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Terapia e como ela minimiza a prática do Feminismo Radical

Por Celia Kitzinger, traduzido livremente de Radically Speaking.


Uma das grandes percepções do feminismo da segunda onda foi o reconhecimento de que “o pessoal é político”, uma frase cunhada pela primeira vez por Carol Hanisch em 1971. Com isso, queríamos dizer que todas as nossas atividades pequenas, pessoais e do dia a dia tinham um significado político, quer fosse intencional ou não. Aspectos de nossas vidas que antes eram vistos como puramente “pessoais” – trabalho doméstico, sexo, relacionamentos com filhos e pais, mães, irmãs e amantes – eram moldados e influenciados pelo contexto social mais amplo.

O slogan… significava, por exemplo, que quando uma mulher é obrigada a ter relações sexuais com o marido, isso é um ato político, pois reflete as dinâmicas de poder no relacionamento: as esposas são propriedade a que os maridos têm total acesso.

(Rowland: 1984, p. 5)

Uma compreensão feminista de “política” significava desafiar a definição masculina de política como algo externo (ligado a governos, leis, protestos com bandeiras e marchas) em direção a uma compreensão da política como algo central para nosso ser, afetando nossos pensamentos, emoções e as escolhas aparentemente triviais do dia a dia sobre como vivemos. O feminismo significava tratar o que havia sido percebido como questões meramente “pessoais” como preocupações políticas.

Este artigo explora a forma como o slogan “o pessoal é político” é utilizado na escrita psicológica feminista, com referência especial à terapia. O crescimento das terapias feministas (incluindo livros de autoajuda, co-aconselhamento, grupos de doze passos e assim por diante, bem como terapia individual) foi rápido e atraiu críticas de muitas feministas preocupadas com suas implicações políticas (Cardea: 1985; Hoagland: 1988; Tallen: 1990a e b; Perkins: 1991). No entanto, muitas psicólogas feministas (tanto pesquisadoras quanto profissionais) afirmam explicitamente sua crença de que “o pessoal é político”.

Esse princípio tem “prevalecido como um pilar fundamental da terapia feminista” (Gilbert: 1980), e metodologias qualitativas muitas vezes têm sido adotadas pelas feministas precisamente porque permitem acesso à experiência “pessoal”, cujas implicações “políticas” podem ser extraídas por meio da pesquisa. Seria incomum encontrar uma psicóloga feminista que negasse acreditar que “o pessoal é político”, apesar da existência de críticas feministas a algumas de suas implicações (como a universalização falsa da experiência das mulheres, por exemplo, veja hooks: 1984, e a tendência irônica de algumas mulheres de perceberem as categorias “pessoal” e “político” do slogan como polarizadas e em competição, veja David: 1992). No entanto, a concordância generalizada com esse slogan entre psicólogas feministas esconde uma variedade de interpretações. Este artigo ilustra quatro dessas interpretações psicológicas divergentes de “o pessoal é político” e argumenta que, longe de politizar o pessoal, a psicologia personaliza o político, concentra a atenção na “revolução interna”, foca em “validar a experiência das mulheres” em detrimento da análise política dessa experiência e busca “empoderar” as mulheres, em vez de conceder poder político real.

Duas ressalvas antes de entrar em meu argumento principal

Primeiro, este artigo não pretende apresentar uma visão abrangente de toda a psicologia feminista – uma área imensa e em crescimento. Além disso, ao contrário de outras críticas (por exemplo, Jackson: 1983; Sternhall: 1992; Tallen: 1990a e b), este artigo não é um ataque a uma marca específica de psicologia, nem uma discussão de dentro da disciplina (por exemplo, Burack: 1992). Pelo contrário, seu objetivo é estar fora do quadro disciplinar da psicologia e chamar a atenção para os problemas políticos inerentes ao próprio conceito de “psicologia feminista”.

Segundo, “não parece justo”, disse um árbitro, “zombar das instituições que ajudam as mulheres a viverem suas vidas com menos dor.” Muitas mulheres foram ajudadas pela terapia. Já ouvi mulheres o suficiente dizerem “ela salvou minha vida” para me sentir quase culpada por desafiar a psicologia. Muitas mulheres dizem que foi apenas com a ajuda da terapia que elas se tornaram capazes de sair de um relacionamento abusivo, livrar-se de medos incapacitantes e ansiedades, ou parar o abuso de drogas. Qualquer coisa que salve a vida das mulheres, qualquer coisa que as deixe mais felizes, deve ser feminista – não é mesmo? Bem, não. É possível remendar as mulheres e capacitá-las a fazer mudanças em suas vidas sem nunca abordar as questões políticas subjacentes que causam esses problemas pessoais em primeiro lugar. “Eu costumava reclamar com meu marido para fazer o trabalho doméstico e nada acontecia”, disse uma mulher de Minnesota a Harrit Lerner (1990, p. 15); “agora estou em um programa intensivo de tratamento para co-dependência e estou me afirmando muito. Meu marido está mais prestativo porque ele sabe que sou codependente e apoia minha recuperação”. Para essa mulher, a explicação psicológica (“sou codependente e preciso me recuperar”) foi mais bem-sucedida do que a explicação feminista (o trabalho das mulheres como trabalho doméstico não remunerado para os homens, Mainardi: 1970) em criar mudanças. Com a ideia de si mesma como doente, ela conseguiu fazê-lo fazer o trabalho doméstico. Como Carol Tavris (1992) diz,

as mulheres recebem muito mais simpatia e apoio quando definem seus problemas em termos médicos ou psicológicos do que em termos políticos.

A explicação da codependência esconde o que as feministas veem como a verdadeira causa de nossos problemas – a supremacia masculina. Em vez disso, somos informadas de que a causa está em nossa própria “codependência”. Isso não é feminismo. Embora seja claro que “muitas mulheres tenham sido ajudadas pela terapia”, também é claro que muitas mulheres foram ajudadas e se sentem melhores consigo mesmas como resultado de (por exemplo) fazer dieta, comprar roupas novas ou entrar em um culto religioso. Historicamente, como aponta Bette Tallen (1990a, p. 390), as mulheres têm “procurado refúgio em instituições como a igreja católica ou o exército. Mas isso significa que essas são instituições que devem ser plenamente abraçadas pelo feminismo?” As razões por trás da corrida para a psicologia e os benefícios que ela oferece (bem como o preço que ela exige) são discutidos com mais detalhes em outro lugar (Kitzinger e Perkins: 1993). Neste artigo, foco mais estreitamente nas interpretações psicológicas do slogan “o pessoal é político” e nas implicações disso para o feminismo.

A personalização do Político

Nessa interpretação de “o pessoal é político”, em vez de politizar o “pessoal”, o “político” é personalizado. Preocupações políticas, políticas nacionais e internacionais, e grandes desastres sociais, econômicos e ecológicos são reduzidos a questões psicológicas pessoais e individuais.

Essa tradução completa do político para o pessoal é característica não apenas da psicologia feminista, mas da psicologia em geral. Nos EUA, um grupo de vinte e dois profissionais gastou três anos e $73.500 para concluir que a falta de autoestima é a causa raiz de “muitos dos principais males sociais que nos afligem hoje” (The Guardian: 13 de abril de 1990). A violência sexual contra mulheres é abordada criando sessões de treinamento de habilidades sociais e gerenciamento da raiva para estupradores (agora disponíveis em sessenta prisões na Inglaterra e no País de Gales, The Guardian: 21 de maio de 1991), e o racismo se torna algo para desabafar em uma oficina de aconselhamento (Green: 1987). Muitas pessoas agora pensam em questões sociais e políticas importantes em termos psicológicos.

Na verdade, toda a vida pode ser vista como um grande exercício psicológico. Lá em 1977, Judi Chamberlin apontou que hospitais psiquiátricos tendem a usar o termo “terapia” para descrever absolutamente tudo o que acontece dentro deles:

… fazer as camas e varrer o chão podem ser chamados de “terapia industrial”, ir a uma dança ou filme é “terapia recreativa”, drogar os pacientes é “quimioterapia” e assim por diante. Hospitais mentais de custódia, que oferecem muito pouco tratamento, frequentemente fazem referência à “terapia de ambiente”, como se o próprio ar do hospital fosse de alguma forma curativo .

(1977, p. 131)

Uma década mais tarde, com a principal clientela da psicologia não mais nos hospitais mentais, mas na comunidade, tudo em nossas vidas é traduzido para a “terapia”. Ler livros se torna “biblioterapia”; escrever (Wenz: 1988), manter um diário (Hagan: 1988) e fazer arte são todos atribuídos a funções terapêuticas. Até mesmo tirar fotos é agora uma técnica psicológica: a “fototerapeuta” feminista Jo Spence se baseou nas teorias psicanalíticas de Alice Miller (1987) e defende a cura (entre outras “feridas”), “a ferida da vergonha de classe” por meio da fotografia. E embora a leitura, a escrita e a fotografia sejam atividades comuns, em sua manifestação terapêutica elas exigem orientação especializada: “Eu não acho que as pessoas possam fazer isso com amigos ou sozinhas… elas nunca terão a segurança de trabalhar sozinhas como terão trabalhando com um terapeuta, porque elas encontrarão seus próprios bloqueios e não conseguirão superá-los” (Spence: 1990, p. 39). Embora não queiramos negar que a leitura, a escrita, a arte, a fotografia, entre outros, possam fazer algumas pessoas se sentirem melhor consigo mesmas, é perturbador encontrar tais atividades sendo avaliadas em termos puramente psicológicos. Como feministas, costumávamos ler para aprender mais sobre a história e a cultura feministas; escrever e pintar para nos comunicarmos umas com as outras. Essas eram atividades sociais direcionadas para fora; agora elas são tratadas como explorações do eu. O sucesso do que fazemos é avaliado em termos de como nos faz sentir. Condições sociais são avaliadas em termos de como a vida interior dos indivíduos responde a elas. Compromissos políticos e éticos são julgados pelo grau em que melhoram ou prejudicam nosso senso individual de bem-estar.

As terapeutas feministas agora “prescrevem” atividades políticas para suas clientes – não por seu valor político inerente, mas como remédios milagrosos. As “Diretrizes para a Terapia Feminista” oferecidas pela terapeuta Marylou Butler no Manual de Terapia Feminista (1985) incluem a sugestão de que as terapeutas feministas devem “encaminhar para centros de mulheres, grupos de conscientização e organizações feministas, quando isso seria terapêutico para as clientes” (p. 37). A Conscientização – a prática de tornar o pessoal político – nunca foi destinada a ser “terapia” (Sarachild: 1978). Mulheres que participam do ativismo feminista com o objetivo de se sentirem melhores consigo mesmas provavelmente ficarão desapontadas. Ao enviar mulheres para grupos feministas, cujos objetivos primários são ativistas e não terapêuticos, as terapeutas estão fazendo um desserviço tanto à suas clientes quanto ao feminismo.

Nossos relacionamentos também são considerados não em termos de suas implicações políticas, mas sim em termos de suas funções terapêuticas. A terapia costumava nomear o que acontecia entre um terapeuta e um cliente. Agora, como Bonnie Mann aponta, isso descreve com precisão o que acontece entre muitas mulheres em interações diárias: “qualquer atividade organizada por mulheres é encaixada em uma estrutura terapêutica. Seu valor é determinado com base em se é ou não ‘curativo'”:

Eu frequentemente vi uma conversa honesta se transformar em uma interação terapêutica diante dos meus olhos. Por exemplo: eu menciono algo que me incomodou, machucou ou foi difícil para mim de alguma forma. Algo muda. Vejo a mulher com quem estou a assumir o papel de amiga de apoio. É como se uma fita se encaixasse em seu cérebro, sua voz muda, posso vê-la começar a me ver de maneira diferente, como uma vítima. Ela começa a recitar as frases: “Isso deve ter sido muito difícil para você”, ou “Isso deve ter sido tão invalidante” ou “O que você acha que precisa para se sentir melhor com isso?” Eu conheço muito bem a fita correspondente que supostamente deve se encaixar em meu próprio cérebro: “Acho que só precisava te dizer o que estava acontecendo comigo”, ou “Ajuda ouvir você dizer isso, parece muito validador”, ou “Acho que só preciso ficar sozinha e me cuidar um pouco”.

(1987, p. 47)

As formas psicológicas de pensamento saíram do consultório do terapeuta, dos grupos de AA e dos livros de autoajuda, dos workshops de experiência e das sessões de renascimento para invadir todos os aspectos de nossas vidas. O político foi completamente personalizado.

A revolução de Dentro para Fora

Outra interpretação comum da máxima “o pessoal é político” no contexto da psicologia feminista é algo assim:

A atividade supostamente “pessoal” da terapia é profundamente política, porque aprender a se sentir melhor sobre nós mesmas, elevar nossa autoestima, aceitar nossas sexualidades e nos reconciliarmos com quem realmente somos – tudo isso são atos políticos em um mundo heteropatriarcal. Com o ódio às mulheres ao nosso redor, é revolucionário nos amarmos, curarmos as feridas do patriarcado e superarmos a autossupressão. Se todos se amassem e se aceitassem, de modo que mulheres (e homens) não projetassem mais uns nos outros seus próprios ódios reprimidos, teríamos uma mudança social real.

Este é um argumento muito comum, recentemente reiterado no livro “Revolução de Dentro para Fora” de Gloria Steinem. Como aponta Carol Sternhall em uma análise crítica, “O objetivo de toda essa psicoterapia moderna e psicodélica não é simplesmente se sentir melhor consigo mesmo – ou melhor, é, porque se sentir melhor com todas as nossas partes agora é a chave para a revolução mundial” (1992, p. 5).

Neste modelo, o “eu” é naturalmente bom, mas precisa ser desenterrado de sob as camadas de opressão internalizada e curado das feridas infligidas por uma sociedade heteropatriarcal. Apesar de suas diferenças evidentes em outras áreas, a terapeuta feminista lésbica Laura Brown (1992) compartilha a noção de “verdadeiro eu” de Gloria Steinem. Ela escreve, por exemplo, sobre a “luta da cliente para recuperar seu eu das armadilhas do patriarcado” (pp. 241-42), ao “descascar as camadas do treinamento patriarcal” (p. 242) e “curar as feridas da infância” (p. 245); na terapia com Laura Brown, uma mulher é ajudada a “se conhecer” (p. 246), a ir além de seu “eu acomodado” (p. 243) e descobrir seu “verdadeiro eu” (p. 243) (ou “eu interior fingido” p. 245) e viver “em harmonia consigo mesma” (p. 243). Na maioria da psicologia feminista, esse eu interior é caracterizado como uma linda e espontânea menininha. Entrar em contato e nutri-la é o primeiro passo para criar uma mudança social: é uma “revolução de dentro para fora”.

Esse conjunto de ideias tem raízes no “movimento de crescimento” dos anos 1960, que enfatizava a liberação pessoal e o “potencial humano”. Naquela época, a imagem central era de uma “sociedade doente” vagamente definida.

“O Sistema” foi envenenado pelo seu materialismo, consumismo e falta de preocupação com o indivíduo. Essas coisas foram internalizadas pelas pessoas; mas sob as camadas de “porcaria” em cada pessoa repousava um “eu natural” essencial que poderia ser alcançado por meio de várias técnicas terapêuticas. O que isso sugere é que a mudança revolucionária não é algo que precisa ser construído, criado ou inventado com outras pessoas, mas que é de alguma forma natural, adormecido em cada um de nós individualmente e só precisa ser liberado.

(Scott e Payne: 1984, p. 22)

A absurdidade de levar esse argumento de “revolução de dentro para fora” a sua conclusão lógica é ilustrada por um projeto, descendente de um programa terapêutico popular, que propôs acabar com a fome. Não, como poderia parecer sensato, por meio da organização de cozinhas comunitárias, distribuição de pacotes de comida para os famintos, campanhas para que países empobrecidos fossem liberados de suas dívidas nacionais ou patrocínio de cooperativas agrícolas. Em vez disso, oferece o simples expediente de fazer indivíduos assinarem cartões dizendo que eles estão “dispostos a serem responsáveis por fazer do fim da fome uma ideia cujo tempo chegou.” Quando um número não revelado de pessoas tiver assinado esses cartões, um “contexto” terá sido criado em que a fome de alguma forma acabará (citado em Zilbergeld: 1983, pp. 5–6). Claro, Laura Brown, assim como muitas outras terapeutas feministas, provavelmente também quereria desafiar a obscenidade desse projeto. No entanto, a lógica de seus próprios argumentos permite precisamente esse tipo de interpretação.

Tais abordagens estão muito distantes da minha própria compreensão de “o pessoal é político”. Eu não acredito que a mudança social aconteça de dentro para fora. Não acredito que as pessoas tenham crianças interiores esperando para serem nutridas, reparentadas, e que sua bondade natural seja liberada para o mundo, sob as camadas de opressão internalizada. Pelo contrário, como argumentei em outros lugares (Kitzinger: 1987; Kitzinger e Perkins: 1993), nossos eu interiores são construídos pelos contextos sociais e políticos em que vivemos e, se quisermos alterar o comportamento das pessoas, é muito mais eficaz mudar o ambiente do que psicologizá-las individualmente. No entanto, como Sarah Scott e Tracey Payne (1984, p. 24) apontam, “quando se trata de fazer terapia, é essencial que cada técnica seja vista pelas mulheres como seus ‘verdadeiros’ e ‘sociais’ eus como distintos.” Isso significa que o processo de tomar decisões éticas e políticas sobre nossas vidas é reduzido à suposta “descoberta” de nossos verdadeiros eus, a honra de nossos “desejos do coração”. A compreensão política de nossos pensamentos e sentimentos é ocultada, e nossas escolhas éticas são moldadas em um quadro terapêutico em vez de político. Um conjunto de condições sociais repressivas tornou a vida difícil para mulheres e lésbicas. No entanto, a solução da “revolução de dentro para fora” é melhorar os indivíduos, em vez de mudar as condições.

A psicologia sugere que só depois de se curar você mesmo, você pode começar a curar o mundo. Discordo disso. As pessoas não precisam ser seres humanos perfeitamente funcionais e auto-realizados para criar mudanças sociais. Pense nas feministas que você conhece que foram influentes no mundo e que trabalharam com afinco e eficácia pela justiça social: Todas elas se amaram e se aceitaram? A grande maioria daqueles admirados por seu trabalho político continua lutando pela mudança não porque alcançaram a autorrealização (nem para atingi-la), mas por causa de seus compromissos éticos e políticos, e muitas vezes apesar de seus próprios medos, dúvidas pessoais, angústias pessoais e auto ódio. Aqueles que trabalham para uma “revolução externa” muitas vezes não estão mais “em contato com seus verdadeiros eu” do que aqueles fixados na mudança interna: essa observação não deve ser usada (como às vezes é) para desacreditar seu ativismo, mas sim para demonstrar que a ação política é uma opção para todos nós, independentemente do nosso estado de bem-estar psicológico. Espere até que seu mundo interno esteja resolvido antes de direcionar sua atenção para o externo, e você está, de fato, “esperando pela revolução” (Brown: 1992).

Validar a Experiência das Mulheres

Uma terceira versão psicológica de “o pessoal é político”, aplicada à terapia, é mais ou menos assim:

A política se desenvolve a partir da experiência pessoal. O feminismo deriva das próprias histórias de vida das mulheres e deve refletir e validar essas histórias. As realidades das mulheres sempre foram ignoradas, negadas ou invalidadas sob o heteropatriarcado; a terapia serve para testemunhar, afirmar e validar a experiência das mulheres. Como tal, ela torna o pessoal político.

A política da terapia, de acordo com essa abordagem, não envolve mais do que “validar”, “respeitar”, “honrar”, “celebrar”, “afirmar”, “prestar atenção” ou “testemunhar” (essas palavras são geralmente usadas de forma intercambiável) a “experiência” ou “realidade” de outra mulher.

Esse processo de “validação” supostamente tem enormes implicações: “Quando honramos nossos clientes, eles se transformam” (Hill: 1990, p. 56).

Obviamente, faz muito sentido nos ouvirmos e estarmos dispostas a entender o significado da experiência de outras mulheres. Costumávamos fazer isso em Grupos de Conscientização, e agora fazemos isso na terapia. Por ter sido transformada em uma atividade terapêutica, ela agora carrega todos os riscos de abuso de poder endêmicos ao empreendimento terapêutico (Kitzinger e Perkins: 1993, capítulo 3; Silveira: 1985). Em particular, os terapeutas são seletivos sobre quais experiências irão ou não validar na terapia. Aquelas emoções e crenças de uma cliente que são mais similares às do terapeuta são “validadas”; as outras são mais ou menos sutilmente “invalidadas”.

Poucas terapeutas feministas, por exemplo, irão validar sem críticas uma sobrevivente de abuso sexual infantil que fala sobre ser a culpada pelo estupro na infância devido ao seu comportamento sedutor; em vez disso, é provável que lhe seja oferecida uma análise sobre a forma como a culpabilização da vítima opera sob o heteropatriarcado. Da mesma forma, poucas terapeutas feministas validarão a experiência de uma mulher que diz estar doente e pervertida por ser lésbica: em vez disso, como a própria Laura Brown (1992) argumenta, seus “pensamentos disfuncionais” (p. 243) serão questionados e a terapia será direcionada para modificá-los para a crença de que “o patriarcado ensina que o lesbianismo é mal como um meio de controlar socialmente todas as mulheres e reservar recursos emocionais para homens e instituições dominantes (uma análise que ofereci, em várias formas, para mulheres que questionavam em voz alta em meu consultório por que se odeiam tanto por serem lésbicas)” (Brown: 1992, p. 249). Embora afirmem “validar” todas as realidades das mulheres, na verdade, apenas um subconjunto, consistindo das realidades com as quais o terapeuta concorda, é aceito como reflexão “verdadeira” da realidade. As outras são “invalidadas”, quer como “cognições defeituosas” (Padesky: 1989) ou como “distorções patriarcais” (Brown: 1992, p. 242).

Em outras palavras, toda essa conversa sobre “validar” e “honrar” a realidade das clientes é um disfarce fino para a moldagem terapêutica da experiência das mulheres em termos das próprias teorias do terapeuta.

De qualquer forma, a “experiência” é sempre percebida por meio de uma estrutura teórica (implícita ou explícita) dentro da qual ganha significado. Sentimentos e emoções não são simplesmente respostas imediatas, não socializadas e auto-autenticadoras. Eles são socialmente construídos e pressupõem certas normas sociais. A “experiência” nunca é “bruta”; ela está embutida em uma teia social de interpretação e reinterpretação. Ao encorajar e perpetuar a noção de “experiência” pura, não corrompida e pré-socializada e emoção natural surgindo de dentro, os terapeutas disfarçaram ou obscureceram as raízes sociais de nossos “eus internos”. Colocar a “experiência” além do debate dessa maneira é profundamente antifeminista precisamente porque nega as fontes políticas da experiência e as torna puramente pessoais. Quando a psicologia simplesmente “valida” emoções específicas, ela as retira de um quadro ético e político.

Empoderamento

Uma quarta interpretação psicológica de “o pessoal é político” se baseia na noção de “empoderamento”. Ela segue mais ou menos assim:

A terapia nos capacita a agir politicamente. Elevar a conscientização pessoal por meio da terapia permite que os indivíduos liberem suas energias psíquicas em direção a uma mudança social criativa. Através da terapia, lésbicas podem adquirir tanto a consciência feminista quanto a autoconfiança para se envolver em ação política. Muitas ativistas políticas radicais feministas são empoderadas a continuar através de seu auto cultivo contínuo na terapia.

Aquelas em terapia muitas vezes usam essa justificativa: de acordo com Angela Johnson (1992, p. 8), a terapia (junto com a escalada) “me dá energia para continuar meu ativismo com renovado entusiasmo.” E as terapeutas concordam. De acordo com a psicóloga clínica Jan Burns (1992, p. 230), escrevendo sobre a psicologia do atendimento à saúde lésbica, “parece intuitivamente razoável que um indivíduo possa preferir se envolver na autoexploração antes de escolher se envolver em ações mais políticas, e pode de fato precisar disso antes de ser capaz de tomar outras medidas”. Laura Brown (1992) diz que muitos de seus clientes “têm muito pouco a contribuir para a luta maior da qual muitos estão desengajados quando os vejo pela primeira vez” (p. 245). Sua cliente, “Ruth”, foi ajudada a entender que a “cura final reside em sua participação em uma mudança cultural, não apenas pessoal” (p. 246) e Laura Brown mostrou a ela como “levar seu processo de cura para uma esfera mais ampla” (p. 245). Como resultado da terapia, suas “energias” foram “liberadas” (p. 245) e ela se tornou uma palestrante, poetisa e professora sobre mulheres e guerra, além de se envolver em ativismo público contra a guerra. Da mesma forma, a psicóloga clínica Sue Holland (1991), em um artigo intitulado “Dos sintomas privados à ação pública”, promove um modelo de terapia no qual o cliente passa de “paciente/vítima ‘doente’ e passivo” no início do tratamento para o “reconhecimento da opressão localizada no ambiente objetivo”, o que leva a um “desejo coletivo de mudança” em que “energias psíquicas podem… ser direcionadas para inimigos estruturais” (p. 59).

De acordo com essa interpretação, o “pessoal” consiste em “energias psíquicas” (nunca claramente definidas) que operam de acordo com um modelo hidráulico. Há uma quantidade fixa de “energia” que pode ser bloqueada, liberada ou redirecionada por outros canais. O “político” é simplesmente um desses “canais”. A terapia pode (e alguns diriam que deve) direcionar a energia feminista ao longo de “canais políticos”. Muitas vezes, é claro, ela não faz isso, e as mulheres permanecem perpetuamente focadas internamente, um problema notado com pesar pelas terapeutas lésbicas/feministas mais radicais. Mas, segundo elas, sua terapia resulta em suas clientes se tornando ativas politicamente.

Longe de incorporar a noção de que “o pessoal é político”, essas ideias dependem de uma separação radical entre os dois. O aspecto “pessoal” da terapia é distinguido do trabalho “político” de participar de marchas, e ao terem separado o “pessoal” e o “político” dessa maneira, os dois são então examinados quanto ao grau de correlação.

O argumento de “empoderamento” ignora totalmente a política da própria terapia. É visto simplesmente como um hobby (como a escalada) ou uma atividade pessoal sem implicações éticas ou políticas em si mesma. Desprovido de significado político intrínseco, é avaliado apenas em termos de suas consequências presumidas para a “política” – definida em termos da velha variedade de bandeira acenando do antigo movimento de esquerda masculino. Se “o pessoal é político”, o próprio processo de fazer terapia é político, e esse processo (não apenas seus resultados alegados) deve ser criticamente avaliado em termos políticos.

Em conclusão, e apesar da frequência com que as terapeutas feministas afirmam rotineiramente que “o pessoal é político”, parece completamente errado afirmar que esse objetivo é um “pilar da terapia feminista” (Gilbert: 1980). Certamente, as noções de “revolução de dentro”, a importância de “validar” a realidade das mulheres e “empoderar” as mulheres para o ativismo político são centrais para o pensamento de muitas psicólogas feministas. Essas ideias sobrepostas e inter-relacionadas estão entrelaçadas em grande parte na teoria e na prática psicológica lésbica/feminista. No entanto, tais noções estão longe da perspectiva radical feminista de que “o pessoal é político” e muitas vezes são interpretadas em contradição direta com essa perspectiva. Muitas vezes, promovem conceitos ingênuos dos mecanismos pelos quais a mudança social é alcançada; envolvem a aceitação acrítica de “verdadeiros sentimentos” e/ou “reinterpretações” manipulativas da vida das mulheres em termos preferidos pelo psicólogo; levam as mulheres a reverter a definições “externas” de política em contraposição ao aspecto “pessoal” da terapia; e nos deixam carentes de linguagem ética e política. Reconhecer que o pessoal realmente é político significa rejeitar a psicologia.

Reconheço que algumas mulheres cuja política eu admiro e respeito não rejeitaram a psicologia: muitas estão “em terapia” ou são provedoras de terapia. Essa observação às vezes é usada para contestar nossos argumentos. Depois de ler um capítulo (Kitzinger e Perkins: 1993) que cita o processo judicial de Nancy Johnson contra o governo dos EUA por condenar as pessoas de Utah ao câncer (por causa do armazenamento nuclear), um leitor comentou que Nancy Johnson agora trabalha como curandeira psíquica de uma maneira que eu provavelmente consideraria politicamente problemática. “Acho que a situação é mais complicada do que você apresentou: Feminismo e psicologia não parecem ser mutuamente exclusivos”, disse ele. Obviamente, ativistas feministas às vezes são praticantes ou consumidoras de psicologia: muitas feministas claramente acham possível incluir ambos em suas vidas. Mas, assim como os defensores da saúde às vezes fumam cigarros; os ecologistas às vezes jogam lixo; e os pacifistas às vezes batem em seus filhos. A coexistência observada de duas visões ou comportamentos na mesma pessoa não os torna lógicamente éticos ou politicamente compatíveis.

O debate sobre a compatibilidade ética e política das diferentes ideias e comportamentos das pessoas é uma parte importante do que a discussão política feminista é. Meu argumento é que o feminismo e a psicologia não são eticamente ou politicamente compatíveis. Não significa necessariamente que as mulheres envolvidas na psicologia sejam apolíticas ou antifeministas. Muitas levam a sério o feminismo e estão profundamente engajadas em atividades políticas. Mas, na medida em que organizam suas vidas com base em ideias psicológicas e na medida em que limitam seus pensamentos e ações ao que aprendem da psicologia, estão negando o princípio feminista fundamental de que “o pessoal é político”.

KITZINGER, Celia. Terapia e como ela Minimiza a Prática do Feminismo Radical. IN: BELL, D.; KLEIN, R. (eds) Radically Speaking: Feminism Reclaimed. Melbourne: Spinifex Press, 1996. Tradução livre.

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Traduções

Um chamado às feministas para se lembrarem da natureza sexual da opressão das mulheres

O real brilhantismo do patriarcado… é que ele não apenas naturaliza a opressão. Ele sexualiza atos de opressão. Ele erotiza a dominação e a subordinação. Ele os institucionaliza como masculinidade e feminilidade. Então, ele naturaliza, erotiza e institucionaliza a dominação e a subordinação. O brilhantismo do feminismo é que nós descobrimos isso.

Lierre Keith

Nos últimos meses muita legislação tem passado ou foi proposta nos Estados Unidos e em outros lugares o suficiente para indicar uma assustadora escalada na guerra — sim, é uma guerra — contra as mulheres. O parlamento Russo acabou de votar a 380-3 para descriminalizar a violência doméstica. Trata-se de um país onde em média 40 mulheres por dia — 14.000 mulheres por ano — são mortas por seus parceiros homens. Os Estados Unidos, onde 1.000 mulheres são mortas por seus parceiros por ano, acabou de eleger um presidente que diz que “quando você é uma estrela, elas deixam você pegá-las pela buceta”, está envolvido com pornografia e tráfico sexual. Ele planeja eliminar o financiamento a 25 programas de combate a violência doméstica e está ordenando às funcionárias mulheres para que “se vistam como mulher”. O estado do Texas está pensando em retirar os direitos eleitorais de mulheres que fizeram aborto; o estado do Arkansas quer permitir a estupradores que processem mulheres por abortar.

Todas essas empreitadas se baseiam, é claro, em uma noção há muito estabelecida de que mulheres são propriedades dos homens. O estigma do aborto se baseia na ideia de que as mulheres não criam a vida humana através de um processo de dez meses de gestação e trabalho; seriam os homens a ejacular vida nas mulheres, e as mulheres, como incubadoras reguladas pelo estado, são obrigadas a levá-la a termo. A violência doméstica, a indústria da pornografia e da prostituição que abastecem o tráfico sexual, normas de vestimenta, tudo isso se baseia no mesmo princípio do merecimento sexual dos homens. Não surpreende que os comentadores estejam comparando essa tendência atual a O Conto da Aia de Margaret Atwood; uma nova era de regras e normas mais ortodoxas e estritas para as mulheres do Ocidente. Tudo isso justificado através dos mitos de que as mulheres são biologicamente predispostas a essas regras e normas.

Dada a situação que enfrentamos, é alarmante confrontar a realidade de que a esquerda é tão mal preparada e indisposta a discutir a opressão das mulheres quanto a direita conservadora. Hoje em dia, noções como a de “identidade de gênero” por exemplo, ameaçam engolir a compreensão coletiva das mulheres a respeito do todo da opressão baseada no sexo. A ideologia da “identidade de gênero” afirma que gênero é uma questão pessoal de identificação, e que o sexo biológico de alguém pode ser trocado e mudado à vontade. “Cis” é uma palavra que as mulheres estão adotando cada vez mais como sinal de sua compreensão de que possuem o “privilégio” de ter sua identidade de gênero em conformação com seu sexo biológico. Ao mesmo tempo, é claro, mulheres estão sofrendo pressão para engolirem a ideia de que o sexo biológico propriamente dito não é real.

A questão é que ser fêmea é algo muito real, e que ser consequentemente generificada como mulher também é — e não se trata de uma forma de privilégio. É uma forma de opressão que as mulheres têm resistido desde a criação do patriarcado. Ao oferecer uma curta história do sistema ocidental canceroso e globalizado de objetificação sexual sob o qual vivemos hoje, espero oferecer aqui um pequeno lembrete disso. Esse ensaio busca resgatar o desenvolvimento da opressão baseada no sexo desde as suas raízes, passando pela caça às bruxas, ao comércio de escravos, à patologização dos corpos das mulheres na ginecologia, e às reações à insurgência feminista recente.

Matricentralidade e a criação do patriarcado

Apesar da insistência ortodoxa de que a dominação dos machos reflete simplesmente a ordem “natural” das coisas, o patriarcado é apenas um desenvolvimento relativamente recente na história da humanidade. Durante 99% de nossa existência, os humanos não viveram sob o domínio patriarcal. A autora feminista Marilyn French chama os grupos de parentesco matrilineares de subsistência horticulturais que existiram amplamente antes do desenvolvimento do patriarcado de matricêntricos; Audre Lorde escrever sobre os cultos a deusas como Afrekete, Iemanjá, Oyo e Mawulisa; o filme Woman Shaman de Max Dashu explora a arte e os achados arqueológicos que restaram dessas culturas matricêntricas ao redor do mundo.

Imagem: Max Dashu

History of Women de French e The Creation of Patriarchy de Gerda Lerner são textos incríveis sobre os processos históricos por meio dos quais os homens criaram o patriarcado que forma a base da sociedade ocidental. Isso aconteceu ao longo de aproximadamente 2500 anos, desde cerca de 3100 a.C., durante a revolução agrícola. De acordo com Lerner, a transição de um modo de vida de subsistência para a agricultura significou que as crianças se tornaram um ativo econômico, uma fonte de trabalho — e as mulheres se tornaram a primeira forma de propriedade privada.

French mostra como a dominação masculina foi primeiramente afirmada através de reivindicações paternais de posse e direito de nomear filhos. O assassinato dos primogênitos era comum nos primeiros grupos patrilineares, quando homens queriam garantir que o primeiro filho de suas esposas eram realmente “seus”. O fato de o aborto ainda estar na legislação criminal da Nova Zelândia é uma expressão contemporânea da presunção de que a vida humana é feita por e pertence aos homens. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde também santificou os “direitos” dos homens sobre as crianças através de uma nova política declarando que a incapacidade de encontrar um parceiro sexual é uma “deficiência”.

Com a apropriação do controle sobre os filhos, a instituição do casamento progressivamente se tornou uma prática que comodifica, desempodera e isola mulheres de suas famílias e comunidades. Para colocar em perspectiva, o estupro dentro do contexto do casamento não era ilegal na Nova Zelândia até 1985.

Com a instituição do casamento veio o dote, e o maior valor no que diz respeito a ter filhas mulheres vinha de seu potencial enquanto esposas; “roubo de noivas” e “defloração ritual” eram comuns, como ainda são hoje no Quirguistão, por exemplo. As “esposas” raptadas são em geral crianças, e hoje uma média de 15 milhões de meninas por ano são forçadas a casar. Em 2013, uma garota iemenita de oito anos morreu de sangramentos internos na noite em que foi casada com um homem cinco vezes mais velho. É isso que o patriarcado faz às meninas.

Uma das práticas que melhor exemplifica a comodificação através do casamento é o costume indiano do suttee, banido legalmente apenas em 1829. Essa prática envolvia queimar vivas as viúvas, incluindo garotas sequestradas como esposas, nas piras funerárias de seus maridos. O mito de que meninas e mulheres perderam seus maridos como resultado de seu próprio carma ruim motivava a prática. Como este era para ser um ritual de “limpeza”, os homens tipicamente evitavam queimar mulheres enquanto elas estivessem menstruadas, e esperavam dois meses depois do nascimento de uma criança se ela estivesse grávida. Incontáveis mulheres poderiam ser queimadas depois da morte de um único homem da realeza.

Depois de os homens terem se apropriado das mulheres e da esfera doméstica, o estatuto das mulheres foi futuramente institucionalizado e codificado como lei através da construção das religiões monoteístas, do estado, e do desenvolvimento da prostituição comercial. Se alguém tentar te dizer que a prostituição é “a profissão mais velha do mundo”, estarão sendo condescendentes e essencialistas: como Max Dashu mostra, mulheres praticavam a medicina muito antes de os homens se darem conta de como objetificar e lucrar com as mulheres através da prostituição. Lerner discute como a burqa, o costume de as mulheres usarem véu, foi criado para ajudar os homens a distinguir entre as mulheres “respeitáveis e não respeitáveis”, entre as esposas e as mulheres na prostituição.

Como escreve Moana Jackson, a colonização sempre acontece com com uma tomada da memória histórica, saqueada de forma que um vasto silêncio se prolifera. “Algumas vezes, esse silenciamento é descrito como uma amnésia social”, diz Jackson, “na qual o passado sumiu das mentes quase como um esquecimento acidental e sem culpados que ocorre com a passagem do tempo”. O que realmente acontece porém, diz ele, é que as histórias são conscientemente redefinidas de modo que ficam “na cara” das realidades políticas e sociais dos colonizados. O mesmo se aplica às mulheres. Hoje, poucas de nós sabe sua história — seja a da nossa opressão ou da nossa resistência a ela, uma vez que a história é contada pelos patriarcas. Mas podemos retomá-la.

A queima das bruxas e a ginecologia

A “pérola”. Durante a caça às bruxas, os torturadores aqueciam essa ferramenta no fogo e então a enfiavam nas vaginas das mulheres, abrindo lá dentro as suas peças. Imagem da autora.

As mulheres continuaram a praticar amplamente a medicina na Europa até o chamado período do “Iluminismo”. Entre o Império Romano e este período, a caça às bruxas e o seu “mito da feminilidade maléfica” resultaram no assassinato de 9 milhões de pessoas, a maioria delas mulheres, ao longo de 300 anos. A história se lembra deste esforço de 300 anos, quando se lembra, como uma espécie de episódio isolado de loucura supersticiosa (pense no The Crucible de Arthur Miller). Escritoras feministas como Mary Daly, Andrea Dworkin e Max Dashu oferecem outra versão.

Dworkin escreve que muitas das mulheres tidas como bruxas eram praticantes de medicina, uma verdade que ainda existe na nossa memória cultural, de forma distorcida e corrompida, no estereótipo da bruxa dos sapos e caldeirões. Mas estas não eram mulheres más de cara esverdeada. De acordo com Dworkin, eram parteiras, principalmente, uma vez que mulheres educadas realmente ofendiam a Igreja.

As bruxas utilizavam drogas como a beladona e acônito, anfetaminas orgânicas e alucinógenos. Elas também foram pioneiras no desenvolvimento de analgésicos. Elas realizavam abortos, providenciavam toda a ajuda médica necessária para realizar partos, eram consultadas em casos de impotência que tratavam com ervas e hipnose, e foram as primeiras praticantes da eutanásia.

Anna Göldi é tida como a última mulher executada como bruxa na Europa. Ela era a empregada de um médico, que a acusou de colocar agulhas nos pães de seus filhos através de meios sobrenaturais. Depois de tentar escapar do julgamento, ela foi capturada e decapitada na Suíça em 1782.

Em seu livro Gyn/Ecology, Mary Daly aponta como a ginecologia foi estabelecida como uma prática governada pelos homens depois do tempo da queima das bruxas. O ano de 1873 marca a publicação da invenção da castração feminina de Robert Battey: a remoção dos ovários das mulheres para a “cura da insanidade”. Desde então, os homens ginecologistas têm rotineiramente patologizado, torturado e ferido cirúrgica e medicamente as mulheres e seus corpos através de práticas violentas de parto, mastectomias e histerectomias radicais, “terapias” de choque e hormonais, e lobotomias.

Imagem da autora

Desde os anos de 1890, houve um interesse louco em úteros mecânicos ou prostéticos feitos de madeira e vidro (“mães artificiais” ou “incubadoras”) — tecnologias que tentavam desafiar a indispensabilidade dos corpos das mulheres. Nessas incubadoras nós podemos ver que a pressão atual dos transativistas em neutralizar e desumanizar a linguagem da gravidez e do parto, e separar a conexão dos corpos das mulheres de sua saúde, possui ecos através da história.

Daly aponta que a tomada do controle da saúde das mulheres pelos homens depois da caça às bruxas não foi coincidência:

Muitas feministas notaram a significância do fato de que o massacre das mulheres sábias e curandeiras durante a caça às bruxas foi seguido de um crescimento no número de homens parteiros, que eventualmente se tornaram dignificados pelo nome de “ginecologistas”. A ginecologia demorou a crescer. Os homens parteiros dos séculos dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove foram combatidos pelas mulheres parteiras, tais como Elizabeth Nihell, que discreveu seus instrumentos como “máquinas da morte”. Mesmo assim, o século dezenove viu a ereção da ginecologia sobre montes de corpos de mulheres mortas.

O acúmulo de abusos

J. Marion Sims, “o Pai da Ginecologia Moderna”, usou mulheres afro-americanas escravas para conduzir seus experimento cirúrgicos. Sims fez experimentos em mulheres negras para pesquisar doenças como câncer — sem prover anestésicos ou outros remédios para controlar a dor. Caso uma mulher morresse das complicações ou por sangramento excessivo, ele simplesmente substituiria ela por outra escrava, e sua prática era completamente legal.

Harriet Tubman. Imagem da autora.

O acúmulo de opressões sobre as mulheres negras é o tópico do livro Mulher, Raça e Classe de Angela Davis. Nele, Davis discute a experiência das mulheres negras durante o tráfico escravagista; incluindo Harriet Tubman (foto), que resgatou mais de trezentas pessoas através da Underground Railroad e foi a única mulher nos Estados Unidos a liderar tropas em uma batalha.

As mulheres negras, segundo Davis, tinham de trabalhar tão duramente quanto os homens nas plantações, performando as mesmas tarefas independente dos mitos que o patriarcado perpetua sobre as mulheres.

As mulheres não eram femininas demais para trabalhar em minas de carvão, nas fundições de ferro ou para serem lenhadoras ou escavadoras de valas. Quando o canal Santee foi construído na Carolina do Norte, mulheres escravizadas eram cinquenta porcento da força de trabalho.

As mulheres eram também escravas sexuais, além disso. “Se as punições mais violentas dos homens consistiam em flagelos e mutilações”, escreve Davis, “as mulheres eram flageladas e mutiladas, bem como estupradas”. Os homens brancos também viam as mulheres negras como “matrizes”:

Durante as décadas que precederam a guerra civil, as mulheres negras foram crescentemente avaliadas em função de sua fertilidade (ou falta dela): aquela que era potencialmente mãe de dez, doze, quatorze ou mais se tornava um tesouro cobiçado. Isso não significava, porém, que como mães as mulheres negras desfrutassem de um status mais respeitável do que o que desfrutavam enquanto trabalhadoras. A exaltação ideológica da maternidade — tão popular no século dezenove — não se estendia às escravas. De fato, para os proprietários de escravos, as mulheres escravas não eram mães; eram apenas instrumentos para a garantia do crescimento da força de trabalho. Elas eram “parideiras” — animais cujo valor monetário pode ser calculado precisamente em termos de sua habilidade de multiplicar seus números.

Uma vez que as mulheres escravas eram consideradas “parideiras” ao invés de “mães”, seus filhos ainda crianças poderiam ser vendidos e tirados delas como novilhos das vacas.

Imagem da autora

Este é outro motivo pelo qual devemos olhar com desconfiança para a introdução de termos como “menstruadores” e “incubadores” na linguagem da saúde da mulher, da gravidez e do parto como resultado da ação do transativismo hoje. Estes termos possuem uma história, e estão ligados especialmente ao tratamento desumanizador da escravidão sexual das mulheres negras. O documentário Google Baby mostra como como as mulheres são atualmente forçadas a tolerar uma vida sob o tratamento de “incubadoras” em clínicas de barriga de aluguel na Índia, muitas vezes dando à luz a bebês brancos feitos com o uso de óvulos e espermatozoides de doadores externos. O tratamento de linha de produção que as mulheres que dão à luz a bebês em clínicas de barriga de aluguel recebem é de dar arrepios, mas o mercado prevê 12 mil estrangeiros por ano indo à Índia para alugar úteros, em geral de mulheres pobres, em uma indústria de valor anual de US$ 1 bilhão.

Uma expressão de colonização racista e patriarcal tão dolorosa e brutal quanto as clínicas de barriga de aluguel na Índia seria difícil de encontrar, se não fosse pela mais velha das opressões: a prostituição. Hoje, 80% das pessoas usadas na prostituição são mulheres, 98% das quais são vítimas do tráfico sexual. Quase todos os prostituintes são homens e o tráfico sexual gera aos homens US$ 32 bilhões por ano. Uma crescente indústria de pornografia violenta acumula cerca de US$ 97,06 bilhões, o que é mais que o lucro combinado das 10 maiores companhias de tecnologia. A mais recente “tendência” na pornografia é a de mulheres sendo analmente estupradas até que sofram prolapso retal (“rosebudding“). Mesmo assim, a Anistia Internacional mostrou seu apoio a esta indústria, submetendo-se às pressões de prostituintes influentes.

Como Cherry Smiley aponta, as mulheres indígenas são mais desproporcionalmente afetadas. Na Nova Zelândia, 15% das mulheres são maori. Em nosso país onde o comércio sexual é completamente descriminalizado, 32% das pessoas prostituídas são maori. Existe uma narrativa ganhando força na Nova Zelândia, sem dúvida abastecida por homens brancos administrando os programas no Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC), de que criticar a prostituição é racista por causa das mulheres maori e do Pacífico na indústria. Lembre-se que a demanda por esta indústria vem de homens brancos ricos. Em 2017, os liberais ainda estão sendo doutrinados a acreditar que mulheres indígenas são de alguma forma inatamente pré-dispostas a serem sujeitas a abusos de homens brancos ricos.

O livro de Angela Davis aponta não apenas como as mulheres negras têm sido afetadas pelo acúmulo das opressões de raça, classe e baseadas no sexo, mas que também tiveram que lutar mais arduamente por representação política, mesmo dentro dos movimentos de resistência. Seu livro mostra a interseção entre os movimentos abolicionista pelo fim da escravidão e a primeira onda do feminismo; nenhum dos quais tendo sido suficiente para representar o jugo das mulheres negras. Sojourney Truth lutou com as feministas brancas da primeira onda, assim como bell hooks com as da segunda. Hoje, novamente vemos um movimento de classe média branca liberal que marqueteia um liberalismo identitário chamado “sex positive” como feminismo. Isso aconteceu porque a reação a cada onda feminista assegurou que o feminismo mainstream sairia do outro lado domesticado, branqueado e sexualizado.

Sexologia, pornografia e feminismo

Em seu ensaio Sexology and Antifeminism, Sheila Jeffreys descreve como a “disciplina” da sexologia foi construída como uma reação à primeira onda das feministas sufragistas.

Esse período, imediatamente depois da Primeira Guerra Mundial, foi um tempo no qual muitas mulheres tinham uma considerável maior liberdade e independência do que jamais tiveram. O fato de que grandes números de mulheres não estavam se casando, estavam escolhendo ser independentes, e estavam lutando contra a violência masculina causou considerável preocupação. Essa preocupação é aparente na literatura da sexologia.

Muitas mulheres tinham pouco interesse em intercurso sexual, e mais comumente, pensavam que “nenhuma mulher deveria ser obrigada a fazer intercurso sexual” (isso foi, é claro, muitas décadas antes da segunda onda feminista lutar para criminalizar o estupro marital). Em resposta a essa crescente resistência e independência, e para defender o status quo da opressão das mulheres, a subordinação sexual das mulheres foi naturalizada na sexologia. Havelock Ellis, o fundador do campo, argumentava que

a sexualidade masculina era absoluta e inevitavelmente agressiva, tomando a forma de busca e captura, e que era inevitável aos homens sentir prazer ao infligir dor nas mulheres. A sexualidade das mulheres, dizia ele, era passiva. As mulheres deveriam ser capturadas e “desfrutar” a experiência de dor nas mãos de seus amantes homens.

Os sexologistas também inventaram o conceito da “frigidez” feminina: mulheres “frígidas” eram doentes, e tinham que ser mandadas aos ginecologistas e psicanalistas.

No encalço da sexologia veio a indústria pornográfica que conhecemos hoje. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, houve um crescimento no negócio da promoção dessa objetificação das mulheres. Pornógrafos-empresários como Hugh Hefner (Playboy), Bob Guccione (Penthouse) e Larry Flynt (Hustler) começaram a preparar o mercado para tornar a pornografia socialmente aceitável. Nos anos 90, produtos do coelhinho estavam sendo consumidos por meninas em todo lugar — a marca do coelhinho estampava tudo, de papelaria a pijamas. Os publicadores da Cosmopolitan, Bauer Media, estão envolvidos no lobby global do tráfico sexual, e chegaram a possuir os direitos de publicação da Playboy na Alemanha.

“Era um mundo muito diferente”, diz a escritora feminista Gail Dines, “depois de Hefner ter erodido as barreiras culturais econômicas e legais da produção e distribuição em massa de pornografia”. Agora é passível de discussão se pole dancing é a melhor atividade extracurricular para garotas de 8 anos de idade.

Como essa mudança ao mainstream aconteceu? A resposta é simples: de propósito. O que vemos hoje é resultado de anos de estratégia e marketing cuidadosos da indústria pornográfica para sanitizar seus produtos… reconstruindo a pornografia como divertida, deferente, chique, sexy e quente. Quanto mais a indústria se tornou sanitizada, mais ela escorregou para dentro da cultura pop e da nossa consciência coletiva.

A segunda onda feminista reconheceu e resiste aos abusos e à normalização da pornografia — mas os departamentos de Estudos das Mulheres das universidades nos quais muitas críticas como essa poderiam ser feitas não existem mais. Até mesmo os livros estão ameaçados. A disciplina que usurpou os Estudos das Mulheres é a teoria queer, e de acordo com as feministas, a teoria queer está para a segunda onda do feminismo como a sexologia era para a primeira: uma contra-reação [backlash]. Sheila Jeffreys esclarece como ela veio

dos liberais sexuais da esquerda — em particular, homens — e em grande parte do movimento gay masculino. É daí que vem a contra-reação, mas também possui representantes dentro do feminismo.

Lierre Keith ilustra a representação dessa contra-reação dentro do feminismo:

Já em 1982, Ellen Willis inventou o termo “sex positive” para se distinguir das feministas radicais — porque somos tão negativas, nós feministas radicais. Estupro, estupro, estupro — isso é tudo sobre o que queremos falar. Bom, proponho um trato — se os homens pararem com o estupro, eu paro de falar a respeito.

Keith também aponta que a busca pelo termo “torture porn” gera 32 milhões de resultados. Vale notar que a estética, as ferramentas e as práticas da pornografia moderna e do BDSM endossadas como “diferentes”, a “sexualmente positiva” teoria queer e as “taras” remontam aos tribunais de caça às bruxas. O ensaio de Max Dashu Reign of the Demonologists mostra como a tortura das bruxas era sexualizada, através da fetichização de procedimentos e equipamentos de tortura e as confissões forçadas de sexo grotesco com demônios. Uma entrevista com Audre Lorde em Burst of Light critica o sadomasoquismo por razões similares.

O sadomasoquismo é congruente com com outros desenvolvimentos acontecendo neste país que tem a ver com dominância e submissão, com desigualdade de poder — político, cultural e econômico… O sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada das relações de dominação e subordinação… O sadomasoquismo alimenta a crença de que a dominação é inevitável e legitimamente desfrutável.

A feminista Susanne Kappeler nos oferece um lembrete para quando encontrarmos esses tipos de práticas aceitos e celebrados como revolucionários na academia.

Enquanto feministas, faremos bem em lembrar e destacar o fato de que a história do liberalismo, do libertarianismo e da libertinagem tem sido a história de cavalheiros advogando liberdade e permissão para cavalheiros — liberdades pelas quais os direitos e as liberdades das mulheres têm sido rotineiramente sacrificadas.


Cópia de um desenho de 1515 de “witch porn” de Hans Franck.

Comoditização e “escolha”

A produção dos robôs sexuais é um aprofundamento contemporâneo da objetificação das mulheres que disciplinas como a teoria queer sancionam, e até celebram. Distúrbios alimentares e a demanda por cirurgias cosméticas como a labioplastia são apenas dois exemplos do impacto da escalada de objetificação das mulheres. Estamos vendo outras invenções bizarras no mercado, também: o FitBit peniano, uma peça bucal para sexo oral.

Imagem da autora

Um jeito que o lobby do mercado sexual se infiltra sob a pele das mulheres, suga sua confiança, encoraja competição e instiga dependência a um parceiro abusivo ou um prostituinte, é através da mídia, através das revistas femininas. 70% das mulheres alega sentir culpa ou vergonha depois de três minutos folheando esse tipo de revista. É é notório que publicadores e seus anunciantes alimentam inseguranças — e abuso. A maioria das modelos nessas revistas pesa 25% menos que a média das mulheres, e está na faixa de peso da anorexia. Agora, na Europa e nos Estados Unidos, 50 milhões de mulheres sofrem de distúrbios alimentares, e meninas de 6 anos de idade vêm crescentemente expressando ansiedade a respeito de seu corpo.

A Bauer Media publica a Cosmopolitan, a Woman’s Day e a revista adolescente Dolly. Atualmente ela também lucra com pornografia online, e costumava possuir os direitos de publicação de uma série de revistas pornográficas alemãs: a Playboy alemã; Das neue Wochenend; Blitz Illu; Schlüsselloch (que significa “fechadura”); Sexy, Praline e Coupe. A Bauer Media também possui um terço do famoso canal privado RTL II, que transmite reality shows a favor de “trabalho sexual” quase diariamente. Não é surpreendente ver a última edição da Cosmopolitan oferecer conselhos sobre tratamentos cosméticos invasivos indo de micropigmentação de sobrancelha a preenchimento labial, tratamento a laser e terapia de luz.

Labioplastia — redução cirúrgica dos lábios vaginais das mulheres — é outra tendência ocidental que está aumentando e que tem conexões com práticas mais brutais, nesse se caso a mutilação genital feminina (FGM). De acordo com a OMS (que apoiava essa prática em 1958), mais de 200 milhões de mulheres e meninas vivas hoje passaram pelo procedimento em 30 países da África, do Oriente Médio e da Ásia onde a prática da FGM é concentrada. Nessas práticas, as meninas têm seus clitóris e lábios vaginais removidos; na Somália, há a prática de costurar os lábios, deixando apenas um pequeno buraco. A mulher somali Hibo Wardere diz que urinar através dessa pequena abertura é como se “uma ferida tivesse sido esfregada com sal ou pimenta”. O feminismo deve trabalhar para acabar com a mutilação genital, e não se ocupar de glorificar variedades novas e comerciais dela como “escolhas” sexualmente positivas.

O patriarcado mina e recorta os corpos das mulheres enquanto diminui o valor delas. Desde o décimo século e por dez séculos, os patriarcas chineses perceberam que as meninas e mulheres jamais conseguiriam correr, amarrando seus pés e fetichizando esse ato de aleijar mulheres. Hoje vemos o comércio de cabelos, óvulos, leite materno e aluguel de úteros através da prática da barriga de aluguel. Enquanto as incubadoras são normalmente mulheres pobres, as doadoras de óvulos são geralmente mulheres estudadas e jovens, cuja saúde foi investigada em busca de doenças hereditárias e que não foram alertadas para as implicações ou possíveis efeitos colaterais da coleta de seus óvulos.

O feminismo branco mainstream hoje irá classificar a labioplastia como algo que as mulheres “escolhem“. Da mesma forma que a imolação foi “escolhida” através da prática indiana do suttee. Da mesma forma que as mães “escolheram” amarrar os pés de suas filhas, “escolheram” cortar seus clitóris; como as mulheres que “escolhem” ser prostituídas e até mesmo traficadas, “escolhem” usar burqa, salto alto, não comer, amarrar seus seios. Essas práticas são por vezes não apenas marqueteadas e chamadas de “escolha”, mas também de altruísmo. A prostituição, a barriga de aluguel e a imolação tem sido chamadas de práticas “altruístas”. As mulheres, obviamente, querem ser capazes de escolher e contribuir. E que escolhas a sociedade nos permite fazer? Estas. Então alegamos que nós mesmas fizemos estas escolhas. Mas o feminismo precisa entender que, conforme Megan Tyler, sim, “nós fazemos escolhas, mas estas escolhas são moldadas e constritas por condições desiguais nas quais nós vivemos.”

NZPC promove a prostituição como uma “escolha” da mulher. Imagem da autora.

Quando se trata de tendências modernas como o transativismo, não podemos separar o desejo masculino de acesso aos espaços das mulheres e por transplantes de útero, de uma história de apropriação patriarcal (incluso aí as imitações de “úteros prostéticos”). Não podemos separar este movimento de uma história inteira que o precede, da exploração simultânea dos corpos e da desvalorização da mulheres. Também não podemos separar os desejos dos homens de sufocar e apropriar a discussão e a capacidade da habilidade das mulheres de criar vida de uma história inteira disso. O sistema masculino tem trabalhado para se apropriar do controle dos corpos das mulheres e de sua habilidade de criar vida humana, e para sufocar a discórdia feminista desde que chegou ao poder. Nessa Era Trump, a história continua.

Por outro lado, não podemos separar os desejos manufaturados das mulheres pelo privilégio masculino nem esquecer que as escolhas das mulheres de passar por procedimentos como binding e queima dos seios, mastectomias e cirurgias invasivas de uma história de opressão, demonização, mutilação e auto-destruição.

Não podemos separar qualquer discurso sobre gênero das realidades da opressão baseada no sexo — isso se realmente quisermos liberdade.

Imagem: Barbara Kruger

Traduzido do original: “A call to feminists to remember the history and sex-based nature of women’s oppression“. In: Writing by Renee, 7 de fevereiro de 2017.

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Feministas brasileiras

Patriarcado-Racismo-Capitalismo

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O Poder do Macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987. p. 60-63.

Já se viu que, historicamente, o patriarcado é o mais antigo sistema de dominação-exploração. Posteriormente, aparece o racismo, quando certos povos se lançam na conquista de outros, menos preparados para a guerra. Em muitas destas conquistas, o sistema de dominação-exploração do homem sobre a mulher foi estendido aos povos vencidos. Com freqüência, mulheres de povos vencidos eram transformadas em parceiras sexuais de guerreiros vitoriosos ou por estes violentadas. Ainda na época atual isto ocorre. Quando um país é ocupado militarmente por tropas de outra nação, os soldados servem-se sexualmente de mulheres do povo que combatem. Este fenômeno aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, dele resultando muitos filhos de soldados norte-americanos com mulheres japonesas. O mesmo se passou durante a guerra do Vietnã, havendo lá deixado os soldados norte-americanos muitos frutos destas uniões sexuais esporádicas e sem compromisso.

Desta sorte, não foi o capitalismo, sistema de dominação-exploração muitíssimo mais jovem que os outros dois, que “inventou” o patriarcado e o racismo. Para não recuar demasiadamente na história, estes já existiam na Grécia e na Roma antigas, sociedades nas quais se fundiram com o sistema escravocrata. Da mesma maneira, também se fundiram com o sistema feudal. Com a emergência do capitalismo, houve a simbiose, a fusão, entre os três sistemas de dominação-exploração, acima analisados separadamente. Só mesmo para tentar tornar mais fácil a compreensão deste fenômeno, podem-se separar estes três sistemas. Na realidade concreta, eles são inseparáveis, pois se transformaram, através deste processo simbiótico, em um único sistema de dominação-exploração, aqui denomi­nado patriarcado-racismo-capitalismo.

Há quem use expressões como capitalismo patriarcal, patriarcado capitalista, capitalismo racial, racismo capitalista. Neste livro, rejeitam-se estes conceitos pelas razões a seguir expostas.

Quando se usa um destes sistemas de dominação-exploração na forma substantiva e outro na forma adjetiva, como, por exemplo, na expressão capitalista patriarcal, está-se atribuindo maior importância ao capitalismo, deixando em plano secundário o patriarcado. O mesmo se passa com a expressão capitalismo racista. No primeiro caso, o patriarcado apenas qualifica o capitalismo, assim como no segundo o racismo exerce esta função de qualificação. Há também quem tome o patriarcado, o mais antigo sistema de dominação-exploração, e o qualifique com os sistemas de produção surgidos ao longo da história. Nesta linha de raciocínio, tem-se o patriarcado escravista, o patriarcado feudal e, finalmente, o patriarcado capitalista. Neste caso, privilegia-se o patriarcado, em prejuízo dos sistemas produtivos com os quais ele foi-se fundindo através dos tempos. Como se verá mais adiante, o ato de atribuir prioridade a um dos três sistemas mencionados tem sérias conseqüências do ponto de vista das estratégias de luta dos contingentes humanos oprimidos, dominados, explorados.

Há uma razão muito forte para que não se proceda pelo raciocínio da priorização, do privilegiamento de um sistema de dominação-exploração. É que, na realidade concreta, observa-se, de fato, uma simbiose entre eles. Esta fusão ocorreu em tal profundidade, que é praticamente impossível afirmar que tal discriminação provém do patriarcado, ao passe que outras se vinculam ao sistema de classes sociais e ou ao racismo.

Se o patriarcado fosse regido por leis específicas, independentes das leis capitalistas, o homem continuaria a ser o único provedor das necessidades da família, não havendo mulher trabalhando remuneradamente. Pelo menos, não haveria mulher trabalhando fora do lar, podendo ganhar algum dinheiro com trabalho no domicílio. Ora, foi o capitalismo que, com a separação entre o local de moradia e o local de trabalho, criou a possibilidade de as mulheres saírem de casa para trabalhar. Isto não significa que as mulheres, antes do advento do capitalismo, fossem ociosas. Ao contrário, trabalhavam na produção e conservação dos alimentos, teciam, confeccionavam roupas, enfim, realizavam atividades hoje executadas pela indústria. À medida que estas atividades foram sendo industrializadas, as mulheres tiveram necessidade de sair de casa para ganhar seu sustento e o de seus dependentes, ou, então, para colaborar no orçamento doméstico.

Assim, é correto afirmar-se que as mulheres se transformam, crescentemente, em trabalhadoras extralar. Não é correto dizer-se que as mulheres penetraram no mundo do trabalho a partir do ad­vento do capitalismo, pois isto significaria que elas não exerciam tarefas produtivas em outros regimes. Nestes, que precederam historicamente o capitalismo, não apenas as mulheres, mas também os homens desenvolviam muitas atividades-trabalho no interior da casa e em seus arredores. Além das atividades desenvolvidas no seio da família, há que se mencionar o trabalho agrícola, realizado, na época, nas imediações da casa, uma vez que as sociedades de então eram eminentemente agrárias.

Por outro lado, se as leis capitalistas vigorassem independente­mente do patriarcado e do racismo, o desemprego dentre os homens seria muito mais alto que dentre as mulheres. Para provar a vali­dade deste argumento, nem se necessita recorrer ao fato de que as mulheres aceitam trabalhar em péssimas condições e por salários aviltados. Basta pensar que, dado o treinamento que recebem para a execução de tarefas tidas como exclusivamente femininas, as mulheres tem maior agilidade nos dedos. Em virtude disto, são muito requisitadas para o desempenho de atividades nas quais o rendimen­to do trabalho aumenta em função da mencionada agilidade. Pode-se lembrar, também, que a atividade de educar, na medida em que é entendida como um prolongamento da função de socializar os filhos, absorve grandes contingentes de mulheres. O mesmo se passa no setor da saúde. Não fora, pois, a forte ideologia que situa o ho­mem como o chefe da família e seu provedor, os interesses empre­sariais na contratação de trabalhadoras teriam grandes probabilida­des de se realizar. Tal conduta deixaria à margem do mercado de trabalho um gigantesco contingente masculino. Há que se ponderar, porém, que as vantagens oferecidas por mulheres no desempenho de certas atividades não derivam nem de sua anatomia, nem de sua fisiologia. São, ao contrário, vantagens adquiridas ao longo do processo de socialização a que são submetidas.

Estes comentários revelam como é impossível isolar a responsabilidade de cada um dos sistemas de dominação-exploração fundidos no patriarcado-racismo-capitalismo pelas discriminações diariamente praticadas contra mulheres. De outra parte, convém notar que a referida simbiose não é harmônica, não é pacifica. Ao contrário, trata-se de uma unidade contraditória. Se o patriarcado e o racismo contém elementos capazes de permitir a maximização dos lucros capitalistas, estes mesmos elementos contém o consumo das classes trabalhadoras dentro de limites bastante estreitos. Ora, so­bretudo num país de economia dependente como o Brasil, a comercialização de produtos industriais realiza-se, principalmente, no mercado interno. Para dar escoamento a estes produtos é, pois, necessário elevar a capacidade aquisitiva, o poder de compra das classes trabalhadoras.

Ao exaltar as qualidades sexuais das mulheres negras, o branco não apenas transformou-as em objeto da satisfação de seus desejos, mas também produziu o mulato. Este produto híbrido, que atualmente constitui cerca de 39% da população brasileira, introduziu cunhas na supremacia do branco sobre o negro. Ele constitui a lembrança permanente de que o branco acasalou-se com negras, o que debilita muitíssimo as justificativas para as discriminações contra não-brancos. O mulato mostra, assim, uma violenta contradição do patriarcado-racismo-capitalismo. Não obstante sua lógica contraditória, este sistema simbiótico de dominação-exploração continua vivo. Cabe, pois, indagar sobre as forças de sua conservação.