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Como as políticas do orgasmo sequestraram o movimento feminista?

Sheila Jeffreys1


A edição de novembro/dezembro de 1995 da revista Ms.2, com o título de capa SEXO QUENTE E ESPONTÂNEO, mostrava o close de uma mulher negra lambendo seus lábios pintados. A despeito de todo esforço feminista que tem sido feito nos últimos 25 anos para criticar e contestar a construção supremacista masculina do sexo, nenhum dos quatro artigos da revista fazia menção a todos os outros aspectos da vida e do status social da mulher. Em destaque em um dos artigos estava uma frase do livro de Barbara Seaman de 1972, intitulado Livre e Mulher:

“O orgasmo livre é um orgasmo que você gosta, em qualquer circunstância”.

Julgando por essa edição de Ms., e pelas prateleiras de contos eróticos para mulheres em livrarias feministas, uma política de orgasmo irreflexiva parece ter se estabelecido.

No final da década de 1960 e no começo da década de 1970, acreditava-se amplamente que a revolução sexual, ao libertar a energia sexual, tornaria todos livres. Eu me lembro de Maurice Girodias, que publicou A História do O em Paris pela Olympia Press, dizendo que a solução para regimes políticos repressivos seria postar pornografia em todas as caixas de correio. Orgasmos melhores, proclamou o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, criariam a revolução. Naqueles tempos inebriantes, muitas feministas acreditavam que a revolução sexual estava intimamente ligada à libertação das mulheres, e elas escreviam sobre como orgasmos poderosos trariam poder às mulheres.

Dell Williams é citado em Ms. como tendo aberto uma sex shop em 1974 exatamente com essa ideia, a de vender brinquedos sexuais para mulheres:

“eu queria transformar as mulheres em seres sexuais poderosos… Eu acreditava que mulheres orgásmicas poderiam mudar o mundo.”

Desde os anos 60, sexólogos, libertários sexuais e empresários da indústria do sexo procuraram discutir o sexo como se fosse completamente dissociado da violência sexual e não tivesse nenhuma relação com a opressão de mulheres. Enquanto isso, teóricas feministas e ativistas antiviolência aprenderam a analisar o sexo politicamente. Nós vimos que o domínio masculino sobre os corpos de mulheres, sexualmente e reprodutivamente, provê a base da supremacia masculina, e que a opressão na sexualidade e através dela diferencia a opressão de mulheres da de outros grupos.

Se nós temos alguma chance de libertar as mulheres do medo e da realidade do abuso sexual, a discussão feminista da sexualidade deve incorporar tudo que sabemos sobre violência sexual ao que pensamos sobre sexo. Mas atualmente conferências feministas oferecem workshops separados, em locais diferentes, de como aumentar o “prazer” sexual e de como sobreviver à violência sexual – como se esses fenômenos fossem isolados. Mulheres que se intitulam feministas agora afirmam que a prostituição pode ser benéfica às mulheres, para expressar sua “sexualidade” e fazer escolhas de vida empoderadoras. Outras promovem às mulheres práticas e produtos da indústria do sexo com fins lucrativos, na forma de striptease lésbico e parafernália de sadomasoquismo. Existem agora setores inteiros de comunidades femininas, lésbicas e gays onde qualquer análise crítica da prática sexual é vista como um sacrilégio, estigmatizada como “conservadorismo”. A liberdade é representada como a conquista de orgasmos mais intensos e melhores por qualquer meio possível, incluindo “leilões sexuais”, prostituição de mulheres e homens, e danificação física permanente como branding. Formas tradicionais de sexualidade supremacista masculina baseadas na dominação e submissão e a exploração e objetificação da classe escravizada de mulheres estão sendo celebradas por suas possibilidades excitantes e “transgressoras”.

Bem, a pornografia está nas caixas de correio, e os artefatos para orgasmos cada vez mais poderosos estão prontamente disponíveis através da indústria internacional do sexo. E em nome da libertação feminina, muitas feministas hoje em dia estão promovendo práticas sexuais que – longe de revolucionar e transformar o mundo – estão profundamente envolvidas nas práticas do bordel e da pornografia.

Como isso pode ter acontecido? Como pode a revolução das mulheres ter entrado em curto-circuito? Eu sugiro que há quatro razões.


Razão Número 1
Vítimas da indústria do sexo tornaram-se “experts” do sexo

O capitalismo sexual, que encontrou uma forma de transformar em bem consumível praticamente todo ato de subordinação sexual imaginável, encontrou até mesmo uma forma de remodelar e reciclar algumas de suas vítimas. Como resultado, um grupo de mulheres que têm uma história de abuso e aprenderam sua sexualidade servindo aos homens na indústria do sexo agora podem, frequentemente com o patrocínio de empresários homens da indústria do sexo, promover-se como educadoras sexuais nas comunidades lésbicas e feministas. Algumas dessas mulheres “bem-conceituadas” – que dificilmente representam a maioria das vítimas da indústria do sexo – conseguiram lançar revistas como a On Our Backs (para praticantes de ‘sadomasoquismo lésbico’) e montar negócios de striptease e pornografia. Muitas mulheres aceitaram erroneamente essas mulheres, antes prostituídas, como “experts” sexuais. Annie Sprinkle e Carol Leigh, por exemplo, reintroduziram práticas misóginas da indústria do sexo em comunidades femininas. Essas mulheres lideraram a ridicularização direcionada àquelas de nós que disseram que o sexo pode e deve ser diferente.

Ao mesmo tempo, algumas mulheres que lucraram com o livre mercado capitalista nos anos 80 exigiram igualdade sexual e econômica em relação aos homens. Elas escaparam, e agora querem usar as mulheres como homens o fazem, então consomem pornografia e demandam por clubes de striptease e bordéis onde mulheres as sirvam. Essa não é uma estratégia revolucionária. Não há aqui uma ameaça ao privilégio masculino, ou uma chance de libertar outras mulheres de seu status sexual subordinado. E, mais uma vez, os homens se tornaram o padrão para todas as práticas sexuais.

Mulheres anteriormente prostituídas que promovem o sexo da prostituição – mas que agora são pagas para palestrar e publicar – passam uma mensagem que até mesmo algumas feministas consideraram mais palatável que todas as visões e ideias que nós compartilhamos sobre como transformar o sexo, como nos amarmos em igualdade como base para um futuro no qual as mulheres poderiam ser realmente livres.

Razão Número 2 

O sexo da prostituição foi aceito como o modelo padrão para sexo

Nós não podemos construir uma sexualidade que torne possível que mulheres vivam sem terrorismo sexual sem abolir o abuso de mulheres pelos homens na prostituição. Dentro do movimento feminino, no entanto, o sexo da prostituição tem sido defendido e promovido. Shannon Bell em Reading, Writing and Rewriting the Prostitute Body (1994) argumenta que a mulher prostituída deve ser vista como “trabalhadora, curadora, representante sexual, professora, terapeuta, educadora, minoria sexual e ativista política.” Nesse livro a representante das Prostitutas de Nova Iorque, Veronica Vera, é citada dizendo que deveríamos pensar as profissionais do sexo como “praticantes de um ofício sagrado”, afirmando que sexo (presumidamente qualquer tipo de sexo incluindo o sexo da prostituição) é uma “ferramenta de poder curativo e construtivo”. Mas na verdade o mecanismo mais poderoso hoje em dia para a construção da sexualidade masculina é a indústria do sexo.

A prostituição e sua representação na pornografia criam uma sexualidade agressiva que requer a objetificação de uma mulher. Ela é transformada em uma coisa que não merece o respeito que é devido a outro indivíduo senciente. A prostituição mantém uma sexualidade na qual é aceitável para o cliente obter “prazer” às custas de e no corpo de uma mulher que se dissocia para sobreviver. Esse é o modelo de como o sexo é concebido na sociedade supremacista masculina, e sexólogos construíram suas carreiras sobre esse modelo. Masters e Johnson, por exemplo, desenvolveram suas técnicas de terapia sexual a partir das práticas de mulheres prostituídas que eram pagas para fazer com que homens idosos, bêbados ou simplesmente indiferentes tivessem ereções e pudessem penetrá-las. Como Kathleen Barry apontou em A Prostituição da Sexualidade, a prostituição constrói uma sexualidade de dominação masculina/submissão feminina em que a identidade e o bem-estar da mulher, sem mencionar seu prazer, são vistos como irrelevantes.

A prostituição é um negócio poderoso que está rapidamente se tornando globalizado e industrializado. Mais da metade das mulheres prostituídas em Amsterdã, por exemplo, são traficadas, ou seja, levadas para lá, muitas vezes após serem enganadas, de outros países e são frequentemente mantidas em condições de escravidão sexual. Mulheres australianas são traficadas para a Grécia; mulheres russas para boates de striptease em Melbourne; mulheres birmanesas para a Tailândia; e mulheres nepalesas para a Índia. Milhões de mulheres em países de Primeiro Mundo e muitas mais nos países de Terceiro Mundo são submetidas ao abuso de terem seus corpos violados por mãos e pênis indesejados. Mulheres prostituídas sentem-se tão mal vivenciando esse abuso sexual quanto qualquer outra mulher. Elas não são diferentes.

Espera-se que mulheres e crianças prostituídas suportem muitas das formas de violência sexual que feministas consideram inaceitáveis no ambiente de trabalho e em suas casas. Assédio sexual e intercurso sexual indesejado são a base do abuso, mas mulheres prostituídas devem receber ligações obscenas de tele-sexo também. Elas trabalham de topless em lojas, lava-carros e restaurantes. Ao mesmo tempo que outras mulheres estão buscando dessexualizar seu trabalho de forma que possam ser vistas como algo além de objetos sexuais, a demanda de mulheres na prostituição e “entretenimento” sexual está aumentando. A prostituição de mulheres pelos homens reduz as mulheres de quem abusam e todas as outras mulheres ao status de corpos a serem vendidos e usados. Como feministas podem esperar eliminar práticas abusivas de suas camas, ambientes de trabalho e infância se os homens podem simplesmente continuar a adquirir o direito a essas práticas na rua ou, como em Melbourne, em bordéis licenciados pelo Estado?

Striptease é um tipo de prostituição que tornou-se aceitável em países ricos como uma forma de “entretenimento”. (Em países pobres dependentes de turismo sexual, toda prostituição é vista como entretenimento.) Junto de outras mulheres da Liga Contra o Tráfico de Mulheres, eu recentemente visitei uma boate de striptease em Melbourne chamada A Galeria dos Homens. Umas 20 ou 30 mulheres estavam “dançando” em cima de mesas. Uma fileira de homens – adolescentes de bairros nobres, homens que pareciam palestrantes e professores de faculdade, avôs, turistas – estavam sentados a essas mesas com seus joelhos escondidos sob elas. Geralmente em duplas, esses homens requisitavam à mulher que tirasse a roupa. Ao fazer isso, ela apoiava suas pernas nos ombros dos homens, ginasticamente mostrando-lhes sua genitália depilada, de frente e de costas e em posições diferentes por 10 minutos enquanto os homens colocavam dinheiro em sua cinta-liga. A genitália da mulher ficava a centímetros do rosto dos homens, e eles olhavam fixamente, suas faces com uma expressão de prazer admirado e culpado, como se eles não pudessem acreditar que possuem tal domínio. Será que os homens estavam excitados sexualmente pela incitação de seu status fálico dominante? Será que a simples exibição da genitália feminina, que demonstra o status subordinado das mulheres, era excitante por si só? Para nós observadoras mulheres, era difícil compreender a excitação e entusiasmo dos homens. Muitos deles deveriam ter filhas adolescentes, não diferentes daquelas mulheres, muitas das quais eram estudantes e cujas genitálias dançavam perante seus olhos hipnotizados.

A dança de striptease nos ensina algo que devemos entender sobre “sexo” como construção da supremacia masculina: Os homens se unem e criam vínculos através da degradação compartilhada das mulheres. Os homens que frequentam esses clubes aprendem a acreditar que mulheres adoram seu status de objeto sexual e adoram provocar sexualmente enquanto são examinadas como escravas em um mercado. E as mulheres, como eles nos dizem, simplesmente não se envolvem no que estão fazendo.

Razão Número 3 

Lésbicas têm imitado homens gays.

O questionamento feminista do modelo sexual da prostituição tem encontrado resistência especialmente por parte de muitos homens gays e lésbicas que os imitam. Como Karla Jay escreve, aparentemente de forma não crítica, em Dyke Life:


“Atualmente, lésbicas estão no limite do radicalismo sexual… Algumas lésbicas agora reivindicam o direito a uma liberdade erótica que já foi associada a homens gays. Algumas cidades grandes possuem clubes de sexo e bares de sadomasoquismo para lésbicas, e revistas e vídeos pornográficos produzidos por lésbicas para outras mulheres têm proliferado nos Estados Unidos. Nossa sexualidade tornou-se tão pública quanto as tatuagens e piercings em nossos corpos”.

Na cultura gay masculina nós observamos o fenômeno de uma sexualidade de automutilação e escravidão, de tatuagem, piercing e sadomasoquismo, transformada no próprio símbolo do que significa ser gay. Interesses comerciais gays investem de forma pesada na exploração dessa sexualidade de opressão como constitutiva da identidade gay. Grande parte do poder do pink money gay desenvolveu-se a partir do fornecimento de locais para eventos, bares e saunas nos quais a sexualidade da prostituição pudesse ser praticada, embora atualmente na maioria das vezes não paga. A influência cultural da resistência masculina gay aos questionamentos feministas da pornografia e prostituição tem sido profunda, financiada fortemente na mídia gay pela publicidade da indústria do sexo gay.

Alguns homens gays contestaram a sexualidade de dominação/submissão que prevalece na comunidade gay masculina, mas poucos até agora se aventuraram a publicar suas ideias a fim de não provocar a ira de seus irmãos. Homens gays, criados na supremacia masculina, ensinados a venerar a masculinidade, também precisam lutar para superar sua erotização das hierarquias de dominação/submissão se eles desejam se aliar ao feminismo.

O sexo da prostituição é central à construção da identidade gay devido ao papel da prostituição na história gay. Tradicionalmente, a homossexualidade masculina era expressa, por homens de classe média, através da compra de homens e garotos mais pobres – como foi feito por Oscar Wilde, Andre Gidé, Christopher Isherwood. Esse não era o modelo da prática lésbica.

Na década de 1980, à medida que as lésbicas perderam a confiança nas suas próprias opiniões, forças e possibilidades – uma vez que o feminismo foi atacado e a indústria do sexo se fortaleceu enormemente – muitas tomaram os homens gays como os seus modelos e começaram a se definir como “párias sexuais”. Elas desenvolveram uma identidade completamente contrária àquela do feminismo lésbico. Feministas lésbicas celebram o lesbianismo como o apogeu do amor entre mulheres, como uma forma de resistência a todas as práticas e valores da cultura supremacista masculina, incluindo a pornografia e a prostituição. As lésbicas liberais que vieram a público com o intuito de caluniar o feminismo dos anos 80 atacaram as feministas lésbicas por “dessexualizarem” o lesbianismo e optaram por se identificar como “pró sexo”. Mas as práticas dessa postura “pró sexo” acabaram por replicar a versão do lesbianismo que foi tradicionalmente oferecida pela indústria do sexo. As admiráveis novas lésbicas “transgressoras” eram as mesmas construções sadomasoquistas e butch/femme que já têm sido por muito tempo constituintes básicos da pornografia masculina heterossexual.

Essas lésbicas adotaram as práticas da indústria do sexo como constitutivas de quem elas realmente são, a fonte de sua identidade e de seu ser. Porém, a todo tempo elas se sentiam deficientes, uma vez que seu ideal de sexualidade radical e vigorosa, praticada por alguns homens gays, parecia sempre fora de alcance. Em publicações como a revista Wicked Women de Sydney, no trabalho de Cherry Smyth e Della Grace no Reino Unido e Pat Califia nos Estados Unidos, essas lésbicas lamentavam suas inadequações no sexo em banheiros, nos encontros casuais, em conseguirem sentir-se sexualmente atraídas por crianças. Terapeutas sexuais para lésbicas, como Margaret Nicholls, tornaram-se parte importante de uma nova indústria do sexo lésbico.

Atualmente há uma tendência em revistas feministas e nas revistas femininas de representar a sexualidade lésbicas da prostituição como um prato tentador para mulheres heterossexuais provarem e consumirem. Lesbianismo “transgressor”, derivado da indústria do sexo e mimetizando a cultura masculina gay, é agora apresentado como uma sexualidade “feminina” progressiva, um modelo de como mulheres heterossexuais poderiam e deveriam ser.

Razão Número 4
Subordinar-se pode ser excitante.

Não existe um prazer sexual “natural” que pode ser liberado. Aquilo que provê sensações sexuais a homens ou mulheres é construído socialmente a partir da relação de poder entre homens e mulheres, e isso pode ser mudado. No sexo, a própria diferença entre homens e mulheres, supostamente tão “natural”, é de fato criada. No “sexo”, as próprias categorias “homens”, pessoas com poder político, e “mulheres”, pessoas da classe subordinada, tornam-se carne. O sexo é tampouco uma mera questão privada. Na concepção masculina liberal, o sexo foi relegado à esfera privada e visto como um domínio de liberdade pessoal no qual as pessoas podem expressar seus desejos e fantasias individuais. Mas a cama está longe de ser privada; ela é uma arena na qual a relação de poder entre homens e mulheres é atuada de forma mais reveladora. A liberdade ali é usualmente a dos homens de realizarem-se através de e nos corpos das mulheres.

Sentimentos sexuais são aprendidos e podem ser desaprendidos. A construção da sexualidade em volta da dominação e submissão é suposta como “natural” e inevitável porque homens aprendem a operar o símbolo de seu status de classe dominante, o pênis, em relação à vagina de forma que assegure o status subordinado da mulher. Nossos sentimentos e práticas do sexo não podem ser imunes a essa realidade política. E eu sugiro que é a afirmação dessa relação de poder, a asserção de uma distinção entre “os sexos” por meio de comportamentos de dominação/submissão que proporcionam ao sexo sua saliência e a intensa excitação geralmente associada a ele na supremacia masculina.

Desde o começo dos anos 70, teóricas feministas e pesquisadoras têm revelado a extensão da violência sexual e de como a vivência e o medo dela castram as vidas e oportunidades das mulheres. O abuso sexual infantil diminui a habilidade de mulheres de desenvolver relações fortes e afetuosas com seus corpos e com outras pessoas, e criar confiança para enfrentar o mundo. O estupro na idade adulta, incluindo estupro no casamento e namoro, produz efeitos semelhantes. Assédio sexual, voyeurismo, exposições e perseguições diminuem as oportunidades igualitárias das mulheres na educação, no trabalho, em suas casas, nas ruas. Mulheres que foram usadas na indústria do sexo desenvolvem técnicas de dissociação para sobreviver, uma experiência compartilhada por vítimas de incesto, e lidam com danos à sua sexualidade e relacionamentos. A consciência da ameaça suprema obscurecendo as vidas das mulheres, a possibilidade do assassinato sexual, nos é exposta regularmente através de manchetes de jornais sobre as mortes de mulheres.

Os efeitos cumulativos de tais violências geram o medo que faz com que as mulheres limitem aonde elas vão e o que fazem, ter o cuidado de olhar para o banco de trás do carro, trancar portas, usar roupas “seguras”, fechar cortinas. Como mostram estudos feministas como o de Elizabeth Stanko em Everyday Violence (1990), mulheres têm consciência da ameaça de violência masculina e modificam suas vidas por conta desse medo, mesmo que elas não tenham vivenciado um assédio mais grave. Em contraste com essa realidade cotidiana das vidas das mulheres, a noção de que um orgasmo “em qualquer circunstância” poderia aniquilar esse medo e vulnerabilidade reafirmada é talvez a falácia mais cruel do pseudofeminismo.

A violência sexual masculina não é trabalho de indivíduos psicóticos, mas o produto da construção normalizada da sexualidade masculina em sociedades como a dos Estados Unidos e Austrália atualmente – como a prática que define o status superior dos homens e subordina as mulheres. Se nós realmente queremos acabar com essa violência, não devemos aceitar essa construção como o modelo do que “sexo” realmente é.
O prazer sexual para mulheres é uma construção política também. A sexualidade feminina bem como a masculina foi forjada no modelo de dominação/submissão, como um artifício para satisfazer e servir à sexualidade construída nos homens e para eles. Enquanto que garotos e homens foram encorajados a direcionar todos os seus sentimentos à objetificação do outro e são recompensados com o “prazer” pela dominação, mulheres aprenderam seus sentimentos sexuais em uma situação de subordinação. Garotas são treinadas através de abuso sexual, assédio sexual, e desde muito cedo com encontros sexuais com garotos e homens assumindo um papel sexual reativo e submisso. Nós aprendemos nossos sentimentos sexuais da mesma forma que aprendemos outras emoções, em famílias de dominação masculina e em situações nas quais nós não possuímos poder, cercadas de imagens de mulheres como objetos na publicidade e em filmes.

O maravilhoso livro de 1994 escrito por Dee Graham, Amar para Sobreviver, retrata a heterossexualidade feminina e a feminilidade como sintomas do que ela chama de Síndrome de Estocolmo Social. Na apresentação clássica da Síndrome de Estocolmo, reféns aterrorizados criam vínculo com seus captores e desenvolvem cooperação submissa a fim de sobreviver. Manuais para aqueles que podem ser feitos reféns, como aquele que me foi dado quando eu trabalhei numa prisão, descrevem táticas de sobrevivência que lembram os conselhos oferecidos em revistas femininas sobre como conquistar homens. Se você for tomado como refém, dizem esses manuais, você deve falar sobre os interesses e família do captor para fazê-lo compreender que você é uma pessoa e ativar sua humanidade. A Síndrome de Estocolmo desenvolve-se naqueles que temem por suas vidas, porém dependem de seus captores. Se o captor demonstra qualquer gentileza, mesmo quando mínima, é provável que o refém desenvolva um vínculo com seu captor até mesmo ao ponto de protegê-lo de perigos e adotar plenamente seu ponto de vista acerca do mundo. Graham define a violência sexual rotineira que as mulheres vivenciam como “terrorismo sexual”. Em face desse terror, Graham aponta, mulheres desenvolvem Síndrome de Estocolmo Social e criam vínculos com homens.

Uma vez que a sexualidade feminina se desenvolve nesse contexto de terrorismo sexual, nós podemos erotizar nosso medo, nosso vínculo aterrorizado. Toda excitação sexual e liberação não é necessariamente positiva. Mulheres podem ter orgasmos ao serem sexualmente abusadas na infância, no estupro ou na prostituição. Nossa linguagem possui apenas palavras como prazer e gozo para descrever sentimentos sexuais, e nenhuma palavra para descrever os sentimentos que são sexuais mas dos quais não gostamos, sentimentos que vêm da experiência, sonhos ou fantasias sobre degradação ou estupro e que causam angústia apesar da excitação.

O “sexo” promovido por revistas femininas e até mesmo feministas, como se esse fosse dissociado da realidade do status subordinado da mulher e experiência de violência sexual, não oferece nenhuma esperança de desconstrução e reconstrução das sexualidades tanto masculinas como femininas. Sadomasoquismo e cenas de “fantasia”, por exemplo, nos quais as mulheres procuram se “perder”, são frequentemente utilizados por mulheres que foram abusadas sexualmente. A excitação orgástica experimentada nesses cenários simplesmente não consegue ser sentida nos corpos dessas mulheres se e quando elas permanecem alertas e conscientes de quem elas realmente são. O orgasmo da desigualdade – longe de encorajar as mulheres à busca da criação de uma sexualidade proporcional à liberdade que feministas visualizam – simplesmente recompensa mulheres com o prazer da dissociação.

Muitas mulheres, incluindo feministas, limitaram suas visões de como tornar as mulheres livres e decidiram focar-se em ter orgasmos mais poderosos de qualquer forma possível. A busca pela orgasmo da opressão funciona como um novo “ópio para as massas”. Ela desvia nossas energias das lutas necessárias contra a violência sexual e a indústria globalizada do sexo. Questionar-se sobre como esses orgasmos são experimentados, o que significam politicamente, se são obtidos através da prostituição de mulheres na pornografia, não é fácil, mas também não é impossível. Uma sexualidade de igualdade adequada à nossa busca pela liberdade ainda precisa ser construída e defendida se nós desejamos libertar as mulheres da sujeição sexual.

A habilidade de mulheres de erotizar sua própria subordinação e “gozar” a partir da sua própria degradação e de outras mulheres ao status de objeto impõe um grande obstáculo. Enquanto mulheres receberem alguma recompensa no sistema sexual atual – enquanto elas sentirem prazer dessa forma – por que elas desejariam mudar? Eu sugiro que é impossível imaginar um mundo no qual mulheres são livres ao mesmo tempo que se protege a sexualidade baseada precisamente na sua ausência de liberdade. Nosso impulso sexual deve se igualar ao nosso entusiasmo político pelo fim de um mundo sustentado por todas as hierarquias abusivas, incluindo raça e classe. Somente uma sexualidade de igualdade, e nossa habilidade de visualizar e batalhar por tal sexualidade, torna a liberdade das mulheres possível.


  1. Tradução livre do artigo publicado em 1996 na revista On The Issues. Disponível em:
    https://ontheissuesmagazine.com/feminism/how-orgasm-politics-has-hijackedthe-womens-movement/ ↩︎
  2. Importante revista feminista liberal estadunidense. ↩︎

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Quem fez o jantar de Adam Smith? 

Críticas Feministas sobre a Política Econômica Internacional1

Sheila Jeffreys


As teóricas econômicas feministas questionam as bases do pensamento econômico tradicional, colocando em dúvida a ideia do ‘homem econômico racional’. A economia tradicional é baseada em duas principais suposições patriarcais. Ela se baseia na forma como os homens nas sociedades ocidentais, em suas instituições e sistemas de governo, ganham a vida e criam riqueza. Caroline Sweetman, editora da revista Oxfam, Gênero e Desenvolvimento, expressa dessa forma: ‘Homo Economicus é nominalmente assexual, mas vive em um mundo profundamente masculino, centrado no trabalho remunerado e em atividades de lazer pagas.’ (Sweetman, 2008). As mulheres não se encaixam nesse cenário. Críticas feministas têm apontado que o trabalho das mulheres, em sua maioria não remunerado e não reconhecido, ‘não conta para nada’ nos sistemas masculinos de contabilidade (Waring, 1988). A economia tradicional também se baseia na ideia de que os homens são ‘racionais’ e buscam maximizar o interesse próprio, ideia severamente desafiada pelo comportamento na indústria financeira que levou à crise financeira global. Este capítulo apresentará as críticas feministas ao conceito de ‘homem econômico racional’.

A teórica feminista das relações internacionais, Jan Pettman, argumenta: ‘Muitos aspectos da EPI não fazem sentido se não considerarmos a dimensão de sexo’ (Pettman, 1996: 160). No entanto, apesar de três décadas de crítica feminista à política econômica internacional (Mies, 1986; Enloe, 1989), até mesmo críticos de esquerda não demonstram consciência de que sua disciplina pode ser considerada em termos de sexo. Assim, a coletânea ‘American Empire and the Political Economy of Global Finance’, republicada em 2009 com um capítulo adicional sobre a crise financeira global, conta com uma única mulher entre seus dez colaboradores e não inclui ‘mulher/mulheres’, ‘sexo’ ou ‘feminismo’ em seu índice (Panitsch and Konings, 2009). O livro considera a classe econômica, mas não a classe sexual. Em contraste com tais textos, este capítulo se concentrará na classe sexual e examinará as maneiras pelas quais os homens, a masculinidade e a dominação masculina construíram o capitalismo global, especialmente o capitalismo financeiro. A crise financeira global precisa ser abordada sob uma perspectiva do sexo, e este capítulo oferecerá um ponto de partida para essa tarefa.2

A contabilidade econômica e o trabalho das mulheres

O principal problema nas interpretações tradicionais masculinas da economia política, de acordo com as teóricas econômicas feministas, é a forma como a contabilidade econômica é realizada. Por exemplo, o PIB conta apenas o que está na economia remunerada. Não leva em consideração a subsistência, o trabalho não remunerado ou a exploração da natureza, tratando-os como um recurso ‘gratuito’. (Bennholdt-Thomson e Mies, 1999). Bennholdt-Thomson e Mies, por exemplo, apontam em seu ‘Modelo Iceberg da Economia Capitalista Patriarcal’ que apenas uma parte muito pequena do trabalho mundial está na economia ‘visível’, apenas a ponta do iceberg. A maior parte do iceberg que está sob a superfície da água contém toda a atividade econômica restante que ocorre no mundo, incluindo a realizada por donas de casa, trabalhadoras domésticas, o setor informal, trabalho infantil, camponeses de subsistência e a exploração de colônias (externas e internas), o Sul, Leste Europeu, etc, e a Natureza, que é considerada um bem gratuito a ser explorado, pescado e destruído (Bennholdt-Thomson e Mies, 1999: 31).

A grande maioria do trabalho das mulheres não está na economia visível, incluindo o trabalho não remunerado em casa, trabalho doméstico, trabalho não remunerado no mercado, trabalho de cuidar e educar crianças, e trabalho sexual e emocional não remunerado. Esse trabalho não remunerado das mulheres constitui a base não reconhecida de tudo o que é realmente contado na economia tradicional. A própria ideia de ‘trabalho’, como algo que ocorre fora de casa por um número determinado de horas por dia, é construída a partir dos interesses dos homens, cujas marmitas são preparadas por suas esposas (Pateman, 1988). As esposas são uma necessidade vital para o trabalhador masculino. Esposas compram e cozinham comida, compram lençóis e colocam lençóis limpos na cama, organizam roupas limpas para os membros masculinos da família. Mas elas fazem muito mais do que essas atividades mais tangíveis, fornecendo sustento emocional ou ‘trabalho emocional’ (Hochschild, 1983) e contribuindo para os salários que seus maridos ganham no trabalho remunerado.

A questão de como o trabalho doméstico não remunerado das mulheres deve ser compreendido na teoria marxista e feminista tem sido uma discussão importante desde o início dos anos 1970. Maria Mies explica que foi a questão do trabalho não remunerado das mulheres que animou o debate sobre como o capitalismo e o patriarcado estavam entrelaçados para criar o ‘patriarcado capitalista’ (Mies, 1998). Tornou-se claro na década de 1980, diz ela, que ‘o trabalho de cuidar e nutrir não remunerado das mulheres no lar estava subsidiando não apenas o salário masculino, mas também a acumulação de capital’ (Mies, 1998: ix). A importância desse trabalho foi obscurecida ao construir a mulher como ‘mãe, esposa e dona de casa’, o que foi o ‘truque pelo qual 50 por cento do trabalho humano foi definido como um bem gratuito’ (Mies, 1998: ix). As teóricas feministas marxistas e as teóricas feministas radicais ou materialistas abordam essa questão de maneiras diferentes. Christine Delphy e Diana Leonard oferecem um resumo muito útil dos debates e uma análise aguda do lugar do trabalho doméstico no que chamam de teoria feminista ‘materialista’ (Delphy and Leonard, 1992). Elas explicam que a principal falha nos debates sobre ‘trabalho doméstico’ é que as teóricas feministas socialistas tendem a ver o trabalho não remunerado das mulheres como sendo realizado para ‘o capitalismo’ em vez de para homens individuais. Delphy e Leonard reformulam a ideia de exploração, geralmente entendida como a apropriação dos frutos do trabalho por outros. Elas explicam que as mulheres são exploradas ‘não porque a fábrica ou o campo em que você trabalha pertence a outra pessoa, mas de forma mais simples porque seu trabalho pertence a outra pessoa – porque você não é dona da sua própria capacidade de trabalhar (seu próprio poder de trabalho)’ (Delphy e Leonard, 1992: 43). São os chefes de família do sexo masculino que são proprietários do trabalho das mulheres, como elas explicam, ‘Ser proprietário dos meios de produção é desnecessário se você possui escravos ou servos ou esposas ou filhos’ (Ibid).

A teorização feminista da política econômica internacional pode ser excessivamente eufemística para evitar mencionar a dominação masculina e a opressão das mulheres. Um artigo de 2010 em um número importante do jornal feminista Signs, dedicado à análise da política econômica internacional, usa o termo ‘diferença’ em vez de ter que se referir a homens ou mulheres. A análise de Jennifer Bair investiga a ‘relação entre diferença e capital’ (Bair, 2010: 224). O uso desse eufemismo efetivamente obscurece a existência da dominação masculina e as maneiras pelas quais homens, ou qualquer grupo poderoso, podem lucrar com o trabalho dos menos poderosos. Opressão, exploração e subordinação, termos políticos fortes que descrevem a desigualdade, são ocultados pela ‘diferença’. ‘Diferença’ não pode explicar por que as mulheres realizam uma ampla variedade de tarefas diretamente para o benefício dos homens com quem vivem.

Delphy e Leonard são críticas das teorias sobre o trabalho doméstico por se concentrarem em uma compreensão estreita do trabalho doméstico, como limpeza, cozinha, cuidados com crianças, e por não reconhecerem a ampla variedade de trabalho não remunerado que as esposas realizam, como o trabalho feito para ‘as ocupações de seus maridos’, para as atividades de lazer dos homens e para o bem-estar emocional e sexual deles (Delphy and Leonard, 1992: 226). Esse último tipo de trabalho, dizem elas, ‘é completamente negligenciado porque é tão variado, personalizado e íntimo’ (Delphy and Leonard, 1992: 226). Elas explicam que os maridos usam o trabalho de suas esposas para obter ganhos econômicos. Esposas agendam compromissos para maridos que são encanadores, por exemplo, trabalham na loja e na fazenda da família, e ‘calculam, digitam e enviam orçamentos e faturas para os clientes’ (Ibid). Quando os homens são empregados, as esposas frequentemente fazem parte do acordo para os empregadores, em empregos como serviços diplomáticos, na polícia rural e na administração de um bar. Em bares, esposas têm a posição de ‘consorte institucionalizada’ ao serem anfitriãs, cozinhar refeições ou ‘ficar decorativas’ atrás do balcão. Esposas também ajudam nas atividades voluntárias e de lazer de seus maridos. Elas precisam lavar uniformes e limpar equipamentos de lazer e realizar arrecadações de fundos para grupos de escoteiros, por exemplo. Elas podem ajudar os maridos a concorrer a cargos políticos e fornecer ‘hospitalidade’. Esposas muitas vezes assumem o comando quando os maridos estão ausentes, em situações de crise ou quando estão ocupados. As esposas de acadêmicos podem digitar relatórios de pesquisa e realizar outras tarefas de pesquisa e administrativas. As esposas de clérigos precisam apoiar os fiéis e agendar compromissos. As esposas de agricultores podem precisar administrar a fazenda quando o marido está ausente. Além disso, Delphy e Leonard afirmam: ‘A maioria dessas atividades pode ser realizada mesmo que a esposa tenha emprego remunerado’ (Delphy and Leonard: 231). O aspecto do trabalho não remunerado das esposas que serve diretamente às atividades de geração de renda do homem ganhou um pouco mais de reconhecimento pelos estudiosos desde o início dos anos 1990, quando o livro de Delphy e Leonard foi escrito. Lisa Philipps chama isso de ‘trabalho de mercado não remunerado’ (Philipps, 2008). Ela define isso como ‘o envolvimento de membros da família em atividades de ganha-pão que são oficialmente responsabilidade de apenas uma pessoa na casa’ (Philipps, 2008: 37). Philipps critica o trabalho feminista na economia política por postular que o capitalismo industrial ‘dividiu o trabalho remunerado no mercado do trabalho não remunerado no lar’ (Philipps, 2008: 51). Pelo contrário, ela argumenta que o trabalho de mercado remunerado e não remunerado são interdependentes.

Outro aspecto menos reconhecido do trabalho das esposas é a prestação de apoio ‘moral’ aos maridos e o cuidado com seu bem-estar. As esposas têm o papel de terapeutas informais, a quem os maridos podem ‘desabafar’. Elas têm ‘um papel importante como provedoras de sexo sem problemas – o que é motivo pelo qual os empregadores podem incentivar os homens a levar suas esposas com eles em empregos no exterior’ (Delphy and Leonard, 1992: 232). As esposas também ‘transformam uma casa em um lar’ (Delphy and Leonard, 1992: 233). Elas sorriem e mantêm alegria, ‘lisonjeiam, desculpam, impulsionam, simpatizam e prestam atenção aos homens’, o que ‘dá aos homens uma sensação de pertencimento, empoderamento e bem-estar geral’ (Ibid). O cuidado que as esposas prestam aos homens, como Anthony McMahon observa em ‘Taking Care of Men’, está oculto sob ideias de destino biológico ou amor romântico, e a ideia de que esse cuidado pode servir aos interesses dos homens é frequentemente fortemente contestada (McMahon, 1999). No entanto, ele considera importante reconhecer a escala e a importância do cuidado que as mulheres oferecem aos homens e a maneira como isso constrói o sucesso e o desempenho dos homens no mercado.

Não é ‘racional’ para as mulheres realizar qualquer parte desse trabalho, que serve para o benefício de seus maridos e não lhes traz recompensa monetária. O trabalho não remunerado das mulheres constitui um desafio poderoso à ideia de ‘homem econômico racional’ que está subjacente à teoria econômica tradicional. A teórica feminista Lourdes Beneria explica que ‘a racionalidade econômica é baseada na expectativa de que os seres humanos se comportem de maneira a obter ganhos máximos’ (Beneria, 1999: 64). Ela diz que, nessa forma de pensar, ‘o empreendedor busca maximizar lucros, o empregado busca atingir os maiores ganhos possíveis, e o consumidor busca maximizar sua utilidade’ (Beneria, 1999: 64). Essa ideia básica do ‘homem econômico racional’, diz Beneria, foi incorporada na teoria neoclássica, ‘A racionalidade econômica é assumida como a norma no comportamento humano’ (Beneria, 1999: 64). O fato de as mulheres se envolverem em tanto trabalho não remunerado não está claramente em seu próprio interesse, e isso fornece uma crítica bastante contundente à ideia de homem econômico racional. Adam Smith no século XVIII é o teórico econômico mais comumente identificado como o autor da ideia de que a ‘busca egoísta de ganho individual’ estava positivamente ligada à ‘riqueza das nações através da mão invisível do mercado’ (Beneria, 1999: 64). Marilyn Waring cita Adam Smith ilustrando sua ideia de como o interesse próprio funciona, para mostrar o viés masculino que ela representa. Ele diz: ‘Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas sim de seu zelo por seu próprio interesse’ (citado em Waring, p. 19). Waring resume sucintamente a falha crucial e fundamental dessa análise. Na verdade, Smith não teria conseguido seu jantar sem o trabalho não remunerado de sua esposa, que claramente não era motivada pelo interesse próprio, e Smith, como outros homens, depende da falta de interesse próprio por parte das mulheres para poder agir no mercado.

Se Adam Smith era alimentado diariamente por Mrs. Smith, ele omitiu notar ou mencionar isso. Ele, é claro, não a pagava. Sobre qual era o interesse dela em alimentá-lo, só podemos especular, pois Adam Smith não via “valor” no que ela fazia.

(Waring, 1988: 19)

A questão do trabalho não remunerado das mulheres tem sido fundamental para a compreensão feminista de como a política econômica internacional opera.

Mulheres e Globalização

As teóricas feministas produziram um corpo considerável de trabalho examinando como as mulheres foram afetadas pela globalização da economia (Enloe, 1989). Maria Mies explica que sua importante análise da posição das mulheres na globalização foi motivada pela necessidade de estender a compreensão feminista da importância do trabalho não remunerado das mulheres no Ocidente para as mulheres no restante do mundo, onde o trabalho “doméstico” das mulheres, ou seja, o trabalho considerado secundário e facilmente explorável, era um componente fundamental do que estava começando a ser chamado de “globalização” (Mies, 1998). Seu livro “Patriarchy and Accumulation on a World Scale.” (1986) é uma obra-prima que mostra como as mulheres são mobilizadas em todo o mundo para possibilitar a acumulação capitalista. Ela demonstra como mulheres nos mundos rico e pobre estão conectadas. Essa conexão ocorre por meio da criação de Zonas de Processamento de Exportação, por exemplo, onde as mulheres constituem a maioria esmagadora dos trabalhadores na produção de roupas e calçados em regiões específicas de mão de obra barata em países como Indonésia e Vietnã. As mulheres no mundo rico podem comprar roupas e sapatos muito baratos porque são fabricados a partir do trabalho de mulheres que recebem uma miséria e trabalham em condições precárias. As mulheres são atraentes como trabalhadoras porque são consideradas dóceis, habilidosas e baratas, e porque sua relegação cultural a papéis subalternos como donas de casa nos novos locais de produção, onde o emprego remunerado é visto como secundário, facilita sua exploração (Bair, 2010). À medida que as empresas nos países ricos buscam reduzir seus custos para competir com os produtos baratos permitidos pelas políticas de livre comércio neoliberal e a redução das barreiras tarifárias, as mulheres estão ingressando em empregos mal remunerados e exploradores em números muito grandes em países menos desenvolvidos (Mies, 1998).

Christa Wichterich explica que foi o trabalho barato das mulheres que ofereceu o principal elemento na “vantagem comparativa” que causou a mudança na produção dos antigos centros industriais para países pobres na Europa e depois para o Sudeste Asiático (Wichterich, 2000: 1). Essa mudança, segundo ela, revolucionou o comércio mundial. Outros elementos tornaram essa mudança atraente, como baixos salários sem “custos secundários”, sindicatos fracos, incentivos fiscais e de investimento, mas a força de trabalho das mulheres era o “recurso natural” mais importante (Ibid). Wichterich, assim como Maria Mies, destaca que, ao lado da terceirização para países pobres, existem colônias no mundo ocidental, onde as mulheres estão envolvidas em trabalhos mal remunerados e desprotegidos, como produção de roupas, calçados e outros bens. Ela explica que o papel da mulher na política econômica internacional é produzir os lucros das empresas multinacionais por meio da terceirização e absorver os impactos para as brutais exigências das mudanças econômicas impostas pelas ideologias e práticas econômicas neoliberais. À medida que os países são colocados uns contra os outros em uma “feroz redução de preços”, ela diz, a “mulher globalizada” é consumida como um combustível natural; ela é a trabalhadora por peça nas indústrias de exportação, a trabalhadora no exterior que envia moeda estrangeira para a família no seu país de origem, a prostituta ou noiva de catálogo nos mercados internacionais de sexo e casamento, e a trabalhadora voluntária que ajuda a absorver o impacto dos cortes sociais e do ajuste estrutural (Wichterich, 2000: 167).

Maria Mies desenvolveu o conceito útil de “donadecasificação” para descrever o que ela vê como a destruição de empregos adequadamente remunerados com benefícios que os trabalhadores masculinos no Ocidente passaram a esperar antes dos estragos da globalização a partir dos anos 1980 (Mies, 1998). As mulheres foram “donadecasificadas”, durante a Revolução Industrial, à medida que foi criada uma rígida divisão entre os mundos público e privado, e as mulheres das classes médias foram retiradas do mundo público para serem confinadas ao papel de donas de casa dentro de casa. No século XX, às mulheres foram permitidos empregos “de dona de casa”, que eram a meio período, mal remunerados e sem benefícios, sob a justificativa de que seus maridos eram os principais provedores e as mulheres não eram realmente trabalhadoras, mas donas de casa. Durante as últimas décadas do século XX, à medida que a globalização neoliberal ganhava força, ela argumenta que cada vez mais empregos, incluindo aqueles normalmente desempenhados por homens, foram “donadecasificados”, ou seja, precarizados, a ponto de muitos trabalhadores, tanto homens quanto mulheres, terem que ter mais de um emprego e equilibrá-los para sobreviver financeiramente. Os empregos criados nesses países são empregos “donadecasificados”. Eles são mal remunerados, a tempo parcial, precários, sem a proteção das leis trabalhistas, não sindicalizados, de curto prazo, atomizados. Há uma grande quantidade de trabalho donadecasificado, cuja exploração é atualmente camuflada por conceitos como “trabalhador autônomo” ou “empreendedorismo”. “Muito do que está incluído neste setor de serviços não é nada além de trabalho doméstico mercantilizado” (Bennholdt-Thomson e Mies, 1999: 47). Mies é capaz de adaptar poderosamente a linguagem e os conceitos derivados de ideias feministas para explicar processos mais amplos no mundo. Ela faz isso também em seu conceito de “colônias do homem branco”. Ela coloca todas as partes da “economia submersa oculta”… natureza, mulheres e pessoas e territórios colonizados” na categoria de “Colônias do Homem Branco”, onde “Homem Branco” aqui representa o sistema industrial ocidental” (Mies, 1996: 6). Como amortecedores das políticas econômicas neoliberais e das forças da globalização, é provável que as mulheres tenham experimentado danos severos decorrentes da crise financeira global que são de sexo, ou seja, diferentes, em muitos casos, daqueles experimentados pelos homens.

Evidenciado o sexo da crise financeira global

“A crise financeira global é um poderoso exemplo para o argumento feminista de que o ‘homem econômico’ não é racional de forma alguma. Em um programa de televisão pública australiana sobre a crise financeira, o Dr. John Coates, que ganhou reputação por seu trabalho sobre os níveis de testosterona em operadores financeiros, comentou: ‘Sim, temos que construir um modelo que mostre como as pessoas são sistematicamente não racionais e infelizmente não racionais nos pontos em que é mais perigoso’, e a narradora, Jonica Newby, reforçou o ponto: ‘Talvez ainda não seja a extinção, mas para o Homo Economicus, é hora de evoluir’ (Newby, 2009). Desde que a crise financeira global (CFG) ocorreu em 2007, houve alguns artigos críticos na mídia nos EUA e na Austrália apontando que a CFG tem um rosto masculino e que a culpa pela crise precisa ser atribuída àqueles que a criaram, esmagadoramente homens, e homens da elite em particular. Ruth Sunderland, editora de negócios do jornal Observer do Reino Unido, esteve particularmente envolvida na atribuição de sexo à crise, ao apontar que as deliberações econômicas internacionais são esmagadoramente dominadas por homens. Sobre o Fórum Econômico Mundial, ela afirmou: ‘É ridículo que os homens tenham dominado o debate em Davos. A maior força única de crescimento econômico está sendo ignorada’ (Sunderland, 2009) e aponta que a crise terá efeitos particularmente devastadores sobre as mulheres. O tema do Fórum Econômico Mundial foi ‘Moldando o Mundo Pós-Crise’, mas metade da população foi excluída e a ‘elite masculina de Davos permanece afundada em sua própria auto-importância e complacência’, ‘Eles arruinaram a economia mundial, mas parecem alheios à ideia de que podem não ser as melhores pessoas para reconstruí-la’. Ela aponta que a crise foi causada por um ‘machismo, um tipo de capitalismo baseado na força bruta e no individualismo’. Havia cinco mulheres na lista resumida de 170 ‘líderes empresariais’ presentes, e Sunderland teve que vasculhar 20 nomes de convidados antes de encontrar uma mulher, Sua Alteza, a Begum Aga Khan. Sunderland comenta que a mídia noticiou um fluxo constante de vozes masculinas, a ponto de ser notável ver ou ouvir uma mulher. Ela aponta que os bancos internacionais que deveriam desempenhar um papel na resolução da crise são quase inteiramente masculinos também, ‘O Banco de Compensações Internacionais não têm diretores mulheres; o FMI tem uma executiva mulher e o Banco Mundial tem duas entre 10 diretores executivos. É vergonhoso’.

Os homens geralmente apontados como os mais responsáveis pela crise financeira global são aqueles na indústria financeira e bancária. Há uma crescente literatura que demonstra a ideologia e prática problemáticas desses homens. Eles representam não apenas a masculinidade cotidiana, mas a hiper-masculinidade, potencializada por um machismo agressivo. O estudo de Linda McDowell sobre as características sexuais da indústria bancária na cidade de Londres (1997) descobriu que os homens superavam esmagadoramente as mulheres em cargos gerenciais (88%), com mulheres concentradas em funções de escritório. Ela descobriu que a cultura masculina no local de trabalho era representada na linguagem, ‘levantar suas saias’ significa revelar sua posição, um mercado em alta é referido como um ‘tesão’ e um negócio bem-sucedido é recebido com gritos de ‘botou o pau na mesa’. Outro exemplo é ‘estuprar os cartões’, que significa exagerar as reivindicações de despesas… Vários entrevistados sugeriram que o trabalho/negócios são tão bons quanto/melhores que um orgasmo’ (McDowell, 1997: 148). Imagens militares e esportivas eram comuns, assim como conversas sobre selvas, corridas e batalhas. Ela encontrou as versões mais extremas da linguagem masculina no recinto mais sagrado da hiper-masculinidade, os pisos de negociação e as salas de operações, onde “um tipo mais áspero e duro de interação cotidiana era mais comum do que na atmosfera elitista dos mercados de capitais e divisões de finanças corporativas” (McDowell, 1997: 151).

McDowell foi inspirada pela crise financeira global a escrever um breve artigo explicando como a cultura masculina que ela identificou em 1997 ainda era dominante na indústria financeira e que isso precisava fazer parte da explicação para a crise (2010). Na verdade, ela diz que se pergunta se “subestimou essa tendência masculina de exagerar suas próprias habilidades” entre os patriarcas dos bancos de investimento (McDowell, 2010: 654). Nas salas de negociação, ela afirma que uma cultura sexualizada continua, com práticas que elevam a hiper-masculinidade e excluem as mulheres, como “formas exageradas de linguagem e comportamento masculinizados… brincadeiras, conversas sexualizadas, fala alta e agressiva, bem como formas de assédio sexual”. Neste ambiente, “as mulheres muitas vezes são forçadas a assumir a posição de árbitras relutantes de limites ou participantes menos dispostas na conversa sexualizada”. As mulheres não podem ser iguais nesta esfera da indústria financeira porque “as trocas sociais ainda são comumente realizadas em arenas masculinizadas, incluindo clubes de golfe ou suítes de hospitalidade em grandes clubes de futebol, bem como clubes de striptease” (McDowell, 2010: 653). Infelizmente, McDowell admite estar impressionada com o trabalho de John Coates sobre o papel desempenhado pelos níveis aumentados de testosterona nas salas de negociação, o que mina um pouco sua abordagem até então determinadamente construtivista social para a indústria financeira.

Tomada de riscos na indústria financeira?

Nem a análise clássica nem a de esquerda da política econômica internacional são críticas em relação às maneiras pelas quais a masculinidade constrói a ideologia e as práticas das corporações, dos bancos e da indústria financeira. Mesmo dentro da teoria feminista, a necessidade da construção social da masculinidade para o funcionamento da economia dominada por homens é pouco discutida. Há boas pesquisas sobre as culturas masculinas nos locais de trabalho das corporações e dos bancos, mas não há um interesse teórico mais amplo na maneira pela qual a construção social da masculinidade em torno da agressão, competição e disposição para correr riscos forma o alicerce crucial do sistema econômico. Esses três componentes são destacados nas abordagens dos estudos masculinos sobre como a masculinidade é criada, como elementos-chave em sua construção. Em relação à crise financeira global, é a disposição para correr riscos que está mais implicada no que aconteceu. Teóricos dos estudos masculinos têm buscado explicar as maneiras pelas quais a disposição para correr riscos é cultivada em meninos e jovens e documentaram os resultados prejudiciais para esses homens, incluindo suicídio, acidentes de carro, consumo de drogas, práticas sexuais perigosas e taxas de mortalidade mais altas (Mansdotter, Lundin, Falkstedt e Hemmingsonn, 2009). Eles veem o esporte competitivo como desempenhando um papel central em acostumar os meninos a serem tomadores de riscos. Teóricos como Don Sabo e Michael Messner explicam como a pressão sobre os meninos para participar de esportes dolorosos que podem causar lesões ao longo da vida, especialmente na cabeça, cria um treinamento na falta de cuidado com o corpo e disposição para correr riscos (McKay, 2000). Existem outros aspectos-chave desse treinamento, incluindo esportes de aventura, como bungee jumping, que se desenvolveram em indústrias consideráveis nas últimas duas décadas (Morrissey, 2008), e a introdução na cultura da guerra por meio de brinquedos e jogos.

Os resultados da criação do comportamento de risco como um elemento tão importante na masculinidade socialmente construída são sérios danos físicos para os meninos e homens, como no caso da prática de direção imprudente por parte dos meninos. Por exemplo, os jovens entre 17 e 25 anos em Nova Gales do Sul, Austrália, têm quatro vezes mais acidentes graves relacionados à velocidade do que as jovens mulheres (Walker, Butland e Connell, 2000). O papel do comportamento de risco na construção da masculinidade tem sido examinado em relação ao risco de HIV em particular. Pesquisadores preocupados em reduzir a intensidade da epidemia de HIV argumentaram que o elemento de risco na masculinidade deve ser transformado se o HIV for contido na África (Foreman, 1999). Um estudo relacionado ao risco de HIV no ocidente examina a relação entre masculinidade e comportamento de risco entre homens gays que participam do ‘sexo sem proteção’, ou seja, penetração anal sem preservativos, seja de forma imprudente em relação ao risco, ou com o risco desempenhando um papel importante no prazer e satisfação do comportamento (Holmes, Gastaldo, O’Byrne e Lombard, 2008).

Na última década, neurocientistas têm buscado explicar o comportamento de risco dos homens na indústria financeira. As teóricas econômicas feministas têm se preocupado principalmente com as implicações desse tipo de essencialismo biológico. Kate Bedford e Shirin M. Rai comentam: “Temos visto uma proliferação de explicações biológicas reducionistas em vez de uma análise rigorosa das ‘realidades de sexo” (Bedford e Rai, 2010: 2). A neurociência adota a abordagem da psicologia evolucionista na busca por explicar o comportamento por meio da biologia e dos hormônios masculinos e femininos. Esses pesquisadores explicam o comportamento dos homens como resultado de sua diferença biológica natural em relação às mulheres. Os neurocientistas fornecem a “ciência rigorosa” para as alegações dos psicólogos evolucionistas, testando os níveis hormonais. Esse tipo de teste está sendo amplamente utilizado para explicar a irracionalidade dos trabalhadores financeiros do sexo masculino e por que as mulheres têm aversão ao “risco” e, portanto, são menos adequadas para o emprego na indústria financeira ou para investir no que Susan George chama de ‘capitalismo de cassino’, em particular (1986). Um estudo de 2007, publicado na prestigiosa Proceedings of the National Academy of Sciences, que apareceu imediatamente antes do reconhecimento de que a crise financeira global estava em curso, estuda o ‘sistema endócrino na tomada de riscos financeiros’ (Coates e Herbert, 2008: 6167). John Coates e seu colaborador examinaram o nível de testosterona em traders da indústria financeira masculina às 11 da manhã e às 4 da tarde para avaliar se níveis mais altos de testosterona estavam associados a um maior sucesso financeiro, ‘prevíamos que a testosterona aumentaria nos dias em que os traders obtivessem um ganho acima da média nos mercados’ (Ibid: 6167). Eles descobriram que essa hipótese estava correta. Eles concluíram que ‘altos níveis de testosterona pela manhã preveem maior lucratividade pelo resto do dia’ (Ibid: 6168). No entanto, se os níveis de testosterona permanecessem elevados, eles consideravam que isso poderia ter efeitos muito negativos, levando os traders a se envolver em comportamentos excessivamente arriscados que ‘poderiam fazer com que os mercados financeiros se desviassem das previsões da teoria da escolha racional’ (Ibid: 6170). Como John Coates coloca: ‘Não achamos que a bioquímica explique o que inicia uma bolha ou um colapso. No entanto, acreditamos que os esteróides podem exagerar um mercado em alta e transformá-lo em uma bolha. Um mercado em alta pode quase ser visto como um mercado com raiva de esteroides’ (Newby, 2009). Essa pesquisa desmente a ideia de que o homem econômico racional está no comando na indústria financeira; segundo seus relatos, os futuros econômicos de investidores, governos e aposentados estão sujeitos aos níveis de testosterona dos homens.

Uma abordagem biologista semelhante é empregada em relação à ‘aversão ao risco’ das mulheres no mesmo periódico. Este artigo afirma que ‘as mulheres geralmente são mais avessas ao risco do que os homens’ (Sapienza, Zingales e Maestripieri, 2009). A pesquisa estuda os níveis de testosterona em homens e mulheres em relação à aversão ao risco e à escolha de carreiras financeiras arriscadas. Eles descobriram que altos níveis de testosterona estavam associados a uma tendência ao comportamento de risco tanto em homens quanto em mulheres. A dificuldade com estudos desse tipo é que eles não levam em conta o contexto social. A construção da masculinidade não é considerada porque, para esses pesquisadores, o comportamento masculino se baseia na testosterona. Eles também não levam em conta a possibilidade de que a expectativa possa afetar os níveis hormonais, embora o estudo com traders masculinos tenha mencionado que a testosterona aumenta ’em atletas se preparando para uma competição e aumenta ainda mais no atleta vencedor, enquanto diminui no perdedor’ (Coates e Herbert, 2008: 6167). Isso poderia ser visto como um argumento a favor do efeito do contexto social e do comportamento sobre os hormônios, e não o contrário, ou seja, uma abordagem construtivista social em vez de biologista.

Hipermasculinidade e uso da indústria do sexo no comportamento de traders

A hipermasculinidade da indústria financeira é ilustrada pela maneira como os executivos financeiros masculinos utilizam a indústria do sexo. A masculinidade e a feminilidade são construídas em relação uma à outra e não fazem sentido por si só (Connell, 1995). Os homens se percebem como masculinos na medida em que não são femininos, e as práticas masculinas são projetadas para alcançar essa compreensão e autoapresentação. Uma das maneiras mais diretas pelas quais os homens podem estabelecer sua diferença é por meio da indústria do sexo, na qual as mulheres são apresentadas e usadas como subordinadas sexuais, atendendo ao direito sexual masculino (Pateman, 1988). Nesse aspecto, em particular, há evidências abundantes de que os homens na indústria financeira são hipermasculinos. Os homens encarregados de regular a indústria financeira nos Estados Unidos, aqueles da Comissão de Valores Mobiliários (SEC), representam essa aderência à construção da hipermasculinidade. Enquanto o sistema financeiro global estava entrando em colapso, a equipe de fiscalização da SEC estava acessando pornografia online. Uma investigação sobre o uso de pornografia pela SEC descobriu que um advogado sênior na sede da SEC em Washington passava até 8 horas por dia visualizando e baixando pornografia (Harshaw, 2010). Um contador na SEC teve seu acesso bloqueado a sites pornôs mais de 16.000 vezes por mês. Dezessete dos funcionários que foram identificados como usuários significativos de pornografia estavam em cargos de alto nível e recebiam salários de até US$ 222.418. O uso de pornografia aumentou à medida que a crise financeira global se desenrolava em 2008. Um funcionário da SEC iniciou seu próprio negócio privado de pornografia usando recursos da SEC.

O impacto da crise financeira nas mulheres

A maioria das análises sobre os efeitos da Crise Financeira Global nas mulheres neste ponto são especulativas e baseadas no que aconteceu às mulheres em crises anteriores. Como Espey, Harper e Jones afirmam em um recente artigo na revista Oxfam Gender and Development, que se dedica a examinar o sexo na crise: ‘Os efeitos de choques econômicos anteriores foram uma “nutrição mais pobre, declínio na frequência escolar (mais comumente meninas, consideradas menos merecedoras de educação), aumento das horas de trabalho e pressões adicionais sobre adultos que tentam cumprir suas responsabilidades com o cuidado da família’ (Espey, Harper e Jones, 2010: 296). O número da revista se dedica a especular sobre o que é provável que aconteça em vez de relatar o que está ocorrendo efetivamente no terreno. Dianne Elson explica que a crise no Norte global foi transmitida para os países em desenvolvimento “através dos mercados internacionais de finanças e bens” (Elson, 2010: 204).

A crise financeira provavelmente afetará as mulheres de maneira diferente dos homens e, em muitos casos, de maneira mais severa. Isso é irônico, considerando que as mulheres são as vítimas inocentes de uma crise criada por homens e pela masculinidade. Antes da crise mais recente, Irene van Staveren escrevia sobre como os homens na indústria financeira assumem os riscos, e as mulheres são forçadas a suportar o ônus deles (Staveren, 2002). Ela explica: ‘A transferência de risco financeiro para aqueles que não são responsáveis por ele é custosa e injusta. Essa transferência tem uma dimensão de sexo significativa. A geração de risco financeiro excessivo é quase exclusivamente uma atividade masculina. Os homens são os principais tomadores de decisão nas finanças, os homens realizam as maiores transações financeiras e os homens são os principais especuladores. No entanto, as pessoas que suportam as consequências das crises financeiras globais – especialmente na economia do cuidado – são predominantemente do sexo feminino’ (Staveren, 2002: 230). Ela aponta que a economia do cuidado, que é em grande parte composta por mulheres, ‘compensa as atividades de busca de renda (principalmente masculinas) nos mercados financeiros’ (Ibid).

Um dos resultados mais significativos da crise, previsto, mas ainda por se desdobrar em muitos países, é que o emprego das mulheres será o maior alvo dos cortes de despesas, à medida que os governos buscam amortizar as grandes dívidas acumuladas para lidar com as perdas causadas à indústria financeira devido aos riscos assumidos pelos homens. No Reino Unido, a injustiça dos cortes propostos pelo governo recém-eleito é evidente em uma pesquisa realizada por uma ministra sombra, Yvette Cooper (Asthana, 2010). A pesquisa mostra que 72% do impacto dos cortes propostos em impostos e benefícios serão suportados por mulheres, e que as mulheres serão as mais afetadas pelos cortes de empregos no setor público, pois quatro em cada dez mulheres trabalham nesses empregos. De fato, 85,4% dos empregos de meio período no serviço civil são ocupados por mulheres e provavelmente serão os primeiros afetados. Isso incentivou a Fawcett Society, uma organização feminista fundada no século XIX, a apresentar um desafio legal em agosto de 2010 ao orçamento, alegando que os cortes afetarão claramente mais as mulheres do que os homens.

Os cortes nos serviços públicos não afetam apenas os empregos das mulheres. As mulheres sofrem duplamente, uma vez que os serviços de cuidados anteriormente financiados pelo Estado ainda precisam ser mantidos, e essa é uma exigência adicional do trabalho não remunerado das mulheres. Crianças, idosos e doentes precisam ser cuidados pelas mulheres em casa. As mulheres constituem o exército de reserva de mão-de-obra que pode ser demitido quando os governos enfrentam crises financeiras. Até agora, tais políticas tendem a afetar mais as mulheres no mundo menos desenvolvido do que as do Ocidente. Caroline Sweetman explica que ignorar a realidade do trabalho não remunerado das mulheres ‘permitiu que as instituições internacionais que impuseram políticas de ajuste estrutural em países em desenvolvimento ignorassem o verdadeiro sofrimento de mulheres, homens e famílias devido aos cortes na provisão estatal de serviços essenciais. De costas contra a parede, as mulheres lutaram – e conseguiram quase – substituir esses serviços e manter as famílias à tona’ (Sweetman, 2008: 1). A crise atual afeta desigualmente as mulheres em países ricos e pobres.

Outro efeito da crise financeira que prejudicou as mulheres é o aumento do estresse sentido pelos homens, à medida que seus investimentos vão mal ou eles perdem empregos ou contratos. Os homens descontam seu estresse nas mulheres, na forma de violência doméstica. Há uma maior exploração sexual de mulheres e meninas na prostituição, o que aumenta a vulnerabilidade das mulheres, além de oferecer alívio do estresse aos homens por meio desse tipo de abuso. Quando a crise financeira asiática de 1997 ocorreu, houve um aumento no tráfico de mulheres através da fronteira norte da China, bem como um aumento na violência doméstica. Na Coreia do Sul, após a crise, estima-se que uma em cada sete mulheres estava envolvida na prostituição. Caroline Sweetman explica que ‘a incapacidade dos homens em encontrar emprego alternativo que corresponda à sua visão de si mesmos como “homens de verdade” muitas vezes leva a um aumento da violência contra mulheres e crianças no ambiente doméstico’ (Sweetman, 2008: 2). Os homens que ficam desempregados geralmente não desejam assumir papéis de cuidado extras em casa, já que suas esposas assumem o fardo de sustentar a renda familiar, frequentemente em empregos mal remunerados. Em vez disso, ‘as mulheres frequentemente acabam fazendo um turno duplo enquanto os homens ficam deprimidos e violentos’ (Ibid: 2). Em maio de 2009, uma pesquisa realizada em mais de 600 abrigos para vítimas de violência doméstica nos EUA constatou um aumento de 75% nas mulheres que buscavam ajuda desde a crise econômica em setembro de 2008 (AWID, 2010: 22). Na Austrália, também foi relatado um aumento na violência contra mulheres. Houve um aumento de 15 a 20 por cento nos casos de violência doméstica, abuso físico e negligência, de acordo com a Fundação da Infância Australiana (Massola, 2009). Em apenas dois meses após a crise, o número de ligações aumentou significativamente, de uma média de 220 por mês para mais de 250 por mês.

Homens enfrentando a ruína financeira podem chegar ao extremo de assassinar suas famílias por um sentimento de vergonha e masculinidade prejudicada. Em 2009, um empresário em Shropshire, Reino Unido, que estava enfrentando a falência financeira, matou sua esposa e filha (Carter, 2009). Christopher Foster matou a tiros sua esposa e filha de 15 anos em suas camas, atirou nos cães da família, colocou um trailer de cavalos na entrada para que os bombeiros não pudessem entrar para ajudar e depois ateou fogo à mansão em que a família vivia. Ele morreu no incêndio. Em 2010, um pai em Hampshire, Reino Unido, estava profundamente endividado (Taylor, 2010). Ele matou sua esposa e filhas antes de se enforcar. Homens que assassinam suas famílias e, geralmente, a si mesmos, são descritos como “aniquiladores de família”. São os homens os perpetradores e geralmente em uma situação em que a esposa se separou deles, e os assassinatos são motivados por raiva e vingança. Não houve pesquisa sobre as conexões entre o aniquilamento de famílias e os problemas financeiros dos homens, mas isso pode exigir uma compreensão de como a “honra” dos homens é prejudicada ao perderem seu papel como provedores a ponto de precisarem matar a esposa e a família que poderiam repreendê-los por sua imprudência.

Evidenciado o sexo na solução

As soluções para os problemas criados por economias organizadas em torno dos interesses dos homens e a exclusão do trabalho de subsistência e não remunerado podem exigir mais do que simples ajustes superficiais para envolver um número um pouco maior de mulheres. Quando as medidas para evitar uma maior desestabilização nos mercados financeiros globais demonstram consciência da dimensão de sexo, no entanto, é mais provável que envolvam soluções liberais, como a inclusão de mais mulheres na indústria financeira. Por exemplo, um relatório do Comitê do Tesouro do governo do Reino Unido em abril recomendou que houvesse mais mulheres em cargos de alto nível na área financeira para melhorar a governança corporativa (Penny, 2010). Charles Goodhart, ex-formulador de políticas do Banco da Inglaterra, disse ao comitê em uma audiência que a crise teria sido menos provável se houvesse mais mulheres em cargos de liderança. “A tendência a longo prazo, mais cautelosa e com menos traços do estereótipo masculino dominante seria altamente benéfica” (Penny, 2010). No entanto, trazer mulheres como fiscais para tentar moderar os excessos do comportamento masculino não é susceptível de oferecer uma solução substancial para os problemas causados pela natureza de sexo da crise. Não há desafio à cultura masculina aqui, nem uma compreensão de que a indústria financeira pode estar fundamentada em premissas problemáticas. As mulheres não podem ser transformadas de modo que adquiram os mesmos valores e comportamentos dos homens no setor bancário sem perder precisamente as qualidades que mantêm a economia invisível funcionando, ou seja, o desempenho abnegado de trabalho não remunerado. Simples ajustes não são suficientes quando o capitalismo financeiro é fundamentado na masculinidade voltada para a tomada de riscos.

A crítica das teóricas feministas não se limita apenas à crise, mas se estende à natureza de sexo da contabilidade econômica e da política econômica internacional, sugerindo que é necessária uma mudança mais profunda e abrangente. Mies argumenta que o trabalho não remunerado precisa ser respeitado e questiona: “Como seria uma economia em que a natureza importasse, em que as mulheres importassem, em que as crianças, em que as pessoas importassem, que não fosse baseada na colonização e exploração de outros?” (Mies and Shiva, 1993: 13). Isso requereria a revalorização do trabalho não remunerado das mulheres. “Em um paradigma alternativo, atores, atividades e valores atualmente colonizados e marginalizados serão colocados no núcleo (centro), porque são fundamentais para garantir que a vida possa continuar em sua regeneração e plenitude”. Enquanto o trabalho não remunerado não for reconhecido, políticas econômicas nacionais e internacionais poderão continuar fazendo ajustes estruturais e reagindo a crises, com a expectativa de que os comportamentos antissociais dos homens devam ser respeitados e as mulheres serão os amortecedores do sistema.


  1. In: Pettman, Ralph (ed) (2012), Handbook on International Political Economy. Singapore: World Scientific, 285-302. Disponível em: https://sheila-jeffreys.com/globalisation-and-the-male-female-divide-an-overview/ ↩︎
  2. No original, a autora usa o termo “gênero”, porém como atualmente ela e muitas outras feministas acreditam que este conceito não é o melhor para os interesses da classe feminina, tendo em vista nosso cenário social e político, optamos por substituir “gênero” por sexo nesta tradução. [N.d.T] ↩︎

Referências

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Artigos inéditos

Reflexões sobre terapia e feminismo


Fazer uma crítica feminista à terapia, assim como questionar a indústria da beleza, a heterossexualidade compulsória e a pornificação da cultura, frequentemente gera polêmica. Discutir essas questões em seu contexto coletivo é um desafio, muitas vezes resultando na personalização do debate e na culpabilização de quem traz à tona o assunto. Essas atitudes não apenas dificultam o diálogo, mas também impedem ações que poderiam advir dele.

Eu mesma já considerei a terapia uma ferramenta incrível. Cheguei a pensar que, se todos se dedicassem ao autoconhecimento com auxílio profissional, isso poderia transformar o mundo. Felizmente, temos à nossa disposição os escritos das feministas radicais notáveis que nos precederam. Elas deixaram não apenas suas pesquisas e reflexões registradas, mas também uma história de luta contra a patologização feminina, que não passa de uma abordagem patriarcal arcaica, convenientemente reembalada, que busca rotular as mulheres como “loucas”. Através disso, somos medicadas (no passado, até procedimentos como eletrochoque e lobotomia eram usados) ou então ficamos enredadas em reflexões dolorosas, enquanto os homens continuam a explorar, violentar e assegurar sua supremacia.

A teoria feminista se estabelece como o único espaço capaz de dar nome à vivência de ser um ser humano do sexo feminino em um mundo que odeia as mulheres. Isso é crucial para desmantelar a hierarquia social baseada no sexo. Entretanto, a teoria por si só não é suficiente.

Nos seis milênios de patriarcado, apesar de todos os esforços masculinos para apagar a História das Mulheres, muitas resistiram e lutaram incansavelmente contra a supremacia masculina. No início do século passado, as feministas não apenas batalhavam pelo direito ao voto, mas também enfrentavam a pedofilia, a objetificação das mulheres e buscavam proteger as mulheres da sífilis e gonorreia transmitidas por homens às suas esposas (Jeffreys, 1997). Mary Daly observa que a terapia surgiu como uma resposta direta à primeira onda do movimento feminista. De acordo com ela,

O objetivo [da terapia] não é curar no sentido mais profundo, mas impor violentamente o sistema de castas sexuais. O deus da terapia é a própria terapia. Além disso, como acontece com todas as religiões, há uma fixação no próprio ato de adoração, o qual tende a funcionar como um refúgio contra a falta de sentido. Por essa razão, qualquer crítica à terapia é vista como ameaça e causa terror naqueles que a seguem.

 (Daly, 1978)

Além da psicologia, tanto a sexologia (que fundamenta a terapia sexual) quanto a psicanálise contribuíram significativamente para reforçar a subordinação feminina e a dominação masculina. Ambas categorizaram qualquer comportamento feminino que não estivesse relacionado a servir e amar os homens como patológico e desviante. A “frigidez” e o lesbianismo eram algumas dessas “doenças” (Jeffreys, 1990, 1997). Adicionalmente, através do mito do orgasmo vaginal (Koedt, 1970), do diagnóstico de “histeria” e da transformação dos relatos de incesto em uma teoria da sedução – onde afirmava que as meninas inventavam esses relatos devido a um suposto desejo pelo pai (Rush, 1980, 1996), Freud e sua psicanálise garantiram não apenas o silenciamento da violência sexual masculina, mas também a manutenção da heterossexualidade como uma instituição política.

Segundo Daly, o que precisamos é ter a coragem de enxergar e identificar a raiva que pode nos fortalecer e, assim, não mais bloquear nossa paixão e criatividade. Jeffreys reforça a importância de não menosprezar o que sentimos:

aquelas qualidades que nos tornam revolucionárias, raiva, ódio e medo, são nossas forças, não nossas fraquezas. Nossos sentimentos de paranoia são uma percepção clara da realidade; realmente vivemos em território ocupado, onde os homens estão tentando nos matar. Precisamos usar essas emoções, não suprimi-las.

(Jeffreys, 1978)

Isso é exatamente o que a terapia (e a análise) nos impede de fazer. Ao nos colocar individualmente sob a orientação de um terapeuta, é apagada a nossa tendência natural de buscar apoio entre iguais, compartilhar angústias, reconhecer que a raiz de nossos problemas reside na estrutura patriarcal e fazer algo para mudar essa realidade.

Os grupos de conscientização da segunda onda do feminismo proporcionaram esse espaço coletivo para as mulheres explorarem sua raiva. Foi neste contexto que surgiu o slogan “o pessoal é político” (Hanisch, 1970) pois elas perceberam que o que cada uma achava que acontecia apenas consigo – sobrecarga doméstica e estupro marital, por exemplo – na verdade estavam ocorrendo a todas as outras, com pequenas diferenças. A partir disso, surgiram marchas, manifestações, grupos de autodefesa e abrigos para mulheres vítimas de violência. O acesso das mulheres ao ensino superior permitiu o início de pesquisas e estudos sobre a classe feminina. Foi um período intenso de escrita, debates e refinamento da teoria feminista. Além disso, essas mulheres ocuparam imóveis abandonados para morar, acolher outras mulheres e também criaram livrarias e cafés feministas, locais de encontro para construir amizades e elaborar estratégias políticas (Jeffreys, 2018).

O contra-ataque masculino à segunda onda do feminismo não demorou a aparecer e veio com grande força. A promoção de fetiches como identidades socialmente aceitáveis, juntamente com o aumento expressivo da produção, distribuição e consumo de pornografia cada vez mais violenta, ambos sob a benção do neoliberalismo, contribuiu significativamente para o crescimento da violência masculina contra as mulheres, a desvalorização do feminismo e o apagamento da categoria mulher nas leis, na história e na cultura (Jeffreys, 2022).

Nesse contexto, a terapia ganhou ainda mais força, criando agora um nicho de “terapia feminista” que promete a “cura interior” ao auxiliar as mulheres a se conectarem com seus “verdadeiros eus” e a se empoderarem. Em situações extremas, talvez algumas mulheres necessitem de psicoterapia, mas considerando que a maioria dos nossos problemas deriva da estrutura social, investir em soluções individuais não resolverá nossas questões (Kitzinger, 1996). Mesmo que alcancemos certa autonomia individual, enquanto a dominação masculina persistir, nada estará verdadeiramente seguro e garantido, como demonstram os casos das meninas afegãs privadas do direito à educação e das americanas enfrentando restrições ao aborto.

A situação atual da classe feminina é crítica, e mais do que nunca, precisamos do engajamento de todas as mulheres possíveis na luta coletiva pela nossa emancipação. O patriarcado não cederá apenas com pedidos educados para que os homens cessem a violência. Cabe a todas nós recuperar o nosso arsenal de raiva, estudar a teoria e a história do movimento feminista e nos organizarmos com outras mulheres para revolucionar esse mundo. Faremos isso por nós mesmas, em honra àquelas que vieram antes de nós e para as que virão.


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PARA SABER MAIS:

WDI. Is therapy useful for feminist struggle? Feminist Question Time. 22/07/2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-UksXdCdVwY

O Mito do Orgasmo Vaginal, da Anne Koedt. Audiobook em português disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CHRwsxat9cc

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Traduções

Terapia e como ela minimiza a prática do Feminismo Radical

Por Celia Kitzinger, traduzido livremente de Radically Speaking.


Uma das grandes percepções do feminismo da segunda onda foi o reconhecimento de que “o pessoal é político”, uma frase cunhada pela primeira vez por Carol Hanisch em 1971. Com isso, queríamos dizer que todas as nossas atividades pequenas, pessoais e do dia a dia tinham um significado político, quer fosse intencional ou não. Aspectos de nossas vidas que antes eram vistos como puramente “pessoais” – trabalho doméstico, sexo, relacionamentos com filhos e pais, mães, irmãs e amantes – eram moldados e influenciados pelo contexto social mais amplo.

O slogan… significava, por exemplo, que quando uma mulher é obrigada a ter relações sexuais com o marido, isso é um ato político, pois reflete as dinâmicas de poder no relacionamento: as esposas são propriedade a que os maridos têm total acesso.

(Rowland: 1984, p. 5)

Uma compreensão feminista de “política” significava desafiar a definição masculina de política como algo externo (ligado a governos, leis, protestos com bandeiras e marchas) em direção a uma compreensão da política como algo central para nosso ser, afetando nossos pensamentos, emoções e as escolhas aparentemente triviais do dia a dia sobre como vivemos. O feminismo significava tratar o que havia sido percebido como questões meramente “pessoais” como preocupações políticas.

Este artigo explora a forma como o slogan “o pessoal é político” é utilizado na escrita psicológica feminista, com referência especial à terapia. O crescimento das terapias feministas (incluindo livros de autoajuda, co-aconselhamento, grupos de doze passos e assim por diante, bem como terapia individual) foi rápido e atraiu críticas de muitas feministas preocupadas com suas implicações políticas (Cardea: 1985; Hoagland: 1988; Tallen: 1990a e b; Perkins: 1991). No entanto, muitas psicólogas feministas (tanto pesquisadoras quanto profissionais) afirmam explicitamente sua crença de que “o pessoal é político”.

Esse princípio tem “prevalecido como um pilar fundamental da terapia feminista” (Gilbert: 1980), e metodologias qualitativas muitas vezes têm sido adotadas pelas feministas precisamente porque permitem acesso à experiência “pessoal”, cujas implicações “políticas” podem ser extraídas por meio da pesquisa. Seria incomum encontrar uma psicóloga feminista que negasse acreditar que “o pessoal é político”, apesar da existência de críticas feministas a algumas de suas implicações (como a universalização falsa da experiência das mulheres, por exemplo, veja hooks: 1984, e a tendência irônica de algumas mulheres de perceberem as categorias “pessoal” e “político” do slogan como polarizadas e em competição, veja David: 1992). No entanto, a concordância generalizada com esse slogan entre psicólogas feministas esconde uma variedade de interpretações. Este artigo ilustra quatro dessas interpretações psicológicas divergentes de “o pessoal é político” e argumenta que, longe de politizar o pessoal, a psicologia personaliza o político, concentra a atenção na “revolução interna”, foca em “validar a experiência das mulheres” em detrimento da análise política dessa experiência e busca “empoderar” as mulheres, em vez de conceder poder político real.

Duas ressalvas antes de entrar em meu argumento principal

Primeiro, este artigo não pretende apresentar uma visão abrangente de toda a psicologia feminista – uma área imensa e em crescimento. Além disso, ao contrário de outras críticas (por exemplo, Jackson: 1983; Sternhall: 1992; Tallen: 1990a e b), este artigo não é um ataque a uma marca específica de psicologia, nem uma discussão de dentro da disciplina (por exemplo, Burack: 1992). Pelo contrário, seu objetivo é estar fora do quadro disciplinar da psicologia e chamar a atenção para os problemas políticos inerentes ao próprio conceito de “psicologia feminista”.

Segundo, “não parece justo”, disse um árbitro, “zombar das instituições que ajudam as mulheres a viverem suas vidas com menos dor.” Muitas mulheres foram ajudadas pela terapia. Já ouvi mulheres o suficiente dizerem “ela salvou minha vida” para me sentir quase culpada por desafiar a psicologia. Muitas mulheres dizem que foi apenas com a ajuda da terapia que elas se tornaram capazes de sair de um relacionamento abusivo, livrar-se de medos incapacitantes e ansiedades, ou parar o abuso de drogas. Qualquer coisa que salve a vida das mulheres, qualquer coisa que as deixe mais felizes, deve ser feminista – não é mesmo? Bem, não. É possível remendar as mulheres e capacitá-las a fazer mudanças em suas vidas sem nunca abordar as questões políticas subjacentes que causam esses problemas pessoais em primeiro lugar. “Eu costumava reclamar com meu marido para fazer o trabalho doméstico e nada acontecia”, disse uma mulher de Minnesota a Harrit Lerner (1990, p. 15); “agora estou em um programa intensivo de tratamento para co-dependência e estou me afirmando muito. Meu marido está mais prestativo porque ele sabe que sou codependente e apoia minha recuperação”. Para essa mulher, a explicação psicológica (“sou codependente e preciso me recuperar”) foi mais bem-sucedida do que a explicação feminista (o trabalho das mulheres como trabalho doméstico não remunerado para os homens, Mainardi: 1970) em criar mudanças. Com a ideia de si mesma como doente, ela conseguiu fazê-lo fazer o trabalho doméstico. Como Carol Tavris (1992) diz,

as mulheres recebem muito mais simpatia e apoio quando definem seus problemas em termos médicos ou psicológicos do que em termos políticos.

A explicação da codependência esconde o que as feministas veem como a verdadeira causa de nossos problemas – a supremacia masculina. Em vez disso, somos informadas de que a causa está em nossa própria “codependência”. Isso não é feminismo. Embora seja claro que “muitas mulheres tenham sido ajudadas pela terapia”, também é claro que muitas mulheres foram ajudadas e se sentem melhores consigo mesmas como resultado de (por exemplo) fazer dieta, comprar roupas novas ou entrar em um culto religioso. Historicamente, como aponta Bette Tallen (1990a, p. 390), as mulheres têm “procurado refúgio em instituições como a igreja católica ou o exército. Mas isso significa que essas são instituições que devem ser plenamente abraçadas pelo feminismo?” As razões por trás da corrida para a psicologia e os benefícios que ela oferece (bem como o preço que ela exige) são discutidos com mais detalhes em outro lugar (Kitzinger e Perkins: 1993). Neste artigo, foco mais estreitamente nas interpretações psicológicas do slogan “o pessoal é político” e nas implicações disso para o feminismo.

A personalização do Político

Nessa interpretação de “o pessoal é político”, em vez de politizar o “pessoal”, o “político” é personalizado. Preocupações políticas, políticas nacionais e internacionais, e grandes desastres sociais, econômicos e ecológicos são reduzidos a questões psicológicas pessoais e individuais.

Essa tradução completa do político para o pessoal é característica não apenas da psicologia feminista, mas da psicologia em geral. Nos EUA, um grupo de vinte e dois profissionais gastou três anos e $73.500 para concluir que a falta de autoestima é a causa raiz de “muitos dos principais males sociais que nos afligem hoje” (The Guardian: 13 de abril de 1990). A violência sexual contra mulheres é abordada criando sessões de treinamento de habilidades sociais e gerenciamento da raiva para estupradores (agora disponíveis em sessenta prisões na Inglaterra e no País de Gales, The Guardian: 21 de maio de 1991), e o racismo se torna algo para desabafar em uma oficina de aconselhamento (Green: 1987). Muitas pessoas agora pensam em questões sociais e políticas importantes em termos psicológicos.

Na verdade, toda a vida pode ser vista como um grande exercício psicológico. Lá em 1977, Judi Chamberlin apontou que hospitais psiquiátricos tendem a usar o termo “terapia” para descrever absolutamente tudo o que acontece dentro deles:

… fazer as camas e varrer o chão podem ser chamados de “terapia industrial”, ir a uma dança ou filme é “terapia recreativa”, drogar os pacientes é “quimioterapia” e assim por diante. Hospitais mentais de custódia, que oferecem muito pouco tratamento, frequentemente fazem referência à “terapia de ambiente”, como se o próprio ar do hospital fosse de alguma forma curativo .

(1977, p. 131)

Uma década mais tarde, com a principal clientela da psicologia não mais nos hospitais mentais, mas na comunidade, tudo em nossas vidas é traduzido para a “terapia”. Ler livros se torna “biblioterapia”; escrever (Wenz: 1988), manter um diário (Hagan: 1988) e fazer arte são todos atribuídos a funções terapêuticas. Até mesmo tirar fotos é agora uma técnica psicológica: a “fototerapeuta” feminista Jo Spence se baseou nas teorias psicanalíticas de Alice Miller (1987) e defende a cura (entre outras “feridas”), “a ferida da vergonha de classe” por meio da fotografia. E embora a leitura, a escrita e a fotografia sejam atividades comuns, em sua manifestação terapêutica elas exigem orientação especializada: “Eu não acho que as pessoas possam fazer isso com amigos ou sozinhas… elas nunca terão a segurança de trabalhar sozinhas como terão trabalhando com um terapeuta, porque elas encontrarão seus próprios bloqueios e não conseguirão superá-los” (Spence: 1990, p. 39). Embora não queiramos negar que a leitura, a escrita, a arte, a fotografia, entre outros, possam fazer algumas pessoas se sentirem melhor consigo mesmas, é perturbador encontrar tais atividades sendo avaliadas em termos puramente psicológicos. Como feministas, costumávamos ler para aprender mais sobre a história e a cultura feministas; escrever e pintar para nos comunicarmos umas com as outras. Essas eram atividades sociais direcionadas para fora; agora elas são tratadas como explorações do eu. O sucesso do que fazemos é avaliado em termos de como nos faz sentir. Condições sociais são avaliadas em termos de como a vida interior dos indivíduos responde a elas. Compromissos políticos e éticos são julgados pelo grau em que melhoram ou prejudicam nosso senso individual de bem-estar.

As terapeutas feministas agora “prescrevem” atividades políticas para suas clientes – não por seu valor político inerente, mas como remédios milagrosos. As “Diretrizes para a Terapia Feminista” oferecidas pela terapeuta Marylou Butler no Manual de Terapia Feminista (1985) incluem a sugestão de que as terapeutas feministas devem “encaminhar para centros de mulheres, grupos de conscientização e organizações feministas, quando isso seria terapêutico para as clientes” (p. 37). A Conscientização – a prática de tornar o pessoal político – nunca foi destinada a ser “terapia” (Sarachild: 1978). Mulheres que participam do ativismo feminista com o objetivo de se sentirem melhores consigo mesmas provavelmente ficarão desapontadas. Ao enviar mulheres para grupos feministas, cujos objetivos primários são ativistas e não terapêuticos, as terapeutas estão fazendo um desserviço tanto à suas clientes quanto ao feminismo.

Nossos relacionamentos também são considerados não em termos de suas implicações políticas, mas sim em termos de suas funções terapêuticas. A terapia costumava nomear o que acontecia entre um terapeuta e um cliente. Agora, como Bonnie Mann aponta, isso descreve com precisão o que acontece entre muitas mulheres em interações diárias: “qualquer atividade organizada por mulheres é encaixada em uma estrutura terapêutica. Seu valor é determinado com base em se é ou não ‘curativo'”:

Eu frequentemente vi uma conversa honesta se transformar em uma interação terapêutica diante dos meus olhos. Por exemplo: eu menciono algo que me incomodou, machucou ou foi difícil para mim de alguma forma. Algo muda. Vejo a mulher com quem estou a assumir o papel de amiga de apoio. É como se uma fita se encaixasse em seu cérebro, sua voz muda, posso vê-la começar a me ver de maneira diferente, como uma vítima. Ela começa a recitar as frases: “Isso deve ter sido muito difícil para você”, ou “Isso deve ter sido tão invalidante” ou “O que você acha que precisa para se sentir melhor com isso?” Eu conheço muito bem a fita correspondente que supostamente deve se encaixar em meu próprio cérebro: “Acho que só precisava te dizer o que estava acontecendo comigo”, ou “Ajuda ouvir você dizer isso, parece muito validador”, ou “Acho que só preciso ficar sozinha e me cuidar um pouco”.

(1987, p. 47)

As formas psicológicas de pensamento saíram do consultório do terapeuta, dos grupos de AA e dos livros de autoajuda, dos workshops de experiência e das sessões de renascimento para invadir todos os aspectos de nossas vidas. O político foi completamente personalizado.

A revolução de Dentro para Fora

Outra interpretação comum da máxima “o pessoal é político” no contexto da psicologia feminista é algo assim:

A atividade supostamente “pessoal” da terapia é profundamente política, porque aprender a se sentir melhor sobre nós mesmas, elevar nossa autoestima, aceitar nossas sexualidades e nos reconciliarmos com quem realmente somos – tudo isso são atos políticos em um mundo heteropatriarcal. Com o ódio às mulheres ao nosso redor, é revolucionário nos amarmos, curarmos as feridas do patriarcado e superarmos a autossupressão. Se todos se amassem e se aceitassem, de modo que mulheres (e homens) não projetassem mais uns nos outros seus próprios ódios reprimidos, teríamos uma mudança social real.

Este é um argumento muito comum, recentemente reiterado no livro “Revolução de Dentro para Fora” de Gloria Steinem. Como aponta Carol Sternhall em uma análise crítica, “O objetivo de toda essa psicoterapia moderna e psicodélica não é simplesmente se sentir melhor consigo mesmo – ou melhor, é, porque se sentir melhor com todas as nossas partes agora é a chave para a revolução mundial” (1992, p. 5).

Neste modelo, o “eu” é naturalmente bom, mas precisa ser desenterrado de sob as camadas de opressão internalizada e curado das feridas infligidas por uma sociedade heteropatriarcal. Apesar de suas diferenças evidentes em outras áreas, a terapeuta feminista lésbica Laura Brown (1992) compartilha a noção de “verdadeiro eu” de Gloria Steinem. Ela escreve, por exemplo, sobre a “luta da cliente para recuperar seu eu das armadilhas do patriarcado” (pp. 241-42), ao “descascar as camadas do treinamento patriarcal” (p. 242) e “curar as feridas da infância” (p. 245); na terapia com Laura Brown, uma mulher é ajudada a “se conhecer” (p. 246), a ir além de seu “eu acomodado” (p. 243) e descobrir seu “verdadeiro eu” (p. 243) (ou “eu interior fingido” p. 245) e viver “em harmonia consigo mesma” (p. 243). Na maioria da psicologia feminista, esse eu interior é caracterizado como uma linda e espontânea menininha. Entrar em contato e nutri-la é o primeiro passo para criar uma mudança social: é uma “revolução de dentro para fora”.

Esse conjunto de ideias tem raízes no “movimento de crescimento” dos anos 1960, que enfatizava a liberação pessoal e o “potencial humano”. Naquela época, a imagem central era de uma “sociedade doente” vagamente definida.

“O Sistema” foi envenenado pelo seu materialismo, consumismo e falta de preocupação com o indivíduo. Essas coisas foram internalizadas pelas pessoas; mas sob as camadas de “porcaria” em cada pessoa repousava um “eu natural” essencial que poderia ser alcançado por meio de várias técnicas terapêuticas. O que isso sugere é que a mudança revolucionária não é algo que precisa ser construído, criado ou inventado com outras pessoas, mas que é de alguma forma natural, adormecido em cada um de nós individualmente e só precisa ser liberado.

(Scott e Payne: 1984, p. 22)

A absurdidade de levar esse argumento de “revolução de dentro para fora” a sua conclusão lógica é ilustrada por um projeto, descendente de um programa terapêutico popular, que propôs acabar com a fome. Não, como poderia parecer sensato, por meio da organização de cozinhas comunitárias, distribuição de pacotes de comida para os famintos, campanhas para que países empobrecidos fossem liberados de suas dívidas nacionais ou patrocínio de cooperativas agrícolas. Em vez disso, oferece o simples expediente de fazer indivíduos assinarem cartões dizendo que eles estão “dispostos a serem responsáveis por fazer do fim da fome uma ideia cujo tempo chegou.” Quando um número não revelado de pessoas tiver assinado esses cartões, um “contexto” terá sido criado em que a fome de alguma forma acabará (citado em Zilbergeld: 1983, pp. 5–6). Claro, Laura Brown, assim como muitas outras terapeutas feministas, provavelmente também quereria desafiar a obscenidade desse projeto. No entanto, a lógica de seus próprios argumentos permite precisamente esse tipo de interpretação.

Tais abordagens estão muito distantes da minha própria compreensão de “o pessoal é político”. Eu não acredito que a mudança social aconteça de dentro para fora. Não acredito que as pessoas tenham crianças interiores esperando para serem nutridas, reparentadas, e que sua bondade natural seja liberada para o mundo, sob as camadas de opressão internalizada. Pelo contrário, como argumentei em outros lugares (Kitzinger: 1987; Kitzinger e Perkins: 1993), nossos eu interiores são construídos pelos contextos sociais e políticos em que vivemos e, se quisermos alterar o comportamento das pessoas, é muito mais eficaz mudar o ambiente do que psicologizá-las individualmente. No entanto, como Sarah Scott e Tracey Payne (1984, p. 24) apontam, “quando se trata de fazer terapia, é essencial que cada técnica seja vista pelas mulheres como seus ‘verdadeiros’ e ‘sociais’ eus como distintos.” Isso significa que o processo de tomar decisões éticas e políticas sobre nossas vidas é reduzido à suposta “descoberta” de nossos verdadeiros eus, a honra de nossos “desejos do coração”. A compreensão política de nossos pensamentos e sentimentos é ocultada, e nossas escolhas éticas são moldadas em um quadro terapêutico em vez de político. Um conjunto de condições sociais repressivas tornou a vida difícil para mulheres e lésbicas. No entanto, a solução da “revolução de dentro para fora” é melhorar os indivíduos, em vez de mudar as condições.

A psicologia sugere que só depois de se curar você mesmo, você pode começar a curar o mundo. Discordo disso. As pessoas não precisam ser seres humanos perfeitamente funcionais e auto-realizados para criar mudanças sociais. Pense nas feministas que você conhece que foram influentes no mundo e que trabalharam com afinco e eficácia pela justiça social: Todas elas se amaram e se aceitaram? A grande maioria daqueles admirados por seu trabalho político continua lutando pela mudança não porque alcançaram a autorrealização (nem para atingi-la), mas por causa de seus compromissos éticos e políticos, e muitas vezes apesar de seus próprios medos, dúvidas pessoais, angústias pessoais e auto ódio. Aqueles que trabalham para uma “revolução externa” muitas vezes não estão mais “em contato com seus verdadeiros eu” do que aqueles fixados na mudança interna: essa observação não deve ser usada (como às vezes é) para desacreditar seu ativismo, mas sim para demonstrar que a ação política é uma opção para todos nós, independentemente do nosso estado de bem-estar psicológico. Espere até que seu mundo interno esteja resolvido antes de direcionar sua atenção para o externo, e você está, de fato, “esperando pela revolução” (Brown: 1992).

Validar a Experiência das Mulheres

Uma terceira versão psicológica de “o pessoal é político”, aplicada à terapia, é mais ou menos assim:

A política se desenvolve a partir da experiência pessoal. O feminismo deriva das próprias histórias de vida das mulheres e deve refletir e validar essas histórias. As realidades das mulheres sempre foram ignoradas, negadas ou invalidadas sob o heteropatriarcado; a terapia serve para testemunhar, afirmar e validar a experiência das mulheres. Como tal, ela torna o pessoal político.

A política da terapia, de acordo com essa abordagem, não envolve mais do que “validar”, “respeitar”, “honrar”, “celebrar”, “afirmar”, “prestar atenção” ou “testemunhar” (essas palavras são geralmente usadas de forma intercambiável) a “experiência” ou “realidade” de outra mulher.

Esse processo de “validação” supostamente tem enormes implicações: “Quando honramos nossos clientes, eles se transformam” (Hill: 1990, p. 56).

Obviamente, faz muito sentido nos ouvirmos e estarmos dispostas a entender o significado da experiência de outras mulheres. Costumávamos fazer isso em Grupos de Conscientização, e agora fazemos isso na terapia. Por ter sido transformada em uma atividade terapêutica, ela agora carrega todos os riscos de abuso de poder endêmicos ao empreendimento terapêutico (Kitzinger e Perkins: 1993, capítulo 3; Silveira: 1985). Em particular, os terapeutas são seletivos sobre quais experiências irão ou não validar na terapia. Aquelas emoções e crenças de uma cliente que são mais similares às do terapeuta são “validadas”; as outras são mais ou menos sutilmente “invalidadas”.

Poucas terapeutas feministas, por exemplo, irão validar sem críticas uma sobrevivente de abuso sexual infantil que fala sobre ser a culpada pelo estupro na infância devido ao seu comportamento sedutor; em vez disso, é provável que lhe seja oferecida uma análise sobre a forma como a culpabilização da vítima opera sob o heteropatriarcado. Da mesma forma, poucas terapeutas feministas validarão a experiência de uma mulher que diz estar doente e pervertida por ser lésbica: em vez disso, como a própria Laura Brown (1992) argumenta, seus “pensamentos disfuncionais” (p. 243) serão questionados e a terapia será direcionada para modificá-los para a crença de que “o patriarcado ensina que o lesbianismo é mal como um meio de controlar socialmente todas as mulheres e reservar recursos emocionais para homens e instituições dominantes (uma análise que ofereci, em várias formas, para mulheres que questionavam em voz alta em meu consultório por que se odeiam tanto por serem lésbicas)” (Brown: 1992, p. 249). Embora afirmem “validar” todas as realidades das mulheres, na verdade, apenas um subconjunto, consistindo das realidades com as quais o terapeuta concorda, é aceito como reflexão “verdadeira” da realidade. As outras são “invalidadas”, quer como “cognições defeituosas” (Padesky: 1989) ou como “distorções patriarcais” (Brown: 1992, p. 242).

Em outras palavras, toda essa conversa sobre “validar” e “honrar” a realidade das clientes é um disfarce fino para a moldagem terapêutica da experiência das mulheres em termos das próprias teorias do terapeuta.

De qualquer forma, a “experiência” é sempre percebida por meio de uma estrutura teórica (implícita ou explícita) dentro da qual ganha significado. Sentimentos e emoções não são simplesmente respostas imediatas, não socializadas e auto-autenticadoras. Eles são socialmente construídos e pressupõem certas normas sociais. A “experiência” nunca é “bruta”; ela está embutida em uma teia social de interpretação e reinterpretação. Ao encorajar e perpetuar a noção de “experiência” pura, não corrompida e pré-socializada e emoção natural surgindo de dentro, os terapeutas disfarçaram ou obscureceram as raízes sociais de nossos “eus internos”. Colocar a “experiência” além do debate dessa maneira é profundamente antifeminista precisamente porque nega as fontes políticas da experiência e as torna puramente pessoais. Quando a psicologia simplesmente “valida” emoções específicas, ela as retira de um quadro ético e político.

Empoderamento

Uma quarta interpretação psicológica de “o pessoal é político” se baseia na noção de “empoderamento”. Ela segue mais ou menos assim:

A terapia nos capacita a agir politicamente. Elevar a conscientização pessoal por meio da terapia permite que os indivíduos liberem suas energias psíquicas em direção a uma mudança social criativa. Através da terapia, lésbicas podem adquirir tanto a consciência feminista quanto a autoconfiança para se envolver em ação política. Muitas ativistas políticas radicais feministas são empoderadas a continuar através de seu auto cultivo contínuo na terapia.

Aquelas em terapia muitas vezes usam essa justificativa: de acordo com Angela Johnson (1992, p. 8), a terapia (junto com a escalada) “me dá energia para continuar meu ativismo com renovado entusiasmo.” E as terapeutas concordam. De acordo com a psicóloga clínica Jan Burns (1992, p. 230), escrevendo sobre a psicologia do atendimento à saúde lésbica, “parece intuitivamente razoável que um indivíduo possa preferir se envolver na autoexploração antes de escolher se envolver em ações mais políticas, e pode de fato precisar disso antes de ser capaz de tomar outras medidas”. Laura Brown (1992) diz que muitos de seus clientes “têm muito pouco a contribuir para a luta maior da qual muitos estão desengajados quando os vejo pela primeira vez” (p. 245). Sua cliente, “Ruth”, foi ajudada a entender que a “cura final reside em sua participação em uma mudança cultural, não apenas pessoal” (p. 246) e Laura Brown mostrou a ela como “levar seu processo de cura para uma esfera mais ampla” (p. 245). Como resultado da terapia, suas “energias” foram “liberadas” (p. 245) e ela se tornou uma palestrante, poetisa e professora sobre mulheres e guerra, além de se envolver em ativismo público contra a guerra. Da mesma forma, a psicóloga clínica Sue Holland (1991), em um artigo intitulado “Dos sintomas privados à ação pública”, promove um modelo de terapia no qual o cliente passa de “paciente/vítima ‘doente’ e passivo” no início do tratamento para o “reconhecimento da opressão localizada no ambiente objetivo”, o que leva a um “desejo coletivo de mudança” em que “energias psíquicas podem… ser direcionadas para inimigos estruturais” (p. 59).

De acordo com essa interpretação, o “pessoal” consiste em “energias psíquicas” (nunca claramente definidas) que operam de acordo com um modelo hidráulico. Há uma quantidade fixa de “energia” que pode ser bloqueada, liberada ou redirecionada por outros canais. O “político” é simplesmente um desses “canais”. A terapia pode (e alguns diriam que deve) direcionar a energia feminista ao longo de “canais políticos”. Muitas vezes, é claro, ela não faz isso, e as mulheres permanecem perpetuamente focadas internamente, um problema notado com pesar pelas terapeutas lésbicas/feministas mais radicais. Mas, segundo elas, sua terapia resulta em suas clientes se tornando ativas politicamente.

Longe de incorporar a noção de que “o pessoal é político”, essas ideias dependem de uma separação radical entre os dois. O aspecto “pessoal” da terapia é distinguido do trabalho “político” de participar de marchas, e ao terem separado o “pessoal” e o “político” dessa maneira, os dois são então examinados quanto ao grau de correlação.

O argumento de “empoderamento” ignora totalmente a política da própria terapia. É visto simplesmente como um hobby (como a escalada) ou uma atividade pessoal sem implicações éticas ou políticas em si mesma. Desprovido de significado político intrínseco, é avaliado apenas em termos de suas consequências presumidas para a “política” – definida em termos da velha variedade de bandeira acenando do antigo movimento de esquerda masculino. Se “o pessoal é político”, o próprio processo de fazer terapia é político, e esse processo (não apenas seus resultados alegados) deve ser criticamente avaliado em termos políticos.

Em conclusão, e apesar da frequência com que as terapeutas feministas afirmam rotineiramente que “o pessoal é político”, parece completamente errado afirmar que esse objetivo é um “pilar da terapia feminista” (Gilbert: 1980). Certamente, as noções de “revolução de dentro”, a importância de “validar” a realidade das mulheres e “empoderar” as mulheres para o ativismo político são centrais para o pensamento de muitas psicólogas feministas. Essas ideias sobrepostas e inter-relacionadas estão entrelaçadas em grande parte na teoria e na prática psicológica lésbica/feminista. No entanto, tais noções estão longe da perspectiva radical feminista de que “o pessoal é político” e muitas vezes são interpretadas em contradição direta com essa perspectiva. Muitas vezes, promovem conceitos ingênuos dos mecanismos pelos quais a mudança social é alcançada; envolvem a aceitação acrítica de “verdadeiros sentimentos” e/ou “reinterpretações” manipulativas da vida das mulheres em termos preferidos pelo psicólogo; levam as mulheres a reverter a definições “externas” de política em contraposição ao aspecto “pessoal” da terapia; e nos deixam carentes de linguagem ética e política. Reconhecer que o pessoal realmente é político significa rejeitar a psicologia.

Reconheço que algumas mulheres cuja política eu admiro e respeito não rejeitaram a psicologia: muitas estão “em terapia” ou são provedoras de terapia. Essa observação às vezes é usada para contestar nossos argumentos. Depois de ler um capítulo (Kitzinger e Perkins: 1993) que cita o processo judicial de Nancy Johnson contra o governo dos EUA por condenar as pessoas de Utah ao câncer (por causa do armazenamento nuclear), um leitor comentou que Nancy Johnson agora trabalha como curandeira psíquica de uma maneira que eu provavelmente consideraria politicamente problemática. “Acho que a situação é mais complicada do que você apresentou: Feminismo e psicologia não parecem ser mutuamente exclusivos”, disse ele. Obviamente, ativistas feministas às vezes são praticantes ou consumidoras de psicologia: muitas feministas claramente acham possível incluir ambos em suas vidas. Mas, assim como os defensores da saúde às vezes fumam cigarros; os ecologistas às vezes jogam lixo; e os pacifistas às vezes batem em seus filhos. A coexistência observada de duas visões ou comportamentos na mesma pessoa não os torna lógicamente éticos ou politicamente compatíveis.

O debate sobre a compatibilidade ética e política das diferentes ideias e comportamentos das pessoas é uma parte importante do que a discussão política feminista é. Meu argumento é que o feminismo e a psicologia não são eticamente ou politicamente compatíveis. Não significa necessariamente que as mulheres envolvidas na psicologia sejam apolíticas ou antifeministas. Muitas levam a sério o feminismo e estão profundamente engajadas em atividades políticas. Mas, na medida em que organizam suas vidas com base em ideias psicológicas e na medida em que limitam seus pensamentos e ações ao que aprendem da psicologia, estão negando o princípio feminista fundamental de que “o pessoal é político”.

KITZINGER, Celia. Terapia e como ela Minimiza a Prática do Feminismo Radical. IN: BELL, D.; KLEIN, R. (eds) Radically Speaking: Feminism Reclaimed. Melbourne: Spinifex Press, 1996. Tradução livre.

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Traduções

O sexo cotidiano: coerção e consentimento

Por Sheila Jeffreys, traduzido livremente de Penile Imperialism.


Thérèse e Edmondo Morbilli, por Edgar Degas (1865)

O direito sexual masculino se expressa mais claramente no casamento e na convivência heterossexual. Através das instituições da heterossexualidade e do casamento em todas as suas formas, desde a óbvia escravidão sexual até a “união estável” e as uniões mais informais, os homens adquirem o direito de acesso sexual constante, bem como o controle da reprodução e cuidado infantil e do trabalho doméstico não remunerado. Em alguns países, os maridos não têm mais a propriedade total dos corpos de suas esposas e o direito de fazer o que quiserem com eles, embora isso ainda persista em muitas jurisdições. No Reino Unido, por exemplo, o estupro no casamento é agora um crime, mas o contrato não escrito que está na base do casamento é de propriedade. Este contrato era claro na lei do século XIX e fez com que as feministas questionassem se havia alguma diferença significativa entre o status das esposas e o dos escravos.

Argumentarei que, embora a maioria das mulheres no casamento e em relacionamentos heterossexuais agora tenham o direito de acusar seus parceiros de estupro, o direito do sexo masculino, ou direito conjugal, como era chamado na lei, ainda permanece. Este capítulo trata dos encontros sexuais que geralmente não são chamados de estupro, mas sexo indesejado ou coercitivo ou, por serem tão normativos, sexo “cotidiano”. A relação de poder de dominação masculina e subordinação feminina constrói o sexo que acontece nas relações heterossexuais e o exercício de diversas formas de força garantem que as mulheres não tenham direito à autodeterminação em relação aos seus corpos. O escopo deste capítulo é limitado aos ‘direitos conjugais’ na cultura dominante do Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, mas já escrevi sobre esse problema em outros países e regimes religiosos em outros lugares (Jeffreys, 2012a).

A origem do direito do sexo masculino no casamento

As feministas do século XIX escreveram poderosamente sobre como o status das mulheres casadas se assemelhava ao dos escravos (Thompson e Wheeler, 1970, publicado originalmente em 1825). Na lei, as mulheres não tinham o direito de recusar o uso sexual, não tinham direito a qualquer liberdade de movimento sem o consentimento de seus maridos, a possuir dinheiro ou ferramentas de uma profissão ou à guarda dos filhos. Como diz Carole Pateman:

Até o final do século XIX, a posição legal e civil de uma esposa assemelhava-se à de uma escrava. Pela doutrina legal comum do casamento, uma esposa, como um escravo, estava civilmente morta (Pateman, 1988: 119).

Os direitos sexuais do marido eram chamados de “direitos conjugais” na lei. Eles foram descritos pelo jurista Lord Hale em 1778, 

“o marido não pode ser culpado de estupro cometido por si mesmo em sua esposa legítima, pois pelo consentimento e contrato matrimonial, a esposa se deu a ele neste sentido” (citado em Pateman, Ibid: 123).

De fato, como explica Pateman, até 1884, uma esposa poderia ser presa por recusar os direitos conjugais do marido. Ela afirma que 

“O direito conjugal do marido é o exemplo mais claro da maneira pela qual a origem moderna do direito sexual como direito político é traduzida pelo contrato de casamento ao direito de cada membro da fraternidade na vida cotidiana” (Ibid: 123).

William Thompson e Anna Wheeler, em seu manifesto feminista de 1825, procuraram explicar a condição de escravas das mulheres no casamento e como isso diferia de outras formas de escravidão e outras formas de trabalho, dizendo que os desejos sexuais dos homens os levavam a instituir “estabelecimentos de reprodução isolados, chamados de vida conjugal”, em vez de usar as mulheres apenas como trabalhadoras (Ibid: 123). A penetração vaginal de uma mulher é tão central para o casamento heterossexual, por exemplo, que a não consumação, como é chamada, ainda é uma base para a anulação (GOV.UK n.d., acessado em 26 de abril de 2021).

Feministas fizeram campanha nas décadas de 1970 e 1980 para remover da lei a isenção de estupro conjugal, que dizia que um marido não poderia estuprar sua esposa. Tiveram sucesso no Reino Unido em 1992 como resultado de uma decisão da Câmara dos Lordes, em vez de uma mudança na lei (Hart, 2014). A isenção de estupro conjugal persistiu em metade dos países da Commonwealth Britânica até 2019, bem como em muitos outros países do mundo (Sisters for Change, 2019).

A partir desse momento, tanto na lei quanto na teoria, as mulheres no Reino Unido, que supostamente teriam sido libertadas pela revolução sexual, deveriam ser capazes de rejeitar o sexo indesejado nos relacionamentos. Mas, como veremos neste capítulo, o sexo indesejado continua a ser um problema muito sério e a erotização da igualdade não ocorreu. O que mudou é que as práticas mais abusivas e assassinas que foram popularizadas pelos movimentos de direitos sexuais dos homens e pela indústria do sexo foram disseminadas no sexo cotidiano de tal forma que as mulheres estão sendo extremamente pressionadas pelos homens  para permitir práticas como  sexo anal e estrangulamento em seus corpos. A marcha progressiva da ‘revolução sexual’ levou a uma situação em que muitas mulheres e jovens adolescentes em relações heterossexuais estão experimentando sérias dores e humilhações.

A heterossexualidade compulsória

O sexo só pode ser entendido como voluntário se as mulheres tiverem uma escolha real quanto a entrar em relacionamentos heterossexuais. As teóricas feministas lésbicas questionaram o grau de escolha que as mulheres são capazes de exercer e argumentaram que a heterossexualidade é uma instituição política que é social e politicamente construída e imposta às mulheres (Hawthorne, 1976/2019; Rich, 1980; Wilkinson e Kitzinger, 1993; Jeffreys, 1990). Ela é, como explicou Adrienne Rich,  “compulsória” (Rich, 1980). Essas teóricas argumentam que a heterossexualidade não é simplesmente um direcionamento do desejo sexual para o sexo oposto, uma orientação sexual. Em vez disso, é a base institucional da dominação masculina porque permite a extração de muitas formas de trabalho não remunerado para os homens: sexual, reprodutivo, emocional e trabalho doméstico. É funcional à dominação masculina também, mantendo mulheres individuais sob o controle de homens individuais e separadas umas das outras. É, dizem elas, imposta em vez de livremente escolhida. As alternativas, lesbianismo ou solteirice, são difamadas, punidas ou tornadas invisíveis ao serem excluídas da cultura e da sociedade. O movimento de libertação lésbica dos anos 1970 e 1980 permitiu que muitas mulheres deixassem a heterossexualidade e se tornassem lésbicas. Por várias décadas, uma cultura, teoria e comunidade positivamente lésbica existiram nas quais as lésbicas podiam encontrar irmandade e força  (Jeffreys, 2018a). Essa cultura e comunidade não existem mais para apoiar as mulheres no orgulho de serem lésbicas e o lesbianismo agora é comumente entendido como o resultado da biologia, o que não permite escolha (Ibid).

Durante a maior parte da história recente no ocidente, as mulheres foram obrigadas a entrar em casamentos ou outras formas de relacionamentos heterossexuais por uma necessidade econômica urgente. Embora o imperativo financeiro não seja mais tão poderoso, há muitas forças que encaminham as mulheres para a instituição da heterossexualidade, como ser criada em famílias heterossexuais onde qualquer alternativa provavelmente será excluída ou rejeitada, sistemas de educação que não mencionam a história, cultura ou existência de lésbicas, e a ausência de lesbianismo aberto entre professoras e outros possíveis modelos. As vantagens dos relacionamentos lésbicos não são divulgadas na educação sexual para crianças, como uma maior chance de compartilhamento de cuidados infantis e tarefas domésticas, evitando a violência masculina em casa, a falta de necessidade de contracepção, a maior possibilidade de prazer sexual com outras mulheres que entendem os corpos das mulheres e não são dedicadas apenas à sua própria satisfação. Os romances lésbicos não são estudados. Existem novas forças envolvidas em fazer o lesbianismo desaparecer e fazer com que uma nova geração de mulheres jovens evite a palavra lésbica (Morris, 2017). Por exemplo, jovens lésbicas estão sendo medicinalmente modificadas ao serem identificadas como meninos pelos médicos com a conivência do sistema escolar. Elas estão passando por uma ‘terapia de conversão’, como veremos em um capítulo posterior (Jeffreys, 2018a).

Este capítulo pressupõe que a heterossexualidade é uma instituição em que as mulheres não estão em posição de escolher livremente se desejam entrar ou rejeitar. Considerando que todas as forças e punições muito significativas das sociedades masculinas dominantes se juntam para forçar as mulheres à heterossexualidade, não é de surpreender que o sexo que ocorre nela muitas vezes não seja escolhido livremente ou adequado aos interesses das mulheres, mas imposto pela força. Ele ocorre, proeminentemente, em uma relação de poder.

Sexo pênis na vagina (piv)

O casamento é legalmente baseado na entrada do pênis na vagina. Essa forma de sexo, no entanto, tem muitas contra-indicações para as mulheres e poucas vantagens. As teóricas e pesquisadoras feministas postularam que o coito não é adequado para o prazer sexual das mulheres e apresenta problemas para a saúde e segurança das mulheres (Jeffreys, 1990; Dworkin, 1987). Uma pesquisa no Reino Unido descobriu que 80% das mulheres não conseguiam atingir o orgasmo apenas com essa prática (Delvin e Webber, 2017).

No entanto, o que Alex Comfort chamou de “o bom e velho casamento” ainda é a prática preferida dos homens e comumente vista como a essência do sexo. Pesquisadoras feministas têm procurado estabelecer por que o sexo com pênis na vagina sobreviveu como a forma primária e “natural” de se engajar em relações heterossexuais, apesar do fato de ser inadequado para o prazer das mulheres, requerer a tecnologização do corpo com contracepção, e ter o risco de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Elas examinaram as diferentes formas de força envolvidas para garantir que muitas mulheres deem aos homens acesso a seus corpos, por mais relutantes que estejam. Um estudo procurou entender por que coito continuou a ser o principal ato sexual, apesar de

os efeitos colaterais das formas mais eficazes de contracepção e das implicações sociais, psicológicas e de saúde da gravidez não planejada e indesejada ou do aborto

(Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 36).

Como explicam esses pesquisadores, a vagina é 

apresentada como a melhor parte do corpo da mulher para atender às necessidades sexuais do pênis. É um encaixe que foi ‘projetado’, os órgãos são ‘construídos para se prenderem uns aos outros’, e a prática é vista como mais natural do que o uso da boca ou da mão de uma mulher

(Ibid: 41).

A maioria das razões dadas pelas quais o sexo com pênis na vagina é natural são, dizem eles, biológicas ou procriativas. Tais razões não se relacionam, é claro, com o prazer sexual das mulheres. A pesquisa reconhece que muitas mulheres não têm escolha sobre permitir ou não o sexo na vagina por causa da violência e do controle masculino, mas se concentra nas forças mais sutis que induzem as mulheres a permitir que seus corpos sejam usados dessa maneira, “nosso interesse aqui é em entender mais sobre as normas que regem as relações sexuais em situações que não parecem envolver coerção direta” (Ibid: 37).

O modelo de consentimento

O sexo cotidiano que pode ser profundamente indesejado pelas mulheres, ou mesmo doloroso e angustiante, é justificado pela noção de ‘consentimento’. A própria ideia de que os encontros sexuais requerem ‘consentimento’, em vez de serem experiências de prazer mutuamente desejadas, torna clara a dinâmica de poder da heterossexualidade. Os homens heterossexuais não têm problema em saber se consentiram o uso de seus corpos por mulheres, porque a exigência de submeter seus corpos ao prazer de outro não existe para eles. No sexo heterossexual, espera-se que o homem inicie o sexo e que a mulher concorde ou discorde de seus avanços e demandas por meio do mecanismo de consentimento. Supõe-se que iniciação e consentimento sejam iguais, mas na verdade representam os comportamentos de dominação e submissão. Catharine MacKinnon rejeita a ideia de que o consentimento forneça qualquer tipo de proteção ou vantagem para as mulheres. Como ela explica:

O consentimento é supostamente a forma das mulheres controlarem a relação sexual, diferente mas igual à prática da iniciativa masculina. O homem propõe, a mulher dispõe. Até mesmo o ideal não é recíproco… esse modelo não imagina uma situação em que a mulher tenha controle ou escolhas a fazer.

(MacKinnon, 1989: 174)

Fora do contexto do sexo, o consentimento é o mecanismo que justifica a aplicação de um procedimento que pode colocar em risco a saúde e a vida; um comportamento que é arriscado. Assim, os formulários de consentimento são usados regularmente para cirurgias ou para práticas em que há risco de divulgação de informações confidenciais. O consentimento não é entendido como algo que ocorre entre iguais, mas como indício de desigualdade. Apesar disso, como explica Carole Pateman

[As] relações mais íntimas das mulheres com os homens são regidas pelo consentimento; as mulheres consentem com o casamento, e a relação sexual sem o consentimento da mulher constitui crime de estupro

(Pateman, 1989: 72).

Expliquei o problema com o conceito em 1993:

A ideia de consentimento implica em um modelo de sexualidade em que uma pessoa, geralmente homem, usa o corpo de outra pessoa que não está necessariamente interessada sexualmente e possivelmente relutante e angustiada, como um recurso sexual. É um modelo dominante/submisso e ativo/passivo… O consentimento é uma ferramenta para negociar a desigualdade nas relações heterossexuais. Espera-se que as mulheres tenham seus corpos usados, mas a ideia de consentimento faz com que esse uso e abuso pareçam justos e justificados.

(Jeffreys, 1993: 178)

O conceito de consentimento molda o sexo heterossexual. Espera-se que a mulher disponibilize seu corpo sem objeções para que um homem possa usá-lo para se satisfazer, mas seu próprio prazer e até mesmo sua presença psicológica não são necessários. Ela pode, como a literatura sexológica sugere, estar com a cabeça inteiramente em outro lugar. Ela pode estar lendo um livro durante o procedimento ou estar pintando as unhas dos pés (Jeffreys, 1990).

Um modelo de sexualidade que se baseia na noção de que uma pessoa tem a iniciativa e a outra pode apenas dar ou negar consentimento é profundamente desigual e simplesmente replica as relações de poder social de dominação masculina. No entanto, o conceito de consentimento forma a base das leis internacionais sobre estupro, agressão sexual e crimes sexuais contra menores de idade. A lei tanto replica esse modelo de desigualdade sexual quanto o promove e molda. A legislação atual do Reino Unido sobre estupro, a Lei de Ofensas Sexuais de 2003, é baseada em um modelo de iniciação/consentimento (Legislation.gov.uk, 2003). Na Seção 1, afirma que:

Uma pessoa (A) comete um delito se –

(a) ele penetra intencionalmente a vagina, o ânus ou a boca de outra pessoa (B) com seu pênis, e

(b) B não consente com a penetração, e 

(c) A não tem motivo razoável para acreditar que B consente.

Um outro problema com a legislação do Reino Unido é que ela continua a tradição dentro da dominação masculina de definir se uma mulher foi estuprada de acordo com o que acontece na cabeça de um homem, incluindo uma cláusula de ‘motivo razoável para acreditar’. A legislação revela a influência de um movimento feminista ao acrescentar a necessidade por parte do homem de tentar averiguar se a mulher que ele penetrou estava consentindo:

(2) Se uma convicção é justificável deve ser determinada tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo quaisquer passos que A tomou para verificar se B consente.

O conceito não apenas mede o que é um estupro muito mais pelo que um homem considera do que pelo que uma mulher experimentou, mas também define sexo aceitável como o que um homem faz a uma mulher, que pode ser totalmente passiva e desejar estar em outro lugar. Os sentimentos dela não entram na definição.

Fabricando o consentimento

As meninas e mulheres, membras da casta sexual subordinada, alvos da iniciativa sexual de membros da casta sexual superior, supostamente têm o direito de recusar. Mas esse direito de recusar ou aceitar o consentimento de uma mulher é construído a partir de sua posição nas relações de poder da dominação masculina. São muitas as razões pelas quais o consentimento de uma menina ou mulher não é livre e todas se relacionam com sua posição subordinada. Elas incluem como meninas e mulheres são treinadas para se curvarem aos homens, para não deixá-los irritados e para não se expressarem de forma assertiva perto de homens. Algumas das razões tradicionais pelas quais as mulheres não são iguais em relacionamentos heterossexuais podem ter sido um pouco amenizadas no Reino Unido nos últimos cinquenta anos, com o resultado de que as mulheres agora têm muito mais independência econômica. Muitas outras, no entanto, permanecem, como as formas pelas quais os homens mantêm o controle por meio da violência, ameaça ou as mais variadas formas de coerção. Na década de 1980, pesquisadoras feministas formularam um vasto entendimento das forças que estão envolvidas na construção do que a lei penal e os perpetradores masculinos entendem como consentimento, ou seja, a ausência de uma recusa direta por parte de uma mulher para permitir que seu corpo seja usado como um receptáculo.

O primeiro exemplo desse tipo de trabalho é a pesquisa de Diana Russell em seu livro de 1982, Rape in Marriage. Ela descobriu que, nos EUA, o estupro de esposas com força ou ameaça de violência era comum:

Em meu estudo financiado pelo governo federal… 14 por cento das mulheres que se casaram uma vez ou mais relataram ter sido estupradas por seus maridos

(Russell, 1982/1989: XXII).

É importante ressaltar que ela também prestou atenção às maneiras pelas quais as esposas foram forçadas a aceitar o acesso sexual de seus maridos, o que não se encaixava na definição usual de estupro e que as próprias esposas viam como consensual. As muitas razões que as mulheres deram para terem que ‘consentir’ podem ser resumidas em algumas categorias. Uma delas era que as mulheres sentiam que tinham que permitir o acesso sexual de seus maridos porque esse era seu dever de esposa, parte do contrato. Como uma esposa explicou:

Quando estou dormindo, não quero ser incomodada. Ele não me forçou, mas se eu não quisesse, ele faria de qualquer forma. Eu não gostei. Eu disse apenas ‘pode fazer, mas eu não estou no clima’

(Ibid: 82).

Outra queria agradar o marido:

Às vezes, meu marido quer fazer coisas que eu não quero fazer ou que são desconfortáveis para mim. Certas posições são desconfortáveis ou cansativas para mim, como ficar de pé. Não é forçado como estupro, mas às vezes, quando digo não, ele nunca me força, mas talvez eu faça mesmo assim para agradá-lo

(Ibid: 82).

Outro motivo era evitar discussões e a raiva do marido:

Eu simplesmente não queria fazer e ele queria, então fizemos sexo. Eu disse que não queria e não ajudei o sexo a acontecer, mas por outro lado, não fui forçada. Isso provavelmente acontece muito com pessoas casadas. (Você se sentiu forçada?) Sim, me senti forçada a fazer isso. Não fisicamente. Mas você não pode simplesmente começar a brigar com seu marido. Não estávamos nos comunicando bem. Era a noite de nosso casamento e eu estava muito, muito bêbada

(Ibid: 83).

A raiva de um marido podia ser expressa em retraimento emocional e as mulheres faziam questão de evitar isso:

Houve um número razoável (de experiências sexuais indesejadas) um ano antes de nos separarmos. Parei de querer fazer amor, e era uma pressão constante. (Força física?) Não, não houve coerção física; foi apenas retraimento emocional ou nenhum contato físico

(Ibid: 77).

Outra forma de força que o marido poderia exercer era a ameaça de infidelidade:

Eu estava cansada. Eu estava trabalhando muito. Eu queria dormir. Como ele é meu marido, não pude dizer não. Eu nunca disse ‘estou com dor de cabeça’ como as americanas, porque senão ele iria procurar em outro lugar

(Ibid: 83).

No final do século XX, as pesquisas feministas como a de Russell criaram uma compreensão das dinâmicas de poder nas relações heterossexuais e contribuíram para o sucesso de campanhas feministas em muitos países para criminalizar o estupro marital. Mas outras forças estavam trabalhando ao mesmo tempo para consolidar esse sexo de dominação masculina, incluindo a liberação das indústrias de prostituição e pornografia, a promoção de parafilias como BDSM (Bondage, Disciplina, Sadomasoquismo) e o apoio a essas práticas pelos profissionais da terapia sexual. A compreensão feminista que estava sendo construída com tanto cuidado não era páreo para essas forças. Apesar de toda a excelente pesquisa e campanha em torno da violência sexual, os muitos sucessos do Movimento de Libertação das Mulheres não mudaram a maneira como as mulheres eram forçadas a “consentir” ao sexo. O sexo como um direito legal do marido deu lugar ao sexo por “consentimento”.

A derrota do trabalho feminista ficou clara na pesquisa de Lynn Phillips com estudantes universitárias (Phillips, 2000). Ela entrevistou jovens estudantes, de 19 a 21 anos, que fizeram um curso de estudos feministas e aprenderam sobre a violência masculina. Se alguma mulher estivesse em posição de lutar contra o estupro, deveriam ser essas estudantes que estavam bem informadas e preparadas, mas elas sofreram estupros que não podiam nomear e muito sexo abusivo, violento e doloroso que não conseguiam evitar em seus relacionamentos sexuais cotidianos. Um aspecto importante da construção da sexualidade feminina que Lynn Phillips descobriu em suas entrevistas foi que as jovens praticavam atos sexuais com homens se guiando detalhadamente pelo que achavam que seus parceiros desejavam, e não por qualquer coisa que elas estivessem sentindo:

As participantes relataram repetidamente que suas decisões sobre como se apresentar fisicamente, como e quando fazer ruídos e como mover seus corpos foram determinadas muito menos por suas próprias sensações corporais do que por seus cálculos mentais do que os homens gostariam que eles fizessem

(Phillips , 2000: 108).

As universitárias descreveram em detalhes para Phillips as estratégias que usavam para sobreviver a experiências sexuais muito insatisfatórias com homens abusivos e indiferentes. Algumas estratégias foram adotadas para que o homem parasse sem ela precisar mostrar que não gostava do que ele estava fazendo.

Às vezes, demora demais… Então, eventualmente, finjo que não consigo manter os olhos abertos e que gostaria de poder, porque estou amando muito isso. Assim eu não firo os sentimentos dele… Dessa forma, eu não pareço frígida ou muito esquisita

(Ibid: 146).

Uma estudante fez um relato sobre quando estava sendo usada sexualmente, ela não queria transar, estava sentindo dor, ela chorou e ele não notou:

Então eu fiquei deitada embaixo dele, chorando, enquanto ele fazia. Eu não sentia que poderia dizer não, mas esperei que ele me visse chorando e simplesmente parasse, não sei, por culpa ou preocupação ou algo assim, talvez até pena. Ele não parou, claro. Ele simplesmente continuou e depois disse: ‘Você não gostou?’ E eu disse: ‘Sim, foi bom’

(Ibid: 145).

Um motivo pelo qual as alunas se sentiram compelidas a atender os homens foi o fato de que eles poderiam se tornar violentos se seus avanços fossem rejeitados:

Alguns caras ficam furiosos quando seus egos masculinos são feridos. Eu simplesmente não posso correr esse risco

(Ibid: 139).

Phillips descobriu que as universitárias reformulavam sua experiência sexual para que não tivessem que pensar em si mesmas como tendo sido estupradas, embora o que elas descrevessem muitas vezes se encaixasse na definição legal de agressão sexual. Ela diz que das 27 mulheres que descreveram experiências que envolveram violência e coerção, 25 delas – ou 93 por cento – não chamavam nenhuma de suas experiências de abuso ou vitimização. Em vez disso, recorreram a várias formas de assumir, elas mesmas, a responsabilidade pelo que os homens lhes fizeram ou, pelo menos, de sobreviver à violência. Elas fizeram muito esforço para ter uma resposta sexual ao serem usadas sexualmente, porque isso significaria que não foi estupro. Um jovem de 19 anos explicou:

Se eu pudesse apenas encontrar uma maneira de me excitar, saberia que estava envolvida e isso não seria realmente como um estupro

(Ibid: 144).

Uma jovem de 21 anos disse quase a mesma coisa:

Eu estava pensando que, se eu conseguisse me excitar, seria consensual, como uma boa experiência

mas isso foi em uma situação em que o homem a forçou violentamente à submissão:

Eu me envolvi em uma situação em que fui para o apartamento deste cara, e estávamos nos beijando e tal, mas eu não queria fazer sexo, mas ele sim. Foi uma luta longa e tudo mais. E ele me bateu e tudo, e então eu pensei: ‘Ok, tudo bem’. Eu cedi, sabe, porque se eu realmente tentasse lutar e acabasse sendo espancada, o que eu diria para a minha mãe?

(Ibid: 143).

A mesma mulher aprendeu uma técnica quando criança para fazer um homem que a estava assediando sexualmente se apressar e acabar logo com isso:

Eu aprendi bem cedo, por volta dos treze anos, eu acho, a fazer o boquete perfeito. Eu também sei fazer a punheta perfeita, para que eu possa tirar os homens de cima de mim e acabar logo com isso. Dessa forma, estou totalmente no controle. Porque uma vez que eles gozem, então você está livre… Com sorte, se você jogar as cartas certas, eles simplesmente irão cair no sono

(Ibid: 141).

Ela aprendeu a amenizar as piores condições do uso sexual que fazem do seu corpo, mas não foi capaz de recusar.

As experiências de violência sexual que as mulheres se recusaram a ver como estupro incluíram a seguinte situação em que uma mulher foi asfixiada pela mão de um homem e sofreu fortes dores quando foi penetrada pela primeira vez:

Eu pensei, estou pronta para fazer isso… Ele estava, tipo, me ignorando completamente, e nós não estávamos mais nos agarrando (ela chora e soluça). Ele estava apenas enfiando o pau dentro de mim, e tampando a minha boca com a mão, então eu não podia falar nada… Só posso dizer que nunca senti tanta dor na minha vida… Depois que ele gozou, o que não demorou muito, graças a Deus, ele apenas rolou para o lado, parecendo tão orgulhoso de si mesmo. Ele me disse: ‘Você quer que eu te acompanhe até sua casa?’

(Ibidem: 94).

Outra mulher descreveu uma agressão sexual dolorosa que ela se recusou a chamar de estupro:

Eu penso nisso principalmente como uma noite muito ruim. Se você está me perguntando se eu acho que fui estuprada, não, eu realmente não chamaria isso assim. Quero dizer, fui forçada, sim, e me machuquei, e as coisas não saíram como eu queria, mas eu estava no carro com ele. Foi tudo muito complicado. Quero dizer, eu estava lá, poderia ter escolhido não ir. Então não, eu realmente não chamo isso de estupro.

(Ibid: 154).

As jovens que sofrem essas agressões sexuais aprenderam a crítica feminista da violência masculina em seus cursos feministas, mas, no caso dessa mulher, o ensino permitiu que ela se diferenciasse das mulheres que ela via como verdadeiras vítimas, em vez de se ver como uma:

Eu só agradeço a Deus por não ter passado por algo tão extremo quanto as mulheres que são abusadas… Nós estudamos isso nas aulas de feminismo. Às vezes eu apanhava e era humilhada pelo meu namorado, mas não era espancada como muitas mulheres são.

(Ibid: 158)

Uma razão dada para negar o estupro foi que admitir ser uma vítima era humilhante:

Se eu me considerasse uma vítima, seria como se eu fosse apenas uma garotinha burra que perdeu a cabeça. Na época, eu queria provar para mim mesma o quão adulta eu era, não queria nem pensar que poderia ter sofrido abuso … porque então eu seria ingênua e estúpida.

(Ibid: 95)

Em outro estudo, as pesquisadoras feministas descobriram que a principal razão pela qual as mulheres eram usadas sexualmente quando não queriam era a pressão social para agradar aos homens ou para não parecer frígida. Uma mulher falou sobre se sentir forçada a dizer sim por medo de ser “rotulada e julgada (como frígida) se dissesse ‘não'” (Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 43). “É isso que devo fazer, é isso que preciso fazer para manter o respeito ou a amizade deles.” Outra forma de pressão que encontraram em suas entrevistas foi a necessidade das mulheres de “agradar sexualmente seus homens”, pelo menos estando sexualmente ‘disponível’ ou enfrentar a “consequência previsível de que ele procurará em outro lugar para ter suas ‘necessidades sexuais’ atendidas”. As pesquisadoras comentam:

Se o papel da mulher nas relações heterossexuais é construído em torno da necessidade de agradar seus parceiros masculinos, então a relação sexual pode não ser uma escolha real

(Ibid: 48).

É provável que todas as experiências angustiantes aqui descritas tenham sido vistas pelas mulheres como ‘consensuais’.

O ensino do consentimento

A falsa ideia de que o ‘consentimento’ indica a atividade sexual desejada está por trás do ‘treinamento de consentimento’, que é a solução preferida por governos, universidades e outras instituições para lidar com o problema do assédio sexual. No treinamento de consentimento, homens e mulheres aprendem a buscar e dar um consentimento inequívoco antes que a atividade sexual ocorra. O governo do Reino Unido, por exemplo, lançou uma campanha “para ajudar a combater o estupro, educando jovens homens sobre a necessidade de consentimento antes do sexo” em 2006. O jornal The Guardian citou uma porta-voz do Ministério do Interior dizendo: “Dar consentimento é uma ação, não uma omissão, e cabe a todos garantir que o parceiro concorde com a atividade sexual” (Travis, 2006). Mas, é claro, embora o ‘consentimento’ possa ser ativo, a mulher que consente pode se sentir forçada a concordar em ser usada passivamente ou a simular entusiasmo. O conceito de consentimento usado por tais campanhas é notavelmente simplista. A União Nacional dos Estudantes (NUS) do Reino Unido lançou uma campanha com objetivo semelhante em 2015, chamada Eu amo o consentimento:

A campanha das mulheres da NUS e a Sexpression UK se uniram para criar um programa educacional de consentimento que visa facilitar conversas e campanhas positivas, informadas e inclusivas sobre consentimento em universidades e faculdades em todo o Reino Unido.

A definição de consentimento do programa é: “Uma pessoa consente se concorda por escolha própria e tem a liberdade e capacidade de fazer essa escolha” (NUS, 2015, ênfase no original). O treinamento de consentimento é onipresente, mas falho pois assume a iniciativa sexual masculina e que as relações entre homens e mulheres são baseadas na igualdade, em vez das relações de poder.

Uma notável pesquisa de Celia Kitzinger e Hannah Frith, de 1999, procura mostrar por que o treinamento de consentimento pode não funcionar (Kitzinger e Frith, 1999). Elas apontam que a “teoria da má comunicação”, que fundamenta esses programas, não descreve com precisão o que acontece entre homens e mulheres na atividade sexual. Essa teoria acredita que as mulheres não são suficientemente incisivas ao expressar seu “não” ao sexo e que os homens são facilmente confundidos em pensar que podem prosseguir quando uma mulher não deseja fazê-lo. Elas explicam que

o ensino de “habilidades de recusa” é comum a muitos programas de prevenção de estupro em encontros, treinamentos de assertividade e habilidades sociais para jovens mulheres. A suposição subjacente a esses programas é que as jovens mulheres acham difícil recusar a atividade sexual indesejada e um objetivo comum é ensinar as mulheres a dizer “não”, de forma clara, direta e sem desculpas

(Kitzinger e Frith, 1999: 293).

Boas pesquisas feministas qualitativas mostram as falhas na teoria da má comunicação, apontando que formas complexas de entendimento social estão em jogo quando as pessoas tomam essas decisões, que podem, na verdade, ser prejudicadas pela exigência de que as mulheres rejeitem de modo duro e explícito (Beres, 2020). O problema mais grave com essa teoria é que ela culpa as mulheres pela violência sexual que sofrem, sugerindo que tudo o que elas precisam fazer para evitar a agressão é tornar sua recusa mais clara. Pode ser por essa razão que o treinamento de consentimento é o preferido como resposta à violência sexual, porque culpa as vítimas, as mulheres, sem exigir nenhuma mudança no comportamento dos perpetradores, os homens.

Kitzinger e Frith utilizaram a análise da conversa (AC) para examinar a maneira como os jovens falam sobre consentimento. Elas apontam que

os resultados empíricos da AC demonstram que as recusas são interações conversacionais complexas e finamente organizadas, e não são adequadamente resumidas pelo conselho de apenas dizer não

(Kitzinger e Frith, 1999:294).

Elas observam que em interações cotidianas, tanto homens quanto mulheres não usam recusas diretas quando solicitados a fazer algo, porque isso é ofensivo. Eles tendem a usar atrasos, hesitações e desculpas em vez disso. A análise da conversa depende da atenção cuidadosa aos pequenos detalhes da fala, como breves pausas, hesitações, falsos começos e autocorreções, bem como “paliativos” – frases usadas para “acalmar” um homem para que ele não se sinta tão ofendido. Além disso, eles apontam que dizer simplesmente “não” sem prestar atenção às regras sociais que geralmente se aplicam em todas as situações pode colocar as mulheres em perigo, causando uma reação de raiva em um homem que interpreta a recusa como grosseria. A teoria da má comunicação oferece uma forma de defesa para estupradores no tribunal: eles podem argumentar que não entenderam porque a mulher não sinalizou sua falta de consentimento com bastante clareza. Mas isso não ajuda as mulheres.

Kitzinger e Frith explicam que “apenas dizer não” é visto como grosseria e “as mulheres jovens sabem disso” (Ibid: 305). Os programas de prevenção de estupro que insistem em ‘apenas dizer não’, ‘são profundamente problemáticos na medida em que ignoram e anulam formas culturalmente normativas de indicar recusa’ (Ibid). A evidência, dizem elas, ‘é que as pessoas geralmente ouvem recusas sem que a palavra ‘não’ seja necessariamente pronunciada” (Ibid). Elas concluem que “a raiz do problema não é que os homens não entendam as recusas sexuais, mas que eles não gostam delas” (Ibid: 310). Elas fundamentam essa ideia com pesquisas que registram as reações de meninos adolescentes e homens jovens que foram questionados sobre quais seriam suas reações se as mulheres os recusassem. A agressividade sexual (que apresentavam) era bastante extrema”. Elas concluíram que “o problema da coerção sexual não pode ser solucionado pela mudança do modo com que as mulheres falam” (Ibid: 311).

A diferença do desejo sexual entre homens e mulheres

A noção de ‘consentimento’ é necessária por causa do que tem sido chamado pelos sexólogos de ‘diferença do desejo’. Talvez não fosse necessário se não houvesse um problema de imposição de algo indesejado a parceiros relutantes, se as mulheres estivessem tão entusiasmadas em serem penetradas quanto os homens estavam em penetrá-las. Sexólogos no início do século XX buscaram descrever, quantificar e curar o que eles viam como o principal impedimento ao direito sexual masculino – a falta de interesse ou recusa das mulheres em responder com entusiasmo suficiente a serem penetradas pelos homens. Como vimos no Capítulo 1, eles inventaram uma série de termos para descrever o problema enquanto buscavam por uma solução.

A resistência das mulheres era vista como política e a derrota dessa resistência era a principal tarefa da ciência do sexo e da prática da terapia sexual ao longo do século XX. As demandas importunas dos homens, por outro lado, eram vistas como naturais e não eram questionadas. No século XXI, sexólogos inventaram um novo termo para descrever o que antes era chamado de frigidez, “diferença de desejo”. A “diferença” é atribuída às mulheres. Os homens não precisam mudar, mas a falta de interesse das mulheres deve ser medicalizada e tratada. As mulheres não conseguem simplesmente rejeitar o sexo que não desejam, porque o direito sexual masculino exige que elas concedam acesso.

Na pesquisa sobre “Negociação de diferenças de desejo sexual para mulheres em relacionamentos de parceria”, uma entrevistada explica que a “negociação” é um problema relacionado ao direito sexual masculino, já que as parceiras femininas não fazem as mesmas exigências. Ela também explica que o tipo de pressão que os homens colocam sobre as mulheres para que elas permitam o uso de seus corpos não existe em relacionamentos lésbicos:

Eu achei que com os caras [o sexo] é algo que eles querem imediatamente, mas nas minhas experiências com as garotas eu sinto que não há pressão alguma. Com homens, sempre senti essa pressão para ter sexo, enquanto com minha namorada nunca tive essa pressão

(Fahs, Swank e Shambe, 2020:233).

As pesquisadoras concluem que as relações de poder de dominação masculina persistem dentro de relacionamentos heterossexuais, apesar dos avanços que o movimento feminista alcançou para as mulheres na esfera pública. No âmbito privado/doméstico, eles afirmam que

as mulheres se sentem “presas” em estereótipos sexuais e dinâmicas de poder que não necessariamente as beneficiam, mesmo quando expressam consciência sobre o dano dessas normas. Em outras palavras, as mulheres continuam suportando o sexo pelo qual não sentem entusiasmo ou “aguentando” o sexo que parece chato ou pouco recíproco, mesmo quando estão obtendo progressos em outros aspectos de suas vidas

(Ibid: 236).

A forma como o que é chamado de “diferença de desejo” afeta as mulheres é explorada em uma pesquisa na qual dez mulheres em relacionamentos de longo prazo foram entrevistadas sobre sua prática sexual (Hayfield e Clarke, 2012). As autoras apontam que o problema com a forma como a falta de interesse das mulheres pelo sexo é apresentada é que ela vê a “falta de desejo” das mulheres como problemática em vez de apontar o “desejo excessivo” dos homens como um problema (Ibid: 68). Algumas das mulheres entrevistadas tinham desejo sexual por seus parceiros, mas a maioria não tinha. Uma comentou “Nunca me vi com um impulso sexual, muito raramente”, e outra afirmou “Não acho que eu tenha um impulso sexual muito alto”. Ambas essas mulheres e muitas das outras, explicam as pesquisadoras, tinham “pouco interesse em sexo”, mas todas sentiam que o interesse sexual era desejável e lamentavam a sua falta. As pesquisadoras apontam que há um imperativo coital que posiciona o sexo de pênis na vagina como essencial para os homens e algo em torno do qual as mulheres devem ajustar suas vidas. Isso é acompanhado por um “imperativo de orgasmo”. Como Gavey, McPhillips e Braun acima, elas apontam que a exigência de fazer sexo com pênis na vagina sobrepõe todo conhecimento de quão problemático pode ser para a saúde das mulheres, embora

a relação sexual com penetração vaginal apresenta riscos diretos (por exemplo, ISTs, HIV/AIDS, gravidez indesejada) e riscos indiretos (por exemplo, câncer cervical causado por ISTs específicas, efeitos colaterais de contraceptivos, consequências sociais e psicológicos de gravidez indesejada)

(Ibid: 71).

Elas expressam sua perplexidade de que

existe uma expectativa de que as mulheres (e homens) participem regularmente em um ato, mesmo quando ele tem o potencial de prejudicar sua saúde e bem-estar, e quando pode não ser prazeroso para ambas as partes envolvidas.

As entrevistadas explicaram que fizeram uma ‘escolha’ “de estar passivamente presentes no sexo para satisfazer as ‘necessidades’ de seus parceiros” (Ibid).

Terapia sexual

As duas principais forças envolvidas na construção do sexo cotidiano são a pornografia e a terapia sexual. Essas duas indústrias estão interligadas e abraçam os mesmos valores na aplicação do direito sexual masculino e da obediência feminina. Como resultado da “diferença do desejo”, é provável que muitas mulheres prefiram ler um bom livro ou terminar um quebra-cabeça em vez de buscar conexão sexual. Para obter seus direitos sexuais, então, os homens devem se impor às mulheres. É trabalho das mulheres negociar a iniciativa sexual dos homens, seja ao caminhar na rua ou no local de trabalho, onde pode ser chamado de “assédio sexual”, ou em relacionamentos. Quando essa iniciativa acontece em casa, nunca é chamada de assédio, embora haja muitas evidências de pesquisas feministas e literatura de aconselhamento sexual que as mulheres o experimentam dessa forma. As mulheres em relacionamentos heterossexuais provavelmente serão o objeto da iniciativa sexual dos homens e têm a escolha de cumprir ou pensar em uma razão para recusar. As dinâmicas de poder do sexo heterossexual são tais que simplesmente dizer que não estão com vontade não é suficiente. Uma tarefa central dos terapeutas sexuais é garantir que as mulheres reajam adequadamente às demandas sexuais dos homens em vez de buscar um hobby mais interessante.

Um exemplo do site de aconselhamento psicológico online, Psychcentral, ilustra isso bem. Em 2017, uma mulher escreveu ao site explicando que estava em um relacionamento de longo prazo com um homem, tinha quatro filhos e sua vida sexual tinha sido boa, mas

[Naquela noite] eu estava cansada e queria assistir um pouco de TV e ir dormir, meu namorado queria fazer sexo, e quando eu disse que não estava com vontade… ele ficou violento e tentou me dar um tapa na cara. E fez algum comentário do tipo ‘você vai pagar por isso’, brincando ou não

(Randle, 2019).

Ela diz que “fazem sexo com bastante frequência”, mas quando ela não “está a fim” uma vez ou outra, ele “fica bravo ou violento”. O conselho que ela recebe é simpático à situação do marido: “Ele fica bravo porque se sente rejeitado. O sexo aparentemente é muito importante para ele”. A terapeuta não demonstra preocupação com a violência e não dá conselhos sobre como a mulher pode manter a si mesma e seus filhos em segurança. Em vez disso, ela aconselha a mulher a satisfazer as demandas sexuais do homem, desde que sejam “razoáveis”: “Você tem que aprender a garantir o atendimento de uma quantidade razoável da necessidade dele, mas ele não pode esperar que você atenda 100% do desejo sexual dele”. A tarefa da terapia sexual aqui é claramente defender o direito sexual masculino. A terapia sexual é divulgada em revistas e livros para mulheres, bem como em tratamento individual. A terapeuta sexual mais conhecida na Austrália é Bettina Arndt.

A ‘diferença de desejo’ e mulheres idosas

Esse disciplinamento cruel das mulheres a serviço do direito sexual masculino fica claro no trabalho de Arndt, Os diários sexuais (Arndt, 2009). Arndt não é uma terapeuta sexual qualificada, mas isso não a impediu de exercer sua profissão de maneira proeminente na mídia australiana. Seu livro surgiu de sua preocupação de que muitas mulheres ficavam entediadas com o sexo em relacionamentos de longo prazo e rejeitavam as demandas de seus parceiros. Ela recrutou 98 casais na Austrália com mais de 60 anos para escrever diários nos quais descreviam se e quando o sexo acontecia e como eles, os homens e mulheres, se sentiam sobre isso. Ela embarcou em seu projeto porque estava preocupada que homens idosos sofriam com suas parceiras femininas limitando o que ela chama de “suprimento de sexo”, ou seja, não dando aos homens acesso às suas vaginas. Ela explica suas motivações da seguinte forma:

O que mais escuto é a respeito de negociar o suprimento de sexo. Como os casais lidam com a pressão do homem que deseja e espera enquanto tudo o que ela quer é a felicidade do sono ininterrupto? É um drama noturno que acontece em quartos de todos os lugares, a fonte de grande tensão e infelicidade

(Arndt, 2009: 2).

No entendimento dela, as mulheres são a oferta e podem abrir ou fechar o acesso em detrimento daqueles que razoavelmente esperam receber a oferta, os homens. Ela estava alarmada com a resistência das mulheres. No caso de um “casal em que o marido quer sexo duas vezes por dia”, ela explica que “eles estão fazendo algumas vezes por semana” e a mulher diz: “ainda prefiro ler um livro” (Ibid: 3). O direito das mulheres à autodeterminação não foi reconhecido pelo parceiro ou por Arndt.

Arndt descobriu que para as esposas, fornecer “suprimento” aos seus maridos quando não desejavam fazê-lo era uma experiência extremamente angustiante. Uma mulher escreveu:

Acho que ter relações sexuais quando você realmente não quer é a coisa mais horrível. Antes eu ainda respondia e até tinha orgasmos mesmo sem querer, mas agora não tenho mais nenhuma resposta, então é horrível. Por dentro, estou gritando para acabar rapidamente

(Ibid: 4).

Arndt aconselha as mulheres que elas devem “simplesmente fazer” quer queiram ou não. Outra mulher forneceu uma descrição gráfica de sua repulsa a esse conselho:

Odeio essa ideia! Por que diabos as mulheres deveriam simplesmente fazer isso quando não têm desejo? São elas que têm que lidar com o frio escorrendo entre as pernas, as infecções urinárias, as infecções fúngicas, a dor causada pela mucosa seca, o tédio de todo o processo… simplesmente fazer isso é um tipo de uma provação quando você tem mais de 40 anos e as secreções secaram.

Ela acrescentou: “Não há nada de errado comigo, então por que devo ser tratada como se eu fosse a anormal?… Por que os homens não podem ser tratados por sua libido mais alta?” (Ibid: 291).

Arndt expressa grande simpatia pelos homens cujas parceiras não desejam ser usadas para o sexo. Ela explica que: “Com meus diários sexuais, foram as histórias dos homens que realmente me chocaram” (Ibid: 5). Os homens realmente sofriam, ela disse, e “Eles ficam atordoados ao descobrir que suas necessidades são completamente ignoradas. Muitas vezes isso sai em um grito de raiva e decepção” (Ibid: 6). Eles esperam acesso contínuo e não acham que as mulheres devem ser capazes de mudar de ideia à medida que envelhecem. Como um homem coloca, “O que faz as mulheres pensarem que, na metade do jogo, podem mudar as regras para atender às suas próprias necessidades e esperar que o macho aceite?” (Ibid: 6). Arndt comenta: “É apenas quando você ouve os homens falando honestamente sobre o que é estar no lado receptor que você percebe o impacto do desprezo com o qual estamos tratando eles” (Ibid: 8). Se Arndt tivesse alguma simpatia pelas mulheres, ela poderia ver que o desprezo não vinha das esposas, mas sim dos maridos que estavam determinados a usar os corpos de suas esposas como ajudas de masturbação.

A razão para se chegar a essa situação lamentável, quando algumas mulheres achavam razoável poder recusar o acesso sexual dos homens aos seus corpos, segundo ela, foi o feminismo. Arndt afirma que:

O direito das mulheres de dizer ‘não’ foi consagrado em nossa história cultural há quase cinquenta anos. Mas simplesmente não funcionou para a vida sexual de um casal depender da frágil e fraca libido feminina. O direito de dizer ‘não’ precisa dar lugar a dizer ‘sim’ com mais frequência – desde que tanto homens quanto mulheres acabem desfrutando da experiência. A noção de que pode estar no melhor interesse das mulheres parar de racionar o sexo certamente vai causar controvérsia, mas este é um problema que merece atenção séria

(Ibid: 12).

Era simplesmente absurdo, segundo ela, que os parceiros fizessem outras coisas um pelo outro, como cozinhar pratos favoritos ou assistir a programas de TV que não gostavam, quando as mulheres não permitiam o acesso sexual de seus maridos: “Por que, então, somos tão mesquinhos quando se trata de ‘fazer amor’, que deveria ser a expressão máxima desse cuidado mútuo?” (Ibid: 14). Recusar o sexo era algo egoísta, ela considerava. Arndt lamenta o fato de que tantas das mulheres de seus diários não estavam dispostas a fazer o trabalho sexual de seduzir seus maridos com performances usando lingerie sexy, mesmo enquanto cozinhavam, e a razão, novamente, é que o feminismo as desencorajou: “De alguma forma, a sedução veio a ser vista como um ato anti-feminista, uma traição da igualdade bem diferente de outros gestos de cuidado” (Ibid: 17). A sedução se assemelha às técnicas de prostituição, projetadas para excitar os homens por meio das mulheres interpretando papéis.

O livro de Arndt é uma visão muito útil do que acontece nos casamentos de casais mais velhos. A questão que ela ilustra tão bem a partir das palavras das mulheres em seus diários é a maneira como as esposas se sentem quando os homens exercem sua iniciativa sexual indesejada, comportamento que poderia ser chamado de assédio sexual no relacionamento. O assédio sexual é um termo geralmente limitado ao comportamento dos homens em relação às mulheres em lugares públicos, como o local de trabalho ou a rua, e não se aplica ao que os parceiros masculinos fazem com as mulheres em suas casas. No entanto, a experiência para as mulheres que são assediadas, embora compreenda diferentes elementos relacionados ao fato de o perpetrador ser um parceiro, parece ser semelhante a outras formas da prática em seu desconforto e na angústia que causa. Em um caso, a esposa descreve sua angústia: “Esta manhã eu estava no chuveiro quando ele saiu para o trabalho; ele veio me beijar, o que foi adorável. Mas ele teve que me esfregar na vagina, o que me deixa louca!” O assédio sexual era frequente na cama e seu marido estava jubilante com isso, dizendo: “Às vezes, à noite, nos últimos anos, até comecei a deslizar minha mão em sua calcinha enquanto ela está dormindo e apenas toco seus pelos pubianos” (Ibid: 33). Outra mulher também descreve como perturbador o assédio sexual de seu marido: “Quando ele começa a mexer nas minhas partes íntimas, sinto vontade de chicoteá-lo com uma raquete de mosquitos!” (Ibid: 169).

O papel de Arndt em impor o direito ao sexo masculino em nome dos homens mais velhos foi recompensado pelo governo. Em janeiro de 2020, ela recebeu uma homenagem do Dia da Austrália, ostensivamente por “serviços à ‘equidade de gênero’ por meio da defesa dos homens” (Zhou, 2020).

A medicalização da “disfunção sexual”

A falta de interesse das mulheres em serem penetradas por um parceiro do sexo masculino e sua incapacidade de sentir prazer na atividade foram medicalizadas com a entrada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) do que era chamado de ‘disfunções sexuais’ (Mitchell et al., 2016). Os problemas descritos pelas mulheres neste capítulo são chamados de ‘transtornos’. Um deles é o ‘Transtorno Orgásmico Feminino’, o que significa que a mulher está doente porque não tem orgasmo durante o sexo com penetração vaginal, e outro é o ‘Transtorno de Interesse/Excitação Sexual Feminino’, que transforma a preferência de uma mulher por assistir televisão em um problema médico (Couples and Sexual Health Laboratory, 2016). A medicalização da falta de resposta ‘correta’ das mulheres às iniciativas sexuais dos homens fazia parte de uma medicalização geral da ‘disfunção sexual’ nos anos 90, que visava obter lucros para médicos e empresas farmacêuticas.

Inicialmente, o mercado-alvo consistia em homens que não tinham o tipo de ereção que lhes permitia se sentir adequadamente masculinos; mas a solução oferecida, o medicamento Viagra, criou ainda mais problemas para as mulheres. Leonore Tiefer, a sexóloga feminista dos EUA, explica que,

em 1998, em mais uma grande reviravolta, uma nova era da farmacologia sexual foi inaugurada com a aprovação governamental do Viagra, um medicamento para tratar a impotência que rapidamente alcançou níveis incríveis de reconhecimento global.

Tiefer diz que o desenvolvimento do Viagra foi resultado do falocentrismo, a noção de que ereções rígidas que permitissem a penetração de parceiras femininas simbolizavam a masculinidade (Tiefer, 2006a). O Viagra para homens foi lucrativo e exacerbou a ‘diferença de desejo’, à medida que os homens buscavam agir com sua nova potência nos corpos de suas parceiras femininas. As mulheres não desejantes foram transformadas em ‘pacientes’ que precisavam de tratamento (Tiefer, 2001). A solução foi seguir a criação do Viagra para homens com uma tentativa de criar um ‘Viagra’ feminino (Tiefer e Hartley, 2003).

Tiefer iniciou uma campanha composta por cientistas sociais feministas para combater a medicalização da sexualidade feminina em 2000 (Tiefer, 2006b). A campanha, intitulada A Nova Visão, era contra “A rápida incursão da influência da indústria farmacêutica na pesquisa sobre sexo e na educação profissional.” Seu objetivo, ela diz, era

expor as decepções e consequências do envolvimento da indústria na pesquisa sobre sexo, na educação sexual profissional e nos tratamentos sexuais, e gerar alternativas conceituais e práticas ao modelo médico prevalente da sexualidade

(Ibid).

A campanha continuou, com conferências e tentativas de proibir o uso de drogas que foram usadas para curar a ‘disfunção sexual’ das mulheres, geralmente formas de testosterona, proibidas para este uso até 2017, quando o site da campanha foi arquivado. As acadêmicas envolvidas na campanha A Nova Visão argumentaram firmemente que as supostas ‘disfunções sexuais’ das mulheres eram social e politicamente construídas. Elas disseram que o diagnóstico do DSM não reconhecia

aspectos relacionais da sexualidade feminina, que muitas vezes estão na raiz das satisfações e problemas sexuais, por exemplo, desejos por intimidade, desejos de agradar um parceiro ou, em alguns casos, desejos de evitar ofender, perder ou irritar um parceiro

(Working Group on a New View of Women’s Sexual Problems, 2017).

A campanha, no entanto, não deixa claro que o termo ‘relacional’ se refere a problemas que surgem das relações de poder. Ao se concentrar em como os problemas sexuais das mulheres podem ser resolvidos sem recorrer a drogas, eles prestam um grande serviço às mulheres, mas não questionam a suposição de que a falta de interesse das mulheres em satisfazer o direito sexual masculino constitui um problema. Eles não vão tão longe a ponto de sugerir que as demandas dos homens, em vez da resistência das mulheres, requerem tratamento.

Acadêmicas feministas questionaram a forma como a falta de orgasmo das mulheres durante a penetração é tratada na terapia sexual. Hannah Frith, por exemplo, argumenta que os orgasmos femininos não são “naturais”. Ela escreve sobre a construção social do orgasmo, isto é, a maneira como a realização do orgasmo, e especificamente o orgasmo vaginal, foi elevada a uma posição de importância primordial na literatura sobre a sexualidade feminina e na terapia sexual. Isso, segundo ela, simplesmente reproduz o modelo masculino de sexo e confirma que o sexo é e deve ser a penetração vaginal. Ela explica que as mulheres frequentemente têm que “trabalhar” para atingir o orgasmo, realizando os exercícios recomendados pelos terapeutas sexuais e se esforçando muito.

Efeitos do uso do Viagra masculino nas mulheres

A medicalização da sexualidade masculina através do desenvolvimento do Viagra criou um problema para as mulheres (Potts, Gavey, Grave e Vares, 2003). Este medicamento foi visto como totalmente positivo para os homens, pois curou a impotência e permitiu que homens, mesmo os mais velhos, se envolvessem em relações sexuais de penetração vaginal. A pesquisa sobre o Viagra e seus efeitos preocupou-se apenas com as vantagens que oferecia aos homens, como a oportunidade de se sentir mais “masculino” e dominante, e ignorou quaisquer efeitos negativos que possa ter em suas parceiras femininas. A pouca pesquisa feita por estudiosas feministas sobre as implicações do desejo renovado dos homens por acesso sexual às vaginas de suas esposas sugere que o medicamento constituiu, em muitos casos, um sério retrocesso. A pesquisa utilizando entrevistas com 27 mulheres cujos parceiros masculinos usavam Viagra revelou as muitas desvantagens que elas sofreram (Ibid). Para algumas mulheres mais velhas, o fato de seus maridos não poderem mais se envolver em relações sexuais de penetração vaginal foi um alívio, o que significava que elas não seriam mais importunadas e poderiam se dedicar a hobbies mais prazerosos. Para muitas, também, estar na pós-menopausa significava que as relações sexuais de penetração vaginal eram dolorosas ou desconfortáveis e elas não reagiam favoravelmente às demandas renovadas de seus maridos por acesso sexual.

As mulheres entrevistadas para este estudo falaram de seus maridos as incomodando para terem relações sexuais de penetração vaginal quando já estavam acostumadas a não ter que fazê-lo e preferiam, se ainda estivessem sendo sexuais com seus parceiros, relações sexuais não-vaginais que foram projetadas para lhes dar satisfação em vez de uma prática dedicada ao orgasmo masculino. As mulheres falaram do sofrimento que seus parceiros causaram a elas exigindo a penetração, porque eles tinham pago muito pelo medicamento e precisavam aproveitar a ereção antes que os efeitos desaparecessem. As mulheres mais velhas que estavam muito felizes por não terem mais que ser penetradas, falaram da dor que a retomada dessa prática lhes causou. Uma mulher de 60 anos disse: “Às vezes pode durar muito tempo e eu estou pensando “oh, está demorando demais, e está ficando… dolorido” (Ibid: 704).

As autoras comentam que existem estudos que sugerem uma conexão entre o uso de Viagra pelos homens e a ocorrência de infecções urinárias em suas esposas, o que é chamado de “cistite da lua de mel”. Uma mulher de 65 anos disse:

[E]le teria relações sexuais naquela noite e novamente na manhã seguinte e … ele pode ter mais relações sexuais do que eu, porque fico dolorida… Eu só tive candidíase uma vez e outra vez tive uma infecção urinária… Eu estava urinando sangue, então presumo que ter relações sexuais tenha algo a ver com isso

(Ibid: 704).

As pesquisadoras explicam que “as mulheres pós-menopáusicas podem experimentar mais secura vaginal, o que exacerba o início desse tipo de cistite” e que existem outros problemas de saúde causados ​​pelo sexo prolongado, como “dor pélvica inferior e irritação e rasgamento da parede vaginal” (Ibid: 704).

Algumas das entrevistadas disseram que usavam lubrificantes, conforme aconselhadas, para aliviar o desconforto, mas isso não resolveu o problema. Uma entrevistada de 51 anos disse que a relação sexual era dolorosa por causa de uma doença, e que estava tentando cumprir o conselho dado na literatura médica que estava lendo, que dizia que as mulheres mais velhas deveriam permitir o acesso sexual para que seus maridos não “percam ‘a prática'” (Ibid: 704). As mulheres falaram que não queriam fazer sexo ou estavam cansadas, mas tinham que “acompanhar” para não ferir os sentimentos dos homens. Uma mulher de 65 anos descreveu como seu marido não falava com ela por 24 horas se ela não quisesse ser usada sexualmente, pois isso o fazia “desperdiçar” um medicamento caro.

Sexo anal

O desenvolvimento da indústria da pornografia mudou a natureza do sexo a que os homens sentem ter direito nos relacionamentos, de modo que as práticas que manifestamente nada têm a ver com o prazer das mulheres, e são dolorosas e prejudiciais à saúde, podem ser letais e outrora teriam sido incomuns na prática heterossexual, foram normalizadas. Essas práticas incluem sexo anal, estrangulamento (chamado por seus normalizadores de ‘brincadeira’) e outras formas de práticas sadomasoquistas, eufemisticamente chamadas de ‘sexo violento’. O sexo anal, que antes era raro nas relações heterossexuais na Anglosfera, tornou-se agora uma parte aceitável do uso masculino do corpo feminino, de acordo com a literatura sexológica e de aconselhamento sexual. Foi normalizado por ter a dor que causa descrita como uma disfunção sexual com um nome especial próprio, anodispareunia, o que implica que a pessoa que sente a dor é o problema e não a prática em si (Hollows, 2007).

A literatura sugere que a prática foi disseminada a partir da pornografia (Stulhofer e Adjukovic, 2011) e é comum na subcultura BDSM entre homens gays. Existe uma considerável literatura médica sobre a dor que o sexo anal causa em homens gays, mas para alguns homens gays há uma compensação, porque a prática oferece satisfações particularmente sadomasoquistas (Grabski e Kasparek, 2020). Os ‘ativos’ podem se ver como dominantes e em um papel masculino, enquanto os ‘passivos’, apesar da dor que possam sentir, podem experimentar os prazeres masoquistas de se sentir ‘como uma mulher’, ou seja, subordinados (Jeffreys, 1990). Nenhuma dessas satisfações está disponível para as mulheres, que geralmente falam apenas sobre a dor e o desconforto do sexo anal e o trabalho que têm que realizar para permitir que os homens as usem dessa maneira.

Um artigo de revista sexológica sobre ‘anodispareunia’ deixa claro que o sexo anal é doloroso e desagradável para as mulheres (Stulhofer e Adjukovic, 2011). Os autores definem ‘anodispareunia’ como “dor debilitante persistente durante a relação sexual anal” (Ibid: 349). Eles observam que “o sexo anal está se tornando cada vez mais comum entre mulheres e homens heterossexuais”, mas descobriram que para a maioria das mulheres o sexo anal era doloroso e elas não queriam fazê-lo. O aumento da prática foi marcante. Eles observam que uma pesquisa realizada nos EUA em 2002-3 constatou que 35% das mulheres tinham experiência de sexo anal, enquanto na década anterior a figura era apenas de 23%.

Eles também realizaram uma pesquisa com 2.002 mulheres jovens na Croácia sobre a experiência delas com sexo anal em 2010, na qual descobriu-se que 62,3% delas haviam sido penetradas analmente. Mostrou-se que, embora quase metade, 48,8%, tenha sido forçada a encerrar sua primeira experiência de “intercurso anorretal” devido à dor ou desconforto, a maioria das mulheres, 62,3%, continuou a se submeter às exigências dos homens. Os pesquisadores consideraram que a representação comum do sexo anal na pornografia online explicava o aumento da prática. Eles descobriram que, das 788 mulheres que afirmaram ter continuado a praticar sexo anal, apenas 61, ou 7,7%, relataram que nunca sentiram dor ou desconforto durante o intercurso anal receptivo, e entre as mulheres com dois ou mais episódios de intercurso anorretal no ano anterior, apenas 18 ou 3,6%, estavam livres de qualquer dor ou desconforto (Ibid: 352).

Embora o sexo anal tenha consideráveis desvantagens para as mulheres, ele se tornou tão normalizado nas últimas décadas que passou a ser visto como uma prática sexual cotidiana. Conselhos sobre como fazê-lo são onipresentes em uma variedade de fontes de mídia, especialmente em sites de saúde. Alguns desses recursos detalham os danos. O Medical News, por exemplo, explica que a penetração anal é um problema para a pessoa penetrada, seja ela masculina ou feminina, porque “o ânus não possui as células que criam o lubrificante natural que a vagina possui. Também não tem a saliva da boca” e diz que “a mucosa retal também é mais fina do que a da vagina” (Nall, 2019). Ele lista os riscos que envolvem a saúde, como infecção bacteriana por lacerações na mucosa retal, incontinência, risco de ISTs e, potencialmente, o dano muito grave de fístula.

Algumas fontes de mídia, no entanto, minimizam firmemente seus danos. Um exemplo é a cobertura do sexo anal na Teen Vogue, uma revista para adolescentes do sexo feminino. Um artigo publicado pela primeira vez em 2017 chamava-se ‘Um guia para o sexo anal’ (Engle, 2017/2019). Isso provocou considerável controvérsia na mídia, com os pais dizendo que ele não era adequado para crianças. A justificativa para o artigo foi que as meninas estariam fazendo sexo anal de qualquer maneira, então precisavam saber como fazê-lo. O artigo começa dizendo:

O sexo anal, embora muitas vezes estigmatizado, é uma maneira perfeitamente natural de se engajar na atividade sexual… Então, se você está um pouco preocupado em experimentar ou está tendo problemas para entender o apelo, saiba que não é estranho ou nojento

(Ibid).

O artigo não mostra nenhuma consciência de que a atividade heterossexual ocorre dentro de uma estrutura de poder que torna difícil para as mulheres, ainda mais para as meninas, impedir os homens de fazer o que querem, por medo de violência, de perder o namorado ou simplesmente de não agradá-lo como deveriam. A Teen Vogue promove a prática dizendo: “O ânus está cheio de terminações nervosas que, para algumas pessoas, dão sensações incríveis quando estimuladas”. Ela reconhece que o sexo anal provavelmente será difícil e desconfortável, se não doloroso, para a adolescente, então uma série de instruções é dada sobre como o músculo anal ficará rígido e objetos de vários tamanhos devem ser inseridos para soltá-lo, e então a penetração deve ocorrer muito lentamente com o auxílio de lubrificação. Por meio desse tipo de trabalho, espera-se que as meninas transformem seus ânus em tubos de masturbação para seus usuários masculinos.

As adolescentes em cujos corpos essas práticas serão provavelmente executadas quando os rapazes experimentarem seu repertório sexual estão em uma posição muito pior para exercer um “não” do que as mulheres mais velhas cujas dificuldades com o consentimento foram delineadas anteriormente neste capítulo. Há evidências de que as adolescentes são particularmente vulneráveis à violência sexual de parceiros masculinos. Uma pesquisa de 2015 com meninas de 13 a 17 anos em cinco países europeus descobriu que mais de quatro em cada dez foram coagidas a atos sexuais. Nas entrevistas, muitas crianças disseram que a pressão para fazer sexo era tão persistente que se tornou ‘normal’. Katie, uma jovem de 15 anos que participou da pesquisa na Inglaterra, disse aos pesquisadores: “Tive relacionamentos em que não podia sair com meus amigos porque eles ficavam com raiva de mim. Eu fui estuprada e outras coisas assim” (Topping, 2015).

Um artigo do British Medical Journal de 2014 descreve as experiências de sexo anal de adolescentes no Reino Unido com idades entre 16 e 18 anos (Marston e Lewis, 2014). As motivações e consequências para meninos e meninas eram extremamente diferentes. Foi descrito como sendo prazeroso para os meninos e um indicador de realização sexual, enquanto para as mulheres era uma fonte de dor ou reputação prejudicada. Um rígido duplo padrão estava em operação. Onde antes os homens competiam entre si para penetrar uma garota vaginalmente e assim obter uma vitória sobre ela da qual pudessem se gabar, o sexo vaginal agora era muito comum e não era mais um desafio. Os jovens passaram para o sexo anal. Os meninos do estudo descreveram o sexo anal como “algo que fazemos para uma competição” e “cada buraco é um gol”. Em contraste, tanto homens quanto mulheres disseram que as mulheres arriscavam sua reputação pelo mesmo ato (Ibid: 3). Os meninos descreveram como forçaram uma menina relutante a passar por uma penetração que ela desconfiava que seria dolorosa:

Shane nos disse que se uma mulher dissesse ‘não’ quando ele começasse a ‘colocar o dedo’, ele poderia continuar tentando: ‘Eu posso ser muito persuasivo […]. Como às vezes você continua, apenas continua até que elas se cansem e deixem você fazer de qualquer maneira’. Um ‘não’ verbal da mulher não impediu necessariamente as tentativas de penetração anal

(Ibid: 3).

O fato de a penetração em uma mulher poder causar danos consideráveis ao seu esfíncter anal não é necessariamente um impedimento, pois existe um grande nicho de pornografia dedicado especificamente a mostrar os danos (Shrayber, 2014).

Neste capítulo, eu examinei o sexo ‘consensual’ que ocorre em relacionamentos heterossexuais. Eu descrevi as muitas forças que permitem aos homens exercer seu direito sexual, mesmo quando as mulheres não querem participar, a dor, humilhação e simples irritação que muitas sentem quando não têm uma maneira realista de dizer não, e as repercussões abusivas que podem experimentar caso se recusem.

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