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Por que John Stoltenberg Chama Andrea Dworkin de “trans aliada”?

Tradução livre do original em inglês no blog Radical Pro Feminist.

Andrea Dworkin e John Stoltenberg. Crédito da foto: ProFeministMen

Parte I: Introdução

Em reconhecimento ao décimo quinto aniversário da morte da grande Andrea Dworkin, seu parceiro John Stoltenberg, escreveu recentemente um artigo publicado da edição online do Boston Review. Você pode lê-lo aqui.

Aprecio e entendo completamente de onde o raciocínio de John vem; compartilho suas preocupações a respeito de qualquer ideologia ou ação que vise gerar preconceito, discriminação intrapessoal ou sistêmica, ou que replique qualquer encarnação de supremacia social. Como John, acredito que Andrea teria se oposto apaixonadamente a isso. Diferente de John, Andrea teria feito isso em qualquer lugar em que encontrasse esse tipo de coisa.

Acho tanto o título quanto o conteúdo desse novo artigo de Stoltenberg problemáticos em alguns aspectos. Stoltenberg aplica a Andrea um rótulo com a intenção de silenciar alguns sentimentos. Sua empatia pelos oprimidos é notória. Mas não existem declarações públicas dela que especificamente apóiem a pauta trans. Ela não era “anti-homem” e não acredito que ela seria “anti-trans”, muito menos deveria ser rotulada como tal. Mas não se pode atribuir afeição à ausência. Não se deve pegar termos de uma batalha que não era a dela e colá-los em alguém tão calejada quanto ela. Sei que John entende que rotular alguém incorretamente não é legal [1]. Chamo a atenção de John para que ele aponte com cuidado a posição dela e não se aproprie de algo que ela escreveu em um momento que seu trabalho teórico tinha problemas, reconhecidos por ela mesma. (Mais sobre isso adiante.)

Além disso, não vejo seu artigo apontando onde Andrea era ou não trans aliada. O artigo é sobre ideias e valores: dele, dela, e sua interpretação de termos que algumas feministas radicais às vezes usam. O artigo de John borra distinções, especialmente as de Andrea. Ainda mais grave, esse artigo ofusca os termos em que o trabalho público de Andrea exige para mobilizar ações em direção à mudança feminista revolucionária. Desses dois modos, sinto que ele exagera um bocado, desrespeitando-a no processo. Stoltenberg disse que foi ingênuo ao aprovar o título sugerido para seu artigo de 2014, “Andrea Dworkin Was Not Transphobic” [2]. Por quanto tempo a ingenuidade deve ser armazenada nesse seu arsenal defensivo? Somente uma grande quantidade de privilégio permite que esse prazo nunca expire. E tem mais: Andrea pediu postumamente para ser colocada em meio a uma batalha política polêmica que não escolheu?

Leitores, isso piora.

Parte II: Mulheres reais

John identifica usos de frases “mulheres de verdade” como uma afronta moral ao que Andrea trabalha e dava valor. Ao mesmo tempo, ele se recusa a evidenciar uma preocupação, um pesadelo muito evidente para ela na vida dentro do patriarcado que, eu acredito, a maior parte do feminismo radical coloca centralmente em sua teoria e ativismo: a mulheridade não é escolhida, é imposta. Ela tem um corpo; e o corpo é de uma fêmea. Andrea descreveu graficamente a violência contra ela, contra seu corpo, seu corpo de fêmea. Perceber essa conexão (e como uma pessoa não perceberia?) não torna a Dworkin, ou qualquer outra pessoa suportando e testemunhando as mesmas atrocidades, um essencialista de sexo. Como eu irei ilustrar, é o tema mais central, abordado em dúzias de discursos e artigos, e em todos os livros dela. Eu a vi falar muitas vezes, eu li os livros dela. Isso foi o que eu ouvi:

É contra o corpo feminino que a supremacia masculina de modo flagrante e sistematicamente se expressa na ordem de manter a dominância masculina de maneira natural, criada por deus, eterna, e inevitável. É contra o corpo feminino que a força patriarcal é lançada: brutalmente, sadicamente, quebrando ossos e matando. Através de todo o trabalho dela, Andrea abordou isso explicitamente: a violência contra os seios das mulheres, seus úteros, suas vaginas. O que eu ouço mais profundamente, mais ferozmente, na oposição raivosa das feministas radicais contra os elementos do essencialismo das políticas trans, em parte, é isso: Vocês estão fazendo esse entendimento parecer louco e imoral. E de forma amplamente literal. John não está ajudando. O patriarcado faz o tratamento dos homens para com as mulheres — para Andrea, para as feministas radicais, os teimosos seres humanos com a forma de fêmea — intimamente opressivo. As palavras dela expressam esse ponto muito melhor que as minhas.

Os atos de violência retratados na pornografia são atos reais cometido contra mulheres reais e meninas reais. (Letters from a War Zone, p. 11)

A realidade material das mulheres é determinada por sua característica sexual, a capacidade reprodutiva. O homem pega um corpo que não é dele, o reivindica, planta a dita semente, e colhe os seus frutos — ele coloniza o corpo feminino, rouba seus recursos naturais, o controla, usa, esgota aos seus desejos, nega a sua liberdade e sua auto-determinação para que ele continue a lucrar com esse corpo…(War zone, p. 118)

… Eu também aprendi muito sobre o poder masculino com [mulheres], quando eu me importei o bastante com as mulheres a ponto de entender que o poder masculino era um tema ao qual minha própria vida havia me levado. Eu conheço o poder masculino de dentro para fora, com o conhecimento que ganhei através desse corpo feminino. (War Zone, p 64)

Agora, essa repulsa é literal e linear: direcionada especialmente contra as genitais dela, e também os seios, e também a boca dela recentemente percebida como um órgão sexual. É um ódio esmagador (goose-stepping é uma expressão difícil de traduzir, alguma sugestão?) contra bucetas. A mulher não possui dimensão humana, nem significado humano. (Intercourse, p.9)

O que é incrível e inaceitável para mim é que apontar isso em voz alta é controverso, a não ser para o homem — então ainda é inaceitável enquanto é esperado e normal. John, muitas feministas radicais, e qualquer um que é familiarizado com ela sabe disso: Andrea valorizava a nomeação das condições da maneira que ela as enxergava, de maneira clara. Palavras educadas ou pisar em ovos eram repugnantes para ela. Ela odiava que palavras fossem colocadas em sua boca ou tiradas de contexto. Ainda assim, a representação dela feita por John retira o fato mais incisivo sobre isso: Materialmente, o diagrama de Venn consiste em um círculo.

Eu descobri de maneira perturbadora, através da última década e meia, que um pré-requisito para operar aceitavelmente em espaços queer liberais dominados por brancos, acadêmicos e variados, é especificamente o silenciamento de Andrea Dworkin, e de feministas radicais e lésbicas em geral. Esses são os locais onde eu cada vez mais evitei por causa do meu desdém pela ideologia que prevalece e as práticas anti-feministas.

Você não pode ler Dworkin racionalmente e terminar negando que a visão de mundo e a experiência dela funde-se com a experiência de milhões de mulheres, isso é compreendido: masculino significa homem, homens são macho; feminino significa mulher, mulheres são fêmeas. Ela não fugiu timidamente de dizer isso em círculos acadêmicos ou sociais. Ela não satisfez teoristas ocidentais que valorizam a diversidade sexual mais que a libertação das mulheres, que pensam que multiplicando os gêneros nós iremos chegar a uma nova forma de liberdade. Não há tal cobrança pela metamorfose metastática. Quando ela estava viva, Andrea nunca articulou uma hierarquia na qual mulheres oprimiam mulheres trans. Mulheres fêmeas eram, para ela, uma classe de (leia-se: reais) mulheres: “mulher”, não modificada por nenhum prefixo.

Recitar descaradamente essas quatro passagens acima não será tolerado em muitos espaços influenciados pelos essenciais especuladores liberais das teorias de sexo e gênero. Enquanto os Estudos das Mulheres foi modificado para Estudos de Gênero, as perspectivas feministas radicais foram marcadas como uma violação à política anti-discriminatória, sendo base para demissão. Aquelas feministas radicais corajosas que insistiram em nomear a realidade que elas e Andrea experimentaram, estão perdendo suas reputações, suas carreiras, e suas seguranças. De maneira alarmante, estão sofrendo doxxing, impedidas de falar, ameaças e aterrorizadas. Sobre isso, até agora, John permanece em silêncio.

Parte III: Transsexuais

Nesse artigo de Stoltenberg, em outros que ele publicou após a morte de Andrea, ele ressuscita o capítulo nove da seção quatro de seu primeiro livro feminista, o Woman Hating (1974). Do capítulo “Androgyny: Androgyny, Fucking, and Community”, a passagem que vem antes da citada no artigo de John.

Transsexualidade pode ser definida como uma formação particular da nossa multissexualidade geral que foi incapaz de se desenvolver naturalmente por conta de condições sociais adversas. (P. 186)

Seguindo sua discussão sobre transsexualidade, Dworkin prossegue discutindo travestismo no contexto de uma sociedade eroticamente repressiva:

O travestismo é fazer uso de figurinos que violam os imperativos de gênero. O travestismo geralmente é um ato sexualmente carregado: a violação pública e visível do papel sexual é erótica, excitante, perigosa. É um tipo de desobediência civil erótica, e este é precisamente o seu valor. O uso desses figurinos é parte da estratégia e do processo de destruição dos papéis sexuais. Vemos, por exemplo, que quando as mulheres rejeitam o papel feminino, elas adotam roupas “masculinas”. Com a dissolução dos papéis sexuais, o conteúdo erótico particular ao travestismo igualmente se dissolve. (P. 187)

Nesse capítulo, ela escreve de forma acrítica sobre contatos interpessoais estigmatizados ou abusivos que existem em uma sociedade eroticamente repressiva. O trecho a seguir é da introdução desta seção:

Homossexualidade, transsexualidade, incesto e bestialidade são tidas como “perversões” dessa “natureza humana” que presumimos saber tanto a respeito. Elas persistem independente das imensas forças dirigidas contra elas — leis discriminatórias e práticas sociais, ostracismo, perseguição ativa pelo estado ou por outros órgãos da cultura — como embaraços inexplicáveis, como exemplos odiosos de “imoralidade” e/ou “desajustamento”. (P. 174)

Na conclusão, ela acrescenta: “Devemos nos recusar a nos submeter aos medos inculcados pelos tabus sexuais” (P. 192). Em 1989, em uma entrevista, Dworkin aponta que nesse momento teorizava a partir de conhecimento pouco e não integrado; teoria essa que ela abandonou e criticou posteriormente [5].

Uma vez que conseguiu embasar e integrar a teoria, de Pornography: Men Possessing Women (1981) até Heartbreak (2002), ela jamais cita novamente questões centrais ou periféricas nos termos que John mais utiliza: não existe qualquer chamado à multiplicidade de gêneros; a importância da multissexualidade desaparece; o foco em papéis sexuais fictícios e estáticos se tornou cada vez mais fraco; os libertadores dos tabus sexuais se revelaram predadores; ela nega que a androginia seja a salvação. Ela se despede disso tudo sem remorsos.

A transsexualidade também desaparece da obra de Dworkin, com exceção de duas menções na portaria antipornografia escrita em parceria com MacKinnon: “O uso de homens, crianças e transsexuais no lugar de mulheres…” e, “qualquer homem, criança ou transsexual que alegar ter sofrido danos causados pela pornografia nos mesmos termos em que as mulheres sofrem…[5]” Sobre isso, John diz: “Quero apenas pontuar que Andrea entendia de forma profunda que uma pessoa poderia ser subjugada como uma mulher sem ter sido registrada como fêmea ao nascer…”

“Subjugada como uma mulher”. Não enquanto mulher. A portaria trouxe à consciência o fato de que a pornografia pode tratar todo mundo mal, da mesma forma que, mais frequente e mais centralmente, a pornografia faz com as mulheres. Uma menina, uma mulher: do nascimento à morte. Era claro para Andrea e Catherine, nesse mecanismo legal radical para acabar com a discriminação baseada no sexo, que elas não igualavam a condição de ser transsexual com ser mulher ou homem. Para os propósitos de sua portaria, refletindo a vida como elas a conheciam, “mulher” eram, como elas, uma classe política e sexual oprimida.

Parte IV: Responsabilização

Eu chamo o John à parar de inferir que o radicalismo dela é resumido na seção pré-feminista de Woman Hating e um capítulo colonialista em seu segundo livro, Our Blood(1976), na qual ela desembaraça a filosofia prevalente de gênero, e, de maneira alarmante, postula Columbus como um héroi radical. (p 97, 110). Eu acredito que o radicalismo dela, a missão dela, é encontrada em outros lugar. Da introdução de Woman Hating:

Esse livro é uma ação, uma ação política onde a revolução é o objetivo. Não há outro propósito. Não é uma sabedoria genial, ou merda acadêmica, ou ideias gravadas em granito ou destinadas à imortalidade. É uma parte de um processo e seu contexto é a mudança. (p. 17)

Se John está a referenciar o trabalho da Andrea, ele precisa parar de silenciar ela no que significava mais para ela. Ao não fazer isso é apropriar-se indevidamente em nome do pro feminismo radical. Nós sabemos que ele é familiarizado com a prática. Do artigo do John: “Após a morte da Andrea em 2005, eu fiquei cada vez mais preocupado que ela e a política radical que eu aprendi com ela estavam sendo apropriadas indevidamente por alguns…” Eu chamo o John para que ele resolutamente se responsabilize.

Após a sua morte, tem sido triste ver o grau de diferença em que se move a óbita da trajetória política do John. Eu já fiquei enraivecido em ver as maneiras em que ele apagou a trajetória da Andrea. Essa é a minha visão sobre os respectivos trabalhos. No diagrama de Venn, o círculo dele é aquele em várias cores; o dela é totalmente eclipsado.

O que segue em alguns trabalhos do John.[6] Eu acredito que é nisso que está a sua paixão — em discussões de gênero como essa:

Pense em uma roda de cores. E não pense em uma roda com as cores segmentadas por linhas como se fosse uma roda de carroça; pense em uma onde as cores se mesclam e borram entre elas como se fossem um arco-íris circular infinito que é o espectro visível:

Figura 1: Espectro cromático

Isso vale para qualquer indivíduo, o que pensamos sobre sexo e gênero é na verdade mais como um ponto qualquer numa roda de cores (ao contrário de um ponto qualquer em um contínuo linear com dois fins, no qual cada um representa dois pólos de um binário).

Leitores, isso não é coisa dela.

Parte V: Conclusão

Talvez Andrea não tenha estabelecido uma posição pública de um modo ou outro nessas batalhas por conta da época em que ela escrevia. Consciente da empatia e compaixão dela pelos oprimidos, simplesmente não há qualquer evidência dela sendo trans aliada da forma como tenho visto o termo ser usado [7]. Digo isso sem qualquer satisfação ou escárnio. Estou atestando um fato. Como ponto de comparação razoável: se, quarenta anos atrás, um heterossexual escrevesse afirmativamente sobre a comunidade lésbica, bi e gay e não tivesse se posicionado mais desde então sobre as dificuldades dessa comunidade de sobreviver numa sociedade ultrajantemente homofóbica, deveria ele ser considerado um aliado? Espero que todos concluamos que a resposta deva ser “não”. Aqui, John é o aliado; Andrea era a pesquisadora.

O que as pessoas — trans, queer ou quem quer que seja — podem fazer para honrar a memória de Andrea é ler todos os livros dela e lutar pelo fim da supremacia masculina racista em todas as suas manifestações, na teoria e na prática.

As visões de Andrea estão melhor exprimidas em seus próprios termos em seu próprio trabalho. Não que não possam ser discutido e debatidos. Não que não possamos imaginar que posições ela tomaria a respeito de um dado assunto. Não consigo contar quantas vezes me peguei me perguntando: O que Dworkin faria? Infelizmentes, desde sua morte, pessoas que se identificam das mais variadas formas possíveis, abraçando as mais várias ideologias, com diferentes pautas políticas, metaforicamente forçando o braço na tentativa de encaixá-la firmemente em um lado ou outro desse intenso debate trans. Ela deve ser defendida, mas não de formas indefensáveis. Andrea Dworkin lutou duramente o bastante no campo de batalha. Que ela descanse, com todas as honrarias, em poder e paz.


Notas

[1] John assume que “transsexual” e “transgênero” são termos sinônimos. Muitos de nós no Ocidente sabemos que isso é falso. Por exemplo, existem pessoas não brancas e indígenas que rejeitam a autoridade, as pautas e as apropriações racistas do pacote de políticas sexuais e de gênero do queer. Existem apoiadores do feminismo radical que são trans que não se identificam como transgêneros por razões políticas. O termo “trans” no título do artigo de John, na verdade, é comumente usado pela comunidade LGBTQIA como um termo guarda-chuva para incluir tanto pessoas que se identificam como transsexuais quanto aquelas que não. Às vezes, “trans” é sinônimo de “queer”. Se ele não sabia disso, deveria, antes de identificar Andrea como “trans aliada”. Ele, como homem gay, não está em posição de fazer essa afirmação. Sua falta de responsabilidade, se não de conhecimento, da existência de apoiadores trans do feminismo radical revela aliança com apenas algumas letras do acrônimo. Vide nota 7.

[2] Depois de escrever esse post, achei um artigo arquivado de John entitulado “Andrea Dworkin Was Not Transphobic” (2014). Eu lembrava de tê-lo lido quando me dei conta de que não o podia mais encontrar. Assim que encontrei, fiquei cativado pelos comentários. Eles casam tão bem com essa discussão que quero linká-los aqui, com destaque especial para os comentários de Morag e Lil Z.

[3] Os espaços onde atuei social e academicamente têm sido majoritariamente liderados ou dominados por teorizações anglófonas ou ocidentais. Quando nós que somos brancos falamos de feminismo ou políticas queer, geralmente significa um ponto de vista específico. Estou a par das comunidades, perspectivas e pautas antirracistas. Análises dos desafios complexos, não apenas no sentido da colonização ocidental e anglófona na cultura e no pensamento, estão além do escopo desse material sobre Andrea Dworkin e John Stoltenberg, e o uso dele dos escritos dela são a respeito de sexo e não sobre raça.

[4] Dworkin explica essa afirmação Without Apology: Andrea Dworkin’s Art and Politics (1998), de Cindy Jenefsky. Página 139, Nota 1 (fonte britânica). Cindy Jenefsky escreve:

Um minha entrevista com Dworkin em 1989, ela indica que não concorda mais com algumas sugestões propostas no fim do livro. “Acho que tem um monte de coisas realmente erradas no último capítulo de Woman Hating”, diz Dworkin. Quando perguntada especificamente sobre suas discussões sobre incesto, ela apontou diversos fatores que a influenciaram nessa parte da escrita. Primeiro, na época em que ela escreveu o livro, ela estava cuidando de uma criança que tinha sofrido abuso incestuoso, e ainda que ela tivesse falado com a polícia da Holanda sobre a prevalência do incesto lá, ela conta que havia uma lacuna entre sua análise intelectual e experiência prática da questão. Foi apenas com a escrita de Woman Hating e com as respostas que recebeu a ele que sua experiência subjetiva — não apenas sobre incesto, mas sobre violência doméstica e prnografia também — foi validada pela experiência de outras pessoas, e foi quando ela começou a entender o incesto como uma forma de abuso sexual. Ela também fez referência ao fato de ter sido influenciada por “anos de leitura de Freud e tentativas de fazer aquilo tudo fazer sentido de forma abstrata”, especialmente em razão da falta de informação disponível publicamente sobre a predominância do abuso sexual. Finalmente, Dworkin também destaca que ainda que feministas e pornógrafos estivessem se movendo em direções diferentes na época em que Woman Hating foi escrito, eles ainda compartilhavam das mesmas raízes da contra-cultura e do movimento de liberação sexual. Dworkin, em entrevista à autora, 1989.

[5] Sobre a portaria, veja Pornography: Men Possessing Women, edição comemorativa de dez anos (1989), nova introdução, P. XXXIII. Ver também a portaria de Massachusetts (1992).

[6] “The Sex/Gender Binary: Essentialism” (2015).

[7] “Becoming an Ally to Queer and Trans People of Color (QTPOC)“. Ver também o primeiro parágrafo em “11 Ways To Be A Trans* Ally, According To Transgender People Themselves” (2015). Que meu privilégio branco masculino sirva para chamar todos à honestidade e integridade.

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Um chamado às feministas para se lembrarem da natureza sexual da opressão das mulheres

O real brilhantismo do patriarcado… é que ele não apenas naturaliza a opressão. Ele sexualiza atos de opressão. Ele erotiza a dominação e a subordinação. Ele os institucionaliza como masculinidade e feminilidade. Então, ele naturaliza, erotiza e institucionaliza a dominação e a subordinação. O brilhantismo do feminismo é que nós descobrimos isso.

Lierre Keith

Nos últimos meses muita legislação tem passado ou foi proposta nos Estados Unidos e em outros lugares o suficiente para indicar uma assustadora escalada na guerra — sim, é uma guerra — contra as mulheres. O parlamento Russo acabou de votar a 380-3 para descriminalizar a violência doméstica. Trata-se de um país onde em média 40 mulheres por dia — 14.000 mulheres por ano — são mortas por seus parceiros homens. Os Estados Unidos, onde 1.000 mulheres são mortas por seus parceiros por ano, acabou de eleger um presidente que diz que “quando você é uma estrela, elas deixam você pegá-las pela buceta”, está envolvido com pornografia e tráfico sexual. Ele planeja eliminar o financiamento a 25 programas de combate a violência doméstica e está ordenando às funcionárias mulheres para que “se vistam como mulher”. O estado do Texas está pensando em retirar os direitos eleitorais de mulheres que fizeram aborto; o estado do Arkansas quer permitir a estupradores que processem mulheres por abortar.

Todas essas empreitadas se baseiam, é claro, em uma noção há muito estabelecida de que mulheres são propriedades dos homens. O estigma do aborto se baseia na ideia de que as mulheres não criam a vida humana através de um processo de dez meses de gestação e trabalho; seriam os homens a ejacular vida nas mulheres, e as mulheres, como incubadoras reguladas pelo estado, são obrigadas a levá-la a termo. A violência doméstica, a indústria da pornografia e da prostituição que abastecem o tráfico sexual, normas de vestimenta, tudo isso se baseia no mesmo princípio do merecimento sexual dos homens. Não surpreende que os comentadores estejam comparando essa tendência atual a O Conto da Aia de Margaret Atwood; uma nova era de regras e normas mais ortodoxas e estritas para as mulheres do Ocidente. Tudo isso justificado através dos mitos de que as mulheres são biologicamente predispostas a essas regras e normas.

Dada a situação que enfrentamos, é alarmante confrontar a realidade de que a esquerda é tão mal preparada e indisposta a discutir a opressão das mulheres quanto a direita conservadora. Hoje em dia, noções como a de “identidade de gênero” por exemplo, ameaçam engolir a compreensão coletiva das mulheres a respeito do todo da opressão baseada no sexo. A ideologia da “identidade de gênero” afirma que gênero é uma questão pessoal de identificação, e que o sexo biológico de alguém pode ser trocado e mudado à vontade. “Cis” é uma palavra que as mulheres estão adotando cada vez mais como sinal de sua compreensão de que possuem o “privilégio” de ter sua identidade de gênero em conformação com seu sexo biológico. Ao mesmo tempo, é claro, mulheres estão sofrendo pressão para engolirem a ideia de que o sexo biológico propriamente dito não é real.

A questão é que ser fêmea é algo muito real, e que ser consequentemente generificada como mulher também é — e não se trata de uma forma de privilégio. É uma forma de opressão que as mulheres têm resistido desde a criação do patriarcado. Ao oferecer uma curta história do sistema ocidental canceroso e globalizado de objetificação sexual sob o qual vivemos hoje, espero oferecer aqui um pequeno lembrete disso. Esse ensaio busca resgatar o desenvolvimento da opressão baseada no sexo desde as suas raízes, passando pela caça às bruxas, ao comércio de escravos, à patologização dos corpos das mulheres na ginecologia, e às reações à insurgência feminista recente.

Matricentralidade e a criação do patriarcado

Apesar da insistência ortodoxa de que a dominação dos machos reflete simplesmente a ordem “natural” das coisas, o patriarcado é apenas um desenvolvimento relativamente recente na história da humanidade. Durante 99% de nossa existência, os humanos não viveram sob o domínio patriarcal. A autora feminista Marilyn French chama os grupos de parentesco matrilineares de subsistência horticulturais que existiram amplamente antes do desenvolvimento do patriarcado de matricêntricos; Audre Lorde escrever sobre os cultos a deusas como Afrekete, Iemanjá, Oyo e Mawulisa; o filme Woman Shaman de Max Dashu explora a arte e os achados arqueológicos que restaram dessas culturas matricêntricas ao redor do mundo.

Imagem: Max Dashu

History of Women de French e The Creation of Patriarchy de Gerda Lerner são textos incríveis sobre os processos históricos por meio dos quais os homens criaram o patriarcado que forma a base da sociedade ocidental. Isso aconteceu ao longo de aproximadamente 2500 anos, desde cerca de 3100 a.C., durante a revolução agrícola. De acordo com Lerner, a transição de um modo de vida de subsistência para a agricultura significou que as crianças se tornaram um ativo econômico, uma fonte de trabalho — e as mulheres se tornaram a primeira forma de propriedade privada.

French mostra como a dominação masculina foi primeiramente afirmada através de reivindicações paternais de posse e direito de nomear filhos. O assassinato dos primogênitos era comum nos primeiros grupos patrilineares, quando homens queriam garantir que o primeiro filho de suas esposas eram realmente “seus”. O fato de o aborto ainda estar na legislação criminal da Nova Zelândia é uma expressão contemporânea da presunção de que a vida humana é feita por e pertence aos homens. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde também santificou os “direitos” dos homens sobre as crianças através de uma nova política declarando que a incapacidade de encontrar um parceiro sexual é uma “deficiência”.

Com a apropriação do controle sobre os filhos, a instituição do casamento progressivamente se tornou uma prática que comodifica, desempodera e isola mulheres de suas famílias e comunidades. Para colocar em perspectiva, o estupro dentro do contexto do casamento não era ilegal na Nova Zelândia até 1985.

Com a instituição do casamento veio o dote, e o maior valor no que diz respeito a ter filhas mulheres vinha de seu potencial enquanto esposas; “roubo de noivas” e “defloração ritual” eram comuns, como ainda são hoje no Quirguistão, por exemplo. As “esposas” raptadas são em geral crianças, e hoje uma média de 15 milhões de meninas por ano são forçadas a casar. Em 2013, uma garota iemenita de oito anos morreu de sangramentos internos na noite em que foi casada com um homem cinco vezes mais velho. É isso que o patriarcado faz às meninas.

Uma das práticas que melhor exemplifica a comodificação através do casamento é o costume indiano do suttee, banido legalmente apenas em 1829. Essa prática envolvia queimar vivas as viúvas, incluindo garotas sequestradas como esposas, nas piras funerárias de seus maridos. O mito de que meninas e mulheres perderam seus maridos como resultado de seu próprio carma ruim motivava a prática. Como este era para ser um ritual de “limpeza”, os homens tipicamente evitavam queimar mulheres enquanto elas estivessem menstruadas, e esperavam dois meses depois do nascimento de uma criança se ela estivesse grávida. Incontáveis mulheres poderiam ser queimadas depois da morte de um único homem da realeza.

Depois de os homens terem se apropriado das mulheres e da esfera doméstica, o estatuto das mulheres foi futuramente institucionalizado e codificado como lei através da construção das religiões monoteístas, do estado, e do desenvolvimento da prostituição comercial. Se alguém tentar te dizer que a prostituição é “a profissão mais velha do mundo”, estarão sendo condescendentes e essencialistas: como Max Dashu mostra, mulheres praticavam a medicina muito antes de os homens se darem conta de como objetificar e lucrar com as mulheres através da prostituição. Lerner discute como a burqa, o costume de as mulheres usarem véu, foi criado para ajudar os homens a distinguir entre as mulheres “respeitáveis e não respeitáveis”, entre as esposas e as mulheres na prostituição.

Como escreve Moana Jackson, a colonização sempre acontece com com uma tomada da memória histórica, saqueada de forma que um vasto silêncio se prolifera. “Algumas vezes, esse silenciamento é descrito como uma amnésia social”, diz Jackson, “na qual o passado sumiu das mentes quase como um esquecimento acidental e sem culpados que ocorre com a passagem do tempo”. O que realmente acontece porém, diz ele, é que as histórias são conscientemente redefinidas de modo que ficam “na cara” das realidades políticas e sociais dos colonizados. O mesmo se aplica às mulheres. Hoje, poucas de nós sabe sua história — seja a da nossa opressão ou da nossa resistência a ela, uma vez que a história é contada pelos patriarcas. Mas podemos retomá-la.

A queima das bruxas e a ginecologia

A “pérola”. Durante a caça às bruxas, os torturadores aqueciam essa ferramenta no fogo e então a enfiavam nas vaginas das mulheres, abrindo lá dentro as suas peças. Imagem da autora.

As mulheres continuaram a praticar amplamente a medicina na Europa até o chamado período do “Iluminismo”. Entre o Império Romano e este período, a caça às bruxas e o seu “mito da feminilidade maléfica” resultaram no assassinato de 9 milhões de pessoas, a maioria delas mulheres, ao longo de 300 anos. A história se lembra deste esforço de 300 anos, quando se lembra, como uma espécie de episódio isolado de loucura supersticiosa (pense no The Crucible de Arthur Miller). Escritoras feministas como Mary Daly, Andrea Dworkin e Max Dashu oferecem outra versão.

Dworkin escreve que muitas das mulheres tidas como bruxas eram praticantes de medicina, uma verdade que ainda existe na nossa memória cultural, de forma distorcida e corrompida, no estereótipo da bruxa dos sapos e caldeirões. Mas estas não eram mulheres más de cara esverdeada. De acordo com Dworkin, eram parteiras, principalmente, uma vez que mulheres educadas realmente ofendiam a Igreja.

As bruxas utilizavam drogas como a beladona e acônito, anfetaminas orgânicas e alucinógenos. Elas também foram pioneiras no desenvolvimento de analgésicos. Elas realizavam abortos, providenciavam toda a ajuda médica necessária para realizar partos, eram consultadas em casos de impotência que tratavam com ervas e hipnose, e foram as primeiras praticantes da eutanásia.

Anna Göldi é tida como a última mulher executada como bruxa na Europa. Ela era a empregada de um médico, que a acusou de colocar agulhas nos pães de seus filhos através de meios sobrenaturais. Depois de tentar escapar do julgamento, ela foi capturada e decapitada na Suíça em 1782.

Em seu livro Gyn/Ecology, Mary Daly aponta como a ginecologia foi estabelecida como uma prática governada pelos homens depois do tempo da queima das bruxas. O ano de 1873 marca a publicação da invenção da castração feminina de Robert Battey: a remoção dos ovários das mulheres para a “cura da insanidade”. Desde então, os homens ginecologistas têm rotineiramente patologizado, torturado e ferido cirúrgica e medicamente as mulheres e seus corpos através de práticas violentas de parto, mastectomias e histerectomias radicais, “terapias” de choque e hormonais, e lobotomias.

Imagem da autora

Desde os anos de 1890, houve um interesse louco em úteros mecânicos ou prostéticos feitos de madeira e vidro (“mães artificiais” ou “incubadoras”) — tecnologias que tentavam desafiar a indispensabilidade dos corpos das mulheres. Nessas incubadoras nós podemos ver que a pressão atual dos transativistas em neutralizar e desumanizar a linguagem da gravidez e do parto, e separar a conexão dos corpos das mulheres de sua saúde, possui ecos através da história.

Daly aponta que a tomada do controle da saúde das mulheres pelos homens depois da caça às bruxas não foi coincidência:

Muitas feministas notaram a significância do fato de que o massacre das mulheres sábias e curandeiras durante a caça às bruxas foi seguido de um crescimento no número de homens parteiros, que eventualmente se tornaram dignificados pelo nome de “ginecologistas”. A ginecologia demorou a crescer. Os homens parteiros dos séculos dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove foram combatidos pelas mulheres parteiras, tais como Elizabeth Nihell, que discreveu seus instrumentos como “máquinas da morte”. Mesmo assim, o século dezenove viu a ereção da ginecologia sobre montes de corpos de mulheres mortas.

O acúmulo de abusos

J. Marion Sims, “o Pai da Ginecologia Moderna”, usou mulheres afro-americanas escravas para conduzir seus experimento cirúrgicos. Sims fez experimentos em mulheres negras para pesquisar doenças como câncer — sem prover anestésicos ou outros remédios para controlar a dor. Caso uma mulher morresse das complicações ou por sangramento excessivo, ele simplesmente substituiria ela por outra escrava, e sua prática era completamente legal.

Harriet Tubman. Imagem da autora.

O acúmulo de opressões sobre as mulheres negras é o tópico do livro Mulher, Raça e Classe de Angela Davis. Nele, Davis discute a experiência das mulheres negras durante o tráfico escravagista; incluindo Harriet Tubman (foto), que resgatou mais de trezentas pessoas através da Underground Railroad e foi a única mulher nos Estados Unidos a liderar tropas em uma batalha.

As mulheres negras, segundo Davis, tinham de trabalhar tão duramente quanto os homens nas plantações, performando as mesmas tarefas independente dos mitos que o patriarcado perpetua sobre as mulheres.

As mulheres não eram femininas demais para trabalhar em minas de carvão, nas fundições de ferro ou para serem lenhadoras ou escavadoras de valas. Quando o canal Santee foi construído na Carolina do Norte, mulheres escravizadas eram cinquenta porcento da força de trabalho.

As mulheres eram também escravas sexuais, além disso. “Se as punições mais violentas dos homens consistiam em flagelos e mutilações”, escreve Davis, “as mulheres eram flageladas e mutiladas, bem como estupradas”. Os homens brancos também viam as mulheres negras como “matrizes”:

Durante as décadas que precederam a guerra civil, as mulheres negras foram crescentemente avaliadas em função de sua fertilidade (ou falta dela): aquela que era potencialmente mãe de dez, doze, quatorze ou mais se tornava um tesouro cobiçado. Isso não significava, porém, que como mães as mulheres negras desfrutassem de um status mais respeitável do que o que desfrutavam enquanto trabalhadoras. A exaltação ideológica da maternidade — tão popular no século dezenove — não se estendia às escravas. De fato, para os proprietários de escravos, as mulheres escravas não eram mães; eram apenas instrumentos para a garantia do crescimento da força de trabalho. Elas eram “parideiras” — animais cujo valor monetário pode ser calculado precisamente em termos de sua habilidade de multiplicar seus números.

Uma vez que as mulheres escravas eram consideradas “parideiras” ao invés de “mães”, seus filhos ainda crianças poderiam ser vendidos e tirados delas como novilhos das vacas.

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Este é outro motivo pelo qual devemos olhar com desconfiança para a introdução de termos como “menstruadores” e “incubadores” na linguagem da saúde da mulher, da gravidez e do parto como resultado da ação do transativismo hoje. Estes termos possuem uma história, e estão ligados especialmente ao tratamento desumanizador da escravidão sexual das mulheres negras. O documentário Google Baby mostra como como as mulheres são atualmente forçadas a tolerar uma vida sob o tratamento de “incubadoras” em clínicas de barriga de aluguel na Índia, muitas vezes dando à luz a bebês brancos feitos com o uso de óvulos e espermatozoides de doadores externos. O tratamento de linha de produção que as mulheres que dão à luz a bebês em clínicas de barriga de aluguel recebem é de dar arrepios, mas o mercado prevê 12 mil estrangeiros por ano indo à Índia para alugar úteros, em geral de mulheres pobres, em uma indústria de valor anual de US$ 1 bilhão.

Uma expressão de colonização racista e patriarcal tão dolorosa e brutal quanto as clínicas de barriga de aluguel na Índia seria difícil de encontrar, se não fosse pela mais velha das opressões: a prostituição. Hoje, 80% das pessoas usadas na prostituição são mulheres, 98% das quais são vítimas do tráfico sexual. Quase todos os prostituintes são homens e o tráfico sexual gera aos homens US$ 32 bilhões por ano. Uma crescente indústria de pornografia violenta acumula cerca de US$ 97,06 bilhões, o que é mais que o lucro combinado das 10 maiores companhias de tecnologia. A mais recente “tendência” na pornografia é a de mulheres sendo analmente estupradas até que sofram prolapso retal (“rosebudding“). Mesmo assim, a Anistia Internacional mostrou seu apoio a esta indústria, submetendo-se às pressões de prostituintes influentes.

Como Cherry Smiley aponta, as mulheres indígenas são mais desproporcionalmente afetadas. Na Nova Zelândia, 15% das mulheres são maori. Em nosso país onde o comércio sexual é completamente descriminalizado, 32% das pessoas prostituídas são maori. Existe uma narrativa ganhando força na Nova Zelândia, sem dúvida abastecida por homens brancos administrando os programas no Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC), de que criticar a prostituição é racista por causa das mulheres maori e do Pacífico na indústria. Lembre-se que a demanda por esta indústria vem de homens brancos ricos. Em 2017, os liberais ainda estão sendo doutrinados a acreditar que mulheres indígenas são de alguma forma inatamente pré-dispostas a serem sujeitas a abusos de homens brancos ricos.

O livro de Angela Davis aponta não apenas como as mulheres negras têm sido afetadas pelo acúmulo das opressões de raça, classe e baseadas no sexo, mas que também tiveram que lutar mais arduamente por representação política, mesmo dentro dos movimentos de resistência. Seu livro mostra a interseção entre os movimentos abolicionista pelo fim da escravidão e a primeira onda do feminismo; nenhum dos quais tendo sido suficiente para representar o jugo das mulheres negras. Sojourney Truth lutou com as feministas brancas da primeira onda, assim como bell hooks com as da segunda. Hoje, novamente vemos um movimento de classe média branca liberal que marqueteia um liberalismo identitário chamado “sex positive” como feminismo. Isso aconteceu porque a reação a cada onda feminista assegurou que o feminismo mainstream sairia do outro lado domesticado, branqueado e sexualizado.

Sexologia, pornografia e feminismo

Em seu ensaio Sexology and Antifeminism, Sheila Jeffreys descreve como a “disciplina” da sexologia foi construída como uma reação à primeira onda das feministas sufragistas.

Esse período, imediatamente depois da Primeira Guerra Mundial, foi um tempo no qual muitas mulheres tinham uma considerável maior liberdade e independência do que jamais tiveram. O fato de que grandes números de mulheres não estavam se casando, estavam escolhendo ser independentes, e estavam lutando contra a violência masculina causou considerável preocupação. Essa preocupação é aparente na literatura da sexologia.

Muitas mulheres tinham pouco interesse em intercurso sexual, e mais comumente, pensavam que “nenhuma mulher deveria ser obrigada a fazer intercurso sexual” (isso foi, é claro, muitas décadas antes da segunda onda feminista lutar para criminalizar o estupro marital). Em resposta a essa crescente resistência e independência, e para defender o status quo da opressão das mulheres, a subordinação sexual das mulheres foi naturalizada na sexologia. Havelock Ellis, o fundador do campo, argumentava que

a sexualidade masculina era absoluta e inevitavelmente agressiva, tomando a forma de busca e captura, e que era inevitável aos homens sentir prazer ao infligir dor nas mulheres. A sexualidade das mulheres, dizia ele, era passiva. As mulheres deveriam ser capturadas e “desfrutar” a experiência de dor nas mãos de seus amantes homens.

Os sexologistas também inventaram o conceito da “frigidez” feminina: mulheres “frígidas” eram doentes, e tinham que ser mandadas aos ginecologistas e psicanalistas.

No encalço da sexologia veio a indústria pornográfica que conhecemos hoje. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, houve um crescimento no negócio da promoção dessa objetificação das mulheres. Pornógrafos-empresários como Hugh Hefner (Playboy), Bob Guccione (Penthouse) e Larry Flynt (Hustler) começaram a preparar o mercado para tornar a pornografia socialmente aceitável. Nos anos 90, produtos do coelhinho estavam sendo consumidos por meninas em todo lugar — a marca do coelhinho estampava tudo, de papelaria a pijamas. Os publicadores da Cosmopolitan, Bauer Media, estão envolvidos no lobby global do tráfico sexual, e chegaram a possuir os direitos de publicação da Playboy na Alemanha.

“Era um mundo muito diferente”, diz a escritora feminista Gail Dines, “depois de Hefner ter erodido as barreiras culturais econômicas e legais da produção e distribuição em massa de pornografia”. Agora é passível de discussão se pole dancing é a melhor atividade extracurricular para garotas de 8 anos de idade.

Como essa mudança ao mainstream aconteceu? A resposta é simples: de propósito. O que vemos hoje é resultado de anos de estratégia e marketing cuidadosos da indústria pornográfica para sanitizar seus produtos… reconstruindo a pornografia como divertida, deferente, chique, sexy e quente. Quanto mais a indústria se tornou sanitizada, mais ela escorregou para dentro da cultura pop e da nossa consciência coletiva.

A segunda onda feminista reconheceu e resiste aos abusos e à normalização da pornografia — mas os departamentos de Estudos das Mulheres das universidades nos quais muitas críticas como essa poderiam ser feitas não existem mais. Até mesmo os livros estão ameaçados. A disciplina que usurpou os Estudos das Mulheres é a teoria queer, e de acordo com as feministas, a teoria queer está para a segunda onda do feminismo como a sexologia era para a primeira: uma contra-reação [backlash]. Sheila Jeffreys esclarece como ela veio

dos liberais sexuais da esquerda — em particular, homens — e em grande parte do movimento gay masculino. É daí que vem a contra-reação, mas também possui representantes dentro do feminismo.

Lierre Keith ilustra a representação dessa contra-reação dentro do feminismo:

Já em 1982, Ellen Willis inventou o termo “sex positive” para se distinguir das feministas radicais — porque somos tão negativas, nós feministas radicais. Estupro, estupro, estupro — isso é tudo sobre o que queremos falar. Bom, proponho um trato — se os homens pararem com o estupro, eu paro de falar a respeito.

Keith também aponta que a busca pelo termo “torture porn” gera 32 milhões de resultados. Vale notar que a estética, as ferramentas e as práticas da pornografia moderna e do BDSM endossadas como “diferentes”, a “sexualmente positiva” teoria queer e as “taras” remontam aos tribunais de caça às bruxas. O ensaio de Max Dashu Reign of the Demonologists mostra como a tortura das bruxas era sexualizada, através da fetichização de procedimentos e equipamentos de tortura e as confissões forçadas de sexo grotesco com demônios. Uma entrevista com Audre Lorde em Burst of Light critica o sadomasoquismo por razões similares.

O sadomasoquismo é congruente com com outros desenvolvimentos acontecendo neste país que tem a ver com dominância e submissão, com desigualdade de poder — político, cultural e econômico… O sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada das relações de dominação e subordinação… O sadomasoquismo alimenta a crença de que a dominação é inevitável e legitimamente desfrutável.

A feminista Susanne Kappeler nos oferece um lembrete para quando encontrarmos esses tipos de práticas aceitos e celebrados como revolucionários na academia.

Enquanto feministas, faremos bem em lembrar e destacar o fato de que a história do liberalismo, do libertarianismo e da libertinagem tem sido a história de cavalheiros advogando liberdade e permissão para cavalheiros — liberdades pelas quais os direitos e as liberdades das mulheres têm sido rotineiramente sacrificadas.


Cópia de um desenho de 1515 de “witch porn” de Hans Franck.

Comoditização e “escolha”

A produção dos robôs sexuais é um aprofundamento contemporâneo da objetificação das mulheres que disciplinas como a teoria queer sancionam, e até celebram. Distúrbios alimentares e a demanda por cirurgias cosméticas como a labioplastia são apenas dois exemplos do impacto da escalada de objetificação das mulheres. Estamos vendo outras invenções bizarras no mercado, também: o FitBit peniano, uma peça bucal para sexo oral.

Imagem da autora

Um jeito que o lobby do mercado sexual se infiltra sob a pele das mulheres, suga sua confiança, encoraja competição e instiga dependência a um parceiro abusivo ou um prostituinte, é através da mídia, através das revistas femininas. 70% das mulheres alega sentir culpa ou vergonha depois de três minutos folheando esse tipo de revista. É é notório que publicadores e seus anunciantes alimentam inseguranças — e abuso. A maioria das modelos nessas revistas pesa 25% menos que a média das mulheres, e está na faixa de peso da anorexia. Agora, na Europa e nos Estados Unidos, 50 milhões de mulheres sofrem de distúrbios alimentares, e meninas de 6 anos de idade vêm crescentemente expressando ansiedade a respeito de seu corpo.

A Bauer Media publica a Cosmopolitan, a Woman’s Day e a revista adolescente Dolly. Atualmente ela também lucra com pornografia online, e costumava possuir os direitos de publicação de uma série de revistas pornográficas alemãs: a Playboy alemã; Das neue Wochenend; Blitz Illu; Schlüsselloch (que significa “fechadura”); Sexy, Praline e Coupe. A Bauer Media também possui um terço do famoso canal privado RTL II, que transmite reality shows a favor de “trabalho sexual” quase diariamente. Não é surpreendente ver a última edição da Cosmopolitan oferecer conselhos sobre tratamentos cosméticos invasivos indo de micropigmentação de sobrancelha a preenchimento labial, tratamento a laser e terapia de luz.

Labioplastia — redução cirúrgica dos lábios vaginais das mulheres — é outra tendência ocidental que está aumentando e que tem conexões com práticas mais brutais, nesse se caso a mutilação genital feminina (FGM). De acordo com a OMS (que apoiava essa prática em 1958), mais de 200 milhões de mulheres e meninas vivas hoje passaram pelo procedimento em 30 países da África, do Oriente Médio e da Ásia onde a prática da FGM é concentrada. Nessas práticas, as meninas têm seus clitóris e lábios vaginais removidos; na Somália, há a prática de costurar os lábios, deixando apenas um pequeno buraco. A mulher somali Hibo Wardere diz que urinar através dessa pequena abertura é como se “uma ferida tivesse sido esfregada com sal ou pimenta”. O feminismo deve trabalhar para acabar com a mutilação genital, e não se ocupar de glorificar variedades novas e comerciais dela como “escolhas” sexualmente positivas.

O patriarcado mina e recorta os corpos das mulheres enquanto diminui o valor delas. Desde o décimo século e por dez séculos, os patriarcas chineses perceberam que as meninas e mulheres jamais conseguiriam correr, amarrando seus pés e fetichizando esse ato de aleijar mulheres. Hoje vemos o comércio de cabelos, óvulos, leite materno e aluguel de úteros através da prática da barriga de aluguel. Enquanto as incubadoras são normalmente mulheres pobres, as doadoras de óvulos são geralmente mulheres estudadas e jovens, cuja saúde foi investigada em busca de doenças hereditárias e que não foram alertadas para as implicações ou possíveis efeitos colaterais da coleta de seus óvulos.

O feminismo branco mainstream hoje irá classificar a labioplastia como algo que as mulheres “escolhem“. Da mesma forma que a imolação foi “escolhida” através da prática indiana do suttee. Da mesma forma que as mães “escolheram” amarrar os pés de suas filhas, “escolheram” cortar seus clitóris; como as mulheres que “escolhem” ser prostituídas e até mesmo traficadas, “escolhem” usar burqa, salto alto, não comer, amarrar seus seios. Essas práticas são por vezes não apenas marqueteadas e chamadas de “escolha”, mas também de altruísmo. A prostituição, a barriga de aluguel e a imolação tem sido chamadas de práticas “altruístas”. As mulheres, obviamente, querem ser capazes de escolher e contribuir. E que escolhas a sociedade nos permite fazer? Estas. Então alegamos que nós mesmas fizemos estas escolhas. Mas o feminismo precisa entender que, conforme Megan Tyler, sim, “nós fazemos escolhas, mas estas escolhas são moldadas e constritas por condições desiguais nas quais nós vivemos.”

NZPC promove a prostituição como uma “escolha” da mulher. Imagem da autora.

Quando se trata de tendências modernas como o transativismo, não podemos separar o desejo masculino de acesso aos espaços das mulheres e por transplantes de útero, de uma história de apropriação patriarcal (incluso aí as imitações de “úteros prostéticos”). Não podemos separar este movimento de uma história inteira que o precede, da exploração simultânea dos corpos e da desvalorização da mulheres. Também não podemos separar os desejos dos homens de sufocar e apropriar a discussão e a capacidade da habilidade das mulheres de criar vida de uma história inteira disso. O sistema masculino tem trabalhado para se apropriar do controle dos corpos das mulheres e de sua habilidade de criar vida humana, e para sufocar a discórdia feminista desde que chegou ao poder. Nessa Era Trump, a história continua.

Por outro lado, não podemos separar os desejos manufaturados das mulheres pelo privilégio masculino nem esquecer que as escolhas das mulheres de passar por procedimentos como binding e queima dos seios, mastectomias e cirurgias invasivas de uma história de opressão, demonização, mutilação e auto-destruição.

Não podemos separar qualquer discurso sobre gênero das realidades da opressão baseada no sexo — isso se realmente quisermos liberdade.

Imagem: Barbara Kruger

Traduzido do original: “A call to feminists to remember the history and sex-based nature of women’s oppression“. In: Writing by Renee, 7 de fevereiro de 2017.