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As feministas devem rejeitar a Esquerda e a Direita

Até que um dos lados comece a se perguntar como suas políticas afetarão as mulheres, as feministas devem rejeitar ambos

Por Louise Perry. Traduzido livremente do original publicado em novembro de 2020 no The Critic.


O texto abaixo está situado no contexto da política feminista anglo-saxônica. Acreditamos que as reflexões que ele traz podem ser úteis para pensarmos a política feminista e suas interações com a política partidária institucional brasileira. No que diz respeito a políticas para mulheres, a Esquerda brasileira abraçou o transativismo sem restrições e assedia violentamente as vozes discordantes — conforme já comentamos aqui e aqui; aqui um blog dedicado a expôr esse tipo de perseguição política. Já a Direita atua dentro dos limites exigidos pela legislação quanto a participação das mulheres entre seus correligionários; qualquer ação à Direita envolvendo os interesses compartilhados das mulheres surge do interesse e da necessidade pessoal delas.

Diante da crise e da aparente imediata ruptura democrática do Estado brasileiro, existem alguns bordões circulando entre a Esquerda que sintetizam mais ou menos as seguintes ideias: “se falou ‘nem esquerda, nem direita’ é porque é de direita”; “falou em ‘terceira via’? É de direita!” O texto de Perry, abaixo, é bastante didático ao delinear como os interesses das mulheres estão além e na transversal do espectro político tradicional. Ele também exemplifica o fato de que, entre os seus supostos aliados, tanto à Direita quanto à Esquerda, as mulheres não são vistas como seres humanos completos e de direito e, portanto, não são vistas pelos homens como parceiras legítimas de luta.

Isso acontece porque um real comprometimento com a luta das mulheres não pode ser feito sem prejuízo aos interesses e prerrogativas dos homens. Nenhum dos lados do espectro político parece querer abrir mão disso.

Para qualquer um que duvidasse da influência contínua do Império Americano, a resposta internacional à morte de Ruth Bader Ginsberg serviu como um sóbrio lembrete. O núcleo político britânico do Twitter — sempre focado em eventos americanos — foi imediatamente tomado por especulações febris sobre quem poderia substituí-la na Suprema Corte dos Estados Unidos. O clube de futebol feminino de Glasgow City anunciou que levaria seu nome em sua faixa como uma homenagem a este “ícone feminista e modelo inspirador”.

Mulheres que conheço que não são americanas, que nunca viveram na América e que passaram muito pouco tempo ali, expressaram sua tristeza sincera. A maioria dessas britânicas enlutadas não seria capaz de nomear um único juiz, digamos, na França ou na Austrália, e talvez nem mesmo neste país. Porém, os eventos políticos americanos sempre recebem um status especial. Esse domínio americano tem um efeito de distorção sobre o tom e as prioridades do feminismo neste país, e geralmente às nossas custas, já que feministas britânicas que mantêm seus olhos fixos no outro lado do Atlântico, olhando para a Big Sister America em busca de orientação, muitas vezes falham em lembrar que as feministas americanas não conseguiram muita coisa.

Trata-se de um país sem direitos maternos garantidos pelo Estado, que nunca conseguiu adotar a Emenda da Igualdade de Direitos depois de quase um século de campanha, que está na metade inferior do ranking mundial de representação política feminina e que nunca teve uma chefe feminina do Estado. Sim, produziu algumas das pensadoras feministas mais interessantes e influentes da história. Mas é também a sede mundial da indústria pornográfica.

Feministas americanas passaram quase meio século lutando com unhas e dentes para defender sua mais preciosa e frágil conquista, o caso Roe vs Wade, que desde 1973 impede as legislaturas estaduais de proibir o aborto no primeiro trimestre. A perda de Ginsberg na Suprema Corte pode colocar Roe em perigo, o que foi um dos principais motivos para a ansiedade manifestada após a notícia de sua morte. Mas esta é uma questão feminista que tem muito menos ressonância no continente britânico, uma vez que o aborto de até 28 semanas foi legalizado na Inglaterra, País de Gales e Escócia em 1967. Para as feministas americanas, o aborto é, muito compreensivelmente, a questão preeminente; para as feministas britânicas, não.

Essa diferença particular entre a Grã-Bretanha e a América representa uma diferença mais geral entre os dois países, que teve um efeito importante na história do feminismo anglófono. Simplificando, a direita americana tem um caráter totalmente diferente da direita britânica: é mais barulhenta, mais extrema, mais religiosa e também mais poderosa. Isso representa uma ameaça genuinamente formidável para os defensores de Roe e, de fato, para os defensores de alguns dos princípios feministas mais básicos: os direitos de uma mulher de ganhar dinheiro, possuir propriedade e, de viver uma vida legal e econômica separada completamente da de seu pai ou marido.

O livro de Andrea Dworkin de 1978, Right-Wing Women, dá uma ideia do medo que as feministas americanas têm da direita. Sua questão central — por que qualquer mulher se aliaria à direita? — é respondida em uma única palavra: medo. As mulheres, argumenta Dworkin, têm justificadamente medo do mundo, e os homens de direita prometem mantê-las seguras. Em troca, essas mulheres devem abominar o aborto, o lesbianismo, o anti-racismo e o socialismo.

Ela escreve sobre como conversou com mulheres de direita e achou-as criaturas alienígenas: “As conservadoras eram ridículas, aterrorizantes, bizarras, instrutivas e, como outras feministas relataram, às vezes estranhamente comoventes”. Essas mulheres tinham, na opinião de Dworkin, feito um pacto com o diabo. E ainda assim Dworkin foi capaz de trilhar um caminho que outras feministas americanas parecem incapazes de seguir. Embora ela tenha sido explícita em sua rejeição à direita, ela sempre permaneceu desconfiada da esquerda. É em Right-Wing Women que uma de suas declarações mais famosas pode ser encontrada:

A diferença entre a esquerda e a direita quando se trata de mulheres é apenas sobre em que ponto de nossos pescoços eles devem pisar com suas botas. Para os homens de direita, somos propriedade privada. Para os homens de esquerda, somos propriedade pública.

O erro que as feministas cometem repetidamente, não apenas na América, mas também neste país, é priorizar a animosidade contra a direita em vez de ter uma compreensão clara da atitude que a esquerda assume em relação às mulheres. Os resultados desse erro estão, acho eu, começando a se tornar claros demais para serem ignorados.

Não estou sugerindo que as feministas devam unir forças com a direita, certamente não com a extrema-direita religiosa sobre a qual Dworkin escreveu. Estou sugerindo outra coisa: que as feministas deveriam se libertar tanto da esquerda quanto da direita, uma vez que ambas as tradições políticas eram até muito recentemente inteiramente dominadas por homens e interesses masculinos, o que significa que uma forma produtiva de política feminista precisa ser deliberadamente ortogonal ao espectro político tradicional.

Para as americanas, essa sugestão pode parecer alarmante demais para ser aceita, dado o poder temível de sua direita, que tantas vezes faz com que as feministas voltem correndo para os braços traiçoeiros da esquerda. Mas na Grã-Bretanha, o distanciamento do feminismo tanto da esquerda quanto da direita já pode estar ocorrendo.

O recente triunfo das feministas britânicas contra as reformas propostas para a Lei de Reconhecimento de Gênero (GRA, sigla de Gender Recognition Act) ilustra esse ponto. Em 2017, o governo de Theresa May anunciou uma enquete sobre o processo pelo qual as pessoas “trans” podem mudar seu sexo legal. A preferência de grupos de defesa LGBT como Stonewall é um sistema de auto-identificação, que permitiria às pessoas mudar seu sexo legal com o mínimo de controle: sem consulta psiquiátrica, sem necessidade de “viver como” o sexo oposto por um período antes de fazer um trâmite legal, sem necessidade de qualquer intervenção médica.

A auto-identificação permitiria que qualquer pessoa, a qualquer momento, simplesmente se declarasse membro do sexo oposto, e o governo seria obrigado a reconhecer oficialmente essa declaração. Para os defensores da auto-identificação, este seria um passo bem-vindo no sentido de desmedicalizar e desestigmatizar a identificação como “transgênero”. Para uma parte das feministas, no entanto, isso é considerado profundamente perigoso.

O transativismo se dedica a apresentar as diferenças físicas entre homens e mulheres como triviais e cosméticas, facilmente superáveis por meio de intervenções médicas, ou então totalmente negligenciáveis. Feministas críticas de gênero que se opõem ao ativismo “trans” insistem, em vez disso, que as diferenças são profundamente importantes. As mulheres não apenas têm filhos, mas também são menores e mais fracas do que os homens, o que leva a um desequilíbrio inerente de poder no nível interpessoal. Na verdade, a maioria dos homens pode matar a maioria das mulheres com as próprias mãos, mas não vice-versa.

Feministas críticas das políticas de gênero, portanto, levantaram a questão da facilidade com que homens mal-intencionados poderiam prejudicar as mulheres ao ganhar acesso a espaços exclusivos para elas, como refúgios, prisões e vestiários através de um sistema de auto-identificação. Esses medos não são fantasiosos, uma vez que já se concretizaram mesmo sob o sistema existente e supostamente mais seguro, quando, por exemplo, o agressor sexual em série Karen White (nascido Stephen Terence Wood) foi transferido para uma prisão feminina e posteriormente condenado por agredir sexualmente as presidiárias. Se a auto-identificação for introduzida, podemos esperar um aumento no número de Karen Whites.

No entanto, qualquer pessoa que tenha prestado a mínima atenção neste debate nos últimos anos saberá que as preocupações das feministas críticas de gênero não foram bem recebidas por muitas figuras proeminentes da esquerda, que enquadraram a tensão entre os desejos das pessoas “trans” e os medos das mulheres, não como um conflito desafiador que necessita de deliberação cuidadosa, mas como uma expressão de preconceito feminista. Mulheres com questionamentos às políticas de gênero perderam seus empregos, foram presas e perseguidas pela imprensa simplesmente por criticarem o ativismo trans, e muitas delas ficaram muito, muito zangadas.

Mas essas feministas agora parecem ter triunfado. Como James Kirkup escreveu após o anúncio de que a GRA não seria reescrita para incluir a identificação pessoal:

O anúncio de hoje é o produto de notável organização política de base… A verdadeira oposição política à auto-identificação veio de mulheres “comuns” que viram a proposta como uma ameaça potencial aos seus direitos e posições legais. Algumas delas tiveram contato com esse problema pela rede social Mumsnet… Outras participaram das reuniões da Câmara Municipal do A Woman’s Place UK, um grupo criado por mulheres com raízes no movimento sindical.

A menção ao sindicalismo aqui é importante porque a maioria das feministas britânicas que criticam gênero vêm da esquerda, e muitas estiveram ativamente envolvidas no Partido Trabalhista, no Partido Verde ou em outros grupos políticos explicitamente de esquerda. Feministas de esquerda com críticas a políticas de gênero muitas vezes apontam para esse fato como evidência de que não são motivadas por intolerância, argumentando que é a esquerda dominante que é culpada de hipocrisia por desconsiderar as preocupações muito reais das mulheres.

Essa relação conflituosa com a esquerda é algo que muitos comentaristas americanos parecem achar confuso. Um artigo de 2019 no site da Vox tentou explicar aos leitores as origens de “Terfs” (“Feministas Radicais Trans Exclusionárias”, um termo que a maioria das feministas críticas às políticas de gênero rejeita):

A ideologia “Terf” se tornou a face propriamente dita do feminismo no Reino Unido, ajudada pela liderança da mídia de Rupert Murdoch e The Times de Londres. Qualquer oposição vaga ao pensamento crítico de gênero no Reino Unido traz consigo acusações de “silenciar as mulheres” e um artigo chamativo ou artigo de opinião em um jornal nacional britânico.

O escritor explica a influência do feminismo crítico de gênero na Grã-Bretanha como resultado tanto do “imperialismo histórico” quanto da “influência do movimento cético mais amplo do Reino Unido”. Eu diria que uma explicação muito mais provável é a natureza apartidária do debate na Grã-Bretanha, onde a divisão entre esquerda e direita no debate do GRA não é nada clara. Foi um governo conservador que primeiro propôs as reformas, e um governo conservador que as suspendeu.

Existem defensores e críticos do movimento trans em toda Westminster, onde a ligação com a filiação partidária não é óbvia. Opiniões críticas de gênero podem ser lidas no Spectator e no Morning Star, e enquanto o colunista do Guardian Owen Jones é um dos críticos mais comprometidos do movimento crítico de gênero, a doadora do partido trabalhista britânico J.K. Rowling é hoje em dia sua proponente mais famosa.

Isso significa que as tentativas de desacreditar as feministas críticas às políticas de gênero, associando-as à direita — uma tática que funciona bem na América — simplesmente não vão funcionar aqui. A relação entre a política tradicional de esquerda / direita e este novo movimento feminista é muito nebulosa, e esta é, eu suspeito, a principal razão para o sucesso do movimento. Livre da atração destrutiva do tribalismo, a mensagem crítica de gênero foi capaz de adentrar e atrair apoiadores de todo o espectro político por meio de um simples apelo ao bom senso.

Afinal de contas, apenas um ideólogo comprometido poderia realmente acreditar que permitir que Karen White fosse para uma prisão feminina era uma boa ideia. O argumento crítico de gênero sempre foi persuasivo: ele só precisava de um público disposto a ser persuadido. Na América, a polarização política é muito severa, e a extrema-direita muito assustadora, para permitir um debate apartidário. Na Grã-Bretanha, aparentemente isso ainda é possível.

Mas, apesar de seu eventual sucesso, a batalha sobre o GRA trouxe à tona uma tensão latente entre feministas e a esquerda, de onde veio a mais feroz retórica anti-“terf”, e que provou-se como uma fonte de apoio desigual e inconstante. Algumas feministas de esquerda que criticam o gênero ainda preferem pensar neste incidente como um lapso: um momento de loucura da esquerda, fora do personagem e remediado por meio de um retorno à política esquerdista “adequada”. Eu não tenho tanta certeza.

É verdade que as raízes do feminismo estão intimamente ligadas à esquerda. A Segunda Onda foi, em muitos aspectos, modelada no movimento dos direitos civis dos negros na América e movimentos anticoloniais em outras partes do mundo. E o feminismo radical em particular (do qual surge o feminismo crítico das políticas de gênero) é fundado em um modelo de sociedade que é fundamentalmente marxista, em que as mulheres são entendidas como uma classe oprimida, os homens como a classe opressora, e o trabalho reprodutivo e sexual como os bens que são extraídos coercivamente.

Mas a história é complicada porque, embora a Segunda Onda tenha surgido da esquerda mais ampla, também estava frequentemente em conflito com ela. Por exemplo, em 1969, na contra-posse da Nova Esquerda à posse de Nixon em Washington, feministas que se levantaram para falar foram importunadas por camaradas que gritavam: “Tirem-na do palco e fodam-na!” e “Fodam-na em um beco escuro!” A atitude antagônica de alguns homens de esquerda em relação ao feminismo não é nova.

Além disso, em termos de representação política feminina neste país, o Partido Conservador lidera sem dúvida, tendo agora dado ao país duas primeiras-ministras, bem como a primeira deputada a ocupar o seu lugar, Nancy Astor. Enquanto isso, o Partido Trabalhista ainda não elegeu uma líder feminina.

Feministas ligadas à esquerda protestarão que esse tipo de representação é apenas uma fachada, e que Margaret Thatcher, em particular, não pode ser considerada uma feminista de qualquer tipo. Talvez isso seja verdade, mas também é verdade que algumas das legislações mais importantes na história do feminismo britânico do pós-guerra foram aprovadas sob governos conservadores: a introdução do salário-maternidade obrigatório, a criminalização do controle coercitivo e a proibição da mutilação genital feminina.

O mesmo vale para os governos trabalhistas, que introduziram o pagamento de paternidade e aprovaram as leis de aborto e igualdade de remuneração. Ao mesmo tempo, casos de violência sexual e chauvinismo masculino flagrante podem ser encontrados em organizações de direita e esquerda, incluindo o Trabalhismo e os Conservadores. Totalizar os sucessos e fracassos das diferentes partes não nos dá um vencedor claro.

Alguns leitores se perguntarão por que precisamos somar algo. Já que as mulheres representam pouco mais da metade da população e são claramente um grupo de pessoas tão diverso quanto os homens, com sua própria gama de ideias e prioridades políticas, por que deveríamos nos preocupar em falar de “homens” e “mulheres” quando poderíamos fatiar o bolo político ao longo de alguma outra dimensão? Este é um ponto justo. Mas uma afirmação chave do movimento feminista historicamente — e uma que eu defendo, apesar de minha posição não ortodoxa em muitas questões feministas — é que existem semelhanças importantes o suficiente entre as mulheres para dar a elas um conjunto coerente de interesses políticos.

No passado, esses interesses eram freqüentemente desconsiderados ou atendidos apenas de forma seletiva e não confiável por representantes masculinos de vários tipos. Mas, embora muitas vezes não haja conflito entre os interesses de homens e mulheres, em alguns casos há, ou então, uma questão específica das mulheres (saúde materna, digamos) simplesmente não é considerada pela maioria dos homens e, portanto, é inevitavelmente negligenciada em um ambiente político que não pergunta: “E como isso afetará as mulheres?”

Membros proeminentes da esquerda abraçaram o movimento “trans” porque não se importaram em perguntar: “E como isso afetará as mulheres?” Eles viram a questão como resolvida, a conclusão natural do princípio liberal de autodeterminação, o arco da história sempre se curvando em direção à justiça. E esta não é a única questão em que as mulheres foram deixadas na mão pela esquerda.

A indústria do sexo é outra. Um compromisso central da esquerda desde a década de 1960 tem sido o afastamento das normas sexuais burguesas, e esse compromisso agora se resolveu no princípio de que qualquer ato sexual é benigno, desde que todas as partes (nominalmente) consintam. As críticas feministas da pornografia e da prostituição que não aceitam este princípio, e querem chamar a atenção para os muitos abusos que acontecem dentro da indústria do sexo, são rejeitadas na esquerda. Andrea Dworkin escreveu sobre a dor dessa hipocrisia em 1981:

A nova pornografia é de esquerda; e a nova pornografia é um vasto cemitério onde a esquerda foi para morrer. A esquerda não pode ter suas putas e sua política ao mesmo tempo.

A dureza do sistema de justiça criminal é outra fonte de tensão. A criminologista Barbara Wootton disse certa vez: “Se os homens se comportassem como mulheres, os tribunais estariam ociosos e as prisões vazias”. O crime violento (particularmente o sexualmente violento) é cometido em sua maioria por homens, e as mulheres estão em uma posição única por serem frequentemente vítimas, mas raramente perpetradoras. Isso significa que, como grupo, as mulheres têm um incentivo racional para apoiar políticas duras contra o crime, e essas são políticas que são mais frequentemente apoiadas por partidos de direita, especialmente agora, quando “corte às verba da polícia” se tornou um slogan da moda à esquerda.

Muitos na esquerda se sentem desconfortáveis com essa análise do crime baseada no sexo, porque ela atinge de frente a análise do crime baseada na raça, que via de regra é considerada mais importante. Neste país, vimos isso acontecer de forma mais devastadora em Rotherham e em outras cidades afetadas por gangues de aliciadores de crianças. Agora está claro que parte da razão para o fracasso em perseguir os perpetradores foi o medo, por parte de figuras importantes da polícia e das autoridades locais, de que pudessem ser acusados de racismo.

Essa relutância covarde persistiu entre as grandes mentes da esquerda muito depois que o escândalo foi revelado, o que significa que muitas das jovens vítimas das gangues de aliciamento emergiram de seus abusos e ficaram sem ninguém, abandonadas por aqueles que alegam estar mais preocupados com a proteção dos vulneráveis e marginalizados. Algumas dessas mulheres aderiram a campanhas associadas à extrema-direita, acreditando falsamente que ofereciam segurança, quando na verdade não ofereciam nada disso. Houve feministas de esquerda que estenderam a mão para essas vítimas, mas eram mulheres (como Julie Bindel, a primeira jornalista a escrever sobre a história na imprensa nacional) que já tinham uma relação conflituosa com a esquerda. Como Bindel escreveu, “É precisamente porque a esquerda liberal se recusou a lidar com as questões espinhosas em torno de raça e etnia que tipos como o Ukip são capazes de colonizá-lo com tanto sucesso”.

Não há nada de errado com o anti-racismo, as críticas ao sistema de justiça criminal ou o questionamento das normas sexuais burguesas — todas essas atividades são potencialmente feministas. Mas há um problema quando isso é feito sem que ninguém pergunte: “E como isso afetará as mulheres?” Repetidamente, esta pergunta não foi feita na esquerda.

Em vez de persistir em fazer a pergunta, a solução que muitas feministas filiadas à esquerda chegaram, particularmente na América, foi suprimir o pensamento e, sem pensar, absorver em suas prioridades de campanha tudo o que outros grupos na esquerda exigem. Portanto, quando não há conflito entre o que as feministas querem e o que esses outros grupos desejam — quando, por exemplo, os perpetradores da violência contra mulheres e meninas são homens brancos ricos com segurança e privilégios como Harvey Weinstein — então a visão feminista pode vencer. Mas quando um homem vem de um grupo oprimido com uma classificação mais elevada do que as mulheres na lista de prioridades da esquerda (o que significa, até onde posso dizer, qualquer grupo sob o sol), a maioria das feministas de esquerda se curvará imediatamente a seja lá o que quer que seja exigido por eles. Qualquer mulher que se recuse é condenada como “terf”, “Karen” ou pior.

O filósofo político James Mumford escreve em seu livro recente Vexed: Ethics Beyond Political Tribes sobre a natureza restritiva do que ele chama de “acordo ético em lote” — isto é, a obrigação percebida de assinar um conjunto pré-preparado de ideias políticas, em vez de selecionar cada ideia por seus próprios méritos. O acordo ético em lote produz não apenas tribalismo cego, mas também incoerência, uma vez que as ideias dentro dos lotes tradicionais freqüentemente se contradizem. Mumford incentiva os leitores a resistir:

“Nossa melhor chance de acertar, de alinhar nossa ação com o que é bom, depende de nossa capacidade de descartar nossas identidades políticas e afirmar certos princípios fundamentais em todo o espectro político… Precisamos nos libertar de acordos em lote para determinar os cursos de ação corretos.”

Para as feministas, a filiação à esquerda pode ter ressonância histórica, mas é um acordo ruim. Embora não haja razão para não aceitar certas ideias da esquerda — por exemplo, apoio à tributação redistributiva e um estado de bem-estar generoso — existem outras ideias que conflitam inerentemente com os interesses das mulheres, ou então devem ser moderadas por uma consideração cuidadosa das consequências potenciais.

O feminismo britânico precisa parar de olhar para a América, onde a polarização política cada vez pior significa que as feministas relutam em se desvencilhar de uma relação dolorosa, mas familiar com a esquerda, apesar das repetidas demonstrações de que seus interesses nunca foram, e nunca serão, devidamente respeitados. Minha esperança é que o movimento feminista britânico de base que foi estimulado pelo conflito sobre o GRA consiga o que suas irmãs americanas não conseguiram, ao reconhecer a necessidade de deixar a esquerda. Nem a direita nem a esquerda têm o hábito de perguntar consistentemente: “E como isso afetará as mulheres?” Até que isso aconteça, as feministas devem rejeitar ambas.

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Artigos inéditos

Por que as mulheres têm rejeitado a esquerda?

Nessas últimas eleições municipais, uma euforia otimista tomava os candidatos e militantes em campanha, uma resposta natural da luta contra a onda conservadora bolsonarista. No entanto, o efeito que repercutiu nas urnas foi o do refortalecimento da direita “normal”: ainda que o bolsonarismo tenha perdido bastante do seu espaço na esfera municipal, a esquerda retrocedeu mais uma vez. Aumentou o número de mulheres concorrentes e eleitas, e houve algumas primeiras nesse pleito. Aumentou também a participação política das mulheres da direita, buscando se colocar como alternativa ou ocupando o posto de vice, fazendo campanhas que se valiam de sua condição de mulher como atributo positivo para os cargos aos quais pleiteavam. “A mulher mais votada do Brasil”, no entanto, não é uma mulher, assim como alguns outros casos que vêm sendo computados na conta delas. Isso significa muito pouca mudança no panorama representativo, porque mesmo que se afirmem mulheres, essas pessoas não se interessam nem apóiam as urgências específicas da nossa condição sexual.

Quadrinho de Tatsuya Ishida.

Ainda que haja a preocupação com alguns temas que afetam mulheres, pelo menos na teoria, é somente quando elas estão à frente desses projetos que eles avançam, como foi o caso da Lei Maria da Penha, cujo projeto foi relatado por Jandira Feghali. O último avanço na legislação do aborto, o caso dos anencéfalos, foi uma decisão do STF de 2013, baseada em uma argüição da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde; perdeu-se no tempo a última vez em que a esquerda fez algum movimento ativo em direção a conquista da autonomia reprodutiva das mulheres. Por outro lado, projetos carentes de embasamento teórico-científico (ou mesmo dados demográficos básicos) que batem de frente com os direitos a princípio garantidos das mulheres e comprometem sua liberdade e segurança — como os PL João Nery e Gabriela Leite — foram discutidos em um momento em que o Brasil vivenciava o finzinho da sua última onda progressista. Quando a esquerda abraça uma “diversidade” baseada em sentimentos e autoidentidades, não há o que lhe faça olhar para a situação das mulheres, ao contrário: os direitos femininos param de importar.

Existe um punhado de interesses imbricados no que se convecionou chamar de “diversidade” e não é à toa que os patrocinadores dessa causa enfiam tanto dinheiro nela: os objetivos de um movimento como o transativismo não se resumem a acabar com o feminismo. O feminismo é, antes, a pedra no sapato deles, as mulheres inconvenientes que aparecem para acabar com a graça. O que o transativismo promove são ideais masculinistas, fetichistas, e até transhumanistas, uma vez que enxergam o corpo humano como descartável ou substituível por próteses, abrindo caminho através das possibilidades plásticas da Medicina e com a bênção de alguns de seus especialistas. O desprezo pela realidade de carne e osso dos corpos das mulheres fica visível quando seus membros se posicionam favoráveis a exploração sexual — vide o PL Gabriela Leite citado acima —, ao mesmo tempo em que se horrorizam com um cafetão lavajatista; ou ainda quando a gravidez subrogada aparece como alternativa para casais homossexuais, que só não virou pauta por essas bandas ainda por mera questão de a esquerda ter sido atropelada pelo trem do bolsonarismo. Nada disso é novidade, apenas fruto de décadas de disputas internas da maioria masculina que controla a esquerda institucional e mulheres buscando participar na política.

Dado que a esquerda se aboletou dessa esfera pública de atuação, as poucas mulheres que resistem são levadas a um discurso de apaziguamento das diferenças — onde foi parar a diversidade? —, tendo que lidar com masculinistas fantasiados de gravata e de batom. Muitas desistem dessa disputa de soma-zero, às vezes obrigadas a se calarem, quando se dão conta de que a esquerda não se interessa pelas mulheres em sua prática política: a esquerda geralmente “endireita” quando o assunto é mulher. A diferença entre o masculinismo praticado pela direita do masculinismo de esquerda é que os homens do lado de “cá” precisam ser um tanto mais criativos — e ridículos, a ponto de não se diferenciarem da sátira — se quiserem continuar se beneficiando da exploração das mulheres ao mesmo tempo em que buscam passar uma imagem moral condizente com os ideais que pregam e afirmam praticar. Existem mil maneiras de ser misógino, eles apenas inventaram mais algumas.

Programa de humor, ou horário eleitoral gratuito?

À direita, até existe a preocupação de formar politicamente as mulheres que se interessam a militar dentro dos termos dos interesses dos partidos, mas essa empolgação é similiar ou pior que na esquerda: como na esquerda, as mulheres se filiam pela vontade de atuar e terminam tendo que alinhar expectativas caso queiram poder fazer qualquer coisa. Mesmo que a tentativa de disputar o espaço político institucional seja louvável e a resistência das eleitas naqueles lugares já conquistados seja essencial para o movimento de libertação das mulheres, é preciso romper esse ciclo masculinista. A esquerda em disputa não tem como ser conquistada com pedidos encarecidos aos companheiros: mulheres reais estão tendo problemas reais em virtude do masculinismo praticado por homens de todo o espectro político que, se de um lado, não se fazem de rogados no que diz respeito ao papel subalterno que reservam às mulheres, de outro, dizem que eles mesmos é que encarnam o nosso papel, e reservam a nós algo não muito diferente. À esquerda e à direita, as mulheres são empurradas para fora: as mulheres são um Terceiro Excluído no diagrama do espectro político.

Isso não significa dizer que “é tudo a mesma coisa”. Historicamente, a esquerda é a posição daqueles que advogam pela mudança, pela emancipação dos povos, pelo fim do sofrimento daqueles oprimidos pelas estruturas de poder. Escolher entre Bolsonaro e Haddad claramente não é “uma escolha muito difícil” para as mulheres feministas. Se é verdade que Haddad está a anos-luz de distância de Bolsonaro, também é verdade que ele nunca se portou como um aliado de mulheres, muito pelo contrário: seu programa da gestão municipal que visava auxiliar na formação de pessoas em situação de prostituição simplesmente não incluía mulheres, o grupo demográfico mais numeroso e prejudicado na exploração sexual.

Mesmo assim, as mulheres continuam sendo admoestadas à fidelidade de uma forma que nem os seus correligionários mais ilustres sustentam. Não se vê por aí o tipo de cobrança que as mulheres sofrem para serem puras e fiéis ao único lado do espectro que lhes promete alguma salvação, nominal e cheia de ressalvas. Por ousarem verbalizar as suas necessidades e priorizar a associação com outras mulheres igualmente interessadas em nossa libertação coletiva, mulheres são forçosamente rotuladas de “direitistas”, ainda que elas é que se mantenham coerentes com o compromisso da mudança social. O espaço que a esquerda costumar “ceder” para as mulheres sempre foi limitado: em geral, elas o tomam por sua própria competência no jogo político, por sua habilidade de navegar esses entraves todos. O transativismo aparece em um momento em que as mulheres brasileiras não se contentam mais com a subordinação que lhes é forçada e lutam em todas as esferas para se libertarem. É justamente por isso que a campanha do transativismo acontece na disputa pelo significado do sujeito político do feminismo; isso não é uma coincidência. Como a esquerda não vai nem pode sair de si mesma, as mulheres se vêem sem opção: a opção é fazer concessões demais a qualquer lado que se escolha.

O que significa “se associar à direita” quando se trata de mulheres, se os interesses das mulheres raramente estão na pauta da esquerda? Os direitos das mulheres são para quem, senão para todas, inclusive para as conservadoras, as esposas perfeitas, as alienadas politicamente…? Por que nem ao menos conversar com mulheres de outra visão e repertório, mas com interesses comuns, nós podemos? O que a esquerda teme que aconteça a elas se se aproximarem de outras mulheres? Quando foi que mulheres realmente conseguiram alguma coisa que não através de uma coalizão ampla, sem interesses masculinos e masculinistas atrapalhando? Liberais de direita e esquerda se valem do “progressismo” e das associações mais espúrias quando conveniente, mas mulheres são desencorajadas a se associarem entre si em troca de uma promessa vazia.

Falta à esquerda voltar às suas raízes e abandonar essas modas que, crias de seu próprio ambiente intelectual, casam direitinho com as políticas neoliberais e individualistas de direita a ponto de serem praticamente indistinguíveis. Cabe a nós, feministas radicais, sermos mais uma vez as portadoras das más notícias: sendo metade da mão de obra, da população, dos eleitores habilitados a votar, metade de todas as pessoas do mundo, não somos nós, mulheres, que lhes devemos fidelidade; a esquerda que lute na recuperação da nossa confiança para trabalharmos juntos. Nós simplesmente não temos porquê nos defender das acusações infundadas do crime de “associação à direita”, porque esse tipo de acusação só serve para tirar de nós um reforço de complacência: não somos nós que temos que convencer mais da metade do eleitorado de que temos uma boa proposta (ou mesmo qualquer proposta) para as mulheres enquanto agimos como um bando perverso. As mulheres não perdem nada se unindo e organizando uma pauta comum em função de seus próprios interesses, uma vez que essas oportunidades nos enriquecem na troca de experiências das diferentes formas de ser mulher e de suas muitas necessidades compartilhadas. Somos nós que estamos só começando, viu, Sabrina!

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Resumos

A contraditória relação entre o aborto e as mulheres da Direita [RESUMO]

Adaptado de: DWORKIN, Andrea. “Abortion”. In: Right-Wing Women. Nova York: Perigee Books, 1983. P. 71-105.


Andrea Dworkin, autora de Right-Wing Women.

Antes do aborto ser legalizado nos EUA, as estatísticas sobre ele eram criadas em cima das evidências que haviam disponíveis: depoimentos de mulheres e médicos, casos que deram errado e resultaram em atendimentos de emergência ou mortes. O perfil da mulher que abortava ilegalmente era: casada e com filhos, demonstrando que a ligação entre aborto e imoralidade sexual é falsa.

Essas mulheres permanecem em silêncio sobre o assunto e se dissociam das outras que realizaram o procedimento, se vendo como exceções, mulheres respeitáveis que tiveram que recorrer a isso em um momento de desespero. Admitir ter feito aborto seria como admitir sofrer violação e estar em uma posição vulnerável.

Há também o medo de ter feito algo imperdoavelmente errado, uma vez que qualquer coisa tem mais valor que a própria vida delas. Esse medo de ter cometido assassinato existe porque homens assumem em suas oposições ao aborto que se mulheres tivessem tido essa escolha, poderiam tê-los abortado. Coloca-se uma responsabilidade imaginária na mulher por vidas adultas já existentes a partir do óvulo fertilizado porque não é aceitável que mulheres afirmem possuírem existências separadas dos homens. Mulheres, aqui, não têm direito a um corpo fora dos domínios dos homens.

O medo e o silêncio acompanham uma experiência que só mulheres têm, e que são os seus maridos que as colocam nessa situação: o abortista termina o trabalho que o marido começou. O aborto é considerado um ato egoísta e de rebelião, sendo a mulher punida pela culpa de dispôr de seu útero conforme lhe convém e um modo estranho de dizer não.

As mulheres não podem ser responsabilizadas por gravidezes indesejadas porque não são elas que controlam as condições em que são engravidadas. O direito sexual do homem sobre sua esposa é garantido na lei, de modo que o estado define o uso sexual do corpo da mulher. Mesmo quando o estupro dentro do casamento é proibido por lei, o homem dispõe de outros meios para garantir a coerção sexual.

O casamento é a prova irrefutável da posição de desigualdade das mulheres. A lei é um instrumento da religião, que garante o direito do homem sobre o corpo da mulher abençoado por deus. Entretanto, a pressão para a submissão vem de várias fontes. A gravidez é uma consequência dessa submissão, e as mulheres vivem em um contexto de sexo forçado. O repúdio das mulheres ao estupro e sua vontade de liberdade são interpretados como aversão ao sexo.

O sexo forçado, geralmente a penetração, é um problema central na vida de toda mulher. Elas serão avaliadas pelos homens de acordo com a sua relação com a penetração, e tudo nela deve ser um sinal de sua aceitação dessa situação. O coerção que as mulhers sofrem dentro do casamento seria considerada coerção estatal caso elas não fossem mulheres, mas essa coerção é disfarçada por uma montanha de propaganda que busca fazer as mulheres se conformarem com a feminilidade.

A feminilidade é a aceitação do sexo nos termos dos homens e pode ser definida como submissão ritualizada. A propaganda da feminilidade, em tempos de resistência feminista, prega que o sexo pode ser bom se as mulheres o fizerem direito, e dentro da esfera da dominação dos homens. As regras da feminilidade quebram o espírito das mulheres e as treinam para desejar e depender dos homens. As mulheres são submetidas aos homens através da ignorância a respeito do sexo, vendo-se como buracos. Se elas soubessem o propósito deles para elas, repudiariam tudo, uma vez que o uso que eles fazem delas nada tem a ver com a mulher enquanto indivíduo.

Apesar da propaganda, a feminilidade precisa ser imposta à força. A força (e o sexo forçado) é o que mantem o vínculo sexual dos homens às mulheres, e se ela não fosse necessária, não seria tão disseminada. A violência física, o abuso de meninas, a manutenção das mulheres em estado de pobreza e dependência econômica, e a propaganda da feminilidade são o que permitem a manutenção da dominação.

É impossível falar de sexualidade feminina fora do contexto de sexo forçado; independente dos gostos ou experiências individuais de cada mulher, todas elas vivem nesse contexto. A força usada no sexo é tornada ela mesma “sexy”, romantizada e naturalizada. A coerção sexual é o que molda as mulheres à submissão e viola os limites de seu corpo. É pela penetração que os homens asseguram sua dominação e o direito ao uso do corpo das mulheres: a centralidade da penetração não tem nada a ver com reprodução ou prazer, mas acaba se tornando um sinônimo de sexo porque é uma das mais emblemáticas expressões da dominação masculina. É pelo intercurso sexual que a mulher é moldada.

O estupro e o sexo marital são formas opostas de expressão sexual apenas quando as mulheres são vistas como propriedade sexual, quando a propriedade de um homem é violadas por outro. É somente quando a mulher é reconhecida como um ser humano que o estupro é reconhecido como tal. Se o estado regula o uso da força sexual contra as mulheres, é o estado quem distingue o sexo “normal” do estupro. O consentimento se torna a aquiescência passiva, e esta a participação padrão das mulheres no sexo. E se as mulheres consentem com o que é feito a elas, não há como sinalizar, provar ou mesmo sugerir estupro. É o sexo forçado no casamento que valida todas as outras formas de uso da força sexual contra as mulheres.

Existe a crença de que os homens usam a força porque são homens, e também a crença de que as mulheres respondem sexualmente à violência infligida a elas. Existe toda a sexualização da violência e a crença de que a mulher casada é a mais protegida de todas: se está certo usar a força contra a mulher casada, contra que mulher isso será errado? A definição da mulher no contexto de dominação é feita nos termos de sua função, que é ser fodida. Se ela desperta desejo em um homem, é porque ela já é adulta o suficiente e, presumivelmente, já é uma mulher. Uma vez que uma mulher é fodida, ela cumpriu a sua função enquanto mulher e pode ser legitimamente fodida.

No que diz respeito à gravidez, se é possível forçar uma mulher a conceber dentro do casamento, e se a força é a norma, não existe diferença para a gravidez fruto de estupro ou incesto. O estupro só será considerado enquanto tal para os homens se o emprego da força for monstruosamente brutal. Se a função da mulher é ser fodida, se ela estiver grávida é porque ela já foi fodida. Ser fodida não viola a sua integridade de mulher, porque ser fodida é o que significa a integridade da mulher sob o sistema de dominação. O reconhecimento de alguns casos de estupro se dá pela vontade do homem de não reconhecer os frutos do estupro de outro homem — essas exceções existem para protegê-los. O aborto só é tolerado quando ele protege os homens.

O problema da revolução sexual é que ela esteve o tempo inteiro nas mãos dos homens. A ideia central era de que o sexo era bom. No caso das meninas, significava que elas queriam ser fodidas. A filosofia da revolução sexual vem de antes dos anos 1960 e se manifestou na esquerda de várias formas. Segundo esse pessoal, se fazia guerra porque se odiava o sexo/amor. Os homens que resistiram à convocação para a guerra deixaram seus cabelos crescer e foram comparados a covardes, a garotas. Por causa disso, muitas delas acreditaram que eles eram seus aliados.

As jovens mulheres eram idealistas e, como não corriam o risco de serem convocadas para a guerra, tinham no homem negro a sua figura para demonstração de empatia. Estupro era visto como uma arma racista para prejudicar homens negros. Essas jovens eram idealistas porque acreditavam que a paz e o amor prometidos eram para elas também. Elas não queriam a mesma vida que as suas mães tinham e aceitavam as ideias de amor livre e liberdade sexual dos homens porque isso as tornava diferentes das suas mães.

O radicalismo sexual dessa época era definido em termos masculinos: número de parceiros, frequência do sexo, variedade sexual (sexo grupal), disposição de se engajar em atos sexuais. Supostamente deveria valer para ambos os sexos. O estupro era comum e o lesbianismo jamais aceito em seus próprios termos. A homossexualidade masculina era tolerada, mas desprezada porque o homem heterossexual não toleraria ser fodido como mulher. O sonho das mulheres nessa utopia era a transcendência sexual, o sonho de ser menos mulher em um mundo menos masculino, uma erotização da igualdade fraterna.

A contradição das mulheres dessa época era buscar a liberação sexual justamente através do ato que mais reifica a dominação. A contracultura ficou cada vez mais agressiva e dominada pelos homens, enquanto que as mulheres se viram obrigadas a serem objetificadas e comercializadas em pornografia e tráfico, ou serem socialmente segregadas nos papéis tradicionalmente femininos. A liberação sexual não funcionou para as mulheres, e sua consequência acabou sendo a de libertar os homens para fazer uso das mulheres fora das restrições burguesas. Ao interagirem sexualmente com uma maior variedade de homens, as mulheres descobriram que sua individualidade era irrelevante diante da prática sexual masculina generalizada.

A ideologia do movimento de liberação sexual dos anos 1960 assumia que todo mundo queria fazer sexo o tempo todo, e não levava em conta o estado subordinado das mulheres. Segundo eles, a aversão das mulheres ao sexo era resultado e prova da repressão sexual. Havia a crença generalizada de que as mulheres não recusariam sexo se não fossem reprimidas, nem os homens precisariam fazer uso da força. O estupro era negado por razões políticas se o estuprador era negro e a mulher não. Por outro lado, se um estupro racial era fabricado, jamais era ignorado como falso. Quando uma mulher negra era estuprada por um branco, o reconhecimento do estupro enquanto tal dependia das alianças políticas de negros e brancos naquele território social específico. A mulher negra estuprada por um homem negro carregava o fardo de não poder prejudicar sua própria raça, não chamando atenção para a brutalidade cometida contra ela.

Em momento algum a ideologia da liberação sexual problematizou o estupro ou lutou pelo fim da subordinação social e sexual das mulheres aos homens: sequer reconheceu esses problemas. As mulheres eram punidas por qualquer tipo de limites que quisessem estabelecer em suas relações.

A gravidez era um problema e um real obstáculo às demandas masculinas por sexo, e tornava as mulheres relutantes e preocupadas. Nessa época a pílula não era tão fácil de se conseguir e nenhum outro método era mais seguro ou acessível. Por mais que as mulheres tolerassem ou gostassem do sexo em que participavam, para elas as consequências eram dolorosas e sangrentas, enquanto que os homens perdiam apenas talvez dinheiro. As formas de convencer as mulheres a cooperarem era tratar a possibilidade da gravidez como “natural” ou prometer uma criação comunal das crianças. Ao invés das punições tradicionais, a mulher que engravidava era frequentemente abandonada. A liberdade para os homens era foder, e a foda terminava para os homens quando a foda acabava. O fato da gravidez era um poderoso antiafrodisíaco, e a visão das mulheres abandonadas tornou-as um pouco mais preocupadas.

Foi justamente a realidade da gravidez que fez do aborto uma prioridade política alta para os homens nos anos 1960. A descriminalização do aborto tornaria as mulheres totalmente acessíveis, e foi por isso que se tornou uma prioridade da esquerda na época. E foi aí que as mulheres que viviam políticas radicais na contracultura se voltaram ao feminismo.

Feministas apontaram que mulheres eram excluídas de grupos políticos simplesmente porque o cara com quem elas estavam saindo no momento não estava mais afim, ou ainda que em certos contextos as mulheres eram excluídas ou classificadas como puritanas porque não estavam dispostas a serem estupradas. Houve o reconhecimento de que os camaradas eram na verdade exploradores cínicos como qualquer outro explorador. Conversando, as mulheres descobriram que suas experiências eram idênticas, indo do sexo forçado à humilhação e ao abandono. Os homens queriam as mulheres para foder, não como companheiras de revolução.

Por conta disso, as mulheres resolveram formar seu movimento autônomo, que tinha como premissa central a ideia de que a liberdade das mulheres não é possível sem que ela tenha o controle absoluto sobre seu corpo, tanto no sexo quanto na reprodução. Isso incluía não apenas o direito ao aborto, mas também o direito de dizer não ao sexo. Para os homens, as feministas eram as estraga-prazeres, e desde então eles tem trabalhado para frear os avanços do movimento. O direito ao aborto era uma parte intrínseca e essencial aos homens na revolução sexual, a liberdade das mulheres não tinha a menor importância.

As feministas lutaram a batalha pela descriminalização do aborto praticamente sozinhas nos EUA. A partir de 1973, a indiferença masculina se transformou em hostilidade, uma vez que o direito ao aborto conseguido naquele ano não levou as mulheres a abrirem as pernas. Ideias a respeito de traumas sofridos no útero e psicologia fetal floresceram na esquerda sem qualquer influência de pastores de direita; posteriormente, a direita iria defender a proteção de óvulos fertilizados como se fossem pessoas. O argumento do aborto como arma genocida contra negros e outras etnias ganhou tração política, mesmo diante do fato de que são as mulheres negras e latinas as que mais morrem em abortos ilegais. Alguns pacifistas da esquerda comparavam o aborto com armas nucleares.

O fim da fodinha fácil mudou as prioridades na esquerda. Havia ressentimento entre os homens pelo fato de as mulheres terem se retirado da revolução sexual: se uma mulher não servia para foder, ela não existia. A esquerda trabalhou deliberadamente contra o direito ao aborto, seja se posicionando ativamente, seja ignorando completamente o assunto. Esses homens envelheceram e agora queriam ter os seus bebês. A gravidez compulsória era a única forma de assegurar que eles pudessem tê-los.

As mães das garotas dos anos 1960 pareciam sexualmente conservadoras e diziam que suas filhas iriam se machucar, mas não diziam como nem porquê. Para essas mulheres, o sexo era uma obrigação do casamento. Elas ensinavam suas filhas a respeitarem os homens enquanto classe e, ao mesmo tempo, a não fazer sexo com eles. Essas jovens não entendiam a ambiguidade dessa mensagem: as mulheres tentavam proteger suas filhas dos homens tentando direcioná-las para um único homem bom, ensinando-as a navegar pelo sistema de dominação masculina. Não havia vocabulário para explicar essa ambivalência do sexo — aceitável em alguns contextos como o casamento, mas não em outros. O silêncio a respeito do assunto por parte dessas mães era um jeito de evitar que suas filhas descobrissem que tipo de vida elas viviam.

Uma característica essencial da dominação masculina é manter as mulheres distraídas e ocupadas com os detalhes dela, impedindo-as de conversarem a respeito da natureza da força que as domina. Essas mães foram incapazes de deter a esperança e o entusiasmo trazidos pela liberação sexual — elas não podiam conversar e contar o que sabiam sobre a natureza e a qualidade da sexualidade masculina, dentro de sua própria experiência no casamento. O que essas mães sabiam sobre a promiscuidade é que o que um homem é capaz de fazer, dez também são. Suas filhas não sabiam o que os homens poderiam fazer com elas, mas elas não tinham nenhuma outra alternativa a oferecer. O repúdio que essas mães tinham do sexo não era visto como tendo uma causa objetiva.

As mulheres da direita cresceram em movimento político. O que elas têm a dizer a respeito do aborto está relacionado ao que elas sabem a respeito do sexo, e elas sabem algumas coisas horríveis a respeito. Elas viram os homens se utilizarem cinicamente do aborto para tornarem as mulheres mais acessíveis. Depois que o aborto foi legalizado, elas viram um movimento social em direção à ampliação do acesso sexual às mulheres sob os termos da dominação masculina expresso na pornografia — e relacionam as duas coisas. Elas acreditam que o que a direita tem a oferecer é um pouco menos cruel.

As mulheres da direita acreditam que a promiscuidade generaliza, enquanto que o casamento contém, a força destruidora dos homens — um de cada vez. Elas continuam silenciosas a respeito da natureza do sexo dentro do casamento tradicional, mas o que elas falam se baseia em experiência real. As mulheres da direita também acreditam que a gravidez é a única consequência do sexo que torna os homens responsáveis pelos seus atos sobre elas, e é por isso que se opõem ao aborto e aos anticoncepcionais. Sem a inevitabilidade da gravidez, se ampliariam as crueldades que os homens poderiam fazer às mulheres.

As mulheres da direita enxergam o cinismo dos homens da esquerda, e sabem que as posições políticas deles são sempre congruentes com o sexo que eles querem. Elas também sabem que as mulheres podem se foder querendo ou não nas mãos deles, e fazem o melhor acordo de que são capazes dentro de suas possibilidades. A gravidez é uma arma de sobrevivência dessas mulheres. Ela confirma, assim, o que aprendeu a respeito de sua própria natureza enquanto mulher: que ela merece ser punida, e que a punição por fazer sexo é o aborto ilegal. Elas se sentem envergonhadas porque é mesmo vergonha o que se sente quando se é usada para sexo. Uma vez que a vergonha confirma a sua culpa, o aborto ilegal é um sofrimento merecido.

Aborto, sendo ilegal, fica fora do campo de visão das mulheres de direita. Tira da visão delas a opção de escolher não ser uma mãe, a opção de não conformidade ao casamento. As mulheres rebeldes devem fazê-lo em segredo, sem causar confusão em outras mulheres. Sendo ilegal, o aborto coloca a vida e a morte nas mãos de Deus, o homem superior e juiz absoluto. Nenhuma mulher deve ser obrigada a encarar o aborto, até que aconteça com ela. Mulheres que realizam o procedimento e recusam a maternidade, segundo as mulheres da direita, merecem morrer. As mulheres da direita seriam, portanto, mártires, sobreviventes e preocupadas individualmente com a sua própria sobrevivência.

Não existe medida melhor para se calcular o que o sexo forçado faz às mulheres. O estupro destrói a autoestima e a vontade de sobreviver enquanto ser humano autodeterminado. O treino da feminilidade sobre as meninas e o uso sexual das mulheres no casamento significa a aniquilação de qualquer vontade de liberdade nelas. Seu senso de personalidade está tão danificado que ela prefere correr o risco de morrer a dizer não a um homem que vai fodê-la de qualquer modo, com a benção de Deus e do Estado, até que a morte os separe.

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Artigos inéditos

Masculinismo de esquerda

A batalha no campo ideológico é uma batalha pela posse dos significados. Uma vez com poder para nomear e conceituar — e a infraestrutura necessária para fazer esses nomes e conceitos circularem por aí —, é possível fazer um baita estrago na mente das pessoas. Uma turma que tem deixado bastante a desejar nesse sentido é a tal da esquerda. Fragmentada (pra variar) e sem um projeto político coletivo realmente significativo, esse grupo de pessoas autoidentificadas com os valores desse lado do espectro político grita palavras de ordem e frases feitas que não faz a menor ideia de onde vieram. Na primeira oportunidade, prova a eficácia da Lei de Godwin na internet com acusações rasas de “fascismo”.

Um ato comum na esquerda é comparar feministas radicais com a direita. A Maisa já fez um texto que vale muito ser lido sobre isso, mas as ideias aqui meio que se completam [1]. Na mesma linha de raciocínio que a minha, ela destaca que, não é porque dois grupos apontam para o mesmo problema que eles enxergam as suas implicações de modo igual. Pelo contrário: afirmar esse tipo de coisa é atestado de desconhecimento completo das discussões que acontecem sobre assuntos onde qualquer um dos lados do espectro político têm interesses comuns. É de um simplismo que, se não estivéssemos tão acostumadas com o simplismo com que a esquerda costuma tratar “a questão da mulher”, já tínhamos desistido e/ou botado fogo na porra toda. Se dois grupos apontam para um problema, ainda que com visões tão díspares, isso só prova que o problema existe e que existe consenso, pelo menos, a respeito dessa existência. Tem gente que é canalha, mas canalha não é sinônimo de burro.

Quando a esquerda aponta para o movimento das mulheres e, conforme seus próprios critérios difusos, tenta determinar qual o modo correto de se fazer feminismo, é possível identificar aí pelo menos dois problemas. O primeiro deles é o problema óbvio de sentar no próprio rabo e fazer de conta que eles, a esquerda, sabe jogar o jogo político, algo que os últimos anos têm mostrado que não é verdade. O segundo problema é o de assumir a priori um caráter “identitário” para o feminismo, como se a luta do movimento das mulheres fosse contra “estereótipos” e “discriminações”, exatamente igual a qualquer outra luta de “minorias” que não possua a mesma prioridade que a tão sonhada e prometida revolução dos trabalhadores. Fato é que a esquerda nunca deu muito espaço para as mulheres para além da copa e da cozinha; elas é que tiveram de tomá-lo para si dentro desses movimentos mistos, isso quando não vencidas pelo cansaço.

Todo esse prelúdio foi só para preparar o terreno para o que quero abordar a seguir, o grande motivador para eu ter tirado a poeira do blog: o famigerado vídeo do MamãeFalei na oficina de masturbação feminina [2].

Houve todo um cuidado por parte das organizadoras do evento de deixar claro que se tratava de um evento para mulheres. Mulheres mesmo, as fêmeas da espécie humana. O problema é que relacionar “fêmea humana” ao termo “mulher” é hoje um pecado conceitual. Carreiras políticas e profissionais de mulheres estão sob constante risco de desmoronarem por conta do uso de uma palavra “errada”, mais até que as carreiras políticas e profissionais de homens abusadores, mesmo quando esses abusos acontecem dentro dos ambientes da própria esquerda. Seja por um medo legítimo de desenhar sem querer um alvo nas costas ou por uma crença legítima de que a mulheridade é uma essência a ser sentida a nível cerebral e manifestada no vestuário da seção feminina da Pernambucanas, essas mulheres abriram mão dos termos (e, consequentemente, dos espaços) que a nós nos são caros em nome da “inclusão” (de quê? de quem?), e não souberam peitar um babaca vestido de cachorro-quente cor-de-rosa.

O resultado é que um evento de mulheres voltado a educação sexual é dissolvido em poucos segundos pelo simples fato de o troll profissional que é o MamãeFalei dizer que é uma mulher. A autodeclaração nesse sentido é soberana, e nenhuma das presentes conseguiu questioná-lo quando ele pediu um critério objetivo que pudesse justificar sua exclusão do evento. Ter pinto numa oficina sobre masturbação feminina, aparentemente, não era um deles. Mulheres, e o ser/estar num corpo fêmea, com tudo o que isso acarreta, não são mais uma prioridade no movimento das mulheres, porque algumas pessoas que não são mulheres podem alegar que o são. Pela própria lógica das ideias antifeministas que se infiltraram no movimento através da livre possibilidade de se cruzar essa linha definidora, é impossível questioná-las e estabelecer limites. Não se pode usar certas palavras, porque qualquer escorregada no correto uso da novilíngua masculinista de esquerda pode levar ao temido “essencialismo”, seja lá o que queiram dizer com isso.

Não é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece, e não vai ser a última. Não apenas porque casos assim abundam na história recente dessa “insurgência feminista” que vemos acontecer na internet nos últimos anos — vide o caso do Encontro das Mulheres Estudantes poucos anos atrás, onde um sujeito barbado emprestou uma saia, trocou de nome e insistiu para participar de um evento exclusivo de mulheres; vide, também, o caso do ato do último 8 de março no Rio (8MRJ), onde mulheres foram ameaçadas de violência por homens com escolhas peculiares de vestimenta apenas por não se submeterem à ideia de que 2 + 2 = 5; ou ainda a última Caminhada das Lésbicas e Bissexuais de São Paulo, onde um grandalhão de vestido e batom disse em visível tom de ameaça que pintos são vaginas com formatos diferentes e que quando mulheres não os aceitam em suas relações lésbicas, isso o deixa triste e é errado. As histórias da Primeira e Segunda Ondas feministas são cheia de exemplos didáticos de problemas que até hoje as mulheres enfrentam em militância mista.

Quando as mulheres deixam essas infiltrações masculinas/masculinistas acontecerem, seja porque esses homens são seus aliados, seus maridos, seus “iguais” (no caso do transativismo), ou seus companheiros de luta, o movimento das mulheres enfraquece. O MamãeFalei estava lá sob o pretexto frouxo de “meus impostos, dinheiro público, tenho direito de estar aqui” [3] — obvious troll is obvious —, mas seu ato provou o ponto das feministas radicais: basta um homem alegar que é mulher, e as mulheres aceitarem essa redefinição (acreditando ou não na pessoa que faz essa autoafirmação), para um espaço de mulheres deixar de existir.

Nosso problema principal enquanto movimento político — e, principalmente, como movimento de massa supostamente politicamente engajado e ligado em rede — é não saber fazer política. Quando não tercerizamos essa política a quem “entende”, a quem tem “acesso”, a quem “já está lá dentro e é nosso aliado” (homens), interpretamos mal a frase da Carol Hanisch e atribuímos a vontades individuais de mulheres específicas o rótulo de “pauta feminista”, tomando como certo tudo o que temos hoje. Ignoramos a história e os feitos do movimento das mulheres. Não fazemos a mais remota ideia de como foi que conseguimos, em menos de cinquenta anos, ir de um estado onde tínhamos os mesmos direitos e autonomia de uma criança a poder trabalhar fora e sair de casa sozinha tarde da noite, apesar da possibilidade de assédio e violência. Precisamos tomar não só a palavra e os espaços, mas criar os nossos próprios, e resistir às tentativas de invasão que, certamente, vêm. Não porque temos um direito adquirido e legitimado pelo nosso “local de fala”, mas porque é urgente que o façamos. Precisamos do feminismo , e não só depois que acontecer a tão esperada revolução do proletariado.


[1] Na mesma época em que a Lila estava escrevendo o texto dela, eu também estava rascunhando esse aqui. Acabei me enrolando porque obviamente sou muito mais incompetente nesse negócio de escrever que ela.

[2] Aqui é a deixa para você, querido e dissonante leitor de esquerda, incluir sua comparação rasa de mim com militantes de direita. Vai que é tua, campeão!

[3] A assembleia legislativa da cidade dele garanto que não invadiu pra saber o que fazem com seus impostos.