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Quem fez o jantar de Adam Smith? 

Críticas Feministas sobre a Política Econômica Internacional1

Sheila Jeffreys


As teóricas econômicas feministas questionam as bases do pensamento econômico tradicional, colocando em dúvida a ideia do ‘homem econômico racional’. A economia tradicional é baseada em duas principais suposições patriarcais. Ela se baseia na forma como os homens nas sociedades ocidentais, em suas instituições e sistemas de governo, ganham a vida e criam riqueza. Caroline Sweetman, editora da revista Oxfam, Gênero e Desenvolvimento, expressa dessa forma: ‘Homo Economicus é nominalmente assexual, mas vive em um mundo profundamente masculino, centrado no trabalho remunerado e em atividades de lazer pagas.’ (Sweetman, 2008). As mulheres não se encaixam nesse cenário. Críticas feministas têm apontado que o trabalho das mulheres, em sua maioria não remunerado e não reconhecido, ‘não conta para nada’ nos sistemas masculinos de contabilidade (Waring, 1988). A economia tradicional também se baseia na ideia de que os homens são ‘racionais’ e buscam maximizar o interesse próprio, ideia severamente desafiada pelo comportamento na indústria financeira que levou à crise financeira global. Este capítulo apresentará as críticas feministas ao conceito de ‘homem econômico racional’.

A teórica feminista das relações internacionais, Jan Pettman, argumenta: ‘Muitos aspectos da EPI não fazem sentido se não considerarmos a dimensão de sexo’ (Pettman, 1996: 160). No entanto, apesar de três décadas de crítica feminista à política econômica internacional (Mies, 1986; Enloe, 1989), até mesmo críticos de esquerda não demonstram consciência de que sua disciplina pode ser considerada em termos de sexo. Assim, a coletânea ‘American Empire and the Political Economy of Global Finance’, republicada em 2009 com um capítulo adicional sobre a crise financeira global, conta com uma única mulher entre seus dez colaboradores e não inclui ‘mulher/mulheres’, ‘sexo’ ou ‘feminismo’ em seu índice (Panitsch and Konings, 2009). O livro considera a classe econômica, mas não a classe sexual. Em contraste com tais textos, este capítulo se concentrará na classe sexual e examinará as maneiras pelas quais os homens, a masculinidade e a dominação masculina construíram o capitalismo global, especialmente o capitalismo financeiro. A crise financeira global precisa ser abordada sob uma perspectiva do sexo, e este capítulo oferecerá um ponto de partida para essa tarefa.2

A contabilidade econômica e o trabalho das mulheres

O principal problema nas interpretações tradicionais masculinas da economia política, de acordo com as teóricas econômicas feministas, é a forma como a contabilidade econômica é realizada. Por exemplo, o PIB conta apenas o que está na economia remunerada. Não leva em consideração a subsistência, o trabalho não remunerado ou a exploração da natureza, tratando-os como um recurso ‘gratuito’. (Bennholdt-Thomson e Mies, 1999). Bennholdt-Thomson e Mies, por exemplo, apontam em seu ‘Modelo Iceberg da Economia Capitalista Patriarcal’ que apenas uma parte muito pequena do trabalho mundial está na economia ‘visível’, apenas a ponta do iceberg. A maior parte do iceberg que está sob a superfície da água contém toda a atividade econômica restante que ocorre no mundo, incluindo a realizada por donas de casa, trabalhadoras domésticas, o setor informal, trabalho infantil, camponeses de subsistência e a exploração de colônias (externas e internas), o Sul, Leste Europeu, etc, e a Natureza, que é considerada um bem gratuito a ser explorado, pescado e destruído (Bennholdt-Thomson e Mies, 1999: 31).

A grande maioria do trabalho das mulheres não está na economia visível, incluindo o trabalho não remunerado em casa, trabalho doméstico, trabalho não remunerado no mercado, trabalho de cuidar e educar crianças, e trabalho sexual e emocional não remunerado. Esse trabalho não remunerado das mulheres constitui a base não reconhecida de tudo o que é realmente contado na economia tradicional. A própria ideia de ‘trabalho’, como algo que ocorre fora de casa por um número determinado de horas por dia, é construída a partir dos interesses dos homens, cujas marmitas são preparadas por suas esposas (Pateman, 1988). As esposas são uma necessidade vital para o trabalhador masculino. Esposas compram e cozinham comida, compram lençóis e colocam lençóis limpos na cama, organizam roupas limpas para os membros masculinos da família. Mas elas fazem muito mais do que essas atividades mais tangíveis, fornecendo sustento emocional ou ‘trabalho emocional’ (Hochschild, 1983) e contribuindo para os salários que seus maridos ganham no trabalho remunerado.

A questão de como o trabalho doméstico não remunerado das mulheres deve ser compreendido na teoria marxista e feminista tem sido uma discussão importante desde o início dos anos 1970. Maria Mies explica que foi a questão do trabalho não remunerado das mulheres que animou o debate sobre como o capitalismo e o patriarcado estavam entrelaçados para criar o ‘patriarcado capitalista’ (Mies, 1998). Tornou-se claro na década de 1980, diz ela, que ‘o trabalho de cuidar e nutrir não remunerado das mulheres no lar estava subsidiando não apenas o salário masculino, mas também a acumulação de capital’ (Mies, 1998: ix). A importância desse trabalho foi obscurecida ao construir a mulher como ‘mãe, esposa e dona de casa’, o que foi o ‘truque pelo qual 50 por cento do trabalho humano foi definido como um bem gratuito’ (Mies, 1998: ix). As teóricas feministas marxistas e as teóricas feministas radicais ou materialistas abordam essa questão de maneiras diferentes. Christine Delphy e Diana Leonard oferecem um resumo muito útil dos debates e uma análise aguda do lugar do trabalho doméstico no que chamam de teoria feminista ‘materialista’ (Delphy and Leonard, 1992). Elas explicam que a principal falha nos debates sobre ‘trabalho doméstico’ é que as teóricas feministas socialistas tendem a ver o trabalho não remunerado das mulheres como sendo realizado para ‘o capitalismo’ em vez de para homens individuais. Delphy e Leonard reformulam a ideia de exploração, geralmente entendida como a apropriação dos frutos do trabalho por outros. Elas explicam que as mulheres são exploradas ‘não porque a fábrica ou o campo em que você trabalha pertence a outra pessoa, mas de forma mais simples porque seu trabalho pertence a outra pessoa – porque você não é dona da sua própria capacidade de trabalhar (seu próprio poder de trabalho)’ (Delphy e Leonard, 1992: 43). São os chefes de família do sexo masculino que são proprietários do trabalho das mulheres, como elas explicam, ‘Ser proprietário dos meios de produção é desnecessário se você possui escravos ou servos ou esposas ou filhos’ (Ibid).

A teorização feminista da política econômica internacional pode ser excessivamente eufemística para evitar mencionar a dominação masculina e a opressão das mulheres. Um artigo de 2010 em um número importante do jornal feminista Signs, dedicado à análise da política econômica internacional, usa o termo ‘diferença’ em vez de ter que se referir a homens ou mulheres. A análise de Jennifer Bair investiga a ‘relação entre diferença e capital’ (Bair, 2010: 224). O uso desse eufemismo efetivamente obscurece a existência da dominação masculina e as maneiras pelas quais homens, ou qualquer grupo poderoso, podem lucrar com o trabalho dos menos poderosos. Opressão, exploração e subordinação, termos políticos fortes que descrevem a desigualdade, são ocultados pela ‘diferença’. ‘Diferença’ não pode explicar por que as mulheres realizam uma ampla variedade de tarefas diretamente para o benefício dos homens com quem vivem.

Delphy e Leonard são críticas das teorias sobre o trabalho doméstico por se concentrarem em uma compreensão estreita do trabalho doméstico, como limpeza, cozinha, cuidados com crianças, e por não reconhecerem a ampla variedade de trabalho não remunerado que as esposas realizam, como o trabalho feito para ‘as ocupações de seus maridos’, para as atividades de lazer dos homens e para o bem-estar emocional e sexual deles (Delphy and Leonard, 1992: 226). Esse último tipo de trabalho, dizem elas, ‘é completamente negligenciado porque é tão variado, personalizado e íntimo’ (Delphy and Leonard, 1992: 226). Elas explicam que os maridos usam o trabalho de suas esposas para obter ganhos econômicos. Esposas agendam compromissos para maridos que são encanadores, por exemplo, trabalham na loja e na fazenda da família, e ‘calculam, digitam e enviam orçamentos e faturas para os clientes’ (Ibid). Quando os homens são empregados, as esposas frequentemente fazem parte do acordo para os empregadores, em empregos como serviços diplomáticos, na polícia rural e na administração de um bar. Em bares, esposas têm a posição de ‘consorte institucionalizada’ ao serem anfitriãs, cozinhar refeições ou ‘ficar decorativas’ atrás do balcão. Esposas também ajudam nas atividades voluntárias e de lazer de seus maridos. Elas precisam lavar uniformes e limpar equipamentos de lazer e realizar arrecadações de fundos para grupos de escoteiros, por exemplo. Elas podem ajudar os maridos a concorrer a cargos políticos e fornecer ‘hospitalidade’. Esposas muitas vezes assumem o comando quando os maridos estão ausentes, em situações de crise ou quando estão ocupados. As esposas de acadêmicos podem digitar relatórios de pesquisa e realizar outras tarefas de pesquisa e administrativas. As esposas de clérigos precisam apoiar os fiéis e agendar compromissos. As esposas de agricultores podem precisar administrar a fazenda quando o marido está ausente. Além disso, Delphy e Leonard afirmam: ‘A maioria dessas atividades pode ser realizada mesmo que a esposa tenha emprego remunerado’ (Delphy and Leonard: 231). O aspecto do trabalho não remunerado das esposas que serve diretamente às atividades de geração de renda do homem ganhou um pouco mais de reconhecimento pelos estudiosos desde o início dos anos 1990, quando o livro de Delphy e Leonard foi escrito. Lisa Philipps chama isso de ‘trabalho de mercado não remunerado’ (Philipps, 2008). Ela define isso como ‘o envolvimento de membros da família em atividades de ganha-pão que são oficialmente responsabilidade de apenas uma pessoa na casa’ (Philipps, 2008: 37). Philipps critica o trabalho feminista na economia política por postular que o capitalismo industrial ‘dividiu o trabalho remunerado no mercado do trabalho não remunerado no lar’ (Philipps, 2008: 51). Pelo contrário, ela argumenta que o trabalho de mercado remunerado e não remunerado são interdependentes.

Outro aspecto menos reconhecido do trabalho das esposas é a prestação de apoio ‘moral’ aos maridos e o cuidado com seu bem-estar. As esposas têm o papel de terapeutas informais, a quem os maridos podem ‘desabafar’. Elas têm ‘um papel importante como provedoras de sexo sem problemas – o que é motivo pelo qual os empregadores podem incentivar os homens a levar suas esposas com eles em empregos no exterior’ (Delphy and Leonard, 1992: 232). As esposas também ‘transformam uma casa em um lar’ (Delphy and Leonard, 1992: 233). Elas sorriem e mantêm alegria, ‘lisonjeiam, desculpam, impulsionam, simpatizam e prestam atenção aos homens’, o que ‘dá aos homens uma sensação de pertencimento, empoderamento e bem-estar geral’ (Ibid). O cuidado que as esposas prestam aos homens, como Anthony McMahon observa em ‘Taking Care of Men’, está oculto sob ideias de destino biológico ou amor romântico, e a ideia de que esse cuidado pode servir aos interesses dos homens é frequentemente fortemente contestada (McMahon, 1999). No entanto, ele considera importante reconhecer a escala e a importância do cuidado que as mulheres oferecem aos homens e a maneira como isso constrói o sucesso e o desempenho dos homens no mercado.

Não é ‘racional’ para as mulheres realizar qualquer parte desse trabalho, que serve para o benefício de seus maridos e não lhes traz recompensa monetária. O trabalho não remunerado das mulheres constitui um desafio poderoso à ideia de ‘homem econômico racional’ que está subjacente à teoria econômica tradicional. A teórica feminista Lourdes Beneria explica que ‘a racionalidade econômica é baseada na expectativa de que os seres humanos se comportem de maneira a obter ganhos máximos’ (Beneria, 1999: 64). Ela diz que, nessa forma de pensar, ‘o empreendedor busca maximizar lucros, o empregado busca atingir os maiores ganhos possíveis, e o consumidor busca maximizar sua utilidade’ (Beneria, 1999: 64). Essa ideia básica do ‘homem econômico racional’, diz Beneria, foi incorporada na teoria neoclássica, ‘A racionalidade econômica é assumida como a norma no comportamento humano’ (Beneria, 1999: 64). O fato de as mulheres se envolverem em tanto trabalho não remunerado não está claramente em seu próprio interesse, e isso fornece uma crítica bastante contundente à ideia de homem econômico racional. Adam Smith no século XVIII é o teórico econômico mais comumente identificado como o autor da ideia de que a ‘busca egoísta de ganho individual’ estava positivamente ligada à ‘riqueza das nações através da mão invisível do mercado’ (Beneria, 1999: 64). Marilyn Waring cita Adam Smith ilustrando sua ideia de como o interesse próprio funciona, para mostrar o viés masculino que ela representa. Ele diz: ‘Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas sim de seu zelo por seu próprio interesse’ (citado em Waring, p. 19). Waring resume sucintamente a falha crucial e fundamental dessa análise. Na verdade, Smith não teria conseguido seu jantar sem o trabalho não remunerado de sua esposa, que claramente não era motivada pelo interesse próprio, e Smith, como outros homens, depende da falta de interesse próprio por parte das mulheres para poder agir no mercado.

Se Adam Smith era alimentado diariamente por Mrs. Smith, ele omitiu notar ou mencionar isso. Ele, é claro, não a pagava. Sobre qual era o interesse dela em alimentá-lo, só podemos especular, pois Adam Smith não via “valor” no que ela fazia.

(Waring, 1988: 19)

A questão do trabalho não remunerado das mulheres tem sido fundamental para a compreensão feminista de como a política econômica internacional opera.

Mulheres e Globalização

As teóricas feministas produziram um corpo considerável de trabalho examinando como as mulheres foram afetadas pela globalização da economia (Enloe, 1989). Maria Mies explica que sua importante análise da posição das mulheres na globalização foi motivada pela necessidade de estender a compreensão feminista da importância do trabalho não remunerado das mulheres no Ocidente para as mulheres no restante do mundo, onde o trabalho “doméstico” das mulheres, ou seja, o trabalho considerado secundário e facilmente explorável, era um componente fundamental do que estava começando a ser chamado de “globalização” (Mies, 1998). Seu livro “Patriarchy and Accumulation on a World Scale.” (1986) é uma obra-prima que mostra como as mulheres são mobilizadas em todo o mundo para possibilitar a acumulação capitalista. Ela demonstra como mulheres nos mundos rico e pobre estão conectadas. Essa conexão ocorre por meio da criação de Zonas de Processamento de Exportação, por exemplo, onde as mulheres constituem a maioria esmagadora dos trabalhadores na produção de roupas e calçados em regiões específicas de mão de obra barata em países como Indonésia e Vietnã. As mulheres no mundo rico podem comprar roupas e sapatos muito baratos porque são fabricados a partir do trabalho de mulheres que recebem uma miséria e trabalham em condições precárias. As mulheres são atraentes como trabalhadoras porque são consideradas dóceis, habilidosas e baratas, e porque sua relegação cultural a papéis subalternos como donas de casa nos novos locais de produção, onde o emprego remunerado é visto como secundário, facilita sua exploração (Bair, 2010). À medida que as empresas nos países ricos buscam reduzir seus custos para competir com os produtos baratos permitidos pelas políticas de livre comércio neoliberal e a redução das barreiras tarifárias, as mulheres estão ingressando em empregos mal remunerados e exploradores em números muito grandes em países menos desenvolvidos (Mies, 1998).

Christa Wichterich explica que foi o trabalho barato das mulheres que ofereceu o principal elemento na “vantagem comparativa” que causou a mudança na produção dos antigos centros industriais para países pobres na Europa e depois para o Sudeste Asiático (Wichterich, 2000: 1). Essa mudança, segundo ela, revolucionou o comércio mundial. Outros elementos tornaram essa mudança atraente, como baixos salários sem “custos secundários”, sindicatos fracos, incentivos fiscais e de investimento, mas a força de trabalho das mulheres era o “recurso natural” mais importante (Ibid). Wichterich, assim como Maria Mies, destaca que, ao lado da terceirização para países pobres, existem colônias no mundo ocidental, onde as mulheres estão envolvidas em trabalhos mal remunerados e desprotegidos, como produção de roupas, calçados e outros bens. Ela explica que o papel da mulher na política econômica internacional é produzir os lucros das empresas multinacionais por meio da terceirização e absorver os impactos para as brutais exigências das mudanças econômicas impostas pelas ideologias e práticas econômicas neoliberais. À medida que os países são colocados uns contra os outros em uma “feroz redução de preços”, ela diz, a “mulher globalizada” é consumida como um combustível natural; ela é a trabalhadora por peça nas indústrias de exportação, a trabalhadora no exterior que envia moeda estrangeira para a família no seu país de origem, a prostituta ou noiva de catálogo nos mercados internacionais de sexo e casamento, e a trabalhadora voluntária que ajuda a absorver o impacto dos cortes sociais e do ajuste estrutural (Wichterich, 2000: 167).

Maria Mies desenvolveu o conceito útil de “donadecasificação” para descrever o que ela vê como a destruição de empregos adequadamente remunerados com benefícios que os trabalhadores masculinos no Ocidente passaram a esperar antes dos estragos da globalização a partir dos anos 1980 (Mies, 1998). As mulheres foram “donadecasificadas”, durante a Revolução Industrial, à medida que foi criada uma rígida divisão entre os mundos público e privado, e as mulheres das classes médias foram retiradas do mundo público para serem confinadas ao papel de donas de casa dentro de casa. No século XX, às mulheres foram permitidos empregos “de dona de casa”, que eram a meio período, mal remunerados e sem benefícios, sob a justificativa de que seus maridos eram os principais provedores e as mulheres não eram realmente trabalhadoras, mas donas de casa. Durante as últimas décadas do século XX, à medida que a globalização neoliberal ganhava força, ela argumenta que cada vez mais empregos, incluindo aqueles normalmente desempenhados por homens, foram “donadecasificados”, ou seja, precarizados, a ponto de muitos trabalhadores, tanto homens quanto mulheres, terem que ter mais de um emprego e equilibrá-los para sobreviver financeiramente. Os empregos criados nesses países são empregos “donadecasificados”. Eles são mal remunerados, a tempo parcial, precários, sem a proteção das leis trabalhistas, não sindicalizados, de curto prazo, atomizados. Há uma grande quantidade de trabalho donadecasificado, cuja exploração é atualmente camuflada por conceitos como “trabalhador autônomo” ou “empreendedorismo”. “Muito do que está incluído neste setor de serviços não é nada além de trabalho doméstico mercantilizado” (Bennholdt-Thomson e Mies, 1999: 47). Mies é capaz de adaptar poderosamente a linguagem e os conceitos derivados de ideias feministas para explicar processos mais amplos no mundo. Ela faz isso também em seu conceito de “colônias do homem branco”. Ela coloca todas as partes da “economia submersa oculta”… natureza, mulheres e pessoas e territórios colonizados” na categoria de “Colônias do Homem Branco”, onde “Homem Branco” aqui representa o sistema industrial ocidental” (Mies, 1996: 6). Como amortecedores das políticas econômicas neoliberais e das forças da globalização, é provável que as mulheres tenham experimentado danos severos decorrentes da crise financeira global que são de sexo, ou seja, diferentes, em muitos casos, daqueles experimentados pelos homens.

Evidenciado o sexo da crise financeira global

“A crise financeira global é um poderoso exemplo para o argumento feminista de que o ‘homem econômico’ não é racional de forma alguma. Em um programa de televisão pública australiana sobre a crise financeira, o Dr. John Coates, que ganhou reputação por seu trabalho sobre os níveis de testosterona em operadores financeiros, comentou: ‘Sim, temos que construir um modelo que mostre como as pessoas são sistematicamente não racionais e infelizmente não racionais nos pontos em que é mais perigoso’, e a narradora, Jonica Newby, reforçou o ponto: ‘Talvez ainda não seja a extinção, mas para o Homo Economicus, é hora de evoluir’ (Newby, 2009). Desde que a crise financeira global (CFG) ocorreu em 2007, houve alguns artigos críticos na mídia nos EUA e na Austrália apontando que a CFG tem um rosto masculino e que a culpa pela crise precisa ser atribuída àqueles que a criaram, esmagadoramente homens, e homens da elite em particular. Ruth Sunderland, editora de negócios do jornal Observer do Reino Unido, esteve particularmente envolvida na atribuição de sexo à crise, ao apontar que as deliberações econômicas internacionais são esmagadoramente dominadas por homens. Sobre o Fórum Econômico Mundial, ela afirmou: ‘É ridículo que os homens tenham dominado o debate em Davos. A maior força única de crescimento econômico está sendo ignorada’ (Sunderland, 2009) e aponta que a crise terá efeitos particularmente devastadores sobre as mulheres. O tema do Fórum Econômico Mundial foi ‘Moldando o Mundo Pós-Crise’, mas metade da população foi excluída e a ‘elite masculina de Davos permanece afundada em sua própria auto-importância e complacência’, ‘Eles arruinaram a economia mundial, mas parecem alheios à ideia de que podem não ser as melhores pessoas para reconstruí-la’. Ela aponta que a crise foi causada por um ‘machismo, um tipo de capitalismo baseado na força bruta e no individualismo’. Havia cinco mulheres na lista resumida de 170 ‘líderes empresariais’ presentes, e Sunderland teve que vasculhar 20 nomes de convidados antes de encontrar uma mulher, Sua Alteza, a Begum Aga Khan. Sunderland comenta que a mídia noticiou um fluxo constante de vozes masculinas, a ponto de ser notável ver ou ouvir uma mulher. Ela aponta que os bancos internacionais que deveriam desempenhar um papel na resolução da crise são quase inteiramente masculinos também, ‘O Banco de Compensações Internacionais não têm diretores mulheres; o FMI tem uma executiva mulher e o Banco Mundial tem duas entre 10 diretores executivos. É vergonhoso’.

Os homens geralmente apontados como os mais responsáveis pela crise financeira global são aqueles na indústria financeira e bancária. Há uma crescente literatura que demonstra a ideologia e prática problemáticas desses homens. Eles representam não apenas a masculinidade cotidiana, mas a hiper-masculinidade, potencializada por um machismo agressivo. O estudo de Linda McDowell sobre as características sexuais da indústria bancária na cidade de Londres (1997) descobriu que os homens superavam esmagadoramente as mulheres em cargos gerenciais (88%), com mulheres concentradas em funções de escritório. Ela descobriu que a cultura masculina no local de trabalho era representada na linguagem, ‘levantar suas saias’ significa revelar sua posição, um mercado em alta é referido como um ‘tesão’ e um negócio bem-sucedido é recebido com gritos de ‘botou o pau na mesa’. Outro exemplo é ‘estuprar os cartões’, que significa exagerar as reivindicações de despesas… Vários entrevistados sugeriram que o trabalho/negócios são tão bons quanto/melhores que um orgasmo’ (McDowell, 1997: 148). Imagens militares e esportivas eram comuns, assim como conversas sobre selvas, corridas e batalhas. Ela encontrou as versões mais extremas da linguagem masculina no recinto mais sagrado da hiper-masculinidade, os pisos de negociação e as salas de operações, onde “um tipo mais áspero e duro de interação cotidiana era mais comum do que na atmosfera elitista dos mercados de capitais e divisões de finanças corporativas” (McDowell, 1997: 151).

McDowell foi inspirada pela crise financeira global a escrever um breve artigo explicando como a cultura masculina que ela identificou em 1997 ainda era dominante na indústria financeira e que isso precisava fazer parte da explicação para a crise (2010). Na verdade, ela diz que se pergunta se “subestimou essa tendência masculina de exagerar suas próprias habilidades” entre os patriarcas dos bancos de investimento (McDowell, 2010: 654). Nas salas de negociação, ela afirma que uma cultura sexualizada continua, com práticas que elevam a hiper-masculinidade e excluem as mulheres, como “formas exageradas de linguagem e comportamento masculinizados… brincadeiras, conversas sexualizadas, fala alta e agressiva, bem como formas de assédio sexual”. Neste ambiente, “as mulheres muitas vezes são forçadas a assumir a posição de árbitras relutantes de limites ou participantes menos dispostas na conversa sexualizada”. As mulheres não podem ser iguais nesta esfera da indústria financeira porque “as trocas sociais ainda são comumente realizadas em arenas masculinizadas, incluindo clubes de golfe ou suítes de hospitalidade em grandes clubes de futebol, bem como clubes de striptease” (McDowell, 2010: 653). Infelizmente, McDowell admite estar impressionada com o trabalho de John Coates sobre o papel desempenhado pelos níveis aumentados de testosterona nas salas de negociação, o que mina um pouco sua abordagem até então determinadamente construtivista social para a indústria financeira.

Tomada de riscos na indústria financeira?

Nem a análise clássica nem a de esquerda da política econômica internacional são críticas em relação às maneiras pelas quais a masculinidade constrói a ideologia e as práticas das corporações, dos bancos e da indústria financeira. Mesmo dentro da teoria feminista, a necessidade da construção social da masculinidade para o funcionamento da economia dominada por homens é pouco discutida. Há boas pesquisas sobre as culturas masculinas nos locais de trabalho das corporações e dos bancos, mas não há um interesse teórico mais amplo na maneira pela qual a construção social da masculinidade em torno da agressão, competição e disposição para correr riscos forma o alicerce crucial do sistema econômico. Esses três componentes são destacados nas abordagens dos estudos masculinos sobre como a masculinidade é criada, como elementos-chave em sua construção. Em relação à crise financeira global, é a disposição para correr riscos que está mais implicada no que aconteceu. Teóricos dos estudos masculinos têm buscado explicar as maneiras pelas quais a disposição para correr riscos é cultivada em meninos e jovens e documentaram os resultados prejudiciais para esses homens, incluindo suicídio, acidentes de carro, consumo de drogas, práticas sexuais perigosas e taxas de mortalidade mais altas (Mansdotter, Lundin, Falkstedt e Hemmingsonn, 2009). Eles veem o esporte competitivo como desempenhando um papel central em acostumar os meninos a serem tomadores de riscos. Teóricos como Don Sabo e Michael Messner explicam como a pressão sobre os meninos para participar de esportes dolorosos que podem causar lesões ao longo da vida, especialmente na cabeça, cria um treinamento na falta de cuidado com o corpo e disposição para correr riscos (McKay, 2000). Existem outros aspectos-chave desse treinamento, incluindo esportes de aventura, como bungee jumping, que se desenvolveram em indústrias consideráveis nas últimas duas décadas (Morrissey, 2008), e a introdução na cultura da guerra por meio de brinquedos e jogos.

Os resultados da criação do comportamento de risco como um elemento tão importante na masculinidade socialmente construída são sérios danos físicos para os meninos e homens, como no caso da prática de direção imprudente por parte dos meninos. Por exemplo, os jovens entre 17 e 25 anos em Nova Gales do Sul, Austrália, têm quatro vezes mais acidentes graves relacionados à velocidade do que as jovens mulheres (Walker, Butland e Connell, 2000). O papel do comportamento de risco na construção da masculinidade tem sido examinado em relação ao risco de HIV em particular. Pesquisadores preocupados em reduzir a intensidade da epidemia de HIV argumentaram que o elemento de risco na masculinidade deve ser transformado se o HIV for contido na África (Foreman, 1999). Um estudo relacionado ao risco de HIV no ocidente examina a relação entre masculinidade e comportamento de risco entre homens gays que participam do ‘sexo sem proteção’, ou seja, penetração anal sem preservativos, seja de forma imprudente em relação ao risco, ou com o risco desempenhando um papel importante no prazer e satisfação do comportamento (Holmes, Gastaldo, O’Byrne e Lombard, 2008).

Na última década, neurocientistas têm buscado explicar o comportamento de risco dos homens na indústria financeira. As teóricas econômicas feministas têm se preocupado principalmente com as implicações desse tipo de essencialismo biológico. Kate Bedford e Shirin M. Rai comentam: “Temos visto uma proliferação de explicações biológicas reducionistas em vez de uma análise rigorosa das ‘realidades de sexo” (Bedford e Rai, 2010: 2). A neurociência adota a abordagem da psicologia evolucionista na busca por explicar o comportamento por meio da biologia e dos hormônios masculinos e femininos. Esses pesquisadores explicam o comportamento dos homens como resultado de sua diferença biológica natural em relação às mulheres. Os neurocientistas fornecem a “ciência rigorosa” para as alegações dos psicólogos evolucionistas, testando os níveis hormonais. Esse tipo de teste está sendo amplamente utilizado para explicar a irracionalidade dos trabalhadores financeiros do sexo masculino e por que as mulheres têm aversão ao “risco” e, portanto, são menos adequadas para o emprego na indústria financeira ou para investir no que Susan George chama de ‘capitalismo de cassino’, em particular (1986). Um estudo de 2007, publicado na prestigiosa Proceedings of the National Academy of Sciences, que apareceu imediatamente antes do reconhecimento de que a crise financeira global estava em curso, estuda o ‘sistema endócrino na tomada de riscos financeiros’ (Coates e Herbert, 2008: 6167). John Coates e seu colaborador examinaram o nível de testosterona em traders da indústria financeira masculina às 11 da manhã e às 4 da tarde para avaliar se níveis mais altos de testosterona estavam associados a um maior sucesso financeiro, ‘prevíamos que a testosterona aumentaria nos dias em que os traders obtivessem um ganho acima da média nos mercados’ (Ibid: 6167). Eles descobriram que essa hipótese estava correta. Eles concluíram que ‘altos níveis de testosterona pela manhã preveem maior lucratividade pelo resto do dia’ (Ibid: 6168). No entanto, se os níveis de testosterona permanecessem elevados, eles consideravam que isso poderia ter efeitos muito negativos, levando os traders a se envolver em comportamentos excessivamente arriscados que ‘poderiam fazer com que os mercados financeiros se desviassem das previsões da teoria da escolha racional’ (Ibid: 6170). Como John Coates coloca: ‘Não achamos que a bioquímica explique o que inicia uma bolha ou um colapso. No entanto, acreditamos que os esteróides podem exagerar um mercado em alta e transformá-lo em uma bolha. Um mercado em alta pode quase ser visto como um mercado com raiva de esteroides’ (Newby, 2009). Essa pesquisa desmente a ideia de que o homem econômico racional está no comando na indústria financeira; segundo seus relatos, os futuros econômicos de investidores, governos e aposentados estão sujeitos aos níveis de testosterona dos homens.

Uma abordagem biologista semelhante é empregada em relação à ‘aversão ao risco’ das mulheres no mesmo periódico. Este artigo afirma que ‘as mulheres geralmente são mais avessas ao risco do que os homens’ (Sapienza, Zingales e Maestripieri, 2009). A pesquisa estuda os níveis de testosterona em homens e mulheres em relação à aversão ao risco e à escolha de carreiras financeiras arriscadas. Eles descobriram que altos níveis de testosterona estavam associados a uma tendência ao comportamento de risco tanto em homens quanto em mulheres. A dificuldade com estudos desse tipo é que eles não levam em conta o contexto social. A construção da masculinidade não é considerada porque, para esses pesquisadores, o comportamento masculino se baseia na testosterona. Eles também não levam em conta a possibilidade de que a expectativa possa afetar os níveis hormonais, embora o estudo com traders masculinos tenha mencionado que a testosterona aumenta ’em atletas se preparando para uma competição e aumenta ainda mais no atleta vencedor, enquanto diminui no perdedor’ (Coates e Herbert, 2008: 6167). Isso poderia ser visto como um argumento a favor do efeito do contexto social e do comportamento sobre os hormônios, e não o contrário, ou seja, uma abordagem construtivista social em vez de biologista.

Hipermasculinidade e uso da indústria do sexo no comportamento de traders

A hipermasculinidade da indústria financeira é ilustrada pela maneira como os executivos financeiros masculinos utilizam a indústria do sexo. A masculinidade e a feminilidade são construídas em relação uma à outra e não fazem sentido por si só (Connell, 1995). Os homens se percebem como masculinos na medida em que não são femininos, e as práticas masculinas são projetadas para alcançar essa compreensão e autoapresentação. Uma das maneiras mais diretas pelas quais os homens podem estabelecer sua diferença é por meio da indústria do sexo, na qual as mulheres são apresentadas e usadas como subordinadas sexuais, atendendo ao direito sexual masculino (Pateman, 1988). Nesse aspecto, em particular, há evidências abundantes de que os homens na indústria financeira são hipermasculinos. Os homens encarregados de regular a indústria financeira nos Estados Unidos, aqueles da Comissão de Valores Mobiliários (SEC), representam essa aderência à construção da hipermasculinidade. Enquanto o sistema financeiro global estava entrando em colapso, a equipe de fiscalização da SEC estava acessando pornografia online. Uma investigação sobre o uso de pornografia pela SEC descobriu que um advogado sênior na sede da SEC em Washington passava até 8 horas por dia visualizando e baixando pornografia (Harshaw, 2010). Um contador na SEC teve seu acesso bloqueado a sites pornôs mais de 16.000 vezes por mês. Dezessete dos funcionários que foram identificados como usuários significativos de pornografia estavam em cargos de alto nível e recebiam salários de até US$ 222.418. O uso de pornografia aumentou à medida que a crise financeira global se desenrolava em 2008. Um funcionário da SEC iniciou seu próprio negócio privado de pornografia usando recursos da SEC.

O impacto da crise financeira nas mulheres

A maioria das análises sobre os efeitos da Crise Financeira Global nas mulheres neste ponto são especulativas e baseadas no que aconteceu às mulheres em crises anteriores. Como Espey, Harper e Jones afirmam em um recente artigo na revista Oxfam Gender and Development, que se dedica a examinar o sexo na crise: ‘Os efeitos de choques econômicos anteriores foram uma “nutrição mais pobre, declínio na frequência escolar (mais comumente meninas, consideradas menos merecedoras de educação), aumento das horas de trabalho e pressões adicionais sobre adultos que tentam cumprir suas responsabilidades com o cuidado da família’ (Espey, Harper e Jones, 2010: 296). O número da revista se dedica a especular sobre o que é provável que aconteça em vez de relatar o que está ocorrendo efetivamente no terreno. Dianne Elson explica que a crise no Norte global foi transmitida para os países em desenvolvimento “através dos mercados internacionais de finanças e bens” (Elson, 2010: 204).

A crise financeira provavelmente afetará as mulheres de maneira diferente dos homens e, em muitos casos, de maneira mais severa. Isso é irônico, considerando que as mulheres são as vítimas inocentes de uma crise criada por homens e pela masculinidade. Antes da crise mais recente, Irene van Staveren escrevia sobre como os homens na indústria financeira assumem os riscos, e as mulheres são forçadas a suportar o ônus deles (Staveren, 2002). Ela explica: ‘A transferência de risco financeiro para aqueles que não são responsáveis por ele é custosa e injusta. Essa transferência tem uma dimensão de sexo significativa. A geração de risco financeiro excessivo é quase exclusivamente uma atividade masculina. Os homens são os principais tomadores de decisão nas finanças, os homens realizam as maiores transações financeiras e os homens são os principais especuladores. No entanto, as pessoas que suportam as consequências das crises financeiras globais – especialmente na economia do cuidado – são predominantemente do sexo feminino’ (Staveren, 2002: 230). Ela aponta que a economia do cuidado, que é em grande parte composta por mulheres, ‘compensa as atividades de busca de renda (principalmente masculinas) nos mercados financeiros’ (Ibid).

Um dos resultados mais significativos da crise, previsto, mas ainda por se desdobrar em muitos países, é que o emprego das mulheres será o maior alvo dos cortes de despesas, à medida que os governos buscam amortizar as grandes dívidas acumuladas para lidar com as perdas causadas à indústria financeira devido aos riscos assumidos pelos homens. No Reino Unido, a injustiça dos cortes propostos pelo governo recém-eleito é evidente em uma pesquisa realizada por uma ministra sombra, Yvette Cooper (Asthana, 2010). A pesquisa mostra que 72% do impacto dos cortes propostos em impostos e benefícios serão suportados por mulheres, e que as mulheres serão as mais afetadas pelos cortes de empregos no setor público, pois quatro em cada dez mulheres trabalham nesses empregos. De fato, 85,4% dos empregos de meio período no serviço civil são ocupados por mulheres e provavelmente serão os primeiros afetados. Isso incentivou a Fawcett Society, uma organização feminista fundada no século XIX, a apresentar um desafio legal em agosto de 2010 ao orçamento, alegando que os cortes afetarão claramente mais as mulheres do que os homens.

Os cortes nos serviços públicos não afetam apenas os empregos das mulheres. As mulheres sofrem duplamente, uma vez que os serviços de cuidados anteriormente financiados pelo Estado ainda precisam ser mantidos, e essa é uma exigência adicional do trabalho não remunerado das mulheres. Crianças, idosos e doentes precisam ser cuidados pelas mulheres em casa. As mulheres constituem o exército de reserva de mão-de-obra que pode ser demitido quando os governos enfrentam crises financeiras. Até agora, tais políticas tendem a afetar mais as mulheres no mundo menos desenvolvido do que as do Ocidente. Caroline Sweetman explica que ignorar a realidade do trabalho não remunerado das mulheres ‘permitiu que as instituições internacionais que impuseram políticas de ajuste estrutural em países em desenvolvimento ignorassem o verdadeiro sofrimento de mulheres, homens e famílias devido aos cortes na provisão estatal de serviços essenciais. De costas contra a parede, as mulheres lutaram – e conseguiram quase – substituir esses serviços e manter as famílias à tona’ (Sweetman, 2008: 1). A crise atual afeta desigualmente as mulheres em países ricos e pobres.

Outro efeito da crise financeira que prejudicou as mulheres é o aumento do estresse sentido pelos homens, à medida que seus investimentos vão mal ou eles perdem empregos ou contratos. Os homens descontam seu estresse nas mulheres, na forma de violência doméstica. Há uma maior exploração sexual de mulheres e meninas na prostituição, o que aumenta a vulnerabilidade das mulheres, além de oferecer alívio do estresse aos homens por meio desse tipo de abuso. Quando a crise financeira asiática de 1997 ocorreu, houve um aumento no tráfico de mulheres através da fronteira norte da China, bem como um aumento na violência doméstica. Na Coreia do Sul, após a crise, estima-se que uma em cada sete mulheres estava envolvida na prostituição. Caroline Sweetman explica que ‘a incapacidade dos homens em encontrar emprego alternativo que corresponda à sua visão de si mesmos como “homens de verdade” muitas vezes leva a um aumento da violência contra mulheres e crianças no ambiente doméstico’ (Sweetman, 2008: 2). Os homens que ficam desempregados geralmente não desejam assumir papéis de cuidado extras em casa, já que suas esposas assumem o fardo de sustentar a renda familiar, frequentemente em empregos mal remunerados. Em vez disso, ‘as mulheres frequentemente acabam fazendo um turno duplo enquanto os homens ficam deprimidos e violentos’ (Ibid: 2). Em maio de 2009, uma pesquisa realizada em mais de 600 abrigos para vítimas de violência doméstica nos EUA constatou um aumento de 75% nas mulheres que buscavam ajuda desde a crise econômica em setembro de 2008 (AWID, 2010: 22). Na Austrália, também foi relatado um aumento na violência contra mulheres. Houve um aumento de 15 a 20 por cento nos casos de violência doméstica, abuso físico e negligência, de acordo com a Fundação da Infância Australiana (Massola, 2009). Em apenas dois meses após a crise, o número de ligações aumentou significativamente, de uma média de 220 por mês para mais de 250 por mês.

Homens enfrentando a ruína financeira podem chegar ao extremo de assassinar suas famílias por um sentimento de vergonha e masculinidade prejudicada. Em 2009, um empresário em Shropshire, Reino Unido, que estava enfrentando a falência financeira, matou sua esposa e filha (Carter, 2009). Christopher Foster matou a tiros sua esposa e filha de 15 anos em suas camas, atirou nos cães da família, colocou um trailer de cavalos na entrada para que os bombeiros não pudessem entrar para ajudar e depois ateou fogo à mansão em que a família vivia. Ele morreu no incêndio. Em 2010, um pai em Hampshire, Reino Unido, estava profundamente endividado (Taylor, 2010). Ele matou sua esposa e filhas antes de se enforcar. Homens que assassinam suas famílias e, geralmente, a si mesmos, são descritos como “aniquiladores de família”. São os homens os perpetradores e geralmente em uma situação em que a esposa se separou deles, e os assassinatos são motivados por raiva e vingança. Não houve pesquisa sobre as conexões entre o aniquilamento de famílias e os problemas financeiros dos homens, mas isso pode exigir uma compreensão de como a “honra” dos homens é prejudicada ao perderem seu papel como provedores a ponto de precisarem matar a esposa e a família que poderiam repreendê-los por sua imprudência.

Evidenciado o sexo na solução

As soluções para os problemas criados por economias organizadas em torno dos interesses dos homens e a exclusão do trabalho de subsistência e não remunerado podem exigir mais do que simples ajustes superficiais para envolver um número um pouco maior de mulheres. Quando as medidas para evitar uma maior desestabilização nos mercados financeiros globais demonstram consciência da dimensão de sexo, no entanto, é mais provável que envolvam soluções liberais, como a inclusão de mais mulheres na indústria financeira. Por exemplo, um relatório do Comitê do Tesouro do governo do Reino Unido em abril recomendou que houvesse mais mulheres em cargos de alto nível na área financeira para melhorar a governança corporativa (Penny, 2010). Charles Goodhart, ex-formulador de políticas do Banco da Inglaterra, disse ao comitê em uma audiência que a crise teria sido menos provável se houvesse mais mulheres em cargos de liderança. “A tendência a longo prazo, mais cautelosa e com menos traços do estereótipo masculino dominante seria altamente benéfica” (Penny, 2010). No entanto, trazer mulheres como fiscais para tentar moderar os excessos do comportamento masculino não é susceptível de oferecer uma solução substancial para os problemas causados pela natureza de sexo da crise. Não há desafio à cultura masculina aqui, nem uma compreensão de que a indústria financeira pode estar fundamentada em premissas problemáticas. As mulheres não podem ser transformadas de modo que adquiram os mesmos valores e comportamentos dos homens no setor bancário sem perder precisamente as qualidades que mantêm a economia invisível funcionando, ou seja, o desempenho abnegado de trabalho não remunerado. Simples ajustes não são suficientes quando o capitalismo financeiro é fundamentado na masculinidade voltada para a tomada de riscos.

A crítica das teóricas feministas não se limita apenas à crise, mas se estende à natureza de sexo da contabilidade econômica e da política econômica internacional, sugerindo que é necessária uma mudança mais profunda e abrangente. Mies argumenta que o trabalho não remunerado precisa ser respeitado e questiona: “Como seria uma economia em que a natureza importasse, em que as mulheres importassem, em que as crianças, em que as pessoas importassem, que não fosse baseada na colonização e exploração de outros?” (Mies and Shiva, 1993: 13). Isso requereria a revalorização do trabalho não remunerado das mulheres. “Em um paradigma alternativo, atores, atividades e valores atualmente colonizados e marginalizados serão colocados no núcleo (centro), porque são fundamentais para garantir que a vida possa continuar em sua regeneração e plenitude”. Enquanto o trabalho não remunerado não for reconhecido, políticas econômicas nacionais e internacionais poderão continuar fazendo ajustes estruturais e reagindo a crises, com a expectativa de que os comportamentos antissociais dos homens devam ser respeitados e as mulheres serão os amortecedores do sistema.


  1. In: Pettman, Ralph (ed) (2012), Handbook on International Political Economy. Singapore: World Scientific, 285-302. Disponível em: https://sheila-jeffreys.com/globalisation-and-the-male-female-divide-an-overview/ ↩︎
  2. No original, a autora usa o termo “gênero”, porém como atualmente ela e muitas outras feministas acreditam que este conceito não é o melhor para os interesses da classe feminina, tendo em vista nosso cenário social e político, optamos por substituir “gênero” por sexo nesta tradução. [N.d.T] ↩︎

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