Em “Profissões para mulheres e outros artigos feministas”, Virginia Woolf escreve:
Para explicar a ausência completa não só de boas, mas também de más escritoras, não consigo conceber nenhuma razão a não ser alguma restrição externa de suas capacidades. […] Por que, a não ser que estivessem forçosamente proibidas, não expressaram seus talentos na literatura, na música ou na pintura?
[…] [Pode-se] apontar um único nome entre os grandes gênios da história que tenha surgido entre um povo privado de educação e mantido na submissão […]? Parece-me inquestionável que Shakespeare pode existir porque tem predecessores em sua arte, porque faz parte de um grupo que discute e pratica a arte em liberdade de ação e experiência. [1]
Quando Woolf escreveu estas palavras, não havia nenhuma evidência empírica para sustentar a hipótese de que mulheres eram naturalmente incapazes de grandes feitos intelectuais. Seus defensores, munidos de balanças e fitas métricas para medir e pesar crânios —, não se deixavam intimidar por resultados inconclusivos: as mulheres eram, em sua visão, tão obviamente diferente dos homens em suas capacidades e realizações que sua inferioridade já estava atestada, bastava buscar as origens dessas diferenças. Hoje ferramentas como a ressonância magnética possibilitam uma aproximação maior dos cientistas com seu objeto de estudo, mas ainda não permitem tirar conclusões definitivas. Mas, como na época em que os métodos da frenologia e ideais da eugenia estavam em voga, alguns cientistas continuam tecendo conclusões precipitadas: ainda se discute atualmente, com especial vigor nas ciências naturais e em campos interdisciplinares como a psicologia evolutiva e a neurociência, se homens e mulheres possuem de fato diferenças biológicas, genéticas e neurológicas determinantes que possam explicar o “sucesso” daqueles e o “fracasso” destas em suas realizações intelectuais ao longo da história.
A teoria dominante atualmente na neurociência e, principalmente, na psicologia evolutiva, conforme meta-análises realizadas por Rebecca M. Jordan-Young [2], Cordelia Fine [3] e Anne Fausto-Sterling [4] é a seguinte: por causa de diferentes dosagens dos hormônios sexuais [5] em diferentes fases da vida (intra-uterina, adolescência etc), homens e mulheres possuem diferenças fundamentais em seus cérebros. Essas diferentes dosagens hormonais não afetariam tão somente suas preferências sexuais, mas também sua atuação na sociedade e suas performances de gênero. Essas diferenças seriam, portanto, solidamente enraizadas no cérebro e, consequentemente, imutáveis. Parte-se nestes estudos do pressuposto que as diferenças de oportunidades entre homens e mulheres — e, consequentemente, entre héteros e pessoas cuja sexualidade e padrões de comportamento “desviam” da “norma” — não possuem causas sociais [6]; são, portanto, explicadas por essas diferenças inatas na cognição e pelos interesses naturalmente divergentes nas muitas esferas de atuação na sociedade.
O uso do termo “diferenças” no parágrafo anterior não foi por acaso. Esses estudos em geral se empenham em detectar diferenças muito mais do que semelhanças, de modo que qualquer mínima anomalia é recebida e apontada efusivamente, enquanto que as semelhanças detectadas entre os componentes das amostras são imediatamente descartadas. Este fenômeno é conhecido no meio acadêmico como “efeito gaveta” [7].
A ideia de que existam diferenças congênitas e irreconciliáveis firmemente atreladas aos cérebros de homens e mulheres e que é praticamente impossível se desvencilhar delas é, por definição, uma ideia determinista. Se biologia é destino, então as diferenças inatas entre os sexos encontradas pelos cientistas que diligentemente as buscam devem ser aceitas, e as mulheres, conformarem-se com seu papel subalterno na sociedade. Entretanto, um olhar atento na forma como esses estudos vêm sendo feitos — não apenas na época das fitas métricas, mas na da moderna neurociência — encontra erros de metodologia e condução se não grotescos, no mínimo preocupantes, mesmo quando não se consideram variáveis sociais e atentando-se somente à lógica interna dos estudos em si.
Devido às dificuldades operacionais e éticas em se medir diretamente as influências dos hormônios no comportamento humano, os estudos que visam comprovar diferenças cerebrais entre homens e mulheres são sempre quase-experimentos. Neste modelo de estudo empírico, mede-se o impacto de um elemento (que não pode ser administrado diretamente, seja por questões éticas ou devido à natureza do objeto de estudo) numa amostra, de modo que a amostra é selecionada a partir da presença deste elemento e não aleatoriamente, como em estudos empíricos tradicionais. São quase-experimentos clássicos os estudos que verificam taxa de incidência de câncer em populações fumantes. Quase-experimentos normalmente possuem amostras menores dada a dificuldade de se encontrar indivíduos afetados pelo que se busca estudar e, em geral, quase-experimentos de uma mesma área de estudo devem se validar mutuamente para consolidar, sustentar e também validar externamente suas hipóteses [8].
Os métodos de coleta de dados especificamente dos estudos que visam encontrar variações de desempenho baseadas em sexo são, portanto, quase-experimentos, e envolvem: medições indiretas de níveis hormonais de vários tipos (da mãe durante a gravidez, da criança através de coleta de sangue pelo cordão umbilical, através de medição da proporção dos dedos das mãos, entre outros métodos), questionários quantitativos a respeito do desempenho em variadas atividades ou padrões de comportamento, entrevistas, e exames de ressonância magnética comparando a atividade cerebral sob determinados contextos e em repouso. As pessoas selecionadas para fazerem parte das amostras destes estudos em geral pertencem a grupos considerados “normais”, ou com padrões biológicos e genéticos ou de comportamento atípicos (como por exemplo meninas com hiperplasia adrenal congênita).
Porém, as evidências que corroboram as conclusões dos estudos neste meio são, em geral, desconexas e bastante duvidosas, justamente o oposto do que deveriam ser para se validarem: incorporam preconceitos e vieses dos próprios pesquisadores; possuem definições bastante diversas (e por vezes contraditórias) a respeito de padrões de normalidade esperados de homens e mulheres — e, portanto, não podem ser comparados entre si para se mutuamente sustentar, como se espera de quase-experimentos; partem para conclusões apressadas e generalizantes usando amostras pouco significativas; por vezes não são possíveis de serem replicados; nem sempre utilizam grupos de controle, isso quando não utilizam a mesma amostra em vários estudos; e não levam em consideração o contexto social da amostra, raramente dando nota de que esses fatores podem ter papel significativo e até mesmo determinante nos padrões e resultados encontrados.
Os sérios problemas metodológicos encontrados e apontados por Rebecca Jordan-Young, Cordelia Fine e também Anne Fausto-Sterling em seus relatórios e meta-análises, e os próprios resultados desencontrados destes estudos facilmente levam a crer que as áreas do conhecimento humano que se propõem a investigar as possíveis diferenças cognitivas e cerebrais entre homens e mulheres até o momento não encontraram nenhuma evidência que comprove a idéia de inabilidades (ou habilidades) inatas a partir das diferenças biológicas, ou até mesmo que cérebros de homens e mulheres possuam diferenças drásticas que determinem seus comportamentos, idéia bastante enraizada no senso comum e também em alguns campos de pesquisa. O que se sabe, entretanto, é que cérebros se desenvolvem conforme o meio e as oportunidades oferecidas aos seus donos[9].
A busca incessante por explicações científicas com o intuito de “provar” diferenças cerebrais entre homens e mulheres e, consequentemente, a incapacidade intelectual das mulheres, é sintomática e deve ser vista com desconfiança crítica. Desconsideram-se as variáveis culturais e contextuais, como o fato de que ainda muito recentemente às mulheres foi permitido — com muita luta por parte delas — o acesso ao estudo da maioria das ciências e, mesmo hoje, o fato de esse atraso ter-se feito presente nas estatísticas. Ainda que a igualdade, pela letra da lei, tenha sido atingida ou se pareça estar próximo disso, mudanças culturais levam tempo.
1. WOOLF, Virginia. Profissões para Mulheres e Outros Artigos Feministas. Tradução de Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2012. p. 47-49.
2. JORDAN-YOUNG, Rebecca M. Brain Storm: The Flaws in the Science of Sex Differences. Cambridge, Mass: Harvard University Press, 2010.
3. FINE, Cordelia. Delusions of Gender: The Real Science Behind Sex Differences. Nova York: Icon Books, 2005.
4. FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the Body: gender politics and the construction of sexuality. Nova York: Basic Books, 2000.
5. Aos chamados “hormônios sexuais” são atribuídas funções em geral relacionadas ao sexo biológico e seus processos e ciclos, sendo cada um deles (estrogênio e testosterona) ligados a cada sexo (feminino e masculino, respectivamente). Essa visão dualística e oposta é errônea principalmente porque ambos são importantes no desenvolvimento biológico tanto de homens quanto de mulheres, e não estão relacionados apenas às funções reprodutivas, mas a uma bem variada lista de propósitos, não ainda totalmente bem compreendidos. Seus níveis e efeitos no organismo também podem mudar drasticamente conforme o meio em que se encontra o indivíduo (JORDAN-YOUNG, 2010. p. 16,
p. 280-285).
6. JORDAN-YOUNG, 2010. p. 139.
7. “File drawer effect”; SCARGLE, Jeffrey D. “Publication Bias: The ‘File-Drawer’ Problem in Scientific Inference”. Journal of Scientific Exploration. Society for Scientific Exploration. v. 14. n. 1. 2000. p. 91-106.
8. JORDAN-YOUNG, 2010. p. 3.
9. FAUSTO-STERLING, 2000. s.p.