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Como as políticas do orgasmo sequestraram o movimento feminista?

Sheila Jeffreys1


A edição de novembro/dezembro de 1995 da revista Ms.2, com o título de capa SEXO QUENTE E ESPONTÂNEO, mostrava o close de uma mulher negra lambendo seus lábios pintados. A despeito de todo esforço feminista que tem sido feito nos últimos 25 anos para criticar e contestar a construção supremacista masculina do sexo, nenhum dos quatro artigos da revista fazia menção a todos os outros aspectos da vida e do status social da mulher. Em destaque em um dos artigos estava uma frase do livro de Barbara Seaman de 1972, intitulado Livre e Mulher:

“O orgasmo livre é um orgasmo que você gosta, em qualquer circunstância”.

Julgando por essa edição de Ms., e pelas prateleiras de contos eróticos para mulheres em livrarias feministas, uma política de orgasmo irreflexiva parece ter se estabelecido.

No final da década de 1960 e no começo da década de 1970, acreditava-se amplamente que a revolução sexual, ao libertar a energia sexual, tornaria todos livres. Eu me lembro de Maurice Girodias, que publicou A História do O em Paris pela Olympia Press, dizendo que a solução para regimes políticos repressivos seria postar pornografia em todas as caixas de correio. Orgasmos melhores, proclamou o psicanalista austríaco Wilhelm Reich, criariam a revolução. Naqueles tempos inebriantes, muitas feministas acreditavam que a revolução sexual estava intimamente ligada à libertação das mulheres, e elas escreviam sobre como orgasmos poderosos trariam poder às mulheres.

Dell Williams é citado em Ms. como tendo aberto uma sex shop em 1974 exatamente com essa ideia, a de vender brinquedos sexuais para mulheres:

“eu queria transformar as mulheres em seres sexuais poderosos… Eu acreditava que mulheres orgásmicas poderiam mudar o mundo.”

Desde os anos 60, sexólogos, libertários sexuais e empresários da indústria do sexo procuraram discutir o sexo como se fosse completamente dissociado da violência sexual e não tivesse nenhuma relação com a opressão de mulheres. Enquanto isso, teóricas feministas e ativistas antiviolência aprenderam a analisar o sexo politicamente. Nós vimos que o domínio masculino sobre os corpos de mulheres, sexualmente e reprodutivamente, provê a base da supremacia masculina, e que a opressão na sexualidade e através dela diferencia a opressão de mulheres da de outros grupos.

Se nós temos alguma chance de libertar as mulheres do medo e da realidade do abuso sexual, a discussão feminista da sexualidade deve incorporar tudo que sabemos sobre violência sexual ao que pensamos sobre sexo. Mas atualmente conferências feministas oferecem workshops separados, em locais diferentes, de como aumentar o “prazer” sexual e de como sobreviver à violência sexual – como se esses fenômenos fossem isolados. Mulheres que se intitulam feministas agora afirmam que a prostituição pode ser benéfica às mulheres, para expressar sua “sexualidade” e fazer escolhas de vida empoderadoras. Outras promovem às mulheres práticas e produtos da indústria do sexo com fins lucrativos, na forma de striptease lésbico e parafernália de sadomasoquismo. Existem agora setores inteiros de comunidades femininas, lésbicas e gays onde qualquer análise crítica da prática sexual é vista como um sacrilégio, estigmatizada como “conservadorismo”. A liberdade é representada como a conquista de orgasmos mais intensos e melhores por qualquer meio possível, incluindo “leilões sexuais”, prostituição de mulheres e homens, e danificação física permanente como branding. Formas tradicionais de sexualidade supremacista masculina baseadas na dominação e submissão e a exploração e objetificação da classe escravizada de mulheres estão sendo celebradas por suas possibilidades excitantes e “transgressoras”.

Bem, a pornografia está nas caixas de correio, e os artefatos para orgasmos cada vez mais poderosos estão prontamente disponíveis através da indústria internacional do sexo. E em nome da libertação feminina, muitas feministas hoje em dia estão promovendo práticas sexuais que – longe de revolucionar e transformar o mundo – estão profundamente envolvidas nas práticas do bordel e da pornografia.

Como isso pode ter acontecido? Como pode a revolução das mulheres ter entrado em curto-circuito? Eu sugiro que há quatro razões.


Razão Número 1
Vítimas da indústria do sexo tornaram-se “experts” do sexo

O capitalismo sexual, que encontrou uma forma de transformar em bem consumível praticamente todo ato de subordinação sexual imaginável, encontrou até mesmo uma forma de remodelar e reciclar algumas de suas vítimas. Como resultado, um grupo de mulheres que têm uma história de abuso e aprenderam sua sexualidade servindo aos homens na indústria do sexo agora podem, frequentemente com o patrocínio de empresários homens da indústria do sexo, promover-se como educadoras sexuais nas comunidades lésbicas e feministas. Algumas dessas mulheres “bem-conceituadas” – que dificilmente representam a maioria das vítimas da indústria do sexo – conseguiram lançar revistas como a On Our Backs (para praticantes de ‘sadomasoquismo lésbico’) e montar negócios de striptease e pornografia. Muitas mulheres aceitaram erroneamente essas mulheres, antes prostituídas, como “experts” sexuais. Annie Sprinkle e Carol Leigh, por exemplo, reintroduziram práticas misóginas da indústria do sexo em comunidades femininas. Essas mulheres lideraram a ridicularização direcionada àquelas de nós que disseram que o sexo pode e deve ser diferente.

Ao mesmo tempo, algumas mulheres que lucraram com o livre mercado capitalista nos anos 80 exigiram igualdade sexual e econômica em relação aos homens. Elas escaparam, e agora querem usar as mulheres como homens o fazem, então consomem pornografia e demandam por clubes de striptease e bordéis onde mulheres as sirvam. Essa não é uma estratégia revolucionária. Não há aqui uma ameaça ao privilégio masculino, ou uma chance de libertar outras mulheres de seu status sexual subordinado. E, mais uma vez, os homens se tornaram o padrão para todas as práticas sexuais.

Mulheres anteriormente prostituídas que promovem o sexo da prostituição – mas que agora são pagas para palestrar e publicar – passam uma mensagem que até mesmo algumas feministas consideraram mais palatável que todas as visões e ideias que nós compartilhamos sobre como transformar o sexo, como nos amarmos em igualdade como base para um futuro no qual as mulheres poderiam ser realmente livres.

Razão Número 2 

O sexo da prostituição foi aceito como o modelo padrão para sexo

Nós não podemos construir uma sexualidade que torne possível que mulheres vivam sem terrorismo sexual sem abolir o abuso de mulheres pelos homens na prostituição. Dentro do movimento feminino, no entanto, o sexo da prostituição tem sido defendido e promovido. Shannon Bell em Reading, Writing and Rewriting the Prostitute Body (1994) argumenta que a mulher prostituída deve ser vista como “trabalhadora, curadora, representante sexual, professora, terapeuta, educadora, minoria sexual e ativista política.” Nesse livro a representante das Prostitutas de Nova Iorque, Veronica Vera, é citada dizendo que deveríamos pensar as profissionais do sexo como “praticantes de um ofício sagrado”, afirmando que sexo (presumidamente qualquer tipo de sexo incluindo o sexo da prostituição) é uma “ferramenta de poder curativo e construtivo”. Mas na verdade o mecanismo mais poderoso hoje em dia para a construção da sexualidade masculina é a indústria do sexo.

A prostituição e sua representação na pornografia criam uma sexualidade agressiva que requer a objetificação de uma mulher. Ela é transformada em uma coisa que não merece o respeito que é devido a outro indivíduo senciente. A prostituição mantém uma sexualidade na qual é aceitável para o cliente obter “prazer” às custas de e no corpo de uma mulher que se dissocia para sobreviver. Esse é o modelo de como o sexo é concebido na sociedade supremacista masculina, e sexólogos construíram suas carreiras sobre esse modelo. Masters e Johnson, por exemplo, desenvolveram suas técnicas de terapia sexual a partir das práticas de mulheres prostituídas que eram pagas para fazer com que homens idosos, bêbados ou simplesmente indiferentes tivessem ereções e pudessem penetrá-las. Como Kathleen Barry apontou em A Prostituição da Sexualidade, a prostituição constrói uma sexualidade de dominação masculina/submissão feminina em que a identidade e o bem-estar da mulher, sem mencionar seu prazer, são vistos como irrelevantes.

A prostituição é um negócio poderoso que está rapidamente se tornando globalizado e industrializado. Mais da metade das mulheres prostituídas em Amsterdã, por exemplo, são traficadas, ou seja, levadas para lá, muitas vezes após serem enganadas, de outros países e são frequentemente mantidas em condições de escravidão sexual. Mulheres australianas são traficadas para a Grécia; mulheres russas para boates de striptease em Melbourne; mulheres birmanesas para a Tailândia; e mulheres nepalesas para a Índia. Milhões de mulheres em países de Primeiro Mundo e muitas mais nos países de Terceiro Mundo são submetidas ao abuso de terem seus corpos violados por mãos e pênis indesejados. Mulheres prostituídas sentem-se tão mal vivenciando esse abuso sexual quanto qualquer outra mulher. Elas não são diferentes.

Espera-se que mulheres e crianças prostituídas suportem muitas das formas de violência sexual que feministas consideram inaceitáveis no ambiente de trabalho e em suas casas. Assédio sexual e intercurso sexual indesejado são a base do abuso, mas mulheres prostituídas devem receber ligações obscenas de tele-sexo também. Elas trabalham de topless em lojas, lava-carros e restaurantes. Ao mesmo tempo que outras mulheres estão buscando dessexualizar seu trabalho de forma que possam ser vistas como algo além de objetos sexuais, a demanda de mulheres na prostituição e “entretenimento” sexual está aumentando. A prostituição de mulheres pelos homens reduz as mulheres de quem abusam e todas as outras mulheres ao status de corpos a serem vendidos e usados. Como feministas podem esperar eliminar práticas abusivas de suas camas, ambientes de trabalho e infância se os homens podem simplesmente continuar a adquirir o direito a essas práticas na rua ou, como em Melbourne, em bordéis licenciados pelo Estado?

Striptease é um tipo de prostituição que tornou-se aceitável em países ricos como uma forma de “entretenimento”. (Em países pobres dependentes de turismo sexual, toda prostituição é vista como entretenimento.) Junto de outras mulheres da Liga Contra o Tráfico de Mulheres, eu recentemente visitei uma boate de striptease em Melbourne chamada A Galeria dos Homens. Umas 20 ou 30 mulheres estavam “dançando” em cima de mesas. Uma fileira de homens – adolescentes de bairros nobres, homens que pareciam palestrantes e professores de faculdade, avôs, turistas – estavam sentados a essas mesas com seus joelhos escondidos sob elas. Geralmente em duplas, esses homens requisitavam à mulher que tirasse a roupa. Ao fazer isso, ela apoiava suas pernas nos ombros dos homens, ginasticamente mostrando-lhes sua genitália depilada, de frente e de costas e em posições diferentes por 10 minutos enquanto os homens colocavam dinheiro em sua cinta-liga. A genitália da mulher ficava a centímetros do rosto dos homens, e eles olhavam fixamente, suas faces com uma expressão de prazer admirado e culpado, como se eles não pudessem acreditar que possuem tal domínio. Será que os homens estavam excitados sexualmente pela incitação de seu status fálico dominante? Será que a simples exibição da genitália feminina, que demonstra o status subordinado das mulheres, era excitante por si só? Para nós observadoras mulheres, era difícil compreender a excitação e entusiasmo dos homens. Muitos deles deveriam ter filhas adolescentes, não diferentes daquelas mulheres, muitas das quais eram estudantes e cujas genitálias dançavam perante seus olhos hipnotizados.

A dança de striptease nos ensina algo que devemos entender sobre “sexo” como construção da supremacia masculina: Os homens se unem e criam vínculos através da degradação compartilhada das mulheres. Os homens que frequentam esses clubes aprendem a acreditar que mulheres adoram seu status de objeto sexual e adoram provocar sexualmente enquanto são examinadas como escravas em um mercado. E as mulheres, como eles nos dizem, simplesmente não se envolvem no que estão fazendo.

Razão Número 3 

Lésbicas têm imitado homens gays.

O questionamento feminista do modelo sexual da prostituição tem encontrado resistência especialmente por parte de muitos homens gays e lésbicas que os imitam. Como Karla Jay escreve, aparentemente de forma não crítica, em Dyke Life:


“Atualmente, lésbicas estão no limite do radicalismo sexual… Algumas lésbicas agora reivindicam o direito a uma liberdade erótica que já foi associada a homens gays. Algumas cidades grandes possuem clubes de sexo e bares de sadomasoquismo para lésbicas, e revistas e vídeos pornográficos produzidos por lésbicas para outras mulheres têm proliferado nos Estados Unidos. Nossa sexualidade tornou-se tão pública quanto as tatuagens e piercings em nossos corpos”.

Na cultura gay masculina nós observamos o fenômeno de uma sexualidade de automutilação e escravidão, de tatuagem, piercing e sadomasoquismo, transformada no próprio símbolo do que significa ser gay. Interesses comerciais gays investem de forma pesada na exploração dessa sexualidade de opressão como constitutiva da identidade gay. Grande parte do poder do pink money gay desenvolveu-se a partir do fornecimento de locais para eventos, bares e saunas nos quais a sexualidade da prostituição pudesse ser praticada, embora atualmente na maioria das vezes não paga. A influência cultural da resistência masculina gay aos questionamentos feministas da pornografia e prostituição tem sido profunda, financiada fortemente na mídia gay pela publicidade da indústria do sexo gay.

Alguns homens gays contestaram a sexualidade de dominação/submissão que prevalece na comunidade gay masculina, mas poucos até agora se aventuraram a publicar suas ideias a fim de não provocar a ira de seus irmãos. Homens gays, criados na supremacia masculina, ensinados a venerar a masculinidade, também precisam lutar para superar sua erotização das hierarquias de dominação/submissão se eles desejam se aliar ao feminismo.

O sexo da prostituição é central à construção da identidade gay devido ao papel da prostituição na história gay. Tradicionalmente, a homossexualidade masculina era expressa, por homens de classe média, através da compra de homens e garotos mais pobres – como foi feito por Oscar Wilde, Andre Gidé, Christopher Isherwood. Esse não era o modelo da prática lésbica.

Na década de 1980, à medida que as lésbicas perderam a confiança nas suas próprias opiniões, forças e possibilidades – uma vez que o feminismo foi atacado e a indústria do sexo se fortaleceu enormemente – muitas tomaram os homens gays como os seus modelos e começaram a se definir como “párias sexuais”. Elas desenvolveram uma identidade completamente contrária àquela do feminismo lésbico. Feministas lésbicas celebram o lesbianismo como o apogeu do amor entre mulheres, como uma forma de resistência a todas as práticas e valores da cultura supremacista masculina, incluindo a pornografia e a prostituição. As lésbicas liberais que vieram a público com o intuito de caluniar o feminismo dos anos 80 atacaram as feministas lésbicas por “dessexualizarem” o lesbianismo e optaram por se identificar como “pró sexo”. Mas as práticas dessa postura “pró sexo” acabaram por replicar a versão do lesbianismo que foi tradicionalmente oferecida pela indústria do sexo. As admiráveis novas lésbicas “transgressoras” eram as mesmas construções sadomasoquistas e butch/femme que já têm sido por muito tempo constituintes básicos da pornografia masculina heterossexual.

Essas lésbicas adotaram as práticas da indústria do sexo como constitutivas de quem elas realmente são, a fonte de sua identidade e de seu ser. Porém, a todo tempo elas se sentiam deficientes, uma vez que seu ideal de sexualidade radical e vigorosa, praticada por alguns homens gays, parecia sempre fora de alcance. Em publicações como a revista Wicked Women de Sydney, no trabalho de Cherry Smyth e Della Grace no Reino Unido e Pat Califia nos Estados Unidos, essas lésbicas lamentavam suas inadequações no sexo em banheiros, nos encontros casuais, em conseguirem sentir-se sexualmente atraídas por crianças. Terapeutas sexuais para lésbicas, como Margaret Nicholls, tornaram-se parte importante de uma nova indústria do sexo lésbico.

Atualmente há uma tendência em revistas feministas e nas revistas femininas de representar a sexualidade lésbicas da prostituição como um prato tentador para mulheres heterossexuais provarem e consumirem. Lesbianismo “transgressor”, derivado da indústria do sexo e mimetizando a cultura masculina gay, é agora apresentado como uma sexualidade “feminina” progressiva, um modelo de como mulheres heterossexuais poderiam e deveriam ser.

Razão Número 4
Subordinar-se pode ser excitante.

Não existe um prazer sexual “natural” que pode ser liberado. Aquilo que provê sensações sexuais a homens ou mulheres é construído socialmente a partir da relação de poder entre homens e mulheres, e isso pode ser mudado. No sexo, a própria diferença entre homens e mulheres, supostamente tão “natural”, é de fato criada. No “sexo”, as próprias categorias “homens”, pessoas com poder político, e “mulheres”, pessoas da classe subordinada, tornam-se carne. O sexo é tampouco uma mera questão privada. Na concepção masculina liberal, o sexo foi relegado à esfera privada e visto como um domínio de liberdade pessoal no qual as pessoas podem expressar seus desejos e fantasias individuais. Mas a cama está longe de ser privada; ela é uma arena na qual a relação de poder entre homens e mulheres é atuada de forma mais reveladora. A liberdade ali é usualmente a dos homens de realizarem-se através de e nos corpos das mulheres.

Sentimentos sexuais são aprendidos e podem ser desaprendidos. A construção da sexualidade em volta da dominação e submissão é suposta como “natural” e inevitável porque homens aprendem a operar o símbolo de seu status de classe dominante, o pênis, em relação à vagina de forma que assegure o status subordinado da mulher. Nossos sentimentos e práticas do sexo não podem ser imunes a essa realidade política. E eu sugiro que é a afirmação dessa relação de poder, a asserção de uma distinção entre “os sexos” por meio de comportamentos de dominação/submissão que proporcionam ao sexo sua saliência e a intensa excitação geralmente associada a ele na supremacia masculina.

Desde o começo dos anos 70, teóricas feministas e pesquisadoras têm revelado a extensão da violência sexual e de como a vivência e o medo dela castram as vidas e oportunidades das mulheres. O abuso sexual infantil diminui a habilidade de mulheres de desenvolver relações fortes e afetuosas com seus corpos e com outras pessoas, e criar confiança para enfrentar o mundo. O estupro na idade adulta, incluindo estupro no casamento e namoro, produz efeitos semelhantes. Assédio sexual, voyeurismo, exposições e perseguições diminuem as oportunidades igualitárias das mulheres na educação, no trabalho, em suas casas, nas ruas. Mulheres que foram usadas na indústria do sexo desenvolvem técnicas de dissociação para sobreviver, uma experiência compartilhada por vítimas de incesto, e lidam com danos à sua sexualidade e relacionamentos. A consciência da ameaça suprema obscurecendo as vidas das mulheres, a possibilidade do assassinato sexual, nos é exposta regularmente através de manchetes de jornais sobre as mortes de mulheres.

Os efeitos cumulativos de tais violências geram o medo que faz com que as mulheres limitem aonde elas vão e o que fazem, ter o cuidado de olhar para o banco de trás do carro, trancar portas, usar roupas “seguras”, fechar cortinas. Como mostram estudos feministas como o de Elizabeth Stanko em Everyday Violence (1990), mulheres têm consciência da ameaça de violência masculina e modificam suas vidas por conta desse medo, mesmo que elas não tenham vivenciado um assédio mais grave. Em contraste com essa realidade cotidiana das vidas das mulheres, a noção de que um orgasmo “em qualquer circunstância” poderia aniquilar esse medo e vulnerabilidade reafirmada é talvez a falácia mais cruel do pseudofeminismo.

A violência sexual masculina não é trabalho de indivíduos psicóticos, mas o produto da construção normalizada da sexualidade masculina em sociedades como a dos Estados Unidos e Austrália atualmente – como a prática que define o status superior dos homens e subordina as mulheres. Se nós realmente queremos acabar com essa violência, não devemos aceitar essa construção como o modelo do que “sexo” realmente é.
O prazer sexual para mulheres é uma construção política também. A sexualidade feminina bem como a masculina foi forjada no modelo de dominação/submissão, como um artifício para satisfazer e servir à sexualidade construída nos homens e para eles. Enquanto que garotos e homens foram encorajados a direcionar todos os seus sentimentos à objetificação do outro e são recompensados com o “prazer” pela dominação, mulheres aprenderam seus sentimentos sexuais em uma situação de subordinação. Garotas são treinadas através de abuso sexual, assédio sexual, e desde muito cedo com encontros sexuais com garotos e homens assumindo um papel sexual reativo e submisso. Nós aprendemos nossos sentimentos sexuais da mesma forma que aprendemos outras emoções, em famílias de dominação masculina e em situações nas quais nós não possuímos poder, cercadas de imagens de mulheres como objetos na publicidade e em filmes.

O maravilhoso livro de 1994 escrito por Dee Graham, Amar para Sobreviver, retrata a heterossexualidade feminina e a feminilidade como sintomas do que ela chama de Síndrome de Estocolmo Social. Na apresentação clássica da Síndrome de Estocolmo, reféns aterrorizados criam vínculo com seus captores e desenvolvem cooperação submissa a fim de sobreviver. Manuais para aqueles que podem ser feitos reféns, como aquele que me foi dado quando eu trabalhei numa prisão, descrevem táticas de sobrevivência que lembram os conselhos oferecidos em revistas femininas sobre como conquistar homens. Se você for tomado como refém, dizem esses manuais, você deve falar sobre os interesses e família do captor para fazê-lo compreender que você é uma pessoa e ativar sua humanidade. A Síndrome de Estocolmo desenvolve-se naqueles que temem por suas vidas, porém dependem de seus captores. Se o captor demonstra qualquer gentileza, mesmo quando mínima, é provável que o refém desenvolva um vínculo com seu captor até mesmo ao ponto de protegê-lo de perigos e adotar plenamente seu ponto de vista acerca do mundo. Graham define a violência sexual rotineira que as mulheres vivenciam como “terrorismo sexual”. Em face desse terror, Graham aponta, mulheres desenvolvem Síndrome de Estocolmo Social e criam vínculos com homens.

Uma vez que a sexualidade feminina se desenvolve nesse contexto de terrorismo sexual, nós podemos erotizar nosso medo, nosso vínculo aterrorizado. Toda excitação sexual e liberação não é necessariamente positiva. Mulheres podem ter orgasmos ao serem sexualmente abusadas na infância, no estupro ou na prostituição. Nossa linguagem possui apenas palavras como prazer e gozo para descrever sentimentos sexuais, e nenhuma palavra para descrever os sentimentos que são sexuais mas dos quais não gostamos, sentimentos que vêm da experiência, sonhos ou fantasias sobre degradação ou estupro e que causam angústia apesar da excitação.

O “sexo” promovido por revistas femininas e até mesmo feministas, como se esse fosse dissociado da realidade do status subordinado da mulher e experiência de violência sexual, não oferece nenhuma esperança de desconstrução e reconstrução das sexualidades tanto masculinas como femininas. Sadomasoquismo e cenas de “fantasia”, por exemplo, nos quais as mulheres procuram se “perder”, são frequentemente utilizados por mulheres que foram abusadas sexualmente. A excitação orgástica experimentada nesses cenários simplesmente não consegue ser sentida nos corpos dessas mulheres se e quando elas permanecem alertas e conscientes de quem elas realmente são. O orgasmo da desigualdade – longe de encorajar as mulheres à busca da criação de uma sexualidade proporcional à liberdade que feministas visualizam – simplesmente recompensa mulheres com o prazer da dissociação.

Muitas mulheres, incluindo feministas, limitaram suas visões de como tornar as mulheres livres e decidiram focar-se em ter orgasmos mais poderosos de qualquer forma possível. A busca pela orgasmo da opressão funciona como um novo “ópio para as massas”. Ela desvia nossas energias das lutas necessárias contra a violência sexual e a indústria globalizada do sexo. Questionar-se sobre como esses orgasmos são experimentados, o que significam politicamente, se são obtidos através da prostituição de mulheres na pornografia, não é fácil, mas também não é impossível. Uma sexualidade de igualdade adequada à nossa busca pela liberdade ainda precisa ser construída e defendida se nós desejamos libertar as mulheres da sujeição sexual.

A habilidade de mulheres de erotizar sua própria subordinação e “gozar” a partir da sua própria degradação e de outras mulheres ao status de objeto impõe um grande obstáculo. Enquanto mulheres receberem alguma recompensa no sistema sexual atual – enquanto elas sentirem prazer dessa forma – por que elas desejariam mudar? Eu sugiro que é impossível imaginar um mundo no qual mulheres são livres ao mesmo tempo que se protege a sexualidade baseada precisamente na sua ausência de liberdade. Nosso impulso sexual deve se igualar ao nosso entusiasmo político pelo fim de um mundo sustentado por todas as hierarquias abusivas, incluindo raça e classe. Somente uma sexualidade de igualdade, e nossa habilidade de visualizar e batalhar por tal sexualidade, torna a liberdade das mulheres possível.


  1. Tradução livre do artigo publicado em 1996 na revista On The Issues. Disponível em:
    https://ontheissuesmagazine.com/feminism/how-orgasm-politics-has-hijackedthe-womens-movement/ ↩︎
  2. Importante revista feminista liberal estadunidense. ↩︎

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A tirania da falta de estrutura

por Jo Freeman, também conhecida como Joreen1


A versão inicial deste artigo foi apresentada como uma palestra em uma conferência organizada pela Southern Female Rights Union, realizada em Beulah, Mississippi, em maio de 1970. Foi documentada em “Notes from the Third Year” (1971), mas as editoras não a utilizaram. Foi então submetida a várias publicações do movimento, mas apenas uma pediu permissão para publicá-la; outras o fizeram sem permissão. O primeiro local oficial de publicação foi no Volume 2, Número 1 de “The Second Wave” (1972). Essa versão inicial em publicações do movimento foi escrita por Joreen. Diferentes versões foram publicadas no “Berkeley Journal of Sociology”, Volume 17, 1972-73, páginas 151-165, e na revista “Ms.”, julho de 1973, páginas 76-78, 86-89, com autoria de Jo Freeman. Este artigo se espalhou por todo o mundo. Numerosas pessoas editaram, republicaram, cortaram e traduziram “Tyranny” para revistas, livros e sites na web, geralmente sem a permissão ou o conhecimento da autora. A versão abaixo é uma combinação das três citadas aqui.

Durante os anos em que o movimento de libertação das mulheres estava tomando forma, houve uma grande ênfase no que são chamados de grupos sem líderes e sem estrutura como a forma organizacional principal – se não a única – do movimento. A fonte dessa ideia foi uma reação natural contra a sociedade excessivamente estruturada na qual a maioria de nós se encontrava e o controle inevitável que isso dava aos outros sobre nossas vidas, bem como o elitismo contínuo da esquerda e de grupos semelhantes entre aqueles que supostamente estavam lutando contra essa excessiva estruturação.

A ideia de “falta de estrutura”, no entanto, evoluiu de uma reação saudável contra essas tendências para se tornar uma divindade por direito próprio. A ideia é tão pouco examinada quanto o termo é amplamente utilizado, mas ela se tornou uma parte intrínseca e inquestionável da ideologia da libertação das mulheres. Para o desenvolvimento inicial do movimento, isso não importou muito. Ele definiu desde cedo seu principal objetivo e seu principal método como a elevação da consciência, e o grupo de discussão “sem estrutura” era um excelente meio para esse fim. A informalidade do grupo encorajava a participação na discussão, e sua atmosfera frequentemente solidária gerava insights pessoais. Se nada mais concreto do que insights pessoais resultasse desses grupos, isso não importava muito, porque seu propósito não se estendia muito além disso.

Os problemas básicos não surgiram até que os grupos de discussão individuais esgotaram as virtudes da elevação da consciência e decidiram que queriam fazer algo mais específico. Neste ponto, eles geralmente fracassaram porque a maioria dos grupos estava relutante em mudar sua estrutura quando mudavam suas tarefas. As mulheres haviam aceitado completamente a ideia de “falta de estrutura” sem perceber as limitações de seu uso. As pessoas tentaram usar o grupo “sem estrutura” e a conferência informal para fins para os quais eles não eram adequados, devido à crença cega de que nenhum outro meio poderia ser qualquer coisa além de opressivo.

Se o movimento pretende crescer além dessas fases iniciais de desenvolvimento, terá que se livrar de alguns de seus preconceitos sobre organização e estrutura. Não há nada inerentemente ruim em nenhum dos dois. Eles podem ser e muitas vezes são mal utilizados, mas rejeitá-los de forma indiscriminada porque são mal utilizados é negar a nós mesmas as ferramentas necessárias para o desenvolvimento contínuo. Precisamos entender por que a “falta de estrutura” não funciona.

ESTRUTURAS FORMAIS E INFORMAIS

Contrariamente ao que gostaríamos de acreditar, não existe tal coisa como um grupo sem estrutura. Qualquer grupo de pessoas, de qualquer natureza, que se reúna por qualquer período de tempo e para qualquer propósito inevitavelmente se estruturará de alguma forma. A estrutura pode ser flexível; ela pode variar ao longo do tempo; pode distribuir tarefas, poder e recursos de forma equilibrada ou desigual entre os membros do grupo. Mas ela será formada, independentemente das habilidades, personalidades ou intenções das pessoas envolvidas. O simples fato de sermos indivíduos, com diferentes talentos, predisposições e origens, torna isso inevitável. Apenas se recusássemos a nos relacionar ou interagir sob qualquer base poderíamos aproximar-nos da falta de estrutura – e isso não é a natureza de um grupo humano.

Isso significa que buscar um grupo sem estrutura é tão útil e enganoso quanto buscar uma reportagem de notícias “objetiva”, uma ciência social “livre de valores” ou uma economia “livre”. Um grupo “sem interferência” é tão realista quanto uma sociedade “sem interferência”; a ideia se torna uma cortina de fumaça para que os fortes ou os afortunados estabeleçam uma hegemonia incontestável sobre os outros. Essa hegemonia pode ser estabelecida com facilidade porque a ideia de “falta de estrutura” não impede a formação de estruturas informais, apenas as formais. Da mesma forma, a filosofia “sem interferência” não impediu que os economicamente poderosos estabelecessem o controle sobre salários, preços e distribuição de bens; apenas impediu que o governo o fizesse. Portanto, a falta de estrutura se torna uma maneira de mascarar o poder e, dentro do movimento das mulheres, geralmente é mais fortemente defendida por aquelas que são as mais poderosas (sejam conscientes de seu poder ou não). Enquanto a estrutura do grupo é informal, as regras de como as decisões são tomadas são conhecidas apenas por algumas, e a consciência do poder é limitada àquelas que conhecem as regras. Aquelas que não conhecem as regras e não são escolhidas para a iniciação devem permanecer na confusão ou sofrer de delírios paranoicos de que algo está acontecendo do qual elas não têm plena consciência.

Para que todas tenham a oportunidade de se envolver em um determinado grupo e participar de suas atividades, a estrutura deve ser explícita, não implícita. As regras de tomada de decisão devem ser abertas e disponíveis para todas, e isso só pode acontecer se forem formalizadas. Isso não significa que a formalização de uma estrutura de grupo destruirá a estrutura informal. Geralmente não o faz. Mas ela dificulta que a estrutura informal tenha controle predominante e disponibiliza meios para combatê-la caso as pessoas envolvidas não sejam pelo menos responsáveis pelas necessidades do grupo como um todo.

“Falta de estrutura” é organizacionalmente impossível. Não podemos decidir se ter um grupo estruturado ou sem estrutura, apenas se ter um grupo formalmente estruturado. Portanto, a palavra não será mais usada, exceto para se referir à ideia que ela representa. “Não estruturado” se referirá a grupos que não foram deliberadamente estruturados de uma maneira específica. “Estruturado” se referirá a grupos que foram. Um grupo estruturado sempre possui uma estrutura formal e pode também ter uma estrutura informal ou oculta. É essa estrutura informal, especialmente em grupos não estruturados, que forma a base para as elites.

A NATUREZA DO ELITISMO

“Elitista” é provavelmente a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência e pelos mesmos motivos que “comunista” era usado nos anos cinquenta. Raramente é usada corretamente. Dentro do movimento, ela geralmente se refere a indivíduos, embora as características pessoais e atividades daqueles a quem ela é dirigida possam ser muito diferentes: um indivíduo, como tal, nunca pode ser um elitista, porque a única aplicação apropriada do termo “elite” se refere a grupos. Qualquer indivíduo, independentemente de quão conhecido possa ser, nunca pode ser parte de uma elite.

Corretamente, uma elite se refere a um pequeno grupo de pessoas que têm poder sobre um grupo maior do qual fazem parte, geralmente sem responsabilidade direta perante esse grupo maior e muitas vezes sem seu conhecimento ou consentimento. Uma pessoa se torna elitista ao fazer parte de, ou defender a governança por, tal pequeno grupo, quer seja conhecida ou completamente desconhecida. A notoriedade não é uma definição de elitismo. As elites mais traiçoeiras geralmente são comandadas por pessoas que não são conhecidas do público em geral. Elitistas inteligentes geralmente são espertos o suficiente para não permitir que se tornem conhecidos; quando se tornam conhecidos, são observados, e a máscara sobre seu poder não está mais firmemente fixada.

As elites não são conspirações. Muito raramente um pequeno grupo de pessoas se reúne deliberadamente para tentar assumir o controle de um grupo maior para seus próprios fins. As elites não são nada mais, e nada menos, do que grupos de amigos que também acontecem a participar das mesmas atividades políticas. Provavelmente manteriam sua amizade, quer estivessem envolvidos em atividades políticas ou não; provavelmente estariam envolvidos em atividades políticas, quer mantivessem suas amizades ou não. É a coincidência desses dois fenômenos que cria elites em qualquer grupo e as torna tão difíceis de quebrar.

Esses grupos de amizade funcionam como redes de comunicação fora de quaisquer canais regulares de comunicação que possam ter sido estabelecidos por um grupo. Se não houver canais estabelecidos, eles funcionam como as únicas redes de comunicação. Como as pessoas são amigas, geralmente compartilham os mesmos valores e orientações, conversam entre si socialmente e consultam-se quando decisões comuns precisam ser tomadas, as pessoas envolvidas nessas redes têm mais poder no grupo do que aquelas que não estão. E é raro que um grupo não estabeleça algumas redes informais de comunicação através das amizades feitas nele.

Alguns grupos, dependendo de seu tamanho, podem ter mais de uma rede de comunicação informal desse tipo. As redes podem até se sobrepor. Quando existe apenas uma rede dessas, ela é a elite de um grupo, caso contrário não estruturado, quer os participantes desejem ser elitistas ou não. Se for a única rede desse tipo em um grupo estruturado, ela pode ou não ser uma elite, dependendo de sua composição e da natureza da estrutura formal. Se existirem duas ou mais redes de amizade desse tipo, elas podem competir pelo poder dentro do grupo, formando assim facções, ou uma delas pode optar por sair da competição, deixando a outra como a elite. Em um grupo estruturado, duas ou mais redes de amizade geralmente competem entre si pelo poder formal. Isso muitas vezes é a situação mais saudável, pois os outros membros estão em posição de arbitrar entre os dois concorrentes pelo poder e, assim, de fazer exigências àqueles a quem dão sua temporária lealdade.

A natureza inevitavelmente elitista e exclusiva das redes informais de comunicação entre amigos não é um fenômeno novo característico do movimento das mulheres, nem é um fenômeno novo para as mulheres. Essas relações informais têm excluído as mulheres por séculos de participar de grupos integrados dos quais faziam parte. Em qualquer profissão ou organização, essas redes criaram a mentalidade do “vestiário” e os laços da “velha guarda”, que efetivamente impediram as mulheres como grupo (bem como alguns homens individualmente) de terem igual acesso às fontes de poder ou recompensa social. Muita energia dos movimentos femininos passados ​​foi direcionada para formalizar as estruturas de tomada de decisões e os processos de seleção, para que a exclusão das mulheres pudesse ser enfrentada diretamente. Como bem sabemos, esses esforços não impediram que as redes informais exclusivamente masculinas discriminassem as mulheres, mas tornaram isso mais difícil.

Porque as elites são informais, não significa que elas são invisíveis. Em qualquer reunião de pequeno grupo, qualquer pessoa com um olho afiado e ouvido aguçado pode perceber quem está influenciando quem. Os membros de um grupo de amizade se relacionarão mais uns com os outros do que com outras pessoas. Eles ouvem com mais atenção, interrompem menos; repetem os pontos uns dos outros e cedem amigavelmente; tendem a ignorar ou lidar com os “de fora” cuja aprovação não é necessária para a tomada de decisão. No entanto, é necessário para os “de fora” manter boas relações com os “de dentro”. Claro, as linhas não são tão nítidas como desenhei. São nuances de interação, não roteiros predefinidos. Mas são evidentes e têm seu efeito. Uma vez que se saiba com quem é importante consultar antes de tomar uma decisão, e cuja aprovação é o selo de aceitação, sabe-se quem está no comando.

Uma vez que os grupos do movimento não tenham tomado decisões concretas sobre quem exercerá o poder dentro deles, muitos critérios diferentes são usados em todo o país. A maioria dos critérios se baseia em características tradicionalmente femininas. Por exemplo, nos primeiros dias do movimento, o casamento era geralmente um pré-requisito para a participação na elite informal. Como as mulheres foram tradicionalmente ensinadas, as mulheres casadas se relacionam principalmente umas com as outras e veem as mulheres solteiras como ameaçadoras demais para serem amigas íntimas. Em muitas cidades, esse critério foi refinado para incluir apenas as mulheres casadas com homens da Nova Esquerda. Esse critério tinha mais do que a tradição por trás, porque os homens da Nova Esquerda muitas vezes tinham acesso a recursos necessários para o movimento, como listas de endereços, impressoras, contatos e informações, e as mulheres estavam acostumadas a obter o que precisavam através dos homens, em vez de fazê-lo de forma independente. À medida que o movimento avançou no tempo, o casamento se tornou um critério menos universal para a participação eficaz, mas todas as elites informais estabelecem padrões pelos quais apenas mulheres que possuem certas características materiais ou pessoais podem se juntar. Geralmente incluem: origem de classe média (apesar de toda a retórica sobre relacionamento com a classe trabalhadora); ser casada; não ser casada, mas viver com alguém; ser ou fingir ser lésbica; estar entre as idades de vinte e trinta anos; ter educação universitária ou pelo menos alguma formação acadêmica; ser “descolada”; não ser muito “descolada”; adotar uma certa linha política ou identificação como “radical”; ter filhos ou pelo menos gostar deles; não ter filhos; ter certas características de personalidade “femininas”, como ser “agradável”; se vestir da maneira certa (seja no estilo tradicional ou antitradicional), etc. Existem também algumas características que quase sempre rotulam alguém como um “desviante” que não deve ser relacionado. Elas incluem: ser muito velha; trabalhar em tempo integral, principalmente se alguém estiver ativamente comprometida com uma “carreira”; não ser “agradável”; e ser abertamente solteira (ou seja, nem ativamente heterossexual nem homossexual).

Outros critérios podem ser incluídos, mas todos têm temas comuns. As características necessárias para a participação nas elites informais do movimento, e, portanto, para exercer o poder, dizem respeito à origem, personalidade ou alocação de tempo de alguém. Elas não incluem competência, dedicação ao feminismo, talentos ou contribuições potenciais para o movimento. As primeiras são os critérios que normalmente usamos para determinar nossos amigos. As últimas são o que qualquer movimento ou organização precisa usar se quiser ser politicamente eficaz.

Os critérios de participação podem variar de grupo para grupo, mas os meios de se tornar membro da elite informal, se alguém atender a esses critérios, são mais ou menos os mesmos. A principal diferença depende de estar em um grupo desde o início ou juntar-se a ele depois que começou. Se envolvida desde o início, é importante que o maior número possível de amigas pessoais também se juntem. Se ninguém conhece muito bem ninguém, então você deve formar deliberadamente amizades com um número selecionado e estabelecer os padrões de interação informal crucial para a criação de uma estrutura informal. Uma vez que os padrões informais são formados, eles atuam para mantê-los, e uma das táticas mais bem-sucedidas de manutenção é recrutar continuamente novas pessoas que “se encaixam”. Uma pessoa entra em tal elite da mesma forma que entra em uma fraternidade. Se percebida como uma adição em potencial, ela é “caçada” pelos membros da estrutura informal e, eventualmente, é iniciada ou excluída. Se a fraternidade não for politicamente consciente o suficiente para se envolver ativamente nesse processo, ela pode ser iniciada pelo estranho da mesma forma que se juntaria a qualquer clube privado. Encontre um patrocinador, ou seja, escolha um membro da elite que pareça ser bem respeitado dentro dela e cultive ativamente a amizade dessa pessoa. Eventualmente, ela provavelmente o trará para o círculo interno.

Todos esses procedimentos consomem tempo. Portanto, se alguém trabalha em período integral ou possui um compromisso significativo semelhante, geralmente é impossível se juntar simplesmente porque não sobram horas suficientes para comparecer a todas as reuniões e cultivar os relacionamentos pessoais necessários para ter voz nas tomadas de decisão. É por isso que as estruturas formais de tomada de decisão são um benefício para as pessoas sobrecarregadas. Ter um processo estabelecido de tomada de decisão garante que todos possam participar dele em certa medida.

Embora esta análise do processo de formação de elites em grupos pequenos seja crítica em perspectiva, não é feita com a crença de que essas estruturas informais são inevitavelmente ruins – apenas inevitáveis. Todos os grupos criam estruturas informais como resultado dos padrões de interação entre os membros do grupo. Tais estruturas informais podem realizar coisas muito úteis. No entanto, apenas grupos não estruturados são totalmente governados por elas. Quando as elites informais são combinadas com o mito da “falta de estrutura”, não pode haver tentativa de impor limites ao uso do poder. Isso se torna arbitrário.

Isso tem duas consequências potencialmente negativas das quais devemos estar cientes. A primeira é que a estrutura informal de tomada de decisão será muito parecida com uma sororidade – na qual as pessoas ouvem umas às outras porque gostam delas e não porque dizem coisas significativas. Enquanto o movimento não faz coisas significativas, isso não importa muito. Mas se o seu desenvolvimento não deve ser interrompido nesta fase preliminar, ele terá que alterar essa tendência. A segunda é que estruturas informais não têm obrigação de prestar contas ao grupo como um todo. Seu poder não lhes foi dado; não pode ser retirado. Sua influência não se baseia no que fazem para o grupo; portanto, não podem ser influenciados diretamente pelo grupo. Isso não torna necessariamente as estruturas informais irresponsáveis. Aqueles que se preocupam em manter sua influência geralmente tentarão ser responsáveis. O grupo simplesmente não pode impor tal responsabilidade; ela depende dos interesses da elite.

O SISTEMA DE “ESTRELAS”

O conceito de “falta de estrutura” deu origem ao sistema de “estrelas”. Vivemos em uma sociedade que espera que grupos políticos tomem decisões e selecionem pessoas para articular essas decisões perante o público em geral. A imprensa e o público não sabem como ouvir seriamente as mulheres como mulheres; eles querem saber como o grupo se sente. Apenas três técnicas foram desenvolvidas para estabelecer a opinião do grupo em massa: a votação ou referendo, o questionário de pesquisa de opinião pública e a seleção de porta-vozes do grupo em uma reunião apropriada. O movimento de libertação das mulheres não usou nenhum desses métodos para se comunicar com o público. Nem o movimento como um todo nem a maioria dos numerosos grupos dentro dele estabeleceram um meio de explicar sua posição sobre várias questões. Mas o público está condicionado a procurar porta-vozes.

Embora o movimento conscientemente não tenha escolhido porta-vozes, ele gerou muitas mulheres que chamaram a atenção do público por diversas razões. Essas mulheres não representam nenhum grupo em particular ou opinião estabelecida; elas sabem disso e geralmente o afirmam. No entanto, como não há porta-vozes oficiais nem órgão de tomada de decisão que a imprensa possa consultar quando desejar saber a posição do movimento sobre um assunto, essas mulheres são percebidas como porta-vozes. Portanto, querendo ou não, querendo o movimento ou não, as mulheres de destaque são colocadas na posição de porta-vozes por padrão.

Esta é uma das principais fontes de irritação frequentemente sentida em relação às mulheres rotuladas como “estrelas”. Porque elas não foram selecionadas pelas mulheres no movimento para representar as opiniões do movimento, são ressentidas quando a imprensa presume que elas falam pelo movimento. Mas enquanto o movimento não selecionar suas próprias porta-vozes, essas mulheres serão colocadas nesse papel pela imprensa e pelo público, independentemente de seus próprios desejos.

Isso tem várias consequências negativas tanto para o movimento quanto para as mulheres rotuladas como “estrelas”. Primeiro, porque o movimento não as colocou na posição de porta-vozes, o movimento não pode removê-las. A imprensa as colocou lá, e somente a imprensa pode escolher não ouvir. A imprensa continuará a procurar “estrelas” como porta-vozes enquanto não tiver alternativas oficiais para obter declarações autoritárias do movimento. O movimento não tem controle na seleção de suas representantes perante o público enquanto acreditar que não deve ter representantes de forma alguma.

Segundo, as mulheres colocadas nessa posição muitas vezes se encontram brutalmente atacadas por suas irmãs. Isso não faz nada pelo movimento e é dolorosamente destrutivo para as pessoas envolvidas. Tais ataques apenas resultam na mulher deixando o movimento completamente – frequentemente amargamente alienada – ou deixando de se sentir responsável por suas “irmãs”. Ela pode manter alguma lealdade ao movimento, vagamente definido, mas não está mais suscetível a pressões de outras mulheres nele. Não se pode sentir responsável por pessoas que foram a fonte de tanta dor sem ser masoquista, e essas mulheres geralmente são fortes demais para ceder a esse tipo de pressão pessoal. Assim, o backlash contra o sistema de “estrelas” efetivamente encoraja o tipo de não responsabilidade individualista que o movimento condena. Ao purgar uma irmã como uma “estrela”, o movimento perde qualquer controle que possa ter tido sobre a pessoa, que se torna então livre para cometer todos os pecados individualistas dos quais foi acusada.

IMPOTÊNCIA POLÍTICA

Grupos não estruturados podem ser muito eficazes para fazer com que as mulheres falem sobre suas vidas; no entanto, eles não são muito bons para realizar ações concretas. É quando as pessoas se cansam de “apenas falar” e desejam fazer algo mais que os grupos encontram dificuldades, a menos que mudem a natureza de sua operação.

Ocasionalmente, a estrutura informal desenvolvida pelo grupo coincide com uma necessidade disponível que o grupo pode atender de tal forma a dar a impressão de que um grupo não estruturado “funciona”. Ou seja, o grupo desenvolveu, por acaso, o tipo de estrutura mais adequado para se envolver em um projeto específico.

Embora trabalhar nesse tipo de grupo seja uma experiência empolgante, ele é raro e muito difícil de replicar. Quase inevitavelmente, quatro condições são encontradas em tal grupo:

1) Ele é orientado para tarefas. Sua função é muito específica e direcionada, como a organização de uma conferência ou a publicação de um jornal. É a tarefa que basicamente estrutura o grupo. A tarefa determina o que precisa ser feito e quando deve ser feito. Ela fornece um guia pelo qual as pessoas podem julgar suas ações e fazer planos para atividades futuras.

2) É relativamente pequeno e homogêneo. A homogeneidade é necessária para garantir que as participantes tenham uma “linguagem comum” para interação. Pessoas de origens muito diferentes podem enriquecer um grupo de consciência onde cada uma pode aprender com a experiência das outras, mas uma diversidade muito grande entre as membros de um grupo orientado para tarefas significa apenas que elas continuamente se mal-entendem. Pessoas diversas interpretam palavras e ações de maneira diferente. Elas têm expectativas diferentes sobre o comportamento umas das outras e julgam os resultados de acordo com critérios diferentes. Se todas se conhecem o suficiente para entender as nuances, isso pode ser acomodado. Geralmente, isso leva apenas à confusão e a horas intermináveis gastas resolvendo conflitos que ninguém imaginava que surgiriam.

3) Há um alto grau de comunicação. As informações devem ser transmitidas a todas, opiniões devem ser verificadas, o trabalho deve ser dividido e a participação deve ser assegurada nas decisões relevantes. Isso é possível apenas se o grupo for pequeno e as pessoas praticamente viverem juntas durante as fases mais cruciais da tarefa. É desnecessário dizer que o número de interações necessárias para envolver todos aumenta geometricamente com o número de participantes. Isso inevitavelmente limita o número de participantes do grupo a cerca de cinco, ou exclui algumas pessoas de algumas das decisões. Grupos bem-sucedidos podem ter até 10 ou 15 membras, mas apenas quando são compostos de vários subgrupos menores que desempenham partes específicas da tarefa e cujas membras se sobrepõem, para que o conhecimento do que os diferentes subgrupos estão fazendo possa ser facilmente compartilhado.

4) Há um baixo grau de especialização de habilidades. Nem todas precisam ser capazes de fazer tudo, mas tudo deve poder ser feito por mais de uma pessoa. Portanto, ninguém é indispensável. Até certo ponto, as pessoas se tornam peças intercambiáveis.

Embora essas condições possam ocorrer por acaso em grupos pequenos, isso não é possível em grupos grandes. Portanto, porque o movimento maior na maioria das cidades é tão desestruturado quanto os grupos de discussão individuais, ele não é muito mais eficaz do que os grupos separados em tarefas específicas. A estrutura informal raramente está suficientemente organizada ou em contato com as pessoas para operar eficazmente. Assim, o movimento gera muita atividade e poucos resultados. Infelizmente, as consequências de toda essa atividade não são tão inofensivas quanto os resultados, e sua vítima é o próprio movimento.

Alguns grupos se transformaram em projetos de ação local que não envolvem muitas pessoas e trabalham em pequena escala. Mas essa forma restringe a atividade do movimento ao nível local; não pode ser feita em nível regional ou nacional. Além disso, para funcionar bem, os grupos geralmente precisam se reduzir àquele grupo informal de amigos que estava no comando desde o início. Isso exclui muitas mulheres da participação. Enquanto a única maneira das mulheres participarem do movimento for por meio da adesão a um pequeno grupo, as não sociáveis estarão em desvantagem clara. Enquanto os grupos de amizade forem o principal meio de atividade organizacional, o elitismo se institucionaliza.

Para os grupos que não conseguem encontrar um projeto local ao qual se dedicar, o mero fato de permanecerem juntos se torna o motivo de sua continuidade. Quando um grupo não tem uma tarefa específica (e a elevação de consciência é uma tarefa), as pessoas nele direcionam suas energias para controlar as outras no grupo. Isso não é feito tanto por um desejo malicioso de manipular os outros (embora às vezes seja) quanto por falta de algo melhor para fazer com seus talentos. Pessoas capazes com tempo livre e a necessidade de justificar sua reunião direcionam seus esforços para o controle pessoal e passam seu tempo criticando as personalidades dos outros membros do grupo. Conflitos internos e jogos de poder pessoais dominam o dia. Quando um grupo está envolvido em uma tarefa, as pessoas aprendem a se dar bem com as outras como elas são e a suprimir as antipatias pessoais pelo bem do objetivo maior. São impostos limites à compulsão de remodelar cada pessoa à nossa imagem do que elas deveriam ser.

O fim da elevação de consciência deixa as pessoas sem ter para onde ir, e a falta de estrutura as deixa sem uma maneira de chegar lá. As mulheres no movimento tendem a se voltar para si mesmas e suas irmãs ou buscam outras alternativas de ação. Existem poucas opções disponíveis. Algumas mulheres simplesmente “fazem o seu próprio caminho”. Isso pode levar a uma grande criatividade individual, grande parte da qual é útil para o movimento, mas não é uma alternativa viável para a maioria das mulheres e certamente não fomenta um espírito de esforço de grupo cooperativo. Outras mulheres saem completamente do movimento porque não querem desenvolver um projeto individual e não encontraram uma maneira de descobrir, se juntar ou iniciar projetos em grupo que as interessem.

Muitas se voltam para outras organizações políticas que lhes fornecem o tipo de atividade estruturada e eficaz que não conseguiram encontrar no movimento de mulheres. As organizações políticas que veem a libertação das mulheres como apenas uma das muitas questões às quais as mulheres devem dedicar seu tempo encontram no movimento um vasto campo de recrutamento de novas membras. Não há necessidade para que essas organizações “infiltrem” membras (embora isso não seja excluído). O desejo de atividade política significativa gerado nas mulheres por sua participação no movimento de libertação das mulheres é suficiente para torná-las ansiosas para se juntar a outras organizações quando o movimento em si não oferece saídas para suas novas ideias e energias. As mulheres que se juntam a outras organizações políticas enquanto continuam no movimento de libertação das mulheres, ou que se juntam à libertação das mulheres enquanto permanecem em outras organizações políticas, acabam se tornando a estrutura para novas estruturas informais. Essas redes de amizade se baseiam em sua política não feminista comum em vez das características discutidas anteriormente, mas funcionam de maneira muito semelhante. Porque essas mulheres compartilham valores, ideias e orientações políticas comuns, elas também se tornam elites informais, não planejadas, não selecionadas, não responsáveis – quer pretendam ou não.

Essas novas elites informais muitas vezes são percebidas como ameaças pelas antigas elites informais anteriormente desenvolvidas dentro de diferentes grupos do movimento. Esta é uma percepção correta. Tais redes politicamente orientadas raramente estão dispostas a serem simplesmente ‘irmandades’ como muitas das antigas, e querem divulgar suas ideias políticas, bem como suas ideias feministas. Isso é natural, mas suas implicações para a libertação das mulheres nunca foram adequadamente discutidas. As antigas elites raramente estão dispostas a trazer essas diferenças de opinião à tona porque isso envolveria expor a natureza da estrutura informal do grupo. Muitas dessas elites informais estiveram escondidas sob a bandeira de “antielitismo” e “falta de estrutura”. Para enfrentar eficazmente a concorrência de outra estrutura informal, elas teriam que se tornar “públicas”, e essa possibilidade é repleta de muitas implicações perigosas. Assim, para manter seu próprio poder, é mais fácil racionalizar a exclusão das membras da outra estrutura informal por meio de táticas como “perseguição vermelha”, “perseguição reformista”, “perseguição lésbica” ou “perseguição heterossexual”. A única outra alternativa é estruturar formalmente o grupo de tal forma que a estrutura de poder original seja institucionalizada. Isso nem sempre é possível. Se as elites informais foram bem estruturadas e exerceram uma quantidade razoável de poder no passado, essa tarefa é possível de ser realizada. Esses grupos têm uma história de serem um tanto politicamente eficazes no passado, uma vez que a solidez da estrutura informal tem se mostrado um substituto adequado para uma estrutura formal. Tornar-se estruturado não altera muito sua operação, embora a institucionalização da estrutura de poder abra espaço para um desafio formal. São aqueles grupos que mais precisam de estrutura que muitas vezes são os menos capazes de criá-la. Suas estruturas informais não foram bem formadas e a adesão à ideologia de “falta de estrutura” os torna relutantes em mudar táticas. Quanto mais desestruturado um grupo é, mais carente ele é de estruturas informais e mais adere a uma ideologia de “falta de estrutura”, mais vulnerável ele é a ser dominado por um grupo de camaradas políticos.

Uma vez que o movimento em geral é tão desestruturado quanto a maioria de seus grupos constituintes, ele é igualmente suscetível a influências indiretas. No entanto, o fenômeno se manifesta de maneira diferente. Em nível local, a maioria dos grupos pode operar autonomamente; mas os únicos grupos que podem organizar uma atividade nacional são os grupos organizados nacionalmente. Portanto, muitas vezes são as organizações feministas estruturadas que fornecem direção nacional para as atividades feministas, e essa direção é determinada pelas prioridades dessas organizações. Grupos como NOW, WEAL e alguns núcleos [ou setoriais] de mulheres de esquerda são simplesmente as únicas organizações capazes de lançar uma campanha nacional. A multidão de grupos de libertação de mulheres não estruturados pode optar por apoiar ou não as campanhas nacionais, mas são incapazes de realizar suas próprias. Assim, suas membras se tornam as tropas sob a liderança das organizações estruturadas. Os grupos declaradamente não estruturados não têm uma maneira de aproveitar os vastos recursos do movimento para apoiar suas prioridades. Eles nem mesmo têm uma maneira de decidir quais são essas prioridades.

Quanto mais desestruturado for um movimento, menos controle terá sobre as direções em que se desenvolve e as ações políticas em que se envolve. Isso não significa que suas ideias não se espalhem. Dado um certo interesse da mídia e a adequação das condições sociais, as ideias ainda serão difundidas amplamente. Mas a difusão de ideias não significa que elas sejam implementadas; significa apenas que estão sendo discutidas. Na medida em que podem ser aplicadas individualmente, podem ser postas em prática; na medida em que exigem poder político coordenado para serem implementadas, não serão.

Desde que o movimento de libertação das mulheres continue dedicado a uma forma de organização que enfatiza grupos de discussão pequenos e inativos entre amigas, os piores problemas da desestruturação não serão sentidos. Mas esse estilo de organização tem seus limites; ele é politicamente ineficaz, exclusivo e discriminatório contra as mulheres que não estão ou não podem ser vinculadas às redes de amizade. Aquelas que não se encaixam no que já existe devido à classe, raça, ocupação, educação, status parental ou conjugal, personalidade, etc., inevitavelmente se desanimarão ao tentar participar. Aquelas que se encaixam desenvolverão interesses pessoais em manter as coisas como estão.

Os interesses pessoais dos grupos informais serão sustentados pelas estruturas informais que existem, e o movimento não terá meios de determinar quem exercerá poder dentro dele. Se o movimento continuar a não escolher quem exercerá o poder, não irá abolir o poder. Tudo o que faz é abdicar do direito de exigir que aqueles que exercem o poder e a influência sejam responsáveis por ele. Se o movimento continuar a manter o poder o mais difuso possível porque sabe que não pode exigir responsabilidade daqueles que o detém, ele não impede que nenhum grupo ou pessoa domine totalmente. Mas ao mesmo tempo garante que o movimento seja o mais ineficaz possível. Deve-se encontrar um meio-termo entre dominação e ineficácia.

Esses problemas estão chegando a um ponto crítico neste momento porque a natureza do movimento está necessariamente mudando. A elevação de consciência como principal função do movimento de libertação das mulheres está se tornando obsoleta. Devido à intensa publicidade da imprensa dos últimos dois anos e aos numerosos livros e artigos populares agora em circulação, a libertação das mulheres se tornou uma expressão popular. Suas questões são discutidas e grupos informais de discussão são formados por pessoas que não têm conexão explícita com nenhum grupo do movimento. O movimento precisa agora estabelecer suas prioridades, articular seus objetivos e prosseguir em suas metas de maneira coordenada. Para fazer isso, deve se organizar – local, regional e nacionalmente.

PRINCÍPIOS DA ESTRUTURA DEMOCRÁTICA

Uma vez que o movimento não se apega mais constantemente à ideologia da “falta de estrutura”, ele está livre para desenvolver as formas de organização mais adequadas ao seu funcionamento saudável. Isso não significa que devemos ir para o outro extremo e imitar cegamente as formas tradicionais de organização. Mas também não devemos rejeitá-las todas cegamente. Algumas das técnicas tradicionais provarão ser úteis, embora não perfeitas; algumas nos darão insights sobre o que devemos e não devemos fazer para obter determinados objetivos com custos mínimos para os indivíduos no movimento. Na maioria das vezes, teremos que experimentar diferentes tipos de estruturação e desenvolver uma variedade de técnicas para usar em diferentes situações. O Sistema de Sorteio (Lot System) é uma ideia que surgiu a partir do movimento. Não é aplicável a todas as situações, mas é útil em algumas. Outras ideias para estruturação são necessárias. Mas antes de podermos prosseguir com experimentos inteligentes, devemos aceitar a ideia de que não há nada inerentemente ruim na estrutura em si – apenas seu uso excessivo.

Ao participar desse processo de tentativa e erro, existem alguns princípios que podemos ter em mente que são essenciais para a estruturação democrática e também politicamente eficazes:

1) Delegação de autoridade específica para tarefas específicas a indivíduos específicos por meio de procedimentos democráticos. Deixar as pessoas assumirem empregos ou tarefas apenas por falta de opção significa que essas tarefas não serão executadas de forma confiável. Se as pessoas forem selecionadas para fazer uma tarefa, preferencialmente após expressarem interesse ou disposição para fazê-la, elas assumem um compromisso que não pode ser tão facilmente ignorado.

2) Exigir que todas aquelas a quem foi delegada autoridade sejam responsáveis perante aquelas que as selecionaram. É assim que o grupo tem controle sobre as pessoas em posições de autoridade. Indivíduos podem exercer poder, mas é o grupo que tem a palavra final sobre como o poder é exercido.

3) Distribuição de autoridade entre o maior número de pessoas possível. Isso evita o monopólio do poder e exige que aquelas em posições de autoridade consultem muitas outras no processo de exercício desse poder. Isso também dá a muitas pessoas a oportunidade de assumir responsabilidades por tarefas específicas e, assim, aprender diferentes habilidades.

4) Rotação de tarefas entre indivíduos. Responsabilidades que são mantidas por uma pessoa por muito tempo, formal ou informalmente, passam a ser vistas como “propriedade” dessa pessoa e não são facilmente renunciadas ou controladas pelo grupo. Por outro lado, se as tarefas são revezadas com muita frequência, o indivíduo não tem tempo para aprender bem o seu trabalho e adquirir a satisfação de fazer um bom trabalho.

5) Alocação de tarefas com base em critérios racionais. Selecionar alguém para uma posição porque é apreciado pelo grupo ou atribuir-lhe trabalho árduo porque é impopular não beneficia o grupo nem a pessoa a longo prazo. Habilidade, interesse e responsabilidade devem ser as principais preocupações nessa seleção. As pessoas devem ter a oportunidade de aprender habilidades que não possuem, mas isso é melhor feito por meio de algum tipo de programa de “aprendizagem” em vez do método de “se afogar ou nadar”. Ter uma responsabilidade que não se pode lidar bem é desmoralizante. Da mesma forma, ser impedido de fazer o que se faz bem não encoraja o desenvolvimento de habilidades. As mulheres foram punidas por serem competentes ao longo da maior parte da história humana; o movimento não precisa repetir esse processo.

6) Difusão de informações para todas com a maior frequência possível. A informação é poder. O acesso à informação aumenta o poder de alguém. Quando uma rede informal dissemina novas ideias e informações entre si fora do grupo, elas já estão envolvidas no processo de formação de uma opinião – sem a participação do grupo. Quanto mais se sabe sobre como as coisas funcionam e o que está acontecendo, mais politicamente eficaz alguém pode ser.

7) Acesso igual aos recursos necessários pelo grupo. Isso nem sempre é perfeitamente possível, mas deve ser buscado. Uma membra que mantém um monopólio sobre um recurso necessário (como uma impressora de propriedade de um marido ou uma sala escura para cine-debate) pode influenciar indevidamente o uso desse recurso. Habilidades e informações também são recursos. As habilidades das membras só podem estar equitativamente disponíveis quando as membras estiverem dispostas a ensinar o que sabem a outras.

Quando esses princípios são aplicados, eles garantem que qualquer estrutura desenvolvida por diferentes grupos do movimento será controlada e responsável pelo grupo. O grupo de pessoas em posições de autoridade será difuso, flexível, aberto e temporário. Eles não estarão em posição tão fácil de institucionalizar seu poder, pois as decisões finais serão tomadas pelo grupo como um todo. O grupo terá o poder de determinar quem exercerá autoridade dentro dele.


  1. Tradução livre do original disponível em: https://www.jofreeman.com/joreen/tyranny.htm ↩︎