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A tirania da falta de estrutura

por Jo Freeman, também conhecida como Joreen1


A versão inicial deste artigo foi apresentada como uma palestra em uma conferência organizada pela Southern Female Rights Union, realizada em Beulah, Mississippi, em maio de 1970. Foi documentada em “Notes from the Third Year” (1971), mas as editoras não a utilizaram. Foi então submetida a várias publicações do movimento, mas apenas uma pediu permissão para publicá-la; outras o fizeram sem permissão. O primeiro local oficial de publicação foi no Volume 2, Número 1 de “The Second Wave” (1972). Essa versão inicial em publicações do movimento foi escrita por Joreen. Diferentes versões foram publicadas no “Berkeley Journal of Sociology”, Volume 17, 1972-73, páginas 151-165, e na revista “Ms.”, julho de 1973, páginas 76-78, 86-89, com autoria de Jo Freeman. Este artigo se espalhou por todo o mundo. Numerosas pessoas editaram, republicaram, cortaram e traduziram “Tyranny” para revistas, livros e sites na web, geralmente sem a permissão ou o conhecimento da autora. A versão abaixo é uma combinação das três citadas aqui.

Durante os anos em que o movimento de libertação das mulheres estava tomando forma, houve uma grande ênfase no que são chamados de grupos sem líderes e sem estrutura como a forma organizacional principal – se não a única – do movimento. A fonte dessa ideia foi uma reação natural contra a sociedade excessivamente estruturada na qual a maioria de nós se encontrava e o controle inevitável que isso dava aos outros sobre nossas vidas, bem como o elitismo contínuo da esquerda e de grupos semelhantes entre aqueles que supostamente estavam lutando contra essa excessiva estruturação.

A ideia de “falta de estrutura”, no entanto, evoluiu de uma reação saudável contra essas tendências para se tornar uma divindade por direito próprio. A ideia é tão pouco examinada quanto o termo é amplamente utilizado, mas ela se tornou uma parte intrínseca e inquestionável da ideologia da libertação das mulheres. Para o desenvolvimento inicial do movimento, isso não importou muito. Ele definiu desde cedo seu principal objetivo e seu principal método como a elevação da consciência, e o grupo de discussão “sem estrutura” era um excelente meio para esse fim. A informalidade do grupo encorajava a participação na discussão, e sua atmosfera frequentemente solidária gerava insights pessoais. Se nada mais concreto do que insights pessoais resultasse desses grupos, isso não importava muito, porque seu propósito não se estendia muito além disso.

Os problemas básicos não surgiram até que os grupos de discussão individuais esgotaram as virtudes da elevação da consciência e decidiram que queriam fazer algo mais específico. Neste ponto, eles geralmente fracassaram porque a maioria dos grupos estava relutante em mudar sua estrutura quando mudavam suas tarefas. As mulheres haviam aceitado completamente a ideia de “falta de estrutura” sem perceber as limitações de seu uso. As pessoas tentaram usar o grupo “sem estrutura” e a conferência informal para fins para os quais eles não eram adequados, devido à crença cega de que nenhum outro meio poderia ser qualquer coisa além de opressivo.

Se o movimento pretende crescer além dessas fases iniciais de desenvolvimento, terá que se livrar de alguns de seus preconceitos sobre organização e estrutura. Não há nada inerentemente ruim em nenhum dos dois. Eles podem ser e muitas vezes são mal utilizados, mas rejeitá-los de forma indiscriminada porque são mal utilizados é negar a nós mesmas as ferramentas necessárias para o desenvolvimento contínuo. Precisamos entender por que a “falta de estrutura” não funciona.

ESTRUTURAS FORMAIS E INFORMAIS

Contrariamente ao que gostaríamos de acreditar, não existe tal coisa como um grupo sem estrutura. Qualquer grupo de pessoas, de qualquer natureza, que se reúna por qualquer período de tempo e para qualquer propósito inevitavelmente se estruturará de alguma forma. A estrutura pode ser flexível; ela pode variar ao longo do tempo; pode distribuir tarefas, poder e recursos de forma equilibrada ou desigual entre os membros do grupo. Mas ela será formada, independentemente das habilidades, personalidades ou intenções das pessoas envolvidas. O simples fato de sermos indivíduos, com diferentes talentos, predisposições e origens, torna isso inevitável. Apenas se recusássemos a nos relacionar ou interagir sob qualquer base poderíamos aproximar-nos da falta de estrutura – e isso não é a natureza de um grupo humano.

Isso significa que buscar um grupo sem estrutura é tão útil e enganoso quanto buscar uma reportagem de notícias “objetiva”, uma ciência social “livre de valores” ou uma economia “livre”. Um grupo “sem interferência” é tão realista quanto uma sociedade “sem interferência”; a ideia se torna uma cortina de fumaça para que os fortes ou os afortunados estabeleçam uma hegemonia incontestável sobre os outros. Essa hegemonia pode ser estabelecida com facilidade porque a ideia de “falta de estrutura” não impede a formação de estruturas informais, apenas as formais. Da mesma forma, a filosofia “sem interferência” não impediu que os economicamente poderosos estabelecessem o controle sobre salários, preços e distribuição de bens; apenas impediu que o governo o fizesse. Portanto, a falta de estrutura se torna uma maneira de mascarar o poder e, dentro do movimento das mulheres, geralmente é mais fortemente defendida por aquelas que são as mais poderosas (sejam conscientes de seu poder ou não). Enquanto a estrutura do grupo é informal, as regras de como as decisões são tomadas são conhecidas apenas por algumas, e a consciência do poder é limitada àquelas que conhecem as regras. Aquelas que não conhecem as regras e não são escolhidas para a iniciação devem permanecer na confusão ou sofrer de delírios paranoicos de que algo está acontecendo do qual elas não têm plena consciência.

Para que todas tenham a oportunidade de se envolver em um determinado grupo e participar de suas atividades, a estrutura deve ser explícita, não implícita. As regras de tomada de decisão devem ser abertas e disponíveis para todas, e isso só pode acontecer se forem formalizadas. Isso não significa que a formalização de uma estrutura de grupo destruirá a estrutura informal. Geralmente não o faz. Mas ela dificulta que a estrutura informal tenha controle predominante e disponibiliza meios para combatê-la caso as pessoas envolvidas não sejam pelo menos responsáveis pelas necessidades do grupo como um todo.

“Falta de estrutura” é organizacionalmente impossível. Não podemos decidir se ter um grupo estruturado ou sem estrutura, apenas se ter um grupo formalmente estruturado. Portanto, a palavra não será mais usada, exceto para se referir à ideia que ela representa. “Não estruturado” se referirá a grupos que não foram deliberadamente estruturados de uma maneira específica. “Estruturado” se referirá a grupos que foram. Um grupo estruturado sempre possui uma estrutura formal e pode também ter uma estrutura informal ou oculta. É essa estrutura informal, especialmente em grupos não estruturados, que forma a base para as elites.

A NATUREZA DO ELITISMO

“Elitista” é provavelmente a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência e pelos mesmos motivos que “comunista” era usado nos anos cinquenta. Raramente é usada corretamente. Dentro do movimento, ela geralmente se refere a indivíduos, embora as características pessoais e atividades daqueles a quem ela é dirigida possam ser muito diferentes: um indivíduo, como tal, nunca pode ser um elitista, porque a única aplicação apropriada do termo “elite” se refere a grupos. Qualquer indivíduo, independentemente de quão conhecido possa ser, nunca pode ser parte de uma elite.

Corretamente, uma elite se refere a um pequeno grupo de pessoas que têm poder sobre um grupo maior do qual fazem parte, geralmente sem responsabilidade direta perante esse grupo maior e muitas vezes sem seu conhecimento ou consentimento. Uma pessoa se torna elitista ao fazer parte de, ou defender a governança por, tal pequeno grupo, quer seja conhecida ou completamente desconhecida. A notoriedade não é uma definição de elitismo. As elites mais traiçoeiras geralmente são comandadas por pessoas que não são conhecidas do público em geral. Elitistas inteligentes geralmente são espertos o suficiente para não permitir que se tornem conhecidos; quando se tornam conhecidos, são observados, e a máscara sobre seu poder não está mais firmemente fixada.

As elites não são conspirações. Muito raramente um pequeno grupo de pessoas se reúne deliberadamente para tentar assumir o controle de um grupo maior para seus próprios fins. As elites não são nada mais, e nada menos, do que grupos de amigos que também acontecem a participar das mesmas atividades políticas. Provavelmente manteriam sua amizade, quer estivessem envolvidos em atividades políticas ou não; provavelmente estariam envolvidos em atividades políticas, quer mantivessem suas amizades ou não. É a coincidência desses dois fenômenos que cria elites em qualquer grupo e as torna tão difíceis de quebrar.

Esses grupos de amizade funcionam como redes de comunicação fora de quaisquer canais regulares de comunicação que possam ter sido estabelecidos por um grupo. Se não houver canais estabelecidos, eles funcionam como as únicas redes de comunicação. Como as pessoas são amigas, geralmente compartilham os mesmos valores e orientações, conversam entre si socialmente e consultam-se quando decisões comuns precisam ser tomadas, as pessoas envolvidas nessas redes têm mais poder no grupo do que aquelas que não estão. E é raro que um grupo não estabeleça algumas redes informais de comunicação através das amizades feitas nele.

Alguns grupos, dependendo de seu tamanho, podem ter mais de uma rede de comunicação informal desse tipo. As redes podem até se sobrepor. Quando existe apenas uma rede dessas, ela é a elite de um grupo, caso contrário não estruturado, quer os participantes desejem ser elitistas ou não. Se for a única rede desse tipo em um grupo estruturado, ela pode ou não ser uma elite, dependendo de sua composição e da natureza da estrutura formal. Se existirem duas ou mais redes de amizade desse tipo, elas podem competir pelo poder dentro do grupo, formando assim facções, ou uma delas pode optar por sair da competição, deixando a outra como a elite. Em um grupo estruturado, duas ou mais redes de amizade geralmente competem entre si pelo poder formal. Isso muitas vezes é a situação mais saudável, pois os outros membros estão em posição de arbitrar entre os dois concorrentes pelo poder e, assim, de fazer exigências àqueles a quem dão sua temporária lealdade.

A natureza inevitavelmente elitista e exclusiva das redes informais de comunicação entre amigos não é um fenômeno novo característico do movimento das mulheres, nem é um fenômeno novo para as mulheres. Essas relações informais têm excluído as mulheres por séculos de participar de grupos integrados dos quais faziam parte. Em qualquer profissão ou organização, essas redes criaram a mentalidade do “vestiário” e os laços da “velha guarda”, que efetivamente impediram as mulheres como grupo (bem como alguns homens individualmente) de terem igual acesso às fontes de poder ou recompensa social. Muita energia dos movimentos femininos passados ​​foi direcionada para formalizar as estruturas de tomada de decisões e os processos de seleção, para que a exclusão das mulheres pudesse ser enfrentada diretamente. Como bem sabemos, esses esforços não impediram que as redes informais exclusivamente masculinas discriminassem as mulheres, mas tornaram isso mais difícil.

Porque as elites são informais, não significa que elas são invisíveis. Em qualquer reunião de pequeno grupo, qualquer pessoa com um olho afiado e ouvido aguçado pode perceber quem está influenciando quem. Os membros de um grupo de amizade se relacionarão mais uns com os outros do que com outras pessoas. Eles ouvem com mais atenção, interrompem menos; repetem os pontos uns dos outros e cedem amigavelmente; tendem a ignorar ou lidar com os “de fora” cuja aprovação não é necessária para a tomada de decisão. No entanto, é necessário para os “de fora” manter boas relações com os “de dentro”. Claro, as linhas não são tão nítidas como desenhei. São nuances de interação, não roteiros predefinidos. Mas são evidentes e têm seu efeito. Uma vez que se saiba com quem é importante consultar antes de tomar uma decisão, e cuja aprovação é o selo de aceitação, sabe-se quem está no comando.

Uma vez que os grupos do movimento não tenham tomado decisões concretas sobre quem exercerá o poder dentro deles, muitos critérios diferentes são usados em todo o país. A maioria dos critérios se baseia em características tradicionalmente femininas. Por exemplo, nos primeiros dias do movimento, o casamento era geralmente um pré-requisito para a participação na elite informal. Como as mulheres foram tradicionalmente ensinadas, as mulheres casadas se relacionam principalmente umas com as outras e veem as mulheres solteiras como ameaçadoras demais para serem amigas íntimas. Em muitas cidades, esse critério foi refinado para incluir apenas as mulheres casadas com homens da Nova Esquerda. Esse critério tinha mais do que a tradição por trás, porque os homens da Nova Esquerda muitas vezes tinham acesso a recursos necessários para o movimento, como listas de endereços, impressoras, contatos e informações, e as mulheres estavam acostumadas a obter o que precisavam através dos homens, em vez de fazê-lo de forma independente. À medida que o movimento avançou no tempo, o casamento se tornou um critério menos universal para a participação eficaz, mas todas as elites informais estabelecem padrões pelos quais apenas mulheres que possuem certas características materiais ou pessoais podem se juntar. Geralmente incluem: origem de classe média (apesar de toda a retórica sobre relacionamento com a classe trabalhadora); ser casada; não ser casada, mas viver com alguém; ser ou fingir ser lésbica; estar entre as idades de vinte e trinta anos; ter educação universitária ou pelo menos alguma formação acadêmica; ser “descolada”; não ser muito “descolada”; adotar uma certa linha política ou identificação como “radical”; ter filhos ou pelo menos gostar deles; não ter filhos; ter certas características de personalidade “femininas”, como ser “agradável”; se vestir da maneira certa (seja no estilo tradicional ou antitradicional), etc. Existem também algumas características que quase sempre rotulam alguém como um “desviante” que não deve ser relacionado. Elas incluem: ser muito velha; trabalhar em tempo integral, principalmente se alguém estiver ativamente comprometida com uma “carreira”; não ser “agradável”; e ser abertamente solteira (ou seja, nem ativamente heterossexual nem homossexual).

Outros critérios podem ser incluídos, mas todos têm temas comuns. As características necessárias para a participação nas elites informais do movimento, e, portanto, para exercer o poder, dizem respeito à origem, personalidade ou alocação de tempo de alguém. Elas não incluem competência, dedicação ao feminismo, talentos ou contribuições potenciais para o movimento. As primeiras são os critérios que normalmente usamos para determinar nossos amigos. As últimas são o que qualquer movimento ou organização precisa usar se quiser ser politicamente eficaz.

Os critérios de participação podem variar de grupo para grupo, mas os meios de se tornar membro da elite informal, se alguém atender a esses critérios, são mais ou menos os mesmos. A principal diferença depende de estar em um grupo desde o início ou juntar-se a ele depois que começou. Se envolvida desde o início, é importante que o maior número possível de amigas pessoais também se juntem. Se ninguém conhece muito bem ninguém, então você deve formar deliberadamente amizades com um número selecionado e estabelecer os padrões de interação informal crucial para a criação de uma estrutura informal. Uma vez que os padrões informais são formados, eles atuam para mantê-los, e uma das táticas mais bem-sucedidas de manutenção é recrutar continuamente novas pessoas que “se encaixam”. Uma pessoa entra em tal elite da mesma forma que entra em uma fraternidade. Se percebida como uma adição em potencial, ela é “caçada” pelos membros da estrutura informal e, eventualmente, é iniciada ou excluída. Se a fraternidade não for politicamente consciente o suficiente para se envolver ativamente nesse processo, ela pode ser iniciada pelo estranho da mesma forma que se juntaria a qualquer clube privado. Encontre um patrocinador, ou seja, escolha um membro da elite que pareça ser bem respeitado dentro dela e cultive ativamente a amizade dessa pessoa. Eventualmente, ela provavelmente o trará para o círculo interno.

Todos esses procedimentos consomem tempo. Portanto, se alguém trabalha em período integral ou possui um compromisso significativo semelhante, geralmente é impossível se juntar simplesmente porque não sobram horas suficientes para comparecer a todas as reuniões e cultivar os relacionamentos pessoais necessários para ter voz nas tomadas de decisão. É por isso que as estruturas formais de tomada de decisão são um benefício para as pessoas sobrecarregadas. Ter um processo estabelecido de tomada de decisão garante que todos possam participar dele em certa medida.

Embora esta análise do processo de formação de elites em grupos pequenos seja crítica em perspectiva, não é feita com a crença de que essas estruturas informais são inevitavelmente ruins – apenas inevitáveis. Todos os grupos criam estruturas informais como resultado dos padrões de interação entre os membros do grupo. Tais estruturas informais podem realizar coisas muito úteis. No entanto, apenas grupos não estruturados são totalmente governados por elas. Quando as elites informais são combinadas com o mito da “falta de estrutura”, não pode haver tentativa de impor limites ao uso do poder. Isso se torna arbitrário.

Isso tem duas consequências potencialmente negativas das quais devemos estar cientes. A primeira é que a estrutura informal de tomada de decisão será muito parecida com uma sororidade – na qual as pessoas ouvem umas às outras porque gostam delas e não porque dizem coisas significativas. Enquanto o movimento não faz coisas significativas, isso não importa muito. Mas se o seu desenvolvimento não deve ser interrompido nesta fase preliminar, ele terá que alterar essa tendência. A segunda é que estruturas informais não têm obrigação de prestar contas ao grupo como um todo. Seu poder não lhes foi dado; não pode ser retirado. Sua influência não se baseia no que fazem para o grupo; portanto, não podem ser influenciados diretamente pelo grupo. Isso não torna necessariamente as estruturas informais irresponsáveis. Aqueles que se preocupam em manter sua influência geralmente tentarão ser responsáveis. O grupo simplesmente não pode impor tal responsabilidade; ela depende dos interesses da elite.

O SISTEMA DE “ESTRELAS”

O conceito de “falta de estrutura” deu origem ao sistema de “estrelas”. Vivemos em uma sociedade que espera que grupos políticos tomem decisões e selecionem pessoas para articular essas decisões perante o público em geral. A imprensa e o público não sabem como ouvir seriamente as mulheres como mulheres; eles querem saber como o grupo se sente. Apenas três técnicas foram desenvolvidas para estabelecer a opinião do grupo em massa: a votação ou referendo, o questionário de pesquisa de opinião pública e a seleção de porta-vozes do grupo em uma reunião apropriada. O movimento de libertação das mulheres não usou nenhum desses métodos para se comunicar com o público. Nem o movimento como um todo nem a maioria dos numerosos grupos dentro dele estabeleceram um meio de explicar sua posição sobre várias questões. Mas o público está condicionado a procurar porta-vozes.

Embora o movimento conscientemente não tenha escolhido porta-vozes, ele gerou muitas mulheres que chamaram a atenção do público por diversas razões. Essas mulheres não representam nenhum grupo em particular ou opinião estabelecida; elas sabem disso e geralmente o afirmam. No entanto, como não há porta-vozes oficiais nem órgão de tomada de decisão que a imprensa possa consultar quando desejar saber a posição do movimento sobre um assunto, essas mulheres são percebidas como porta-vozes. Portanto, querendo ou não, querendo o movimento ou não, as mulheres de destaque são colocadas na posição de porta-vozes por padrão.

Esta é uma das principais fontes de irritação frequentemente sentida em relação às mulheres rotuladas como “estrelas”. Porque elas não foram selecionadas pelas mulheres no movimento para representar as opiniões do movimento, são ressentidas quando a imprensa presume que elas falam pelo movimento. Mas enquanto o movimento não selecionar suas próprias porta-vozes, essas mulheres serão colocadas nesse papel pela imprensa e pelo público, independentemente de seus próprios desejos.

Isso tem várias consequências negativas tanto para o movimento quanto para as mulheres rotuladas como “estrelas”. Primeiro, porque o movimento não as colocou na posição de porta-vozes, o movimento não pode removê-las. A imprensa as colocou lá, e somente a imprensa pode escolher não ouvir. A imprensa continuará a procurar “estrelas” como porta-vozes enquanto não tiver alternativas oficiais para obter declarações autoritárias do movimento. O movimento não tem controle na seleção de suas representantes perante o público enquanto acreditar que não deve ter representantes de forma alguma.

Segundo, as mulheres colocadas nessa posição muitas vezes se encontram brutalmente atacadas por suas irmãs. Isso não faz nada pelo movimento e é dolorosamente destrutivo para as pessoas envolvidas. Tais ataques apenas resultam na mulher deixando o movimento completamente – frequentemente amargamente alienada – ou deixando de se sentir responsável por suas “irmãs”. Ela pode manter alguma lealdade ao movimento, vagamente definido, mas não está mais suscetível a pressões de outras mulheres nele. Não se pode sentir responsável por pessoas que foram a fonte de tanta dor sem ser masoquista, e essas mulheres geralmente são fortes demais para ceder a esse tipo de pressão pessoal. Assim, o backlash contra o sistema de “estrelas” efetivamente encoraja o tipo de não responsabilidade individualista que o movimento condena. Ao purgar uma irmã como uma “estrela”, o movimento perde qualquer controle que possa ter tido sobre a pessoa, que se torna então livre para cometer todos os pecados individualistas dos quais foi acusada.

IMPOTÊNCIA POLÍTICA

Grupos não estruturados podem ser muito eficazes para fazer com que as mulheres falem sobre suas vidas; no entanto, eles não são muito bons para realizar ações concretas. É quando as pessoas se cansam de “apenas falar” e desejam fazer algo mais que os grupos encontram dificuldades, a menos que mudem a natureza de sua operação.

Ocasionalmente, a estrutura informal desenvolvida pelo grupo coincide com uma necessidade disponível que o grupo pode atender de tal forma a dar a impressão de que um grupo não estruturado “funciona”. Ou seja, o grupo desenvolveu, por acaso, o tipo de estrutura mais adequado para se envolver em um projeto específico.

Embora trabalhar nesse tipo de grupo seja uma experiência empolgante, ele é raro e muito difícil de replicar. Quase inevitavelmente, quatro condições são encontradas em tal grupo:

1) Ele é orientado para tarefas. Sua função é muito específica e direcionada, como a organização de uma conferência ou a publicação de um jornal. É a tarefa que basicamente estrutura o grupo. A tarefa determina o que precisa ser feito e quando deve ser feito. Ela fornece um guia pelo qual as pessoas podem julgar suas ações e fazer planos para atividades futuras.

2) É relativamente pequeno e homogêneo. A homogeneidade é necessária para garantir que as participantes tenham uma “linguagem comum” para interação. Pessoas de origens muito diferentes podem enriquecer um grupo de consciência onde cada uma pode aprender com a experiência das outras, mas uma diversidade muito grande entre as membros de um grupo orientado para tarefas significa apenas que elas continuamente se mal-entendem. Pessoas diversas interpretam palavras e ações de maneira diferente. Elas têm expectativas diferentes sobre o comportamento umas das outras e julgam os resultados de acordo com critérios diferentes. Se todas se conhecem o suficiente para entender as nuances, isso pode ser acomodado. Geralmente, isso leva apenas à confusão e a horas intermináveis gastas resolvendo conflitos que ninguém imaginava que surgiriam.

3) Há um alto grau de comunicação. As informações devem ser transmitidas a todas, opiniões devem ser verificadas, o trabalho deve ser dividido e a participação deve ser assegurada nas decisões relevantes. Isso é possível apenas se o grupo for pequeno e as pessoas praticamente viverem juntas durante as fases mais cruciais da tarefa. É desnecessário dizer que o número de interações necessárias para envolver todos aumenta geometricamente com o número de participantes. Isso inevitavelmente limita o número de participantes do grupo a cerca de cinco, ou exclui algumas pessoas de algumas das decisões. Grupos bem-sucedidos podem ter até 10 ou 15 membras, mas apenas quando são compostos de vários subgrupos menores que desempenham partes específicas da tarefa e cujas membras se sobrepõem, para que o conhecimento do que os diferentes subgrupos estão fazendo possa ser facilmente compartilhado.

4) Há um baixo grau de especialização de habilidades. Nem todas precisam ser capazes de fazer tudo, mas tudo deve poder ser feito por mais de uma pessoa. Portanto, ninguém é indispensável. Até certo ponto, as pessoas se tornam peças intercambiáveis.

Embora essas condições possam ocorrer por acaso em grupos pequenos, isso não é possível em grupos grandes. Portanto, porque o movimento maior na maioria das cidades é tão desestruturado quanto os grupos de discussão individuais, ele não é muito mais eficaz do que os grupos separados em tarefas específicas. A estrutura informal raramente está suficientemente organizada ou em contato com as pessoas para operar eficazmente. Assim, o movimento gera muita atividade e poucos resultados. Infelizmente, as consequências de toda essa atividade não são tão inofensivas quanto os resultados, e sua vítima é o próprio movimento.

Alguns grupos se transformaram em projetos de ação local que não envolvem muitas pessoas e trabalham em pequena escala. Mas essa forma restringe a atividade do movimento ao nível local; não pode ser feita em nível regional ou nacional. Além disso, para funcionar bem, os grupos geralmente precisam se reduzir àquele grupo informal de amigos que estava no comando desde o início. Isso exclui muitas mulheres da participação. Enquanto a única maneira das mulheres participarem do movimento for por meio da adesão a um pequeno grupo, as não sociáveis estarão em desvantagem clara. Enquanto os grupos de amizade forem o principal meio de atividade organizacional, o elitismo se institucionaliza.

Para os grupos que não conseguem encontrar um projeto local ao qual se dedicar, o mero fato de permanecerem juntos se torna o motivo de sua continuidade. Quando um grupo não tem uma tarefa específica (e a elevação de consciência é uma tarefa), as pessoas nele direcionam suas energias para controlar as outras no grupo. Isso não é feito tanto por um desejo malicioso de manipular os outros (embora às vezes seja) quanto por falta de algo melhor para fazer com seus talentos. Pessoas capazes com tempo livre e a necessidade de justificar sua reunião direcionam seus esforços para o controle pessoal e passam seu tempo criticando as personalidades dos outros membros do grupo. Conflitos internos e jogos de poder pessoais dominam o dia. Quando um grupo está envolvido em uma tarefa, as pessoas aprendem a se dar bem com as outras como elas são e a suprimir as antipatias pessoais pelo bem do objetivo maior. São impostos limites à compulsão de remodelar cada pessoa à nossa imagem do que elas deveriam ser.

O fim da elevação de consciência deixa as pessoas sem ter para onde ir, e a falta de estrutura as deixa sem uma maneira de chegar lá. As mulheres no movimento tendem a se voltar para si mesmas e suas irmãs ou buscam outras alternativas de ação. Existem poucas opções disponíveis. Algumas mulheres simplesmente “fazem o seu próprio caminho”. Isso pode levar a uma grande criatividade individual, grande parte da qual é útil para o movimento, mas não é uma alternativa viável para a maioria das mulheres e certamente não fomenta um espírito de esforço de grupo cooperativo. Outras mulheres saem completamente do movimento porque não querem desenvolver um projeto individual e não encontraram uma maneira de descobrir, se juntar ou iniciar projetos em grupo que as interessem.

Muitas se voltam para outras organizações políticas que lhes fornecem o tipo de atividade estruturada e eficaz que não conseguiram encontrar no movimento de mulheres. As organizações políticas que veem a libertação das mulheres como apenas uma das muitas questões às quais as mulheres devem dedicar seu tempo encontram no movimento um vasto campo de recrutamento de novas membras. Não há necessidade para que essas organizações “infiltrem” membras (embora isso não seja excluído). O desejo de atividade política significativa gerado nas mulheres por sua participação no movimento de libertação das mulheres é suficiente para torná-las ansiosas para se juntar a outras organizações quando o movimento em si não oferece saídas para suas novas ideias e energias. As mulheres que se juntam a outras organizações políticas enquanto continuam no movimento de libertação das mulheres, ou que se juntam à libertação das mulheres enquanto permanecem em outras organizações políticas, acabam se tornando a estrutura para novas estruturas informais. Essas redes de amizade se baseiam em sua política não feminista comum em vez das características discutidas anteriormente, mas funcionam de maneira muito semelhante. Porque essas mulheres compartilham valores, ideias e orientações políticas comuns, elas também se tornam elites informais, não planejadas, não selecionadas, não responsáveis – quer pretendam ou não.

Essas novas elites informais muitas vezes são percebidas como ameaças pelas antigas elites informais anteriormente desenvolvidas dentro de diferentes grupos do movimento. Esta é uma percepção correta. Tais redes politicamente orientadas raramente estão dispostas a serem simplesmente ‘irmandades’ como muitas das antigas, e querem divulgar suas ideias políticas, bem como suas ideias feministas. Isso é natural, mas suas implicações para a libertação das mulheres nunca foram adequadamente discutidas. As antigas elites raramente estão dispostas a trazer essas diferenças de opinião à tona porque isso envolveria expor a natureza da estrutura informal do grupo. Muitas dessas elites informais estiveram escondidas sob a bandeira de “antielitismo” e “falta de estrutura”. Para enfrentar eficazmente a concorrência de outra estrutura informal, elas teriam que se tornar “públicas”, e essa possibilidade é repleta de muitas implicações perigosas. Assim, para manter seu próprio poder, é mais fácil racionalizar a exclusão das membras da outra estrutura informal por meio de táticas como “perseguição vermelha”, “perseguição reformista”, “perseguição lésbica” ou “perseguição heterossexual”. A única outra alternativa é estruturar formalmente o grupo de tal forma que a estrutura de poder original seja institucionalizada. Isso nem sempre é possível. Se as elites informais foram bem estruturadas e exerceram uma quantidade razoável de poder no passado, essa tarefa é possível de ser realizada. Esses grupos têm uma história de serem um tanto politicamente eficazes no passado, uma vez que a solidez da estrutura informal tem se mostrado um substituto adequado para uma estrutura formal. Tornar-se estruturado não altera muito sua operação, embora a institucionalização da estrutura de poder abra espaço para um desafio formal. São aqueles grupos que mais precisam de estrutura que muitas vezes são os menos capazes de criá-la. Suas estruturas informais não foram bem formadas e a adesão à ideologia de “falta de estrutura” os torna relutantes em mudar táticas. Quanto mais desestruturado um grupo é, mais carente ele é de estruturas informais e mais adere a uma ideologia de “falta de estrutura”, mais vulnerável ele é a ser dominado por um grupo de camaradas políticos.

Uma vez que o movimento em geral é tão desestruturado quanto a maioria de seus grupos constituintes, ele é igualmente suscetível a influências indiretas. No entanto, o fenômeno se manifesta de maneira diferente. Em nível local, a maioria dos grupos pode operar autonomamente; mas os únicos grupos que podem organizar uma atividade nacional são os grupos organizados nacionalmente. Portanto, muitas vezes são as organizações feministas estruturadas que fornecem direção nacional para as atividades feministas, e essa direção é determinada pelas prioridades dessas organizações. Grupos como NOW, WEAL e alguns núcleos [ou setoriais] de mulheres de esquerda são simplesmente as únicas organizações capazes de lançar uma campanha nacional. A multidão de grupos de libertação de mulheres não estruturados pode optar por apoiar ou não as campanhas nacionais, mas são incapazes de realizar suas próprias. Assim, suas membras se tornam as tropas sob a liderança das organizações estruturadas. Os grupos declaradamente não estruturados não têm uma maneira de aproveitar os vastos recursos do movimento para apoiar suas prioridades. Eles nem mesmo têm uma maneira de decidir quais são essas prioridades.

Quanto mais desestruturado for um movimento, menos controle terá sobre as direções em que se desenvolve e as ações políticas em que se envolve. Isso não significa que suas ideias não se espalhem. Dado um certo interesse da mídia e a adequação das condições sociais, as ideias ainda serão difundidas amplamente. Mas a difusão de ideias não significa que elas sejam implementadas; significa apenas que estão sendo discutidas. Na medida em que podem ser aplicadas individualmente, podem ser postas em prática; na medida em que exigem poder político coordenado para serem implementadas, não serão.

Desde que o movimento de libertação das mulheres continue dedicado a uma forma de organização que enfatiza grupos de discussão pequenos e inativos entre amigas, os piores problemas da desestruturação não serão sentidos. Mas esse estilo de organização tem seus limites; ele é politicamente ineficaz, exclusivo e discriminatório contra as mulheres que não estão ou não podem ser vinculadas às redes de amizade. Aquelas que não se encaixam no que já existe devido à classe, raça, ocupação, educação, status parental ou conjugal, personalidade, etc., inevitavelmente se desanimarão ao tentar participar. Aquelas que se encaixam desenvolverão interesses pessoais em manter as coisas como estão.

Os interesses pessoais dos grupos informais serão sustentados pelas estruturas informais que existem, e o movimento não terá meios de determinar quem exercerá poder dentro dele. Se o movimento continuar a não escolher quem exercerá o poder, não irá abolir o poder. Tudo o que faz é abdicar do direito de exigir que aqueles que exercem o poder e a influência sejam responsáveis por ele. Se o movimento continuar a manter o poder o mais difuso possível porque sabe que não pode exigir responsabilidade daqueles que o detém, ele não impede que nenhum grupo ou pessoa domine totalmente. Mas ao mesmo tempo garante que o movimento seja o mais ineficaz possível. Deve-se encontrar um meio-termo entre dominação e ineficácia.

Esses problemas estão chegando a um ponto crítico neste momento porque a natureza do movimento está necessariamente mudando. A elevação de consciência como principal função do movimento de libertação das mulheres está se tornando obsoleta. Devido à intensa publicidade da imprensa dos últimos dois anos e aos numerosos livros e artigos populares agora em circulação, a libertação das mulheres se tornou uma expressão popular. Suas questões são discutidas e grupos informais de discussão são formados por pessoas que não têm conexão explícita com nenhum grupo do movimento. O movimento precisa agora estabelecer suas prioridades, articular seus objetivos e prosseguir em suas metas de maneira coordenada. Para fazer isso, deve se organizar – local, regional e nacionalmente.

PRINCÍPIOS DA ESTRUTURA DEMOCRÁTICA

Uma vez que o movimento não se apega mais constantemente à ideologia da “falta de estrutura”, ele está livre para desenvolver as formas de organização mais adequadas ao seu funcionamento saudável. Isso não significa que devemos ir para o outro extremo e imitar cegamente as formas tradicionais de organização. Mas também não devemos rejeitá-las todas cegamente. Algumas das técnicas tradicionais provarão ser úteis, embora não perfeitas; algumas nos darão insights sobre o que devemos e não devemos fazer para obter determinados objetivos com custos mínimos para os indivíduos no movimento. Na maioria das vezes, teremos que experimentar diferentes tipos de estruturação e desenvolver uma variedade de técnicas para usar em diferentes situações. O Sistema de Sorteio (Lot System) é uma ideia que surgiu a partir do movimento. Não é aplicável a todas as situações, mas é útil em algumas. Outras ideias para estruturação são necessárias. Mas antes de podermos prosseguir com experimentos inteligentes, devemos aceitar a ideia de que não há nada inerentemente ruim na estrutura em si – apenas seu uso excessivo.

Ao participar desse processo de tentativa e erro, existem alguns princípios que podemos ter em mente que são essenciais para a estruturação democrática e também politicamente eficazes:

1) Delegação de autoridade específica para tarefas específicas a indivíduos específicos por meio de procedimentos democráticos. Deixar as pessoas assumirem empregos ou tarefas apenas por falta de opção significa que essas tarefas não serão executadas de forma confiável. Se as pessoas forem selecionadas para fazer uma tarefa, preferencialmente após expressarem interesse ou disposição para fazê-la, elas assumem um compromisso que não pode ser tão facilmente ignorado.

2) Exigir que todas aquelas a quem foi delegada autoridade sejam responsáveis perante aquelas que as selecionaram. É assim que o grupo tem controle sobre as pessoas em posições de autoridade. Indivíduos podem exercer poder, mas é o grupo que tem a palavra final sobre como o poder é exercido.

3) Distribuição de autoridade entre o maior número de pessoas possível. Isso evita o monopólio do poder e exige que aquelas em posições de autoridade consultem muitas outras no processo de exercício desse poder. Isso também dá a muitas pessoas a oportunidade de assumir responsabilidades por tarefas específicas e, assim, aprender diferentes habilidades.

4) Rotação de tarefas entre indivíduos. Responsabilidades que são mantidas por uma pessoa por muito tempo, formal ou informalmente, passam a ser vistas como “propriedade” dessa pessoa e não são facilmente renunciadas ou controladas pelo grupo. Por outro lado, se as tarefas são revezadas com muita frequência, o indivíduo não tem tempo para aprender bem o seu trabalho e adquirir a satisfação de fazer um bom trabalho.

5) Alocação de tarefas com base em critérios racionais. Selecionar alguém para uma posição porque é apreciado pelo grupo ou atribuir-lhe trabalho árduo porque é impopular não beneficia o grupo nem a pessoa a longo prazo. Habilidade, interesse e responsabilidade devem ser as principais preocupações nessa seleção. As pessoas devem ter a oportunidade de aprender habilidades que não possuem, mas isso é melhor feito por meio de algum tipo de programa de “aprendizagem” em vez do método de “se afogar ou nadar”. Ter uma responsabilidade que não se pode lidar bem é desmoralizante. Da mesma forma, ser impedido de fazer o que se faz bem não encoraja o desenvolvimento de habilidades. As mulheres foram punidas por serem competentes ao longo da maior parte da história humana; o movimento não precisa repetir esse processo.

6) Difusão de informações para todas com a maior frequência possível. A informação é poder. O acesso à informação aumenta o poder de alguém. Quando uma rede informal dissemina novas ideias e informações entre si fora do grupo, elas já estão envolvidas no processo de formação de uma opinião – sem a participação do grupo. Quanto mais se sabe sobre como as coisas funcionam e o que está acontecendo, mais politicamente eficaz alguém pode ser.

7) Acesso igual aos recursos necessários pelo grupo. Isso nem sempre é perfeitamente possível, mas deve ser buscado. Uma membra que mantém um monopólio sobre um recurso necessário (como uma impressora de propriedade de um marido ou uma sala escura para cine-debate) pode influenciar indevidamente o uso desse recurso. Habilidades e informações também são recursos. As habilidades das membras só podem estar equitativamente disponíveis quando as membras estiverem dispostas a ensinar o que sabem a outras.

Quando esses princípios são aplicados, eles garantem que qualquer estrutura desenvolvida por diferentes grupos do movimento será controlada e responsável pelo grupo. O grupo de pessoas em posições de autoridade será difuso, flexível, aberto e temporário. Eles não estarão em posição tão fácil de institucionalizar seu poder, pois as decisões finais serão tomadas pelo grupo como um todo. O grupo terá o poder de determinar quem exercerá autoridade dentro dele.


  1. Tradução livre do original disponível em: https://www.jofreeman.com/joreen/tyranny.htm ↩︎

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O Movimento de Mulheres da Coréia do Sul: “Nós não somos flores, somos uma fogueira”

Jen Izaakson e Tae Kyung Kim contam sobre o crescimento do Feminismo Radical inspirando as mulheres por toda a Coréia do Sul. Traduzido do original publicado no site Feminist Current.

Crédito da imagem: Ryu Hyo-lim/ Yeonhap via AP

No último outono, Jen Izaakson viajou para a Coreia do Sul para documentar o crescimento do Feminismo Radical como parte de um grupo de estudos da Cambridge University, após ganhar um fundo de pesquisa, e entrevistou 40 feministas. Ela escreveu este artigo junto a Tae Kyung Kim, uma Feminista Radical coreana de Seoul, que atualmente vive e estuda em Berlim.

As notícias do crescimento do movimento feminista na Coreia do Sul chegaram à mídia ocidental, mas as raízes deste levante radical ainda estão escondidas. A mídia convencional do ocidente costuma mostrar os aspectos do feminismo sul coreano que espelham nossas próprias conquistas, deixando as realizações das mulheres sul coreanas e os aspectos mais radicais do movimento menos visíveis. Em setembro, mais de 40 Feministas Radicais da Coreia do Sul foram entrevistadas como parte de uma pesquisa acadêmica. Os resultados dessa pesquisa estão resumidos neste artigo. Devido ao curto espaço deste texto, muitas informações não foram abordadas, mas tentamos incluir o material que melhor esclarece como o movimento surgiu, seu contexto histórico; e quais as práticas, estratégias e formações políticas constituem o Feminismo Radical na Coreia do Sul.

A violência masculina politiza e radicaliza

Em 2016, o infame “Assassinato de Gangnam” provocou uma onda de protestos entre as mulheres. Um homem de 34 anos chamado Kim Sung-min esfaqueou uma mulher de 23 anos (cujo nome permanece em sigilo) até a morte dentro de um banheiro para ambos os sexos em um bar de karaokê. Kim Sung-min esperou dentro do banheiro, permitindo que vários homens entrassem e saíssem, até que uma mulher entrou. No julgamento, ele explicou: “Fiz isso porque as mulheres sempre me ignoraram”. Esta é uma explicação similar àquela oferecida por outros “incels” (“celibatários involuntários”) que cometeram assassinatos violentos, mas na Coreia do Sul as autoridades explicitamente negaram a motivação misógina, mesmo com o testemunho de Sung-min.

Em resposta ao assassinato, as mulheres encheram as ruas do lado de fora da Gangnam Station e na região de Seocho-dong em protesto. Muitas dessas mulheres não se consideravam feministas nessa época, mas a natureza do assassinato e a motivação misógina ajudaram a politizá-las.

Em 2018, o “molka” (o ato de filmar secretamente mulheres em banheiros e vestiários, ou de filmar embaixo de suas saias em lugares públicos) já havia se tornado um problema generalizado na Coreia. Entrevistadas me contaram que isso acontece em parte porque os homens coreanos não são confidentes o bastante para assediar mulheres diretamente na rua, então suas tentativas para acessar mulheres sexualmente são feitas de modo mais sub reptício. Apesar de existirem leis contra este tipo de voyeurismo na Coreia do Sul, a polícia dificilmente aplica essas leis. A situação chegou a um ponto crítico quando uma estudante foi acusada de fotografar um modelo nu em sua escola de arte. De acordo com as mulheres entrevistadas, o homem rotineiramente saía despido da sala de aula, de modo que as estudantes eram forçadas a ver seus genitais. Por fim, uma estudante tirou uma foto do homem na sala de aula e a publicou na internet para condenar seu comportamento. Ela foi autuada, julgada, presa e forçada a se desculpar com o homem, que disse que as fotos dele mostrando seus genitais em público lhe haviam causado “dano psicológico”. A mulher foi inicialmente multada com o valor equivalente a 18,000 euros, mas o modelo insistiu na corte que a mulher fosse enviada para a prisão, e ela permaneceu lá por 10 meses.

Considerando que os homens usam câmeras escondidas com impunidade quase total, este incidente provocou uma onda de protestos contra a prática do molka. Centenas de milhares de (principalmente) jovens mulheres se uniram, indignadas que as leis a respeito do voyeurismo fossem usadas contra mulheres e não homens. Até o momento, 360,000 mulheres participaram em protestos contra câmeras escondidas. Essas manifestações consistem em procissões fortemente estruturadas, músicas políticas impressas em flyers e distribuídas entre as multidões e discursos cheios de vida, que frequentemente começam com os cantos, e então as manifestantes se juntam e alcançam crescendos que parecem com gritos de guerra. Em alguns protestos, mulheres sobem ao palco para ter seus cabelos cortados bem curtos, em outras, suas coleções de maquiagem são ritualisticamente jogadas no lixo.

A necessidade da organização exclusiva de mulheres

Por trás dos eventos reais, que foram o Assassinato de Gangnam Station e os protestos contra o molka, havia um cenário virtual central. A partir de 2015, uma guerra verbal se desenvolveu na internet entre os homens e as mulheres. Uma grande disputa aconteceu quando o MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) chegou na Coreia do Sul. No DC Inside Gallery, um popular fórum de internet com milhões de usuários em todo o país, usuários do sexo masculino começaram a fazer postagens dizendo que a Paciente Zero era uma mulher sul coreana, alegando que ela foi prostituída no Oriente Médio e voltou infectada para a Coreia do Sul. Outros homens se juntaram, escrevendo comentários como “as mulheres coreanas deviam morrer”, “as mulheres coreanas gastam dinheiro em futilidades” e “as mulheres coreanas são burras e espalham esse vírus”. Em resposta, mulheres começaram suas próprias postagens no fórum, discutindo essa misoginia escancarada. Eventualmente descobriu-se que, na verdade, a MERS foi levada para o país por um homem, e as mulheres encheram as postagens masculinas de comentários, se sentindo vingadas. Mas a misoginia não foi esquecida.

Como resposta, as mulheres criaram a Megalia, parecida com o Reddit, mas livre de misoginia. A Megalia se tornou um espaço de construção de companheirismo entre mulheres, centrado em amizade e humor afiado. Tornou-se comum que as mulheres chamassem umas às outras de “vulvas” no site, dizendo coisas como “Muito bem, você é a buceta mais forte” ou “Que ideia brilhante! Você é uma bucetão!”. No entanto, a Megalia tinha usuários do sexo masculino, e muitos dos administradores do site eram homens gays. Primeiramente esses homens eram fortes simpatizantes da experiência das mulheres com a misoginia, mas assim que as postagens começaram a discutir a misoginia de homens gays e a cultura gay (como o drag), os comentários das mulheres começaram a ser removidos.

A moderação pesada do discurso das mulheres não é uma surpresa para muitas feministas no Facebook, Mumsnet ou no Twitter. As mulheres perceberam que para ter um debate livre e justo a respeito da realidade de suas vidas e da misoginia pela qual passavam, precisavam de um espaço moderado por elas mesmas, sem administradores homens. Essa experiência mostrou a necessidade da organização exclusiva de mulheres. Mulheres começaram a deixar a Megalia em massa, e em Janeiro de 2016, milhares já haviam se inscrito em um fórum online chamado Womad, descrito pelas minhas entrevistadas como um espaço “feminista radical lésbico”.

A espantosa prevalência da lesbiandade entre as feministas sul coreanas é um dos aspectos mais marcantes e significativos. Todas as feministas com quem eu falei para as mais de 40 entrevistas se identificaram como lésbicas.

Na Coréia do Sul, o Feminismo Radical e o Feminismo Lésbico são fortemente ligados, gerando o movimento “4비”/“4B” (a pronúncia de 4비 soa para o ouvido anglófono como algo próximo a “4B” [1]). O 4B se baseia em 4 regras que orientam esse movimento feminista radical e agem como um guia que as mulheres podem adotar para destruir o patriarcado e viver vidas mais seguras e livres dos homens. Os princípios são, a grosso modo; não se casar com homens, não namorar com homens, não fazer sexo com homens e não engravidar. O movimento 4B tem hoje um número estimado de 50.000 seguidoras.

Um estudo de 2016 revelou que 50 por cento da população feminina da Coréia do Sul não vê o casamento como necessário — as mulheres perceberam que o casamento é um contrato leonino, o que levou o governo a agir. Em resposta às preocupações a respeito do aumento da idade média da população e o declínio das taxas de natalidade, o governo sul coreano encomendou várias novelas para promover uma visão idílica do amor romântico heterossexual. Vários reality shows — Heart Signal; We Got Married; Same Bed, Different Dreams e The Return of Superman — foram encomendados para encorajar o casamento e a reprodução. Essas séries tendem a seguir uma narrativa em progresso, na qual os casais heterossexuais expressam primeiro o desejo de um bebê, depois a concepção, a gestação e o nascimento, cada passo documentado e apresentado sob uma luz positiva.

Tire o espartilho

Entre 2015-2016 e 2017-2018, as mulheres sul-coreanas gastaram 53,5 bilhões a menos de wons [R$ 243,5 milhões] sul coreanos em produtos de beleza e cirurgias estéticas, optando por investir esse dinheiro em carros, escolhendo a independência à objetificação. Parte dessa rejeição cultural das práticas de beleza femininas foi estimulada pelo movimento 4B e também pelo “Tire o Espartilho”. Inspiradas por Beleza e Misoginia, o livro de Sheila Jeffreys (traduzido para o coreano como Espartilho: Beleza e Misoginia), o movimento descreve a remoção do “espartilho” moderno: práticas de beleza como depilação, maquiagem, sapatos de salto, cirurgias estéticas, cabelos longos, dietas restritivas etc. A Coreia do Sul tem uma indústria de cirurgia estética gigantesca, sendo que a cirurgia mais comum para as mulheres é o procedimento de duplicação de pálpebra — uma operação que altera as pálpebras para que pareçam mais “ocidentais”. Sendo semelhante ao clareamento de pele, esta prática voltada ao lucro é fundada em uma idéia racista e pode levar à infecções pós-operatórias, perda das pálpebras, problemas de visão e até mesmo cegueira.

Crédito da foto: XYFreeWorld

Muitas entrevistadas se referiram ao movimento como um ponto de partida da sua jornada para o Feminismo Radical, dizendo “tirei meu espartilho no último janeiro”, ou “já estou sem espartilho há dois anos”. Para as mulheres sul coreanas, o termo “backlash” está ligado a “Tirar o Espartilho” — ele não faz referência a um backlash de fora, contra o feminismo (como no Ocidente), mas é um backlash pessoal, em que uma mulher se volta para a feminilidade. Uma mulher me disse “minha melhor amiga e eu tiramos nossos espartilhos em 2017, mas desde então ela teve um backlash e voltou a usar maquiagem por causa da pressão familiar”.

Outros slogans predominantes no movimento tendem a girar em torno do poder e determinação das mulheres. Um grupo de entrevistadas assinou um cartão pra mim com alguns deles, escrevendo “Nos encontramos no topo”, “Seja ambiciosa”, e “Nós somos a coragem umas das outras”. Eu reconheci esses slogans rapidamente porque eles costumam aparecer nos perfis das feministas nas mídias sociais. Uma recorrente e proeminente chamada à ação é “Se não eu, quem? Se não agora, quando?”. Este slogan foi parafraseado, emprestado de Hilel, o Ancião (Pirkei Avot 1:14), uma figura babilônica famosa na história judia.

Uma base histórica para a cultura centrada nas mulheres

Parte da razão pela qual o feminismo se desenvolveu da forma que ele é na Coréia do Sul é histórica e cultural. As mulheres com que eu falei explicaram que, historicamente, não existiu a mesma cultura de “cavalheirismo” (educação masculina e proteção social das mulheres) que existe no Ocidente, o que significa que existe muito menos fingimento a respeito da dominação masculina. No começo dos anos 1950, soldados que estavam lutando na guerra da Coréia faziam que as mulheres andassem antes deles sobre campos minados para checar por caminhos seguros e detonar as bombas com seus corpos. Não existe um arrependimento quanto à história desta prática. Eu perguntei “se o Titanic fosse coreano, teria havido uma política de mulheres e crianças primeiro, determinando quem entraria nos botes salva vidas?” A pergunta foi recebida com gargalhadas e negativas. Uma das entrevistadas via a ausência de cavalheirismo como menos gentileza dos homens, nos termos em que o patriarcado se desenrola. Ao mesmo tempo, as mulheres estão bem menos suscetíveis ao casamento porque os homens são muito mais claros, mesmo antes do casamento, a respeito de quão desiguais as coisas serão. Não é que os homens coreanos se comportem contra as mulheres de modo mais opressor que aqueles no Ocidente, é só que eles são muito mais abertos ao se comportar assim. Dado que a opressão masculina está menos escondida, algumas entrevistadas argumentaram que isso permitiu às mulheres que detectassem as armadilhas do casamento e da domesticação mais facilmente. É muito mais claro o que significa optar por se casar.

Outra entrevistada explicou que, historicamente, esperou-se das mulheres que trabalhassem na lavoura, muitas vezes trabalhando mais que os homens, de modo que eles foram vistos menos como provedores de riqueza material do que eles costumam ser vistos em outros lugares. As mulheres trabalhavam fora assim como faziam o trabalho doméstico. O benefício econômico de ter um marido, mesmo um que tivesse um emprego, era muito menor que o de outras sociedades em que tradicionalmente as mulheres eram proibidas de trabalhar, ou que tinham acesso limitado ao mercado de trabalho. Historicamente, na Coréia do Sul, existiu um estrito sistema de classes, e as mulheres não tinham a oportunidade de se casar com outras classes, de modo que pudessem acessar uma maior riqueza material, como as mulheres de outros países tiveram a chance. Com a falta dessa vantagem havia ainda menos motivo para as mulheres aspirarem a se casar. Essas condições históricas combinadas produziram um conjunto particular de políticas sexuais na Coréia do Sul, que significa que é comum para as mulheres rejeitar o casamento, já que existem benefícios mais claros que o cálculo de custo.

Outra razão pela qual existiu espaço para o Feminismo Radical prosperar é porque existe literalmente espaço para que isso aconteça. Universidades femininas foram criadas por todo o país durante o último século, e a maioria das cidades possui várias instituições exclusivas para mulheres (algumas possuem professores homens, e às vezes estudantes homens de outras universidades podem se inscrever em cursos por determinado tempo no campus, mas existem toques de recolher noturnos e todos os homens são obrigados a sair do local). Nos prédios da união estudantil, professores e estudantes do sexo masculino estão proibidos de entrar. São zonas exclusivas para mulheres, 24 horas por dia.

Em algumas universidades femininas, masculinistas (MRAs) protestaram segurando placas com dizeres como “Mulheres, abandonem suas bolsas de marca!”. Aparentemente o feminismo se desenvolveu tão longe dos homens na Coréia do Sul que alguns deles não sabem exatamente o que é que as feministas exigem, já que, ironicamente, os MRAs esperam que as mulheres parem de gastar dinheiro em itens caros de feminilidade. Enquanto isso, o Feminismo Radical organiza boicotes contra empresas e produtos que façam propagandas misóginas, encoraja mulheres a comerem apenas em restaurantes cujas donas são mulheres, beber em bares de mulheres e comprar em lojas de mulheres, assim o dinheiro das mulheres retorna aos bolsos femininos.

Enquanto as universidades femininas emergiram de um contexto cristão que considerava impróprio que mulheres solteiras estivessem junto de homens, elas proporcionaram um terreno fértil para que o feminismo florescesse. Muitos desses campi estão cercados por ruas que apenas as mulheres frequentam, com lojas e cafés quase que exclusivamente cheios de mulheres. Como resultado desta norma cultural, a maioria das cidade tem pelo menos um ou vários bares exclusivos para mulheres. (A Coréia do Sul não é refém da política da auto-identidade, então isso significa que os espaços são genuinamente exclusivos para mulheres)

A marginalização inspira a organização política

O movimento 4B e as idéias do Feminismo Radical se espalharam pela Coréia do Sul durante a metade da última década, tomando diferentes vilas e cidades, apesar de suas diferenças culturais e políticas.

Daegu, a quarta maior cidade do país, existe em forte contraste com sua capital, Seoul. Daegu é sem dúvidas a cidade mais conservadora da Coréia do Sul, e apenas 3 a cada 7 pessoas no local são mulheres, devido a abortos para seleção sexual. Em Daegu, os filhos são tão desejados que se uma família tem duas filhas seguidas, a segunda filha frequentemente receberá um nome com um significado do tipo “Desejando um filho” ou “Por favor, que o próximo seja menino”. Como para cada 3 mulheres existem 4 homens, a política sexual segue a regra. As mulheres que vivem em Daegu me explicaram que, enquanto as mulheres de Seoul podem chamar a polícia para denunciar um caso de violência doméstica, as mulheres de Daegu temem que a polícia ficará do lado do agressor e perpetrará ainda mais violência contra elas.

Apesar disso, as mulheres de Daegu são firmes. Elas contaram sobre como se recusam a usar maquiagem, apesar de que isso certamente resultará em falta de emprego. A cidade é mais pobre que sua vizinha, Busan, e que Seoul ao norte, mas ainda assim as feministas de Daegu abordaram o problema do desemprego gerado pela recusa à feminilidade se organizando. Elas formaram “cartéis” femininos, reunindo recursos, vivendo juntas em moradias baratas e conjuntamente fazendo campanha nas ruas para alcançar outras mulheres. Esses “cartéis” me foram descritos como grupos organizados, mas com estruturas abertas e flexíveis, focadas em divulgação. Isso contrasta com o que vemos no Ocidente, onde o Feminismo Radical tende a florescer através de pequenos grupos de amigas/namoradas, funcionando em conjunto como uma rede privada, em vez de se organizar primariamente em torno de alianças políticas e se engajar em recrutamento e campanhas públicas.

A Coréia do Sul tem a mais alta disparidade salarial de todos os países da OCDE (os 37 países mais ricos do mundo, de acordo com o PIB), com mulheres ganhando em média um terço a menos que os homens. Enquanto as feministas do Ocidente que tem empregos, propriedades, famílias apoiadoras e que não encaram discriminação direta por recusar práticas de feminilidade dirão que não podem ser abertamente radicais devido à precariedade financeira ou medo de represálias, as mulheres em Daegu — cuja renda é precária e que vivem numa cultura muito mais masculinamente centrada, persistem [2]. A experiência de conhecer feministas em Daegu enfatizou que insegurança social e econômica não precisa prejudicar nossa disposição de falar sobre questões feministas. É possível que o status econômico mais elevado das Feministas Radicais no Ocidente – que tem mais a perder (carreiras, respeitabilidade, status, dinheiro) é o que impulsiona seu anonimato online e seu silêncio na vida pública.

Na Coréia do Sul, as leis atuais permitem que uma mulher aborte apenas se ela tiver consentimento de um parente homem ou de seu namorado/marido/parceiro. Se a mulher conseguir abortar sem a permissão do homem (abortando em outro país ou tendo um amigo que finja ser o namorado, por exemplo) ela corre o risco de ser julgada e condenada ou multada em até U$ 2.000. As feministas lutaram bravamente para mudar essa lei e, em abril, a Corte Constitucional da Coréia do Sul julgou que a lei que criminalizava o aborto era inconstitucional. A Corte deu ao Parlamento até o fim de 2020 para implementar a nova lei, uma vitória óbvia para o movimento.

Em fevereiro, o Partido das Mulheres foi criado, chegando a 8.000 membras em março — um número que agora cresceu para 10.000. O Partido visa representar os interesses de todas as gerações, e por isso tem 5 líderes, cada uma de uma década diferente: uma adolescente, uma mulher nos seus 20, 30, 40 e 50 anos. Embora o partido tenha conseguido mais de 200.000 votos, elas não conseguiram nenhum cargo. No entanto, o Partido das Mulheres conta com grande apoio, particularmente de mulheres jovens que, ao contrário do ocidente, são as maiores divulgadoras do Feminismo Radical. Teoricamente, estima-se que ao redor de 60 mil moças poderiam ter votado no Partido das Mulheres, se elas não fossem menores de 18 anos.

Mudar a linguagem muda a cultura

Em resposta às recentes vitórias feministas, os masculinistas da Coréia do Sul que se opõem ao movimento feminista mudaram de tática e começaram a afirmar que na verdade desejam “igualdade”, em vez da “violenta” exclusão e preconceito que eles dizem que o Feminismo Radical exige. A adoção da retórica liberal é notavelmente semelhante àquela dos transativistas ocidentais que se opõem à priorização de mulheres no feminismo. Os homens da Coréia do Sul são relativamente organizados e às vezes fazem ações. Jae-gi, um homem que criou um site para MRAs, pulou de uma ponte para demonstrar a difícil situação dos homens devido ao feminismo, e por acidente foi empalado analmente por um galho subaquático e morreu. Desde então, Jae-gi se tornou um verbo que significa suicídio masculino, e as feministas dizem aos masculinistas “vá se Jae-gir!!”, que significa basicamente “foda-se, morra!”.

Pode parecer rude, mas esse é um exemplo de “espelhamento”, uma tática em que as mulheres empregam reversões linguísticas e jogos de palavra à língua coreana. A criação de verbos como “Jae-gi” é uma resposta direta ao abuso verbal e físico por qual as mulheres passam, tanto na internet quanto na vida real, pelas mãos dos homens.

Com mais de 1 milhão de palavras, o coreano tem mais que o dobro do vocabulário que da língua inglesa. As regras gramaticais do coreano facilitam a criação de novas palavras e expõem o quanto a língua é usada para reprimir as mulheres. A palavra “pais” em coreano é ‘부모님’(bu-mo-nim) — “bu” [1] significa “pai” e “mo” significa “mãe”, colocando o pai na frente porque o homem é considerado mais importante. Em vez disso as feministas coreanas começaram a usar o termo ‘모부님’(mo-bu-nim), mudando a ordem para que “mãe” venha primeiro. A palavra “carrinho de bebê”, em coreano, é ‘유모차’(yu-mo-cha) — “yu” significa criança, “mo” significa mãe” e “cha” significa “cadeira de rodas”, o que sugere que o cuidado infantil é reservado às mães. As feministas mudaram a palavra para “유아차” (yu-ah-cha) — “yu-ah” significa “criancinha”, então a palavra “mãe” foi removida e agora a palavra significa “carrinho de criança” (similar ao termo “carrinho de bebê”). Ajustes como este são possíveis em várias palavras, permitindo que seus significados sejam alterados.

O termo “6.9” (literalmente o número 6,9) é outro exemplo de como as mulheres “espelharam” e responderam a uma cultura que valoriza as mulheres de acordo com o tamanho de seus corpos. 6.9 se refere ao tamanho médio (em centímetros) do pênis de um homem coreano. Usar o termo nas mídias sociais respondendo às discussões com os homens é um modo de envergonhá-los, assim como as mulheres se envergonham quando os homens discutem o tamanho de seus seios ou outras partes de seus corpos, além de servir para diminuir o poder que eles acreditam que possuem devido a seus pênis.

Infelizmente também existem adições misóginas novas à língua, graças às comunidades online como o ILBE, onde homens podem trocar fotos de familiares nuas para ganhar curtidas e capital social. Os usuários criaram expressões como “As mulheres deveriam apanhar a cada três dias, como o peixe seco, para que se tornem mais gostosas” e “Ponha uma lâmpada na vagina e a quebre”, que entraram recentemente para o vernáculo popular.

Esses tipos de expressão são considerados banais na Coréia do Sul, de modo que as feministas coreanas desenvolveram uma nova linguagem como resposta, redefinindo termos misóginos.

Feministas Radicais estrategicamente redefiniram o termo “feminina” para que signifique mulher forte, poderosa e ambiciosa. Elas também redefiniram “masculino”, para que signifique inveja, magreza, infantilidade e o desejo de se emperiquitar. O “espelhamento” faz com que as pessoas se lembrem de quantos termos misóginos elas usam diariamente, sem sequer notar, mas também gera uma forte negação reativa a respeito das expressões sádicas usadas contra as mulheres através do humor. Com “feminilidade” redefinida, as mulheres coreanas buscam características como força e excelência, concentrando-se no autodesenvolvimento para alcançar suas próprias ambições. O espelhamento é uma maneira pela qual as mulheres usam a linguagem para tirar o controle dos homens.

Um modelo para o ocidente

O movimento feminista sul-coreano se desenvolveu a partir de condições particularmente misóginas, comparadas com o ocidente, em conjunto com melhores oportunidades para organização política, criando uma situação em que a ação radical era tanto necessária quanto viável. Essas circunstâncias únicas e contraditórias produziram condições sociais em que a ação radical das mulheres era tão possível quanto urgente.

O movimento feminista sul-coreano não está em total acordo interno, mas o que o diferencia do ocidente é que suas diferenças são discutidas — não apenas online, mas na vida real — e o debate direto não é considerado uma força destrutiva que deve ser evitada a todo custo, mas algo aceito e parte necessária da política. Por causa da presença desse movimento verdadeiramente próspero existe um maior senso de comunidade e cooperação.

As mulheres do Ocidente podem aprender muito com suas irmãs coreanas: sua habilidade para se organizar coletivamente, seu foco crucial em política, sua inventividade e engenhosidade e, talvez o mais significativo, sua prática de levar a política às ruas.


Notas

[1] Nota da revisora: apesar de, na romanização do Hangul (o alfabeto silábico coreano), o símbolo “ㅂ” normalmente ser grafado como equivalente ao “B”, a pronúncia de “비” (bi) é um pouco mais complicada: faz-se um bico com a boca como se fosse pronunciar um B, mas na verdade faz-se um P soprado, quase um F.

[2] Nota das tradutoras: Finalmente um texto longo e bastante esclarecedor sobre as práticas do movimento de libertação das mulheres sul coreanas! Nós já havíamos ouvido falar do assunto há um tempo, mas não havíamos visto nenhum material tão pessoal. Parece-nos muito específico da Coreia do Sul que o movimento tenha um caráter identitário tão forte e mesmo assim se mantenha inabalado. Para nós, é questionável essa possibilidade de se recusar práticas de feminilidade sem sofrer represálias no Ocidente (ou em lugares sob influência do chamado Ocidente, como o Brasil): a possibilidade das mulheres perderem suas posições, empregos ou prestígio por se posicionarem ou atestarem o óbvio evidencia o quão frágeis são essas conquistas e liberdades. Uma vez que a pressão do masculinismo se faz sentir, mais mulheres têm se posicionado. Quanto mais próximas de posições de poder e independência, menor a possibilidade de sofrer os danos do contra-ataque — vide o caso de J.K. Rowling.


Tae Kyung Kim é uma estudante da Universidade de Mulheres de Sungshin. Siga-a no Instagram ou faça contato por email: dohsmath@gmail.com.

Jen Izaakson é uma candidata ao doutorado do CRMEP. Siga-a no Instagram ou faça contato por email: jenizaakson@gmail.com.

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Resumos

A contraditória relação entre o aborto e as mulheres da Direita [RESUMO]

Adaptado de: DWORKIN, Andrea. “Abortion”. In: Right-Wing Women. Nova York: Perigee Books, 1983. P. 71-105.


Andrea Dworkin, autora de Right-Wing Women.

Antes do aborto ser legalizado nos EUA, as estatísticas sobre ele eram criadas em cima das evidências que haviam disponíveis: depoimentos de mulheres e médicos, casos que deram errado e resultaram em atendimentos de emergência ou mortes. O perfil da mulher que abortava ilegalmente era: casada e com filhos, demonstrando que a ligação entre aborto e imoralidade sexual é falsa.

Essas mulheres permanecem em silêncio sobre o assunto e se dissociam das outras que realizaram o procedimento, se vendo como exceções, mulheres respeitáveis que tiveram que recorrer a isso em um momento de desespero. Admitir ter feito aborto seria como admitir sofrer violação e estar em uma posição vulnerável.

Há também o medo de ter feito algo imperdoavelmente errado, uma vez que qualquer coisa tem mais valor que a própria vida delas. Esse medo de ter cometido assassinato existe porque homens assumem em suas oposições ao aborto que se mulheres tivessem tido essa escolha, poderiam tê-los abortado. Coloca-se uma responsabilidade imaginária na mulher por vidas adultas já existentes a partir do óvulo fertilizado porque não é aceitável que mulheres afirmem possuírem existências separadas dos homens. Mulheres, aqui, não têm direito a um corpo fora dos domínios dos homens.

O medo e o silêncio acompanham uma experiência que só mulheres têm, e que são os seus maridos que as colocam nessa situação: o abortista termina o trabalho que o marido começou. O aborto é considerado um ato egoísta e de rebelião, sendo a mulher punida pela culpa de dispôr de seu útero conforme lhe convém e um modo estranho de dizer não.

As mulheres não podem ser responsabilizadas por gravidezes indesejadas porque não são elas que controlam as condições em que são engravidadas. O direito sexual do homem sobre sua esposa é garantido na lei, de modo que o estado define o uso sexual do corpo da mulher. Mesmo quando o estupro dentro do casamento é proibido por lei, o homem dispõe de outros meios para garantir a coerção sexual.

O casamento é a prova irrefutável da posição de desigualdade das mulheres. A lei é um instrumento da religião, que garante o direito do homem sobre o corpo da mulher abençoado por deus. Entretanto, a pressão para a submissão vem de várias fontes. A gravidez é uma consequência dessa submissão, e as mulheres vivem em um contexto de sexo forçado. O repúdio das mulheres ao estupro e sua vontade de liberdade são interpretados como aversão ao sexo.

O sexo forçado, geralmente a penetração, é um problema central na vida de toda mulher. Elas serão avaliadas pelos homens de acordo com a sua relação com a penetração, e tudo nela deve ser um sinal de sua aceitação dessa situação. O coerção que as mulhers sofrem dentro do casamento seria considerada coerção estatal caso elas não fossem mulheres, mas essa coerção é disfarçada por uma montanha de propaganda que busca fazer as mulheres se conformarem com a feminilidade.

A feminilidade é a aceitação do sexo nos termos dos homens e pode ser definida como submissão ritualizada. A propaganda da feminilidade, em tempos de resistência feminista, prega que o sexo pode ser bom se as mulheres o fizerem direito, e dentro da esfera da dominação dos homens. As regras da feminilidade quebram o espírito das mulheres e as treinam para desejar e depender dos homens. As mulheres são submetidas aos homens através da ignorância a respeito do sexo, vendo-se como buracos. Se elas soubessem o propósito deles para elas, repudiariam tudo, uma vez que o uso que eles fazem delas nada tem a ver com a mulher enquanto indivíduo.

Apesar da propaganda, a feminilidade precisa ser imposta à força. A força (e o sexo forçado) é o que mantem o vínculo sexual dos homens às mulheres, e se ela não fosse necessária, não seria tão disseminada. A violência física, o abuso de meninas, a manutenção das mulheres em estado de pobreza e dependência econômica, e a propaganda da feminilidade são o que permitem a manutenção da dominação.

É impossível falar de sexualidade feminina fora do contexto de sexo forçado; independente dos gostos ou experiências individuais de cada mulher, todas elas vivem nesse contexto. A força usada no sexo é tornada ela mesma “sexy”, romantizada e naturalizada. A coerção sexual é o que molda as mulheres à submissão e viola os limites de seu corpo. É pela penetração que os homens asseguram sua dominação e o direito ao uso do corpo das mulheres: a centralidade da penetração não tem nada a ver com reprodução ou prazer, mas acaba se tornando um sinônimo de sexo porque é uma das mais emblemáticas expressões da dominação masculina. É pelo intercurso sexual que a mulher é moldada.

O estupro e o sexo marital são formas opostas de expressão sexual apenas quando as mulheres são vistas como propriedade sexual, quando a propriedade de um homem é violadas por outro. É somente quando a mulher é reconhecida como um ser humano que o estupro é reconhecido como tal. Se o estado regula o uso da força sexual contra as mulheres, é o estado quem distingue o sexo “normal” do estupro. O consentimento se torna a aquiescência passiva, e esta a participação padrão das mulheres no sexo. E se as mulheres consentem com o que é feito a elas, não há como sinalizar, provar ou mesmo sugerir estupro. É o sexo forçado no casamento que valida todas as outras formas de uso da força sexual contra as mulheres.

Existe a crença de que os homens usam a força porque são homens, e também a crença de que as mulheres respondem sexualmente à violência infligida a elas. Existe toda a sexualização da violência e a crença de que a mulher casada é a mais protegida de todas: se está certo usar a força contra a mulher casada, contra que mulher isso será errado? A definição da mulher no contexto de dominação é feita nos termos de sua função, que é ser fodida. Se ela desperta desejo em um homem, é porque ela já é adulta o suficiente e, presumivelmente, já é uma mulher. Uma vez que uma mulher é fodida, ela cumpriu a sua função enquanto mulher e pode ser legitimamente fodida.

No que diz respeito à gravidez, se é possível forçar uma mulher a conceber dentro do casamento, e se a força é a norma, não existe diferença para a gravidez fruto de estupro ou incesto. O estupro só será considerado enquanto tal para os homens se o emprego da força for monstruosamente brutal. Se a função da mulher é ser fodida, se ela estiver grávida é porque ela já foi fodida. Ser fodida não viola a sua integridade de mulher, porque ser fodida é o que significa a integridade da mulher sob o sistema de dominação. O reconhecimento de alguns casos de estupro se dá pela vontade do homem de não reconhecer os frutos do estupro de outro homem — essas exceções existem para protegê-los. O aborto só é tolerado quando ele protege os homens.

O problema da revolução sexual é que ela esteve o tempo inteiro nas mãos dos homens. A ideia central era de que o sexo era bom. No caso das meninas, significava que elas queriam ser fodidas. A filosofia da revolução sexual vem de antes dos anos 1960 e se manifestou na esquerda de várias formas. Segundo esse pessoal, se fazia guerra porque se odiava o sexo/amor. Os homens que resistiram à convocação para a guerra deixaram seus cabelos crescer e foram comparados a covardes, a garotas. Por causa disso, muitas delas acreditaram que eles eram seus aliados.

As jovens mulheres eram idealistas e, como não corriam o risco de serem convocadas para a guerra, tinham no homem negro a sua figura para demonstração de empatia. Estupro era visto como uma arma racista para prejudicar homens negros. Essas jovens eram idealistas porque acreditavam que a paz e o amor prometidos eram para elas também. Elas não queriam a mesma vida que as suas mães tinham e aceitavam as ideias de amor livre e liberdade sexual dos homens porque isso as tornava diferentes das suas mães.

O radicalismo sexual dessa época era definido em termos masculinos: número de parceiros, frequência do sexo, variedade sexual (sexo grupal), disposição de se engajar em atos sexuais. Supostamente deveria valer para ambos os sexos. O estupro era comum e o lesbianismo jamais aceito em seus próprios termos. A homossexualidade masculina era tolerada, mas desprezada porque o homem heterossexual não toleraria ser fodido como mulher. O sonho das mulheres nessa utopia era a transcendência sexual, o sonho de ser menos mulher em um mundo menos masculino, uma erotização da igualdade fraterna.

A contradição das mulheres dessa época era buscar a liberação sexual justamente através do ato que mais reifica a dominação. A contracultura ficou cada vez mais agressiva e dominada pelos homens, enquanto que as mulheres se viram obrigadas a serem objetificadas e comercializadas em pornografia e tráfico, ou serem socialmente segregadas nos papéis tradicionalmente femininos. A liberação sexual não funcionou para as mulheres, e sua consequência acabou sendo a de libertar os homens para fazer uso das mulheres fora das restrições burguesas. Ao interagirem sexualmente com uma maior variedade de homens, as mulheres descobriram que sua individualidade era irrelevante diante da prática sexual masculina generalizada.

A ideologia do movimento de liberação sexual dos anos 1960 assumia que todo mundo queria fazer sexo o tempo todo, e não levava em conta o estado subordinado das mulheres. Segundo eles, a aversão das mulheres ao sexo era resultado e prova da repressão sexual. Havia a crença generalizada de que as mulheres não recusariam sexo se não fossem reprimidas, nem os homens precisariam fazer uso da força. O estupro era negado por razões políticas se o estuprador era negro e a mulher não. Por outro lado, se um estupro racial era fabricado, jamais era ignorado como falso. Quando uma mulher negra era estuprada por um branco, o reconhecimento do estupro enquanto tal dependia das alianças políticas de negros e brancos naquele território social específico. A mulher negra estuprada por um homem negro carregava o fardo de não poder prejudicar sua própria raça, não chamando atenção para a brutalidade cometida contra ela.

Em momento algum a ideologia da liberação sexual problematizou o estupro ou lutou pelo fim da subordinação social e sexual das mulheres aos homens: sequer reconheceu esses problemas. As mulheres eram punidas por qualquer tipo de limites que quisessem estabelecer em suas relações.

A gravidez era um problema e um real obstáculo às demandas masculinas por sexo, e tornava as mulheres relutantes e preocupadas. Nessa época a pílula não era tão fácil de se conseguir e nenhum outro método era mais seguro ou acessível. Por mais que as mulheres tolerassem ou gostassem do sexo em que participavam, para elas as consequências eram dolorosas e sangrentas, enquanto que os homens perdiam apenas talvez dinheiro. As formas de convencer as mulheres a cooperarem era tratar a possibilidade da gravidez como “natural” ou prometer uma criação comunal das crianças. Ao invés das punições tradicionais, a mulher que engravidava era frequentemente abandonada. A liberdade para os homens era foder, e a foda terminava para os homens quando a foda acabava. O fato da gravidez era um poderoso antiafrodisíaco, e a visão das mulheres abandonadas tornou-as um pouco mais preocupadas.

Foi justamente a realidade da gravidez que fez do aborto uma prioridade política alta para os homens nos anos 1960. A descriminalização do aborto tornaria as mulheres totalmente acessíveis, e foi por isso que se tornou uma prioridade da esquerda na época. E foi aí que as mulheres que viviam políticas radicais na contracultura se voltaram ao feminismo.

Feministas apontaram que mulheres eram excluídas de grupos políticos simplesmente porque o cara com quem elas estavam saindo no momento não estava mais afim, ou ainda que em certos contextos as mulheres eram excluídas ou classificadas como puritanas porque não estavam dispostas a serem estupradas. Houve o reconhecimento de que os camaradas eram na verdade exploradores cínicos como qualquer outro explorador. Conversando, as mulheres descobriram que suas experiências eram idênticas, indo do sexo forçado à humilhação e ao abandono. Os homens queriam as mulheres para foder, não como companheiras de revolução.

Por conta disso, as mulheres resolveram formar seu movimento autônomo, que tinha como premissa central a ideia de que a liberdade das mulheres não é possível sem que ela tenha o controle absoluto sobre seu corpo, tanto no sexo quanto na reprodução. Isso incluía não apenas o direito ao aborto, mas também o direito de dizer não ao sexo. Para os homens, as feministas eram as estraga-prazeres, e desde então eles tem trabalhado para frear os avanços do movimento. O direito ao aborto era uma parte intrínseca e essencial aos homens na revolução sexual, a liberdade das mulheres não tinha a menor importância.

As feministas lutaram a batalha pela descriminalização do aborto praticamente sozinhas nos EUA. A partir de 1973, a indiferença masculina se transformou em hostilidade, uma vez que o direito ao aborto conseguido naquele ano não levou as mulheres a abrirem as pernas. Ideias a respeito de traumas sofridos no útero e psicologia fetal floresceram na esquerda sem qualquer influência de pastores de direita; posteriormente, a direita iria defender a proteção de óvulos fertilizados como se fossem pessoas. O argumento do aborto como arma genocida contra negros e outras etnias ganhou tração política, mesmo diante do fato de que são as mulheres negras e latinas as que mais morrem em abortos ilegais. Alguns pacifistas da esquerda comparavam o aborto com armas nucleares.

O fim da fodinha fácil mudou as prioridades na esquerda. Havia ressentimento entre os homens pelo fato de as mulheres terem se retirado da revolução sexual: se uma mulher não servia para foder, ela não existia. A esquerda trabalhou deliberadamente contra o direito ao aborto, seja se posicionando ativamente, seja ignorando completamente o assunto. Esses homens envelheceram e agora queriam ter os seus bebês. A gravidez compulsória era a única forma de assegurar que eles pudessem tê-los.

As mães das garotas dos anos 1960 pareciam sexualmente conservadoras e diziam que suas filhas iriam se machucar, mas não diziam como nem porquê. Para essas mulheres, o sexo era uma obrigação do casamento. Elas ensinavam suas filhas a respeitarem os homens enquanto classe e, ao mesmo tempo, a não fazer sexo com eles. Essas jovens não entendiam a ambiguidade dessa mensagem: as mulheres tentavam proteger suas filhas dos homens tentando direcioná-las para um único homem bom, ensinando-as a navegar pelo sistema de dominação masculina. Não havia vocabulário para explicar essa ambivalência do sexo — aceitável em alguns contextos como o casamento, mas não em outros. O silêncio a respeito do assunto por parte dessas mães era um jeito de evitar que suas filhas descobrissem que tipo de vida elas viviam.

Uma característica essencial da dominação masculina é manter as mulheres distraídas e ocupadas com os detalhes dela, impedindo-as de conversarem a respeito da natureza da força que as domina. Essas mães foram incapazes de deter a esperança e o entusiasmo trazidos pela liberação sexual — elas não podiam conversar e contar o que sabiam sobre a natureza e a qualidade da sexualidade masculina, dentro de sua própria experiência no casamento. O que essas mães sabiam sobre a promiscuidade é que o que um homem é capaz de fazer, dez também são. Suas filhas não sabiam o que os homens poderiam fazer com elas, mas elas não tinham nenhuma outra alternativa a oferecer. O repúdio que essas mães tinham do sexo não era visto como tendo uma causa objetiva.

As mulheres da direita cresceram em movimento político. O que elas têm a dizer a respeito do aborto está relacionado ao que elas sabem a respeito do sexo, e elas sabem algumas coisas horríveis a respeito. Elas viram os homens se utilizarem cinicamente do aborto para tornarem as mulheres mais acessíveis. Depois que o aborto foi legalizado, elas viram um movimento social em direção à ampliação do acesso sexual às mulheres sob os termos da dominação masculina expresso na pornografia — e relacionam as duas coisas. Elas acreditam que o que a direita tem a oferecer é um pouco menos cruel.

As mulheres da direita acreditam que a promiscuidade generaliza, enquanto que o casamento contém, a força destruidora dos homens — um de cada vez. Elas continuam silenciosas a respeito da natureza do sexo dentro do casamento tradicional, mas o que elas falam se baseia em experiência real. As mulheres da direita também acreditam que a gravidez é a única consequência do sexo que torna os homens responsáveis pelos seus atos sobre elas, e é por isso que se opõem ao aborto e aos anticoncepcionais. Sem a inevitabilidade da gravidez, se ampliariam as crueldades que os homens poderiam fazer às mulheres.

As mulheres da direita enxergam o cinismo dos homens da esquerda, e sabem que as posições políticas deles são sempre congruentes com o sexo que eles querem. Elas também sabem que as mulheres podem se foder querendo ou não nas mãos deles, e fazem o melhor acordo de que são capazes dentro de suas possibilidades. A gravidez é uma arma de sobrevivência dessas mulheres. Ela confirma, assim, o que aprendeu a respeito de sua própria natureza enquanto mulher: que ela merece ser punida, e que a punição por fazer sexo é o aborto ilegal. Elas se sentem envergonhadas porque é mesmo vergonha o que se sente quando se é usada para sexo. Uma vez que a vergonha confirma a sua culpa, o aborto ilegal é um sofrimento merecido.

Aborto, sendo ilegal, fica fora do campo de visão das mulheres de direita. Tira da visão delas a opção de escolher não ser uma mãe, a opção de não conformidade ao casamento. As mulheres rebeldes devem fazê-lo em segredo, sem causar confusão em outras mulheres. Sendo ilegal, o aborto coloca a vida e a morte nas mãos de Deus, o homem superior e juiz absoluto. Nenhuma mulher deve ser obrigada a encarar o aborto, até que aconteça com ela. Mulheres que realizam o procedimento e recusam a maternidade, segundo as mulheres da direita, merecem morrer. As mulheres da direita seriam, portanto, mártires, sobreviventes e preocupadas individualmente com a sua própria sobrevivência.

Não existe medida melhor para se calcular o que o sexo forçado faz às mulheres. O estupro destrói a autoestima e a vontade de sobreviver enquanto ser humano autodeterminado. O treino da feminilidade sobre as meninas e o uso sexual das mulheres no casamento significa a aniquilação de qualquer vontade de liberdade nelas. Seu senso de personalidade está tão danificado que ela prefere correr o risco de morrer a dizer não a um homem que vai fodê-la de qualquer modo, com a benção de Deus e do Estado, até que a morte os separe.