preparado de ideias políticas, em vez de selecionar cada ideia por seus próprios méritos. O acordo ético em lote produz não apenas tribalismo cego, mas também incoerência, uma vez que as ideias dentro dos lotes tradicionais freqüentemente se contradizem. Mumford incentiva os leitores a resistir:

“Nossa melhor chance de acertar, de alinhar nossa ação com o que é bom, depende de nossa capacidade de descartar nossas identidades políticas e afirmar certos princípios fundamentais em todo o espectro político… Precisamos nos libertar de acordos em lote para determinar os cursos de ação corretos.”

Para as feministas, a filiação à esquerda pode ter ressonância histórica, mas é um acordo ruim. Embora não haja razão para não aceitar certas ideias da esquerda — por exemplo, apoio à tributação redistributiva e um estado de bem-estar generoso — existem outras ideias que conflitam inerentemente com os interesses das mulheres, ou então devem ser moderadas por uma consideração cuidadosa das consequências potenciais.

O feminismo britânico precisa parar de olhar para a América, onde a polarização política cada vez pior significa que as feministas relutam em se desvencilhar de uma relação dolorosa, mas familiar com a esquerda, apesar das repetidas demonstrações de que seus interesses nunca foram, e nunca serão, devidamente respeitados. Minha esperança é que o movimento feminista britânico de base que foi estimulado pelo conflito sobre o GRA consiga o que suas irmãs americanas não conseguiram, ao reconhecer a necessidade de deixar a esquerda. Nem a direita nem a esquerda têm o hábito de perguntar consistentemente: “E como isso afetará as mulheres?” Até que isso aconteça, as feministas devem rejeitar ambas.