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O sexo cotidiano: coerção e consentimento

Por Sheila Jeffreys, traduzido livremente de Penile Imperialism.


Thérèse e Edmondo Morbilli, por Edgar Degas (1865)

O direito sexual masculino se expressa mais claramente no casamento e na convivência heterossexual. Através das instituições da heterossexualidade e do casamento em todas as suas formas, desde a óbvia escravidão sexual até a “união estável” e as uniões mais informais, os homens adquirem o direito de acesso sexual constante, bem como o controle da reprodução e cuidado infantil e do trabalho doméstico não remunerado. Em alguns países, os maridos não têm mais a propriedade total dos corpos de suas esposas e o direito de fazer o que quiserem com eles, embora isso ainda persista em muitas jurisdições. No Reino Unido, por exemplo, o estupro no casamento é agora um crime, mas o contrato não escrito que está na base do casamento é de propriedade. Este contrato era claro na lei do século XIX e fez com que as feministas questionassem se havia alguma diferença significativa entre o status das esposas e o dos escravos.

Argumentarei que, embora a maioria das mulheres no casamento e em relacionamentos heterossexuais agora tenham o direito de acusar seus parceiros de estupro, o direito do sexo masculino, ou direito conjugal, como era chamado na lei, ainda permanece. Este capítulo trata dos encontros sexuais que geralmente não são chamados de estupro, mas sexo indesejado ou coercitivo ou, por serem tão normativos, sexo “cotidiano”. A relação de poder de dominação masculina e subordinação feminina constrói o sexo que acontece nas relações heterossexuais e o exercício de diversas formas de força garantem que as mulheres não tenham direito à autodeterminação em relação aos seus corpos. O escopo deste capítulo é limitado aos ‘direitos conjugais’ na cultura dominante do Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, mas já escrevi sobre esse problema em outros países e regimes religiosos em outros lugares (Jeffreys, 2012a).

A origem do direito do sexo masculino no casamento

As feministas do século XIX escreveram poderosamente sobre como o status das mulheres casadas se assemelhava ao dos escravos (Thompson e Wheeler, 1970, publicado originalmente em 1825). Na lei, as mulheres não tinham o direito de recusar o uso sexual, não tinham direito a qualquer liberdade de movimento sem o consentimento de seus maridos, a possuir dinheiro ou ferramentas de uma profissão ou à guarda dos filhos. Como diz Carole Pateman:

Até o final do século XIX, a posição legal e civil de uma esposa assemelhava-se à de uma escrava. Pela doutrina legal comum do casamento, uma esposa, como um escravo, estava civilmente morta (Pateman, 1988: 119).

Os direitos sexuais do marido eram chamados de “direitos conjugais” na lei. Eles foram descritos pelo jurista Lord Hale em 1778, 

“o marido não pode ser culpado de estupro cometido por si mesmo em sua esposa legítima, pois pelo consentimento e contrato matrimonial, a esposa se deu a ele neste sentido” (citado em Pateman, Ibid: 123).

De fato, como explica Pateman, até 1884, uma esposa poderia ser presa por recusar os direitos conjugais do marido. Ela afirma que 

“O direito conjugal do marido é o exemplo mais claro da maneira pela qual a origem moderna do direito sexual como direito político é traduzida pelo contrato de casamento ao direito de cada membro da fraternidade na vida cotidiana” (Ibid: 123).

William Thompson e Anna Wheeler, em seu manifesto feminista de 1825, procuraram explicar a condição de escravas das mulheres no casamento e como isso diferia de outras formas de escravidão e outras formas de trabalho, dizendo que os desejos sexuais dos homens os levavam a instituir “estabelecimentos de reprodução isolados, chamados de vida conjugal”, em vez de usar as mulheres apenas como trabalhadoras (Ibid: 123). A penetração vaginal de uma mulher é tão central para o casamento heterossexual, por exemplo, que a não consumação, como é chamada, ainda é uma base para a anulação (GOV.UK n.d., acessado em 26 de abril de 2021).

Feministas fizeram campanha nas décadas de 1970 e 1980 para remover da lei a isenção de estupro conjugal, que dizia que um marido não poderia estuprar sua esposa. Tiveram sucesso no Reino Unido em 1992 como resultado de uma decisão da Câmara dos Lordes, em vez de uma mudança na lei (Hart, 2014). A isenção de estupro conjugal persistiu em metade dos países da Commonwealth Britânica até 2019, bem como em muitos outros países do mundo (Sisters for Change, 2019).

A partir desse momento, tanto na lei quanto na teoria, as mulheres no Reino Unido, que supostamente teriam sido libertadas pela revolução sexual, deveriam ser capazes de rejeitar o sexo indesejado nos relacionamentos. Mas, como veremos neste capítulo, o sexo indesejado continua a ser um problema muito sério e a erotização da igualdade não ocorreu. O que mudou é que as práticas mais abusivas e assassinas que foram popularizadas pelos movimentos de direitos sexuais dos homens e pela indústria do sexo foram disseminadas no sexo cotidiano de tal forma que as mulheres estão sendo extremamente pressionadas pelos homens  para permitir práticas como  sexo anal e estrangulamento em seus corpos. A marcha progressiva da ‘revolução sexual’ levou a uma situação em que muitas mulheres e jovens adolescentes em relações heterossexuais estão experimentando sérias dores e humilhações.

A heterossexualidade compulsória

O sexo só pode ser entendido como voluntário se as mulheres tiverem uma escolha real quanto a entrar em relacionamentos heterossexuais. As teóricas feministas lésbicas questionaram o grau de escolha que as mulheres são capazes de exercer e argumentaram que a heterossexualidade é uma instituição política que é social e politicamente construída e imposta às mulheres (Hawthorne, 1976/2019; Rich, 1980; Wilkinson e Kitzinger, 1993; Jeffreys, 1990). Ela é, como explicou Adrienne Rich,  “compulsória” (Rich, 1980). Essas teóricas argumentam que a heterossexualidade não é simplesmente um direcionamento do desejo sexual para o sexo oposto, uma orientação sexual. Em vez disso, é a base institucional da dominação masculina porque permite a extração de muitas formas de trabalho não remunerado para os homens: sexual, reprodutivo, emocional e trabalho doméstico. É funcional à dominação masculina também, mantendo mulheres individuais sob o controle de homens individuais e separadas umas das outras. É, dizem elas, imposta em vez de livremente escolhida. As alternativas, lesbianismo ou solteirice, são difamadas, punidas ou tornadas invisíveis ao serem excluídas da cultura e da sociedade. O movimento de libertação lésbica dos anos 1970 e 1980 permitiu que muitas mulheres deixassem a heterossexualidade e se tornassem lésbicas. Por várias décadas, uma cultura, teoria e comunidade positivamente lésbica existiram nas quais as lésbicas podiam encontrar irmandade e força  (Jeffreys, 2018a). Essa cultura e comunidade não existem mais para apoiar as mulheres no orgulho de serem lésbicas e o lesbianismo agora é comumente entendido como o resultado da biologia, o que não permite escolha (Ibid).

Durante a maior parte da história recente no ocidente, as mulheres foram obrigadas a entrar em casamentos ou outras formas de relacionamentos heterossexuais por uma necessidade econômica urgente. Embora o imperativo financeiro não seja mais tão poderoso, há muitas forças que encaminham as mulheres para a instituição da heterossexualidade, como ser criada em famílias heterossexuais onde qualquer alternativa provavelmente será excluída ou rejeitada, sistemas de educação que não mencionam a história, cultura ou existência de lésbicas, e a ausência de lesbianismo aberto entre professoras e outros possíveis modelos. As vantagens dos relacionamentos lésbicos não são divulgadas na educação sexual para crianças, como uma maior chance de compartilhamento de cuidados infantis e tarefas domésticas, evitando a violência masculina em casa, a falta de necessidade de contracepção, a maior possibilidade de prazer sexual com outras mulheres que entendem os corpos das mulheres e não são dedicadas apenas à sua própria satisfação. Os romances lésbicos não são estudados. Existem novas forças envolvidas em fazer o lesbianismo desaparecer e fazer com que uma nova geração de mulheres jovens evite a palavra lésbica (Morris, 2017). Por exemplo, jovens lésbicas estão sendo medicinalmente modificadas ao serem identificadas como meninos pelos médicos com a conivência do sistema escolar. Elas estão passando por uma ‘terapia de conversão’, como veremos em um capítulo posterior (Jeffreys, 2018a).

Este capítulo pressupõe que a heterossexualidade é uma instituição em que as mulheres não estão em posição de escolher livremente se desejam entrar ou rejeitar. Considerando que todas as forças e punições muito significativas das sociedades masculinas dominantes se juntam para forçar as mulheres à heterossexualidade, não é de surpreender que o sexo que ocorre nela muitas vezes não seja escolhido livremente ou adequado aos interesses das mulheres, mas imposto pela força. Ele ocorre, proeminentemente, em uma relação de poder.

Sexo pênis na vagina (piv)

O casamento é legalmente baseado na entrada do pênis na vagina. Essa forma de sexo, no entanto, tem muitas contra-indicações para as mulheres e poucas vantagens. As teóricas e pesquisadoras feministas postularam que o coito não é adequado para o prazer sexual das mulheres e apresenta problemas para a saúde e segurança das mulheres (Jeffreys, 1990; Dworkin, 1987). Uma pesquisa no Reino Unido descobriu que 80% das mulheres não conseguiam atingir o orgasmo apenas com essa prática (Delvin e Webber, 2017).

No entanto, o que Alex Comfort chamou de “o bom e velho casamento” ainda é a prática preferida dos homens e comumente vista como a essência do sexo. Pesquisadoras feministas têm procurado estabelecer por que o sexo com pênis na vagina sobreviveu como a forma primária e “natural” de se engajar em relações heterossexuais, apesar do fato de ser inadequado para o prazer das mulheres, requerer a tecnologização do corpo com contracepção, e ter o risco de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Elas examinaram as diferentes formas de força envolvidas para garantir que muitas mulheres deem aos homens acesso a seus corpos, por mais relutantes que estejam. Um estudo procurou entender por que coito continuou a ser o principal ato sexual, apesar de

os efeitos colaterais das formas mais eficazes de contracepção e das implicações sociais, psicológicas e de saúde da gravidez não planejada e indesejada ou do aborto

(Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 36).

Como explicam esses pesquisadores, a vagina é 

apresentada como a melhor parte do corpo da mulher para atender às necessidades sexuais do pênis. É um encaixe que foi ‘projetado’, os órgãos são ‘construídos para se prenderem uns aos outros’, e a prática é vista como mais natural do que o uso da boca ou da mão de uma mulher

(Ibid: 41).

A maioria das razões dadas pelas quais o sexo com pênis na vagina é natural são, dizem eles, biológicas ou procriativas. Tais razões não se relacionam, é claro, com o prazer sexual das mulheres. A pesquisa reconhece que muitas mulheres não têm escolha sobre permitir ou não o sexo na vagina por causa da violência e do controle masculino, mas se concentra nas forças mais sutis que induzem as mulheres a permitir que seus corpos sejam usados dessa maneira, “nosso interesse aqui é em entender mais sobre as normas que regem as relações sexuais em situações que não parecem envolver coerção direta” (Ibid: 37).

O modelo de consentimento

O sexo cotidiano que pode ser profundamente indesejado pelas mulheres, ou mesmo doloroso e angustiante, é justificado pela noção de ‘consentimento’. A própria ideia de que os encontros sexuais requerem ‘consentimento’, em vez de serem experiências de prazer mutuamente desejadas, torna clara a dinâmica de poder da heterossexualidade. Os homens heterossexuais não têm problema em saber se consentiram o uso de seus corpos por mulheres, porque a exigência de submeter seus corpos ao prazer de outro não existe para eles. No sexo heterossexual, espera-se que o homem inicie o sexo e que a mulher concorde ou discorde de seus avanços e demandas por meio do mecanismo de consentimento. Supõe-se que iniciação e consentimento sejam iguais, mas na verdade representam os comportamentos de dominação e submissão. Catharine MacKinnon rejeita a ideia de que o consentimento forneça qualquer tipo de proteção ou vantagem para as mulheres. Como ela explica:

O consentimento é supostamente a forma das mulheres controlarem a relação sexual, diferente mas igual à prática da iniciativa masculina. O homem propõe, a mulher dispõe. Até mesmo o ideal não é recíproco… esse modelo não imagina uma situação em que a mulher tenha controle ou escolhas a fazer.

(MacKinnon, 1989: 174)

Fora do contexto do sexo, o consentimento é o mecanismo que justifica a aplicação de um procedimento que pode colocar em risco a saúde e a vida; um comportamento que é arriscado. Assim, os formulários de consentimento são usados regularmente para cirurgias ou para práticas em que há risco de divulgação de informações confidenciais. O consentimento não é entendido como algo que ocorre entre iguais, mas como indício de desigualdade. Apesar disso, como explica Carole Pateman

[As] relações mais íntimas das mulheres com os homens são regidas pelo consentimento; as mulheres consentem com o casamento, e a relação sexual sem o consentimento da mulher constitui crime de estupro

(Pateman, 1989: 72).

Expliquei o problema com o conceito em 1993:

A ideia de consentimento implica em um modelo de sexualidade em que uma pessoa, geralmente homem, usa o corpo de outra pessoa que não está necessariamente interessada sexualmente e possivelmente relutante e angustiada, como um recurso sexual. É um modelo dominante/submisso e ativo/passivo… O consentimento é uma ferramenta para negociar a desigualdade nas relações heterossexuais. Espera-se que as mulheres tenham seus corpos usados, mas a ideia de consentimento faz com que esse uso e abuso pareçam justos e justificados.

(Jeffreys, 1993: 178)

O conceito de consentimento molda o sexo heterossexual. Espera-se que a mulher disponibilize seu corpo sem objeções para que um homem possa usá-lo para se satisfazer, mas seu próprio prazer e até mesmo sua presença psicológica não são necessários. Ela pode, como a literatura sexológica sugere, estar com a cabeça inteiramente em outro lugar. Ela pode estar lendo um livro durante o procedimento ou estar pintando as unhas dos pés (Jeffreys, 1990).

Um modelo de sexualidade que se baseia na noção de que uma pessoa tem a iniciativa e a outra pode apenas dar ou negar consentimento é profundamente desigual e simplesmente replica as relações de poder social de dominação masculina. No entanto, o conceito de consentimento forma a base das leis internacionais sobre estupro, agressão sexual e crimes sexuais contra menores de idade. A lei tanto replica esse modelo de desigualdade sexual quanto o promove e molda. A legislação atual do Reino Unido sobre estupro, a Lei de Ofensas Sexuais de 2003, é baseada em um modelo de iniciação/consentimento (Legislation.gov.uk, 2003). Na Seção 1, afirma que:

Uma pessoa (A) comete um delito se –

(a) ele penetra intencionalmente a vagina, o ânus ou a boca de outra pessoa (B) com seu pênis, e

(b) B não consente com a penetração, e 

(c) A não tem motivo razoável para acreditar que B consente.

Um outro problema com a legislação do Reino Unido é que ela continua a tradição dentro da dominação masculina de definir se uma mulher foi estuprada de acordo com o que acontece na cabeça de um homem, incluindo uma cláusula de ‘motivo razoável para acreditar’. A legislação revela a influência de um movimento feminista ao acrescentar a necessidade por parte do homem de tentar averiguar se a mulher que ele penetrou estava consentindo:

(2) Se uma convicção é justificável deve ser determinada tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo quaisquer passos que A tomou para verificar se B consente.

O conceito não apenas mede o que é um estupro muito mais pelo que um homem considera do que pelo que uma mulher experimentou, mas também define sexo aceitável como o que um homem faz a uma mulher, que pode ser totalmente passiva e desejar estar em outro lugar. Os sentimentos dela não entram na definição.

Fabricando o consentimento

As meninas e mulheres, membras da casta sexual subordinada, alvos da iniciativa sexual de membros da casta sexual superior, supostamente têm o direito de recusar. Mas esse direito de recusar ou aceitar o consentimento de uma mulher é construído a partir de sua posição nas relações de poder da dominação masculina. São muitas as razões pelas quais o consentimento de uma menina ou mulher não é livre e todas se relacionam com sua posição subordinada. Elas incluem como meninas e mulheres são treinadas para se curvarem aos homens, para não deixá-los irritados e para não se expressarem de forma assertiva perto de homens. Algumas das razões tradicionais pelas quais as mulheres não são iguais em relacionamentos heterossexuais podem ter sido um pouco amenizadas no Reino Unido nos últimos cinquenta anos, com o resultado de que as mulheres agora têm muito mais independência econômica. Muitas outras, no entanto, permanecem, como as formas pelas quais os homens mantêm o controle por meio da violência, ameaça ou as mais variadas formas de coerção. Na década de 1980, pesquisadoras feministas formularam um vasto entendimento das forças que estão envolvidas na construção do que a lei penal e os perpetradores masculinos entendem como consentimento, ou seja, a ausência de uma recusa direta por parte de uma mulher para permitir que seu corpo seja usado como um receptáculo.

O primeiro exemplo desse tipo de trabalho é a pesquisa de Diana Russell em seu livro de 1982, Rape in Marriage. Ela descobriu que, nos EUA, o estupro de esposas com força ou ameaça de violência era comum:

Em meu estudo financiado pelo governo federal… 14 por cento das mulheres que se casaram uma vez ou mais relataram ter sido estupradas por seus maridos

(Russell, 1982/1989: XXII).

É importante ressaltar que ela também prestou atenção às maneiras pelas quais as esposas foram forçadas a aceitar o acesso sexual de seus maridos, o que não se encaixava na definição usual de estupro e que as próprias esposas viam como consensual. As muitas razões que as mulheres deram para terem que ‘consentir’ podem ser resumidas em algumas categorias. Uma delas era que as mulheres sentiam que tinham que permitir o acesso sexual de seus maridos porque esse era seu dever de esposa, parte do contrato. Como uma esposa explicou:

Quando estou dormindo, não quero ser incomodada. Ele não me forçou, mas se eu não quisesse, ele faria de qualquer forma. Eu não gostei. Eu disse apenas ‘pode fazer, mas eu não estou no clima’

(Ibid: 82).

Outra queria agradar o marido:

Às vezes, meu marido quer fazer coisas que eu não quero fazer ou que são desconfortáveis para mim. Certas posições são desconfortáveis ou cansativas para mim, como ficar de pé. Não é forçado como estupro, mas às vezes, quando digo não, ele nunca me força, mas talvez eu faça mesmo assim para agradá-lo

(Ibid: 82).

Outro motivo era evitar discussões e a raiva do marido:

Eu simplesmente não queria fazer e ele queria, então fizemos sexo. Eu disse que não queria e não ajudei o sexo a acontecer, mas por outro lado, não fui forçada. Isso provavelmente acontece muito com pessoas casadas. (Você se sentiu forçada?) Sim, me senti forçada a fazer isso. Não fisicamente. Mas você não pode simplesmente começar a brigar com seu marido. Não estávamos nos comunicando bem. Era a noite de nosso casamento e eu estava muito, muito bêbada

(Ibid: 83).

A raiva de um marido podia ser expressa em retraimento emocional e as mulheres faziam questão de evitar isso:

Houve um número razoável (de experiências sexuais indesejadas) um ano antes de nos separarmos. Parei de querer fazer amor, e era uma pressão constante. (Força física?) Não, não houve coerção física; foi apenas retraimento emocional ou nenhum contato físico

(Ibid: 77).

Outra forma de força que o marido poderia exercer era a ameaça de infidelidade:

Eu estava cansada. Eu estava trabalhando muito. Eu queria dormir. Como ele é meu marido, não pude dizer não. Eu nunca disse ‘estou com dor de cabeça’ como as americanas, porque senão ele iria procurar em outro lugar

(Ibid: 83).

No final do século XX, as pesquisas feministas como a de Russell criaram uma compreensão das dinâmicas de poder nas relações heterossexuais e contribuíram para o sucesso de campanhas feministas em muitos países para criminalizar o estupro marital. Mas outras forças estavam trabalhando ao mesmo tempo para consolidar esse sexo de dominação masculina, incluindo a liberação das indústrias de prostituição e pornografia, a promoção de parafilias como BDSM (Bondage, Disciplina, Sadomasoquismo) e o apoio a essas práticas pelos profissionais da terapia sexual. A compreensão feminista que estava sendo construída com tanto cuidado não era páreo para essas forças. Apesar de toda a excelente pesquisa e campanha em torno da violência sexual, os muitos sucessos do Movimento de Libertação das Mulheres não mudaram a maneira como as mulheres eram forçadas a “consentir” ao sexo. O sexo como um direito legal do marido deu lugar ao sexo por “consentimento”.

A derrota do trabalho feminista ficou clara na pesquisa de Lynn Phillips com estudantes universitárias (Phillips, 2000). Ela entrevistou jovens estudantes, de 19 a 21 anos, que fizeram um curso de estudos feministas e aprenderam sobre a violência masculina. Se alguma mulher estivesse em posição de lutar contra o estupro, deveriam ser essas estudantes que estavam bem informadas e preparadas, mas elas sofreram estupros que não podiam nomear e muito sexo abusivo, violento e doloroso que não conseguiam evitar em seus relacionamentos sexuais cotidianos. Um aspecto importante da construção da sexualidade feminina que Lynn Phillips descobriu em suas entrevistas foi que as jovens praticavam atos sexuais com homens se guiando detalhadamente pelo que achavam que seus parceiros desejavam, e não por qualquer coisa que elas estivessem sentindo:

As participantes relataram repetidamente que suas decisões sobre como se apresentar fisicamente, como e quando fazer ruídos e como mover seus corpos foram determinadas muito menos por suas próprias sensações corporais do que por seus cálculos mentais do que os homens gostariam que eles fizessem

(Phillips , 2000: 108).

As universitárias descreveram em detalhes para Phillips as estratégias que usavam para sobreviver a experiências sexuais muito insatisfatórias com homens abusivos e indiferentes. Algumas estratégias foram adotadas para que o homem parasse sem ela precisar mostrar que não gostava do que ele estava fazendo.

Às vezes, demora demais… Então, eventualmente, finjo que não consigo manter os olhos abertos e que gostaria de poder, porque estou amando muito isso. Assim eu não firo os sentimentos dele… Dessa forma, eu não pareço frígida ou muito esquisita

(Ibid: 146).

Uma estudante fez um relato sobre quando estava sendo usada sexualmente, ela não queria transar, estava sentindo dor, ela chorou e ele não notou:

Então eu fiquei deitada embaixo dele, chorando, enquanto ele fazia. Eu não sentia que poderia dizer não, mas esperei que ele me visse chorando e simplesmente parasse, não sei, por culpa ou preocupação ou algo assim, talvez até pena. Ele não parou, claro. Ele simplesmente continuou e depois disse: ‘Você não gostou?’ E eu disse: ‘Sim, foi bom’

(Ibid: 145).

Um motivo pelo qual as alunas se sentiram compelidas a atender os homens foi o fato de que eles poderiam se tornar violentos se seus avanços fossem rejeitados:

Alguns caras ficam furiosos quando seus egos masculinos são feridos. Eu simplesmente não posso correr esse risco

(Ibid: 139).

Phillips descobriu que as universitárias reformulavam sua experiência sexual para que não tivessem que pensar em si mesmas como tendo sido estupradas, embora o que elas descrevessem muitas vezes se encaixasse na definição legal de agressão sexual. Ela diz que das 27 mulheres que descreveram experiências que envolveram violência e coerção, 25 delas – ou 93 por cento – não chamavam nenhuma de suas experiências de abuso ou vitimização. Em vez disso, recorreram a várias formas de assumir, elas mesmas, a responsabilidade pelo que os homens lhes fizeram ou, pelo menos, de sobreviver à violência. Elas fizeram muito esforço para ter uma resposta sexual ao serem usadas sexualmente, porque isso significaria que não foi estupro. Um jovem de 19 anos explicou:

Se eu pudesse apenas encontrar uma maneira de me excitar, saberia que estava envolvida e isso não seria realmente como um estupro

(Ibid: 144).

Uma jovem de 21 anos disse quase a mesma coisa:

Eu estava pensando que, se eu conseguisse me excitar, seria consensual, como uma boa experiência

mas isso foi em uma situação em que o homem a forçou violentamente à submissão:

Eu me envolvi em uma situação em que fui para o apartamento deste cara, e estávamos nos beijando e tal, mas eu não queria fazer sexo, mas ele sim. Foi uma luta longa e tudo mais. E ele me bateu e tudo, e então eu pensei: ‘Ok, tudo bem’. Eu cedi, sabe, porque se eu realmente tentasse lutar e acabasse sendo espancada, o que eu diria para a minha mãe?

(Ibid: 143).

A mesma mulher aprendeu uma técnica quando criança para fazer um homem que a estava assediando sexualmente se apressar e acabar logo com isso:

Eu aprendi bem cedo, por volta dos treze anos, eu acho, a fazer o boquete perfeito. Eu também sei fazer a punheta perfeita, para que eu possa tirar os homens de cima de mim e acabar logo com isso. Dessa forma, estou totalmente no controle. Porque uma vez que eles gozem, então você está livre… Com sorte, se você jogar as cartas certas, eles simplesmente irão cair no sono

(Ibid: 141).

Ela aprendeu a amenizar as piores condições do uso sexual que fazem do seu corpo, mas não foi capaz de recusar.

As experiências de violência sexual que as mulheres se recusaram a ver como estupro incluíram a seguinte situação em que uma mulher foi asfixiada pela mão de um homem e sofreu fortes dores quando foi penetrada pela primeira vez:

Eu pensei, estou pronta para fazer isso… Ele estava, tipo, me ignorando completamente, e nós não estávamos mais nos agarrando (ela chora e soluça). Ele estava apenas enfiando o pau dentro de mim, e tampando a minha boca com a mão, então eu não podia falar nada… Só posso dizer que nunca senti tanta dor na minha vida… Depois que ele gozou, o que não demorou muito, graças a Deus, ele apenas rolou para o lado, parecendo tão orgulhoso de si mesmo. Ele me disse: ‘Você quer que eu te acompanhe até sua casa?’

(Ibidem: 94).

Outra mulher descreveu uma agressão sexual dolorosa que ela se recusou a chamar de estupro:

Eu penso nisso principalmente como uma noite muito ruim. Se você está me perguntando se eu acho que fui estuprada, não, eu realmente não chamaria isso assim. Quero dizer, fui forçada, sim, e me machuquei, e as coisas não saíram como eu queria, mas eu estava no carro com ele. Foi tudo muito complicado. Quero dizer, eu estava lá, poderia ter escolhido não ir. Então não, eu realmente não chamo isso de estupro.

(Ibid: 154).

As jovens que sofrem essas agressões sexuais aprenderam a crítica feminista da violência masculina em seus cursos feministas, mas, no caso dessa mulher, o ensino permitiu que ela se diferenciasse das mulheres que ela via como verdadeiras vítimas, em vez de se ver como uma:

Eu só agradeço a Deus por não ter passado por algo tão extremo quanto as mulheres que são abusadas… Nós estudamos isso nas aulas de feminismo. Às vezes eu apanhava e era humilhada pelo meu namorado, mas não era espancada como muitas mulheres são.

(Ibid: 158)

Uma razão dada para negar o estupro foi que admitir ser uma vítima era humilhante:

Se eu me considerasse uma vítima, seria como se eu fosse apenas uma garotinha burra que perdeu a cabeça. Na época, eu queria provar para mim mesma o quão adulta eu era, não queria nem pensar que poderia ter sofrido abuso … porque então eu seria ingênua e estúpida.

(Ibid: 95)

Em outro estudo, as pesquisadoras feministas descobriram que a principal razão pela qual as mulheres eram usadas sexualmente quando não queriam era a pressão social para agradar aos homens ou para não parecer frígida. Uma mulher falou sobre se sentir forçada a dizer sim por medo de ser “rotulada e julgada (como frígida) se dissesse ‘não'” (Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 43). “É isso que devo fazer, é isso que preciso fazer para manter o respeito ou a amizade deles.” Outra forma de pressão que encontraram em suas entrevistas foi a necessidade das mulheres de “agradar sexualmente seus homens”, pelo menos estando sexualmente ‘disponível’ ou enfrentar a “consequência previsível de que ele procurará em outro lugar para ter suas ‘necessidades sexuais’ atendidas”. As pesquisadoras comentam:

Se o papel da mulher nas relações heterossexuais é construído em torno da necessidade de agradar seus parceiros masculinos, então a relação sexual pode não ser uma escolha real

(Ibid: 48).

É provável que todas as experiências angustiantes aqui descritas tenham sido vistas pelas mulheres como ‘consensuais’.

O ensino do consentimento

A falsa ideia de que o ‘consentimento’ indica a atividade sexual desejada está por trás do ‘treinamento de consentimento’, que é a solução preferida por governos, universidades e outras instituições para lidar com o problema do assédio sexual. No treinamento de consentimento, homens e mulheres aprendem a buscar e dar um consentimento inequívoco antes que a atividade sexual ocorra. O governo do Reino Unido, por exemplo, lançou uma campanha “para ajudar a combater o estupro, educando jovens homens sobre a necessidade de consentimento antes do sexo” em 2006. O jornal The Guardian citou uma porta-voz do Ministério do Interior dizendo: “Dar consentimento é uma ação, não uma omissão, e cabe a todos garantir que o parceiro concorde com a atividade sexual” (Travis, 2006). Mas, é claro, embora o ‘consentimento’ possa ser ativo, a mulher que consente pode se sentir forçada a concordar em ser usada passivamente ou a simular entusiasmo. O conceito de consentimento usado por tais campanhas é notavelmente simplista. A União Nacional dos Estudantes (NUS) do Reino Unido lançou uma campanha com objetivo semelhante em 2015, chamada Eu amo o consentimento:

A campanha das mulheres da NUS e a Sexpression UK se uniram para criar um programa educacional de consentimento que visa facilitar conversas e campanhas positivas, informadas e inclusivas sobre consentimento em universidades e faculdades em todo o Reino Unido.

A definição de consentimento do programa é: “Uma pessoa consente se concorda por escolha própria e tem a liberdade e capacidade de fazer essa escolha” (NUS, 2015, ênfase no original). O treinamento de consentimento é onipresente, mas falho pois assume a iniciativa sexual masculina e que as relações entre homens e mulheres são baseadas na igualdade, em vez das relações de poder.

Uma notável pesquisa de Celia Kitzinger e Hannah Frith, de 1999, procura mostrar por que o treinamento de consentimento pode não funcionar (Kitzinger e Frith, 1999). Elas apontam que a “teoria da má comunicação”, que fundamenta esses programas, não descreve com precisão o que acontece entre homens e mulheres na atividade sexual. Essa teoria acredita que as mulheres não são suficientemente incisivas ao expressar seu “não” ao sexo e que os homens são facilmente confundidos em pensar que podem prosseguir quando uma mulher não deseja fazê-lo. Elas explicam que

o ensino de “habilidades de recusa” é comum a muitos programas de prevenção de estupro em encontros, treinamentos de assertividade e habilidades sociais para jovens mulheres. A suposição subjacente a esses programas é que as jovens mulheres acham difícil recusar a atividade sexual indesejada e um objetivo comum é ensinar as mulheres a dizer “não”, de forma clara, direta e sem desculpas

(Kitzinger e Frith, 1999: 293).

Boas pesquisas feministas qualitativas mostram as falhas na teoria da má comunicação, apontando que formas complexas de entendimento social estão em jogo quando as pessoas tomam essas decisões, que podem, na verdade, ser prejudicadas pela exigência de que as mulheres rejeitem de modo duro e explícito (Beres, 2020). O problema mais grave com essa teoria é que ela culpa as mulheres pela violência sexual que sofrem, sugerindo que tudo o que elas precisam fazer para evitar a agressão é tornar sua recusa mais clara. Pode ser por essa razão que o treinamento de consentimento é o preferido como resposta à violência sexual, porque culpa as vítimas, as mulheres, sem exigir nenhuma mudança no comportamento dos perpetradores, os homens.

Kitzinger e Frith utilizaram a análise da conversa (AC) para examinar a maneira como os jovens falam sobre consentimento. Elas apontam que

os resultados empíricos da AC demonstram que as recusas são interações conversacionais complexas e finamente organizadas, e não são adequadamente resumidas pelo conselho de apenas dizer não

(Kitzinger e Frith, 1999:294).

Elas observam que em interações cotidianas, tanto homens quanto mulheres não usam recusas diretas quando solicitados a fazer algo, porque isso é ofensivo. Eles tendem a usar atrasos, hesitações e desculpas em vez disso. A análise da conversa depende da atenção cuidadosa aos pequenos detalhes da fala, como breves pausas, hesitações, falsos começos e autocorreções, bem como “paliativos” – frases usadas para “acalmar” um homem para que ele não se sinta tão ofendido. Além disso, eles apontam que dizer simplesmente “não” sem prestar atenção às regras sociais que geralmente se aplicam em todas as situações pode colocar as mulheres em perigo, causando uma reação de raiva em um homem que interpreta a recusa como grosseria. A teoria da má comunicação oferece uma forma de defesa para estupradores no tribunal: eles podem argumentar que não entenderam porque a mulher não sinalizou sua falta de consentimento com bastante clareza. Mas isso não ajuda as mulheres.

Kitzinger e Frith explicam que “apenas dizer não” é visto como grosseria e “as mulheres jovens sabem disso” (Ibid: 305). Os programas de prevenção de estupro que insistem em ‘apenas dizer não’, ‘são profundamente problemáticos na medida em que ignoram e anulam formas culturalmente normativas de indicar recusa’ (Ibid). A evidência, dizem elas, ‘é que as pessoas geralmente ouvem recusas sem que a palavra ‘não’ seja necessariamente pronunciada” (Ibid). Elas concluem que “a raiz do problema não é que os homens não entendam as recusas sexuais, mas que eles não gostam delas” (Ibid: 310). Elas fundamentam essa ideia com pesquisas que registram as reações de meninos adolescentes e homens jovens que foram questionados sobre quais seriam suas reações se as mulheres os recusassem. A agressividade sexual (que apresentavam) era bastante extrema”. Elas concluíram que “o problema da coerção sexual não pode ser solucionado pela mudança do modo com que as mulheres falam” (Ibid: 311).

A diferença do desejo sexual entre homens e mulheres

A noção de ‘consentimento’ é necessária por causa do que tem sido chamado pelos sexólogos de ‘diferença do desejo’. Talvez não fosse necessário se não houvesse um problema de imposição de algo indesejado a parceiros relutantes, se as mulheres estivessem tão entusiasmadas em serem penetradas quanto os homens estavam em penetrá-las. Sexólogos no início do século XX buscaram descrever, quantificar e curar o que eles viam como o principal impedimento ao direito sexual masculino – a falta de interesse ou recusa das mulheres em responder com entusiasmo suficiente a serem penetradas pelos homens. Como vimos no Capítulo 1, eles inventaram uma série de termos para descrever o problema enquanto buscavam por uma solução.

A resistência das mulheres era vista como política e a derrota dessa resistência era a principal tarefa da ciência do sexo e da prática da terapia sexual ao longo do século XX. As demandas importunas dos homens, por outro lado, eram vistas como naturais e não eram questionadas. No século XXI, sexólogos inventaram um novo termo para descrever o que antes era chamado de frigidez, “diferença de desejo”. A “diferença” é atribuída às mulheres. Os homens não precisam mudar, mas a falta de interesse das mulheres deve ser medicalizada e tratada. As mulheres não conseguem simplesmente rejeitar o sexo que não desejam, porque o direito sexual masculino exige que elas concedam acesso.

Na pesquisa sobre “Negociação de diferenças de desejo sexual para mulheres em relacionamentos de parceria”, uma entrevistada explica que a “negociação” é um problema relacionado ao direito sexual masculino, já que as parceiras femininas não fazem as mesmas exigências. Ela também explica que o tipo de pressão que os homens colocam sobre as mulheres para que elas permitam o uso de seus corpos não existe em relacionamentos lésbicos:

Eu achei que com os caras [o sexo] é algo que eles querem imediatamente, mas nas minhas experiências com as garotas eu sinto que não há pressão alguma. Com homens, sempre senti essa pressão para ter sexo, enquanto com minha namorada nunca tive essa pressão

(Fahs, Swank e Shambe, 2020:233).

As pesquisadoras concluem que as relações de poder de dominação masculina persistem dentro de relacionamentos heterossexuais, apesar dos avanços que o movimento feminista alcançou para as mulheres na esfera pública. No âmbito privado/doméstico, eles afirmam que

as mulheres se sentem “presas” em estereótipos sexuais e dinâmicas de poder que não necessariamente as beneficiam, mesmo quando expressam consciência sobre o dano dessas normas. Em outras palavras, as mulheres continuam suportando o sexo pelo qual não sentem entusiasmo ou “aguentando” o sexo que parece chato ou pouco recíproco, mesmo quando estão obtendo progressos em outros aspectos de suas vidas

(Ibid: 236).

A forma como o que é chamado de “diferença de desejo” afeta as mulheres é explorada em uma pesquisa na qual dez mulheres em relacionamentos de longo prazo foram entrevistadas sobre sua prática sexual (Hayfield e Clarke, 2012). As autoras apontam que o problema com a forma como a falta de interesse das mulheres pelo sexo é apresentada é que ela vê a “falta de desejo” das mulheres como problemática em vez de apontar o “desejo excessivo” dos homens como um problema (Ibid: 68). Algumas das mulheres entrevistadas tinham desejo sexual por seus parceiros, mas a maioria não tinha. Uma comentou “Nunca me vi com um impulso sexual, muito raramente”, e outra afirmou “Não acho que eu tenha um impulso sexual muito alto”. Ambas essas mulheres e muitas das outras, explicam as pesquisadoras, tinham “pouco interesse em sexo”, mas todas sentiam que o interesse sexual era desejável e lamentavam a sua falta. As pesquisadoras apontam que há um imperativo coital que posiciona o sexo de pênis na vagina como essencial para os homens e algo em torno do qual as mulheres devem ajustar suas vidas. Isso é acompanhado por um “imperativo de orgasmo”. Como Gavey, McPhillips e Braun acima, elas apontam que a exigência de fazer sexo com pênis na vagina sobrepõe todo conhecimento de quão problemático pode ser para a saúde das mulheres, embora

a relação sexual com penetração vaginal apresenta riscos diretos (por exemplo, ISTs, HIV/AIDS, gravidez indesejada) e riscos indiretos (por exemplo, câncer cervical causado por ISTs específicas, efeitos colaterais de contraceptivos, consequências sociais e psicológicos de gravidez indesejada)

(Ibid: 71).

Elas expressam sua perplexidade de que

existe uma expectativa de que as mulheres (e homens) participem regularmente em um ato, mesmo quando ele tem o potencial de prejudicar sua saúde e bem-estar, e quando pode não ser prazeroso para ambas as partes envolvidas.

As entrevistadas explicaram que fizeram uma ‘escolha’ “de estar passivamente presentes no sexo para satisfazer as ‘necessidades’ de seus parceiros” (Ibid).

Terapia sexual

As duas principais forças envolvidas na construção do sexo cotidiano são a pornografia e a terapia sexual. Essas duas indústrias estão interligadas e abraçam os mesmos valores na aplicação do direito sexual masculino e da obediência feminina. Como resultado da “diferença do desejo”, é provável que muitas mulheres prefiram ler um bom livro ou terminar um quebra-cabeça em vez de buscar conexão sexual. Para obter seus direitos sexuais, então, os homens devem se impor às mulheres. É trabalho das mulheres negociar a iniciativa sexual dos homens, seja ao caminhar na rua ou no local de trabalho, onde pode ser chamado de “assédio sexual”, ou em relacionamentos. Quando essa iniciativa acontece em casa, nunca é chamada de assédio, embora haja muitas evidências de pesquisas feministas e literatura de aconselhamento sexual que as mulheres o experimentam dessa forma. As mulheres em relacionamentos heterossexuais provavelmente serão o objeto da iniciativa sexual dos homens e têm a escolha de cumprir ou pensar em uma razão para recusar. As dinâmicas de poder do sexo heterossexual são tais que simplesmente dizer que não estão com vontade não é suficiente. Uma tarefa central dos terapeutas sexuais é garantir que as mulheres reajam adequadamente às demandas sexuais dos homens em vez de buscar um hobby mais interessante.

Um exemplo do site de aconselhamento psicológico online, Psychcentral, ilustra isso bem. Em 2017, uma mulher escreveu ao site explicando que estava em um relacionamento de longo prazo com um homem, tinha quatro filhos e sua vida sexual tinha sido boa, mas

[Naquela noite] eu estava cansada e queria assistir um pouco de TV e ir dormir, meu namorado queria fazer sexo, e quando eu disse que não estava com vontade… ele ficou violento e tentou me dar um tapa na cara. E fez algum comentário do tipo ‘você vai pagar por isso’, brincando ou não

(Randle, 2019).

Ela diz que “fazem sexo com bastante frequência”, mas quando ela não “está a fim” uma vez ou outra, ele “fica bravo ou violento”. O conselho que ela recebe é simpático à situação do marido: “Ele fica bravo porque se sente rejeitado. O sexo aparentemente é muito importante para ele”. A terapeuta não demonstra preocupação com a violência e não dá conselhos sobre como a mulher pode manter a si mesma e seus filhos em segurança. Em vez disso, ela aconselha a mulher a satisfazer as demandas sexuais do homem, desde que sejam “razoáveis”: “Você tem que aprender a garantir o atendimento de uma quantidade razoável da necessidade dele, mas ele não pode esperar que você atenda 100% do desejo sexual dele”. A tarefa da terapia sexual aqui é claramente defender o direito sexual masculino. A terapia sexual é divulgada em revistas e livros para mulheres, bem como em tratamento individual. A terapeuta sexual mais conhecida na Austrália é Bettina Arndt.

A ‘diferença de desejo’ e mulheres idosas

Esse disciplinamento cruel das mulheres a serviço do direito sexual masculino fica claro no trabalho de Arndt, Os diários sexuais (Arndt, 2009). Arndt não é uma terapeuta sexual qualificada, mas isso não a impediu de exercer sua profissão de maneira proeminente na mídia australiana. Seu livro surgiu de sua preocupação de que muitas mulheres ficavam entediadas com o sexo em relacionamentos de longo prazo e rejeitavam as demandas de seus parceiros. Ela recrutou 98 casais na Austrália com mais de 60 anos para escrever diários nos quais descreviam se e quando o sexo acontecia e como eles, os homens e mulheres, se sentiam sobre isso. Ela embarcou em seu projeto porque estava preocupada que homens idosos sofriam com suas parceiras femininas limitando o que ela chama de “suprimento de sexo”, ou seja, não dando aos homens acesso às suas vaginas. Ela explica suas motivações da seguinte forma:

O que mais escuto é a respeito de negociar o suprimento de sexo. Como os casais lidam com a pressão do homem que deseja e espera enquanto tudo o que ela quer é a felicidade do sono ininterrupto? É um drama noturno que acontece em quartos de todos os lugares, a fonte de grande tensão e infelicidade

(Arndt, 2009: 2).

No entendimento dela, as mulheres são a oferta e podem abrir ou fechar o acesso em detrimento daqueles que razoavelmente esperam receber a oferta, os homens. Ela estava alarmada com a resistência das mulheres. No caso de um “casal em que o marido quer sexo duas vezes por dia”, ela explica que “eles estão fazendo algumas vezes por semana” e a mulher diz: “ainda prefiro ler um livro” (Ibid: 3). O direito das mulheres à autodeterminação não foi reconhecido pelo parceiro ou por Arndt.

Arndt descobriu que para as esposas, fornecer “suprimento” aos seus maridos quando não desejavam fazê-lo era uma experiência extremamente angustiante. Uma mulher escreveu:

Acho que ter relações sexuais quando você realmente não quer é a coisa mais horrível. Antes eu ainda respondia e até tinha orgasmos mesmo sem querer, mas agora não tenho mais nenhuma resposta, então é horrível. Por dentro, estou gritando para acabar rapidamente

(Ibid: 4).

Arndt aconselha as mulheres que elas devem “simplesmente fazer” quer queiram ou não. Outra mulher forneceu uma descrição gráfica de sua repulsa a esse conselho:

Odeio essa ideia! Por que diabos as mulheres deveriam simplesmente fazer isso quando não têm desejo? São elas que têm que lidar com o frio escorrendo entre as pernas, as infecções urinárias, as infecções fúngicas, a dor causada pela mucosa seca, o tédio de todo o processo… simplesmente fazer isso é um tipo de uma provação quando você tem mais de 40 anos e as secreções secaram.

Ela acrescentou: “Não há nada de errado comigo, então por que devo ser tratada como se eu fosse a anormal?… Por que os homens não podem ser tratados por sua libido mais alta?” (Ibid: 291).

Arndt expressa grande simpatia pelos homens cujas parceiras não desejam ser usadas para o sexo. Ela explica que: “Com meus diários sexuais, foram as histórias dos homens que realmente me chocaram” (Ibid: 5). Os homens realmente sofriam, ela disse, e “Eles ficam atordoados ao descobrir que suas necessidades são completamente ignoradas. Muitas vezes isso sai em um grito de raiva e decepção” (Ibid: 6). Eles esperam acesso contínuo e não acham que as mulheres devem ser capazes de mudar de ideia à medida que envelhecem. Como um homem coloca, “O que faz as mulheres pensarem que, na metade do jogo, podem mudar as regras para atender às suas próprias necessidades e esperar que o macho aceite?” (Ibid: 6). Arndt comenta: “É apenas quando você ouve os homens falando honestamente sobre o que é estar no lado receptor que você percebe o impacto do desprezo com o qual estamos tratando eles” (Ibid: 8). Se Arndt tivesse alguma simpatia pelas mulheres, ela poderia ver que o desprezo não vinha das esposas, mas sim dos maridos que estavam determinados a usar os corpos de suas esposas como ajudas de masturbação.

A razão para se chegar a essa situação lamentável, quando algumas mulheres achavam razoável poder recusar o acesso sexual dos homens aos seus corpos, segundo ela, foi o feminismo. Arndt afirma que:

O direito das mulheres de dizer ‘não’ foi consagrado em nossa história cultural há quase cinquenta anos. Mas simplesmente não funcionou para a vida sexual de um casal depender da frágil e fraca libido feminina. O direito de dizer ‘não’ precisa dar lugar a dizer ‘sim’ com mais frequência – desde que tanto homens quanto mulheres acabem desfrutando da experiência. A noção de que pode estar no melhor interesse das mulheres parar de racionar o sexo certamente vai causar controvérsia, mas este é um problema que merece atenção séria

(Ibid: 12).

Era simplesmente absurdo, segundo ela, que os parceiros fizessem outras coisas um pelo outro, como cozinhar pratos favoritos ou assistir a programas de TV que não gostavam, quando as mulheres não permitiam o acesso sexual de seus maridos: “Por que, então, somos tão mesquinhos quando se trata de ‘fazer amor’, que deveria ser a expressão máxima desse cuidado mútuo?” (Ibid: 14). Recusar o sexo era algo egoísta, ela considerava. Arndt lamenta o fato de que tantas das mulheres de seus diários não estavam dispostas a fazer o trabalho sexual de seduzir seus maridos com performances usando lingerie sexy, mesmo enquanto cozinhavam, e a razão, novamente, é que o feminismo as desencorajou: “De alguma forma, a sedução veio a ser vista como um ato anti-feminista, uma traição da igualdade bem diferente de outros gestos de cuidado” (Ibid: 17). A sedução se assemelha às técnicas de prostituição, projetadas para excitar os homens por meio das mulheres interpretando papéis.

O livro de Arndt é uma visão muito útil do que acontece nos casamentos de casais mais velhos. A questão que ela ilustra tão bem a partir das palavras das mulheres em seus diários é a maneira como as esposas se sentem quando os homens exercem sua iniciativa sexual indesejada, comportamento que poderia ser chamado de assédio sexual no relacionamento. O assédio sexual é um termo geralmente limitado ao comportamento dos homens em relação às mulheres em lugares públicos, como o local de trabalho ou a rua, e não se aplica ao que os parceiros masculinos fazem com as mulheres em suas casas. No entanto, a experiência para as mulheres que são assediadas, embora compreenda diferentes elementos relacionados ao fato de o perpetrador ser um parceiro, parece ser semelhante a outras formas da prática em seu desconforto e na angústia que causa. Em um caso, a esposa descreve sua angústia: “Esta manhã eu estava no chuveiro quando ele saiu para o trabalho; ele veio me beijar, o que foi adorável. Mas ele teve que me esfregar na vagina, o que me deixa louca!” O assédio sexual era frequente na cama e seu marido estava jubilante com isso, dizendo: “Às vezes, à noite, nos últimos anos, até comecei a deslizar minha mão em sua calcinha enquanto ela está dormindo e apenas toco seus pelos pubianos” (Ibid: 33). Outra mulher também descreve como perturbador o assédio sexual de seu marido: “Quando ele começa a mexer nas minhas partes íntimas, sinto vontade de chicoteá-lo com uma raquete de mosquitos!” (Ibid: 169).

O papel de Arndt em impor o direito ao sexo masculino em nome dos homens mais velhos foi recompensado pelo governo. Em janeiro de 2020, ela recebeu uma homenagem do Dia da Austrália, ostensivamente por “serviços à ‘equidade de gênero’ por meio da defesa dos homens” (Zhou, 2020).

A medicalização da “disfunção sexual”

A falta de interesse das mulheres em serem penetradas por um parceiro do sexo masculino e sua incapacidade de sentir prazer na atividade foram medicalizadas com a entrada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) do que era chamado de ‘disfunções sexuais’ (Mitchell et al., 2016). Os problemas descritos pelas mulheres neste capítulo são chamados de ‘transtornos’. Um deles é o ‘Transtorno Orgásmico Feminino’, o que significa que a mulher está doente porque não tem orgasmo durante o sexo com penetração vaginal, e outro é o ‘Transtorno de Interesse/Excitação Sexual Feminino’, que transforma a preferência de uma mulher por assistir televisão em um problema médico (Couples and Sexual Health Laboratory, 2016). A medicalização da falta de resposta ‘correta’ das mulheres às iniciativas sexuais dos homens fazia parte de uma medicalização geral da ‘disfunção sexual’ nos anos 90, que visava obter lucros para médicos e empresas farmacêuticas.

Inicialmente, o mercado-alvo consistia em homens que não tinham o tipo de ereção que lhes permitia se sentir adequadamente masculinos; mas a solução oferecida, o medicamento Viagra, criou ainda mais problemas para as mulheres. Leonore Tiefer, a sexóloga feminista dos EUA, explica que,

em 1998, em mais uma grande reviravolta, uma nova era da farmacologia sexual foi inaugurada com a aprovação governamental do Viagra, um medicamento para tratar a impotência que rapidamente alcançou níveis incríveis de reconhecimento global.

Tiefer diz que o desenvolvimento do Viagra foi resultado do falocentrismo, a noção de que ereções rígidas que permitissem a penetração de parceiras femininas simbolizavam a masculinidade (Tiefer, 2006a). O Viagra para homens foi lucrativo e exacerbou a ‘diferença de desejo’, à medida que os homens buscavam agir com sua nova potência nos corpos de suas parceiras femininas. As mulheres não desejantes foram transformadas em ‘pacientes’ que precisavam de tratamento (Tiefer, 2001). A solução foi seguir a criação do Viagra para homens com uma tentativa de criar um ‘Viagra’ feminino (Tiefer e Hartley, 2003).

Tiefer iniciou uma campanha composta por cientistas sociais feministas para combater a medicalização da sexualidade feminina em 2000 (Tiefer, 2006b). A campanha, intitulada A Nova Visão, era contra “A rápida incursão da influência da indústria farmacêutica na pesquisa sobre sexo e na educação profissional.” Seu objetivo, ela diz, era

expor as decepções e consequências do envolvimento da indústria na pesquisa sobre sexo, na educação sexual profissional e nos tratamentos sexuais, e gerar alternativas conceituais e práticas ao modelo médico prevalente da sexualidade

(Ibid).

A campanha continuou, com conferências e tentativas de proibir o uso de drogas que foram usadas para curar a ‘disfunção sexual’ das mulheres, geralmente formas de testosterona, proibidas para este uso até 2017, quando o site da campanha foi arquivado. As acadêmicas envolvidas na campanha A Nova Visão argumentaram firmemente que as supostas ‘disfunções sexuais’ das mulheres eram social e politicamente construídas. Elas disseram que o diagnóstico do DSM não reconhecia

aspectos relacionais da sexualidade feminina, que muitas vezes estão na raiz das satisfações e problemas sexuais, por exemplo, desejos por intimidade, desejos de agradar um parceiro ou, em alguns casos, desejos de evitar ofender, perder ou irritar um parceiro

(Working Group on a New View of Women’s Sexual Problems, 2017).

A campanha, no entanto, não deixa claro que o termo ‘relacional’ se refere a problemas que surgem das relações de poder. Ao se concentrar em como os problemas sexuais das mulheres podem ser resolvidos sem recorrer a drogas, eles prestam um grande serviço às mulheres, mas não questionam a suposição de que a falta de interesse das mulheres em satisfazer o direito sexual masculino constitui um problema. Eles não vão tão longe a ponto de sugerir que as demandas dos homens, em vez da resistência das mulheres, requerem tratamento.

Acadêmicas feministas questionaram a forma como a falta de orgasmo das mulheres durante a penetração é tratada na terapia sexual. Hannah Frith, por exemplo, argumenta que os orgasmos femininos não são “naturais”. Ela escreve sobre a construção social do orgasmo, isto é, a maneira como a realização do orgasmo, e especificamente o orgasmo vaginal, foi elevada a uma posição de importância primordial na literatura sobre a sexualidade feminina e na terapia sexual. Isso, segundo ela, simplesmente reproduz o modelo masculino de sexo e confirma que o sexo é e deve ser a penetração vaginal. Ela explica que as mulheres frequentemente têm que “trabalhar” para atingir o orgasmo, realizando os exercícios recomendados pelos terapeutas sexuais e se esforçando muito.

Efeitos do uso do Viagra masculino nas mulheres

A medicalização da sexualidade masculina através do desenvolvimento do Viagra criou um problema para as mulheres (Potts, Gavey, Grave e Vares, 2003). Este medicamento foi visto como totalmente positivo para os homens, pois curou a impotência e permitiu que homens, mesmo os mais velhos, se envolvessem em relações sexuais de penetração vaginal. A pesquisa sobre o Viagra e seus efeitos preocupou-se apenas com as vantagens que oferecia aos homens, como a oportunidade de se sentir mais “masculino” e dominante, e ignorou quaisquer efeitos negativos que possa ter em suas parceiras femininas. A pouca pesquisa feita por estudiosas feministas sobre as implicações do desejo renovado dos homens por acesso sexual às vaginas de suas esposas sugere que o medicamento constituiu, em muitos casos, um sério retrocesso. A pesquisa utilizando entrevistas com 27 mulheres cujos parceiros masculinos usavam Viagra revelou as muitas desvantagens que elas sofreram (Ibid). Para algumas mulheres mais velhas, o fato de seus maridos não poderem mais se envolver em relações sexuais de penetração vaginal foi um alívio, o que significava que elas não seriam mais importunadas e poderiam se dedicar a hobbies mais prazerosos. Para muitas, também, estar na pós-menopausa significava que as relações sexuais de penetração vaginal eram dolorosas ou desconfortáveis e elas não reagiam favoravelmente às demandas renovadas de seus maridos por acesso sexual.

As mulheres entrevistadas para este estudo falaram de seus maridos as incomodando para terem relações sexuais de penetração vaginal quando já estavam acostumadas a não ter que fazê-lo e preferiam, se ainda estivessem sendo sexuais com seus parceiros, relações sexuais não-vaginais que foram projetadas para lhes dar satisfação em vez de uma prática dedicada ao orgasmo masculino. As mulheres falaram do sofrimento que seus parceiros causaram a elas exigindo a penetração, porque eles tinham pago muito pelo medicamento e precisavam aproveitar a ereção antes que os efeitos desaparecessem. As mulheres mais velhas que estavam muito felizes por não terem mais que ser penetradas, falaram da dor que a retomada dessa prática lhes causou. Uma mulher de 60 anos disse: “Às vezes pode durar muito tempo e eu estou pensando “oh, está demorando demais, e está ficando… dolorido” (Ibid: 704).

As autoras comentam que existem estudos que sugerem uma conexão entre o uso de Viagra pelos homens e a ocorrência de infecções urinárias em suas esposas, o que é chamado de “cistite da lua de mel”. Uma mulher de 65 anos disse:

[E]le teria relações sexuais naquela noite e novamente na manhã seguinte e … ele pode ter mais relações sexuais do que eu, porque fico dolorida… Eu só tive candidíase uma vez e outra vez tive uma infecção urinária… Eu estava urinando sangue, então presumo que ter relações sexuais tenha algo a ver com isso

(Ibid: 704).

As pesquisadoras explicam que “as mulheres pós-menopáusicas podem experimentar mais secura vaginal, o que exacerba o início desse tipo de cistite” e que existem outros problemas de saúde causados ​​pelo sexo prolongado, como “dor pélvica inferior e irritação e rasgamento da parede vaginal” (Ibid: 704).

Algumas das entrevistadas disseram que usavam lubrificantes, conforme aconselhadas, para aliviar o desconforto, mas isso não resolveu o problema. Uma entrevistada de 51 anos disse que a relação sexual era dolorosa por causa de uma doença, e que estava tentando cumprir o conselho dado na literatura médica que estava lendo, que dizia que as mulheres mais velhas deveriam permitir o acesso sexual para que seus maridos não “percam ‘a prática'” (Ibid: 704). As mulheres falaram que não queriam fazer sexo ou estavam cansadas, mas tinham que “acompanhar” para não ferir os sentimentos dos homens. Uma mulher de 65 anos descreveu como seu marido não falava com ela por 24 horas se ela não quisesse ser usada sexualmente, pois isso o fazia “desperdiçar” um medicamento caro.

Sexo anal

O desenvolvimento da indústria da pornografia mudou a natureza do sexo a que os homens sentem ter direito nos relacionamentos, de modo que as práticas que manifestamente nada têm a ver com o prazer das mulheres, e são dolorosas e prejudiciais à saúde, podem ser letais e outrora teriam sido incomuns na prática heterossexual, foram normalizadas. Essas práticas incluem sexo anal, estrangulamento (chamado por seus normalizadores de ‘brincadeira’) e outras formas de práticas sadomasoquistas, eufemisticamente chamadas de ‘sexo violento’. O sexo anal, que antes era raro nas relações heterossexuais na Anglosfera, tornou-se agora uma parte aceitável do uso masculino do corpo feminino, de acordo com a literatura sexológica e de aconselhamento sexual. Foi normalizado por ter a dor que causa descrita como uma disfunção sexual com um nome especial próprio, anodispareunia, o que implica que a pessoa que sente a dor é o problema e não a prática em si (Hollows, 2007).

A literatura sugere que a prática foi disseminada a partir da pornografia (Stulhofer e Adjukovic, 2011) e é comum na subcultura BDSM entre homens gays. Existe uma considerável literatura médica sobre a dor que o sexo anal causa em homens gays, mas para alguns homens gays há uma compensação, porque a prática oferece satisfações particularmente sadomasoquistas (Grabski e Kasparek, 2020). Os ‘ativos’ podem se ver como dominantes e em um papel masculino, enquanto os ‘passivos’, apesar da dor que possam sentir, podem experimentar os prazeres masoquistas de se sentir ‘como uma mulher’, ou seja, subordinados (Jeffreys, 1990). Nenhuma dessas satisfações está disponível para as mulheres, que geralmente falam apenas sobre a dor e o desconforto do sexo anal e o trabalho que têm que realizar para permitir que os homens as usem dessa maneira.

Um artigo de revista sexológica sobre ‘anodispareunia’ deixa claro que o sexo anal é doloroso e desagradável para as mulheres (Stulhofer e Adjukovic, 2011). Os autores definem ‘anodispareunia’ como “dor debilitante persistente durante a relação sexual anal” (Ibid: 349). Eles observam que “o sexo anal está se tornando cada vez mais comum entre mulheres e homens heterossexuais”, mas descobriram que para a maioria das mulheres o sexo anal era doloroso e elas não queriam fazê-lo. O aumento da prática foi marcante. Eles observam que uma pesquisa realizada nos EUA em 2002-3 constatou que 35% das mulheres tinham experiência de sexo anal, enquanto na década anterior a figura era apenas de 23%.

Eles também realizaram uma pesquisa com 2.002 mulheres jovens na Croácia sobre a experiência delas com sexo anal em 2010, na qual descobriu-se que 62,3% delas haviam sido penetradas analmente. Mostrou-se que, embora quase metade, 48,8%, tenha sido forçada a encerrar sua primeira experiência de “intercurso anorretal” devido à dor ou desconforto, a maioria das mulheres, 62,3%, continuou a se submeter às exigências dos homens. Os pesquisadores consideraram que a representação comum do sexo anal na pornografia online explicava o aumento da prática. Eles descobriram que, das 788 mulheres que afirmaram ter continuado a praticar sexo anal, apenas 61, ou 7,7%, relataram que nunca sentiram dor ou desconforto durante o intercurso anal receptivo, e entre as mulheres com dois ou mais episódios de intercurso anorretal no ano anterior, apenas 18 ou 3,6%, estavam livres de qualquer dor ou desconforto (Ibid: 352).

Embora o sexo anal tenha consideráveis desvantagens para as mulheres, ele se tornou tão normalizado nas últimas décadas que passou a ser visto como uma prática sexual cotidiana. Conselhos sobre como fazê-lo são onipresentes em uma variedade de fontes de mídia, especialmente em sites de saúde. Alguns desses recursos detalham os danos. O Medical News, por exemplo, explica que a penetração anal é um problema para a pessoa penetrada, seja ela masculina ou feminina, porque “o ânus não possui as células que criam o lubrificante natural que a vagina possui. Também não tem a saliva da boca” e diz que “a mucosa retal também é mais fina do que a da vagina” (Nall, 2019). Ele lista os riscos que envolvem a saúde, como infecção bacteriana por lacerações na mucosa retal, incontinência, risco de ISTs e, potencialmente, o dano muito grave de fístula.

Algumas fontes de mídia, no entanto, minimizam firmemente seus danos. Um exemplo é a cobertura do sexo anal na Teen Vogue, uma revista para adolescentes do sexo feminino. Um artigo publicado pela primeira vez em 2017 chamava-se ‘Um guia para o sexo anal’ (Engle, 2017/2019). Isso provocou considerável controvérsia na mídia, com os pais dizendo que ele não era adequado para crianças. A justificativa para o artigo foi que as meninas estariam fazendo sexo anal de qualquer maneira, então precisavam saber como fazê-lo. O artigo começa dizendo:

O sexo anal, embora muitas vezes estigmatizado, é uma maneira perfeitamente natural de se engajar na atividade sexual… Então, se você está um pouco preocupado em experimentar ou está tendo problemas para entender o apelo, saiba que não é estranho ou nojento

(Ibid).

O artigo não mostra nenhuma consciência de que a atividade heterossexual ocorre dentro de uma estrutura de poder que torna difícil para as mulheres, ainda mais para as meninas, impedir os homens de fazer o que querem, por medo de violência, de perder o namorado ou simplesmente de não agradá-lo como deveriam. A Teen Vogue promove a prática dizendo: “O ânus está cheio de terminações nervosas que, para algumas pessoas, dão sensações incríveis quando estimuladas”. Ela reconhece que o sexo anal provavelmente será difícil e desconfortável, se não doloroso, para a adolescente, então uma série de instruções é dada sobre como o músculo anal ficará rígido e objetos de vários tamanhos devem ser inseridos para soltá-lo, e então a penetração deve ocorrer muito lentamente com o auxílio de lubrificação. Por meio desse tipo de trabalho, espera-se que as meninas transformem seus ânus em tubos de masturbação para seus usuários masculinos.

As adolescentes em cujos corpos essas práticas serão provavelmente executadas quando os rapazes experimentarem seu repertório sexual estão em uma posição muito pior para exercer um “não” do que as mulheres mais velhas cujas dificuldades com o consentimento foram delineadas anteriormente neste capítulo. Há evidências de que as adolescentes são particularmente vulneráveis à violência sexual de parceiros masculinos. Uma pesquisa de 2015 com meninas de 13 a 17 anos em cinco países europeus descobriu que mais de quatro em cada dez foram coagidas a atos sexuais. Nas entrevistas, muitas crianças disseram que a pressão para fazer sexo era tão persistente que se tornou ‘normal’. Katie, uma jovem de 15 anos que participou da pesquisa na Inglaterra, disse aos pesquisadores: “Tive relacionamentos em que não podia sair com meus amigos porque eles ficavam com raiva de mim. Eu fui estuprada e outras coisas assim” (Topping, 2015).

Um artigo do British Medical Journal de 2014 descreve as experiências de sexo anal de adolescentes no Reino Unido com idades entre 16 e 18 anos (Marston e Lewis, 2014). As motivações e consequências para meninos e meninas eram extremamente diferentes. Foi descrito como sendo prazeroso para os meninos e um indicador de realização sexual, enquanto para as mulheres era uma fonte de dor ou reputação prejudicada. Um rígido duplo padrão estava em operação. Onde antes os homens competiam entre si para penetrar uma garota vaginalmente e assim obter uma vitória sobre ela da qual pudessem se gabar, o sexo vaginal agora era muito comum e não era mais um desafio. Os jovens passaram para o sexo anal. Os meninos do estudo descreveram o sexo anal como “algo que fazemos para uma competição” e “cada buraco é um gol”. Em contraste, tanto homens quanto mulheres disseram que as mulheres arriscavam sua reputação pelo mesmo ato (Ibid: 3). Os meninos descreveram como forçaram uma menina relutante a passar por uma penetração que ela desconfiava que seria dolorosa:

Shane nos disse que se uma mulher dissesse ‘não’ quando ele começasse a ‘colocar o dedo’, ele poderia continuar tentando: ‘Eu posso ser muito persuasivo […]. Como às vezes você continua, apenas continua até que elas se cansem e deixem você fazer de qualquer maneira’. Um ‘não’ verbal da mulher não impediu necessariamente as tentativas de penetração anal

(Ibid: 3).

O fato de a penetração em uma mulher poder causar danos consideráveis ao seu esfíncter anal não é necessariamente um impedimento, pois existe um grande nicho de pornografia dedicado especificamente a mostrar os danos (Shrayber, 2014).

Neste capítulo, eu examinei o sexo ‘consensual’ que ocorre em relacionamentos heterossexuais. Eu descrevi as muitas forças que permitem aos homens exercer seu direito sexual, mesmo quando as mulheres não querem participar, a dor, humilhação e simples irritação que muitas sentem quando não têm uma maneira realista de dizer não, e as repercussões abusivas que podem experimentar caso se recusem.

JEFFREYS, Sheila. Everyday sex: coercion and consent. In: JEFFREYS, Sheila. Penile Imperialism: The Male Sex Right and Women’s Subordination. North Geelong: Spinifex Press, 2022. p. 62-97. E-book.

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Traduções

Por que John Stoltenberg Chama Andrea Dworkin de “trans aliada”?

Tradução livre do original em inglês no blog Radical Pro Feminist.

Andrea Dworkin e John Stoltenberg. Crédito da foto: ProFeministMen

Parte I: Introdução

Em reconhecimento ao décimo quinto aniversário da morte da grande Andrea Dworkin, seu parceiro John Stoltenberg, escreveu recentemente um artigo publicado da edição online do Boston Review. Você pode lê-lo aqui.

Aprecio e entendo completamente de onde o raciocínio de John vem; compartilho suas preocupações a respeito de qualquer ideologia ou ação que vise gerar preconceito, discriminação intrapessoal ou sistêmica, ou que replique qualquer encarnação de supremacia social. Como John, acredito que Andrea teria se oposto apaixonadamente a isso. Diferente de John, Andrea teria feito isso em qualquer lugar em que encontrasse esse tipo de coisa.

Acho tanto o título quanto o conteúdo desse novo artigo de Stoltenberg problemáticos em alguns aspectos. Stoltenberg aplica a Andrea um rótulo com a intenção de silenciar alguns sentimentos. Sua empatia pelos oprimidos é notória. Mas não existem declarações públicas dela que especificamente apóiem a pauta trans. Ela não era “anti-homem” e não acredito que ela seria “anti-trans”, muito menos deveria ser rotulada como tal. Mas não se pode atribuir afeição à ausência. Não se deve pegar termos de uma batalha que não era a dela e colá-los em alguém tão calejada quanto ela. Sei que John entende que rotular alguém incorretamente não é legal [1]. Chamo a atenção de John para que ele aponte com cuidado a posição dela e não se aproprie de algo que ela escreveu em um momento que seu trabalho teórico tinha problemas, reconhecidos por ela mesma. (Mais sobre isso adiante.)

Além disso, não vejo seu artigo apontando onde Andrea era ou não trans aliada. O artigo é sobre ideias e valores: dele, dela, e sua interpretação de termos que algumas feministas radicais às vezes usam. O artigo de John borra distinções, especialmente as de Andrea. Ainda mais grave, esse artigo ofusca os termos em que o trabalho público de Andrea exige para mobilizar ações em direção à mudança feminista revolucionária. Desses dois modos, sinto que ele exagera um bocado, desrespeitando-a no processo. Stoltenberg disse que foi ingênuo ao aprovar o título sugerido para seu artigo de 2014, “Andrea Dworkin Was Not Transphobic” [2]. Por quanto tempo a ingenuidade deve ser armazenada nesse seu arsenal defensivo? Somente uma grande quantidade de privilégio permite que esse prazo nunca expire. E tem mais: Andrea pediu postumamente para ser colocada em meio a uma batalha política polêmica que não escolheu?

Leitores, isso piora.

Parte II: Mulheres reais

John identifica usos de frases “mulheres de verdade” como uma afronta moral ao que Andrea trabalha e dava valor. Ao mesmo tempo, ele se recusa a evidenciar uma preocupação, um pesadelo muito evidente para ela na vida dentro do patriarcado que, eu acredito, a maior parte do feminismo radical coloca centralmente em sua teoria e ativismo: a mulheridade não é escolhida, é imposta. Ela tem um corpo; e o corpo é de uma fêmea. Andrea descreveu graficamente a violência contra ela, contra seu corpo, seu corpo de fêmea. Perceber essa conexão (e como uma pessoa não perceberia?) não torna a Dworkin, ou qualquer outra pessoa suportando e testemunhando as mesmas atrocidades, um essencialista de sexo. Como eu irei ilustrar, é o tema mais central, abordado em dúzias de discursos e artigos, e em todos os livros dela. Eu a vi falar muitas vezes, eu li os livros dela. Isso foi o que eu ouvi:

É contra o corpo feminino que a supremacia masculina de modo flagrante e sistematicamente se expressa na ordem de manter a dominância masculina de maneira natural, criada por deus, eterna, e inevitável. É contra o corpo feminino que a força patriarcal é lançada: brutalmente, sadicamente, quebrando ossos e matando. Através de todo o trabalho dela, Andrea abordou isso explicitamente: a violência contra os seios das mulheres, seus úteros, suas vaginas. O que eu ouço mais profundamente, mais ferozmente, na oposição raivosa das feministas radicais contra os elementos do essencialismo das políticas trans, em parte, é isso: Vocês estão fazendo esse entendimento parecer louco e imoral. E de forma amplamente literal. John não está ajudando. O patriarcado faz o tratamento dos homens para com as mulheres — para Andrea, para as feministas radicais, os teimosos seres humanos com a forma de fêmea — intimamente opressivo. As palavras dela expressam esse ponto muito melhor que as minhas.

Os atos de violência retratados na pornografia são atos reais cometido contra mulheres reais e meninas reais. (Letters from a War Zone, p. 11)

A realidade material das mulheres é determinada por sua característica sexual, a capacidade reprodutiva. O homem pega um corpo que não é dele, o reivindica, planta a dita semente, e colhe os seus frutos — ele coloniza o corpo feminino, rouba seus recursos naturais, o controla, usa, esgota aos seus desejos, nega a sua liberdade e sua auto-determinação para que ele continue a lucrar com esse corpo…(War zone, p. 118)

… Eu também aprendi muito sobre o poder masculino com [mulheres], quando eu me importei o bastante com as mulheres a ponto de entender que o poder masculino era um tema ao qual minha própria vida havia me levado. Eu conheço o poder masculino de dentro para fora, com o conhecimento que ganhei através desse corpo feminino. (War Zone, p 64)

Agora, essa repulsa é literal e linear: direcionada especialmente contra as genitais dela, e também os seios, e também a boca dela recentemente percebida como um órgão sexual. É um ódio esmagador (goose-stepping é uma expressão difícil de traduzir, alguma sugestão?) contra bucetas. A mulher não possui dimensão humana, nem significado humano. (Intercourse, p.9)

O que é incrível e inaceitável para mim é que apontar isso em voz alta é controverso, a não ser para o homem — então ainda é inaceitável enquanto é esperado e normal. John, muitas feministas radicais, e qualquer um que é familiarizado com ela sabe disso: Andrea valorizava a nomeação das condições da maneira que ela as enxergava, de maneira clara. Palavras educadas ou pisar em ovos eram repugnantes para ela. Ela odiava que palavras fossem colocadas em sua boca ou tiradas de contexto. Ainda assim, a representação dela feita por John retira o fato mais incisivo sobre isso: Materialmente, o diagrama de Venn consiste em um círculo.

Eu descobri de maneira perturbadora, através da última década e meia, que um pré-requisito para operar aceitavelmente em espaços queer liberais dominados por brancos, acadêmicos e variados, é especificamente o silenciamento de Andrea Dworkin, e de feministas radicais e lésbicas em geral. Esses são os locais onde eu cada vez mais evitei por causa do meu desdém pela ideologia que prevalece e as práticas anti-feministas.

Você não pode ler Dworkin racionalmente e terminar negando que a visão de mundo e a experiência dela funde-se com a experiência de milhões de mulheres, isso é compreendido: masculino significa homem, homens são macho; feminino significa mulher, mulheres são fêmeas. Ela não fugiu timidamente de dizer isso em círculos acadêmicos ou sociais. Ela não satisfez teoristas ocidentais que valorizam a diversidade sexual mais que a libertação das mulheres, que pensam que multiplicando os gêneros nós iremos chegar a uma nova forma de liberdade. Não há tal cobrança pela metamorfose metastática. Quando ela estava viva, Andrea nunca articulou uma hierarquia na qual mulheres oprimiam mulheres trans. Mulheres fêmeas eram, para ela, uma classe de (leia-se: reais) mulheres: “mulher”, não modificada por nenhum prefixo.

Recitar descaradamente essas quatro passagens acima não será tolerado em muitos espaços influenciados pelos essenciais especuladores liberais das teorias de sexo e gênero. Enquanto os Estudos das Mulheres foi modificado para Estudos de Gênero, as perspectivas feministas radicais foram marcadas como uma violação à política anti-discriminatória, sendo base para demissão. Aquelas feministas radicais corajosas que insistiram em nomear a realidade que elas e Andrea experimentaram, estão perdendo suas reputações, suas carreiras, e suas seguranças. De maneira alarmante, estão sofrendo doxxing, impedidas de falar, ameaças e aterrorizadas. Sobre isso, até agora, John permanece em silêncio.

Parte III: Transsexuais

Nesse artigo de Stoltenberg, em outros que ele publicou após a morte de Andrea, ele ressuscita o capítulo nove da seção quatro de seu primeiro livro feminista, o Woman Hating (1974). Do capítulo “Androgyny: Androgyny, Fucking, and Community”, a passagem que vem antes da citada no artigo de John.

Transsexualidade pode ser definida como uma formação particular da nossa multissexualidade geral que foi incapaz de se desenvolver naturalmente por conta de condições sociais adversas. (P. 186)

Seguindo sua discussão sobre transsexualidade, Dworkin prossegue discutindo travestismo no contexto de uma sociedade eroticamente repressiva:

O travestismo é fazer uso de figurinos que violam os imperativos de gênero. O travestismo geralmente é um ato sexualmente carregado: a violação pública e visível do papel sexual é erótica, excitante, perigosa. É um tipo de desobediência civil erótica, e este é precisamente o seu valor. O uso desses figurinos é parte da estratégia e do processo de destruição dos papéis sexuais. Vemos, por exemplo, que quando as mulheres rejeitam o papel feminino, elas adotam roupas “masculinas”. Com a dissolução dos papéis sexuais, o conteúdo erótico particular ao travestismo igualmente se dissolve. (P. 187)

Nesse capítulo, ela escreve de forma acrítica sobre contatos interpessoais estigmatizados ou abusivos que existem em uma sociedade eroticamente repressiva. O trecho a seguir é da introdução desta seção:

Homossexualidade, transsexualidade, incesto e bestialidade são tidas como “perversões” dessa “natureza humana” que presumimos saber tanto a respeito. Elas persistem independente das imensas forças dirigidas contra elas — leis discriminatórias e práticas sociais, ostracismo, perseguição ativa pelo estado ou por outros órgãos da cultura — como embaraços inexplicáveis, como exemplos odiosos de “imoralidade” e/ou “desajustamento”. (P. 174)

Na conclusão, ela acrescenta: “Devemos nos recusar a nos submeter aos medos inculcados pelos tabus sexuais” (P. 192). Em 1989, em uma entrevista, Dworkin aponta que nesse momento teorizava a partir de conhecimento pouco e não integrado; teoria essa que ela abandonou e criticou posteriormente [5].

Uma vez que conseguiu embasar e integrar a teoria, de Pornography: Men Possessing Women (1981) até Heartbreak (2002), ela jamais cita novamente questões centrais ou periféricas nos termos que John mais utiliza: não existe qualquer chamado à multiplicidade de gêneros; a importância da multissexualidade desaparece; o foco em papéis sexuais fictícios e estáticos se tornou cada vez mais fraco; os libertadores dos tabus sexuais se revelaram predadores; ela nega que a androginia seja a salvação. Ela se despede disso tudo sem remorsos.

A transsexualidade também desaparece da obra de Dworkin, com exceção de duas menções na portaria antipornografia escrita em parceria com MacKinnon: “O uso de homens, crianças e transsexuais no lugar de mulheres…” e, “qualquer homem, criança ou transsexual que alegar ter sofrido danos causados pela pornografia nos mesmos termos em que as mulheres sofrem…[5]” Sobre isso, John diz: “Quero apenas pontuar que Andrea entendia de forma profunda que uma pessoa poderia ser subjugada como uma mulher sem ter sido registrada como fêmea ao nascer…”

“Subjugada como uma mulher”. Não enquanto mulher. A portaria trouxe à consciência o fato de que a pornografia pode tratar todo mundo mal, da mesma forma que, mais frequente e mais centralmente, a pornografia faz com as mulheres. Uma menina, uma mulher: do nascimento à morte. Era claro para Andrea e Catherine, nesse mecanismo legal radical para acabar com a discriminação baseada no sexo, que elas não igualavam a condição de ser transsexual com ser mulher ou homem. Para os propósitos de sua portaria, refletindo a vida como elas a conheciam, “mulher” eram, como elas, uma classe política e sexual oprimida.

Parte IV: Responsabilização

Eu chamo o John à parar de inferir que o radicalismo dela é resumido na seção pré-feminista de Woman Hating e um capítulo colonialista em seu segundo livro, Our Blood(1976), na qual ela desembaraça a filosofia prevalente de gênero, e, de maneira alarmante, postula Columbus como um héroi radical. (p 97, 110). Eu acredito que o radicalismo dela, a missão dela, é encontrada em outros lugar. Da introdução de Woman Hating:

Esse livro é uma ação, uma ação política onde a revolução é o objetivo. Não há outro propósito. Não é uma sabedoria genial, ou merda acadêmica, ou ideias gravadas em granito ou destinadas à imortalidade. É uma parte de um processo e seu contexto é a mudança. (p. 17)

Se John está a referenciar o trabalho da Andrea, ele precisa parar de silenciar ela no que significava mais para ela. Ao não fazer isso é apropriar-se indevidamente em nome do pro feminismo radical. Nós sabemos que ele é familiarizado com a prática. Do artigo do John: “Após a morte da Andrea em 2005, eu fiquei cada vez mais preocupado que ela e a política radical que eu aprendi com ela estavam sendo apropriadas indevidamente por alguns…” Eu chamo o John para que ele resolutamente se responsabilize.

Após a sua morte, tem sido triste ver o grau de diferença em que se move a óbita da trajetória política do John. Eu já fiquei enraivecido em ver as maneiras em que ele apagou a trajetória da Andrea. Essa é a minha visão sobre os respectivos trabalhos. No diagrama de Venn, o círculo dele é aquele em várias cores; o dela é totalmente eclipsado.

O que segue em alguns trabalhos do John.[6] Eu acredito que é nisso que está a sua paixão — em discussões de gênero como essa:

Pense em uma roda de cores. E não pense em uma roda com as cores segmentadas por linhas como se fosse uma roda de carroça; pense em uma onde as cores se mesclam e borram entre elas como se fossem um arco-íris circular infinito que é o espectro visível:

Figura 1: Espectro cromático

Isso vale para qualquer indivíduo, o que pensamos sobre sexo e gênero é na verdade mais como um ponto qualquer numa roda de cores (ao contrário de um ponto qualquer em um contínuo linear com dois fins, no qual cada um representa dois pólos de um binário).

Leitores, isso não é coisa dela.

Parte V: Conclusão

Talvez Andrea não tenha estabelecido uma posição pública de um modo ou outro nessas batalhas por conta da época em que ela escrevia. Consciente da empatia e compaixão dela pelos oprimidos, simplesmente não há qualquer evidência dela sendo trans aliada da forma como tenho visto o termo ser usado [7]. Digo isso sem qualquer satisfação ou escárnio. Estou atestando um fato. Como ponto de comparação razoável: se, quarenta anos atrás, um heterossexual escrevesse afirmativamente sobre a comunidade lésbica, bi e gay e não tivesse se posicionado mais desde então sobre as dificuldades dessa comunidade de sobreviver numa sociedade ultrajantemente homofóbica, deveria ele ser considerado um aliado? Espero que todos concluamos que a resposta deva ser “não”. Aqui, John é o aliado; Andrea era a pesquisadora.

O que as pessoas — trans, queer ou quem quer que seja — podem fazer para honrar a memória de Andrea é ler todos os livros dela e lutar pelo fim da supremacia masculina racista em todas as suas manifestações, na teoria e na prática.

As visões de Andrea estão melhor exprimidas em seus próprios termos em seu próprio trabalho. Não que não possam ser discutido e debatidos. Não que não possamos imaginar que posições ela tomaria a respeito de um dado assunto. Não consigo contar quantas vezes me peguei me perguntando: O que Dworkin faria? Infelizmentes, desde sua morte, pessoas que se identificam das mais variadas formas possíveis, abraçando as mais várias ideologias, com diferentes pautas políticas, metaforicamente forçando o braço na tentativa de encaixá-la firmemente em um lado ou outro desse intenso debate trans. Ela deve ser defendida, mas não de formas indefensáveis. Andrea Dworkin lutou duramente o bastante no campo de batalha. Que ela descanse, com todas as honrarias, em poder e paz.


Notas

[1] John assume que “transsexual” e “transgênero” são termos sinônimos. Muitos de nós no Ocidente sabemos que isso é falso. Por exemplo, existem pessoas não brancas e indígenas que rejeitam a autoridade, as pautas e as apropriações racistas do pacote de políticas sexuais e de gênero do queer. Existem apoiadores do feminismo radical que são trans que não se identificam como transgêneros por razões políticas. O termo “trans” no título do artigo de John, na verdade, é comumente usado pela comunidade LGBTQIA como um termo guarda-chuva para incluir tanto pessoas que se identificam como transsexuais quanto aquelas que não. Às vezes, “trans” é sinônimo de “queer”. Se ele não sabia disso, deveria, antes de identificar Andrea como “trans aliada”. Ele, como homem gay, não está em posição de fazer essa afirmação. Sua falta de responsabilidade, se não de conhecimento, da existência de apoiadores trans do feminismo radical revela aliança com apenas algumas letras do acrônimo. Vide nota 7.

[2] Depois de escrever esse post, achei um artigo arquivado de John entitulado “Andrea Dworkin Was Not Transphobic” (2014). Eu lembrava de tê-lo lido quando me dei conta de que não o podia mais encontrar. Assim que encontrei, fiquei cativado pelos comentários. Eles casam tão bem com essa discussão que quero linká-los aqui, com destaque especial para os comentários de Morag e Lil Z.

[3] Os espaços onde atuei social e academicamente têm sido majoritariamente liderados ou dominados por teorizações anglófonas ou ocidentais. Quando nós que somos brancos falamos de feminismo ou políticas queer, geralmente significa um ponto de vista específico. Estou a par das comunidades, perspectivas e pautas antirracistas. Análises dos desafios complexos, não apenas no sentido da colonização ocidental e anglófona na cultura e no pensamento, estão além do escopo desse material sobre Andrea Dworkin e John Stoltenberg, e o uso dele dos escritos dela são a respeito de sexo e não sobre raça.

[4] Dworkin explica essa afirmação Without Apology: Andrea Dworkin’s Art and Politics (1998), de Cindy Jenefsky. Página 139, Nota 1 (fonte britânica). Cindy Jenefsky escreve:

Um minha entrevista com Dworkin em 1989, ela indica que não concorda mais com algumas sugestões propostas no fim do livro. “Acho que tem um monte de coisas realmente erradas no último capítulo de Woman Hating”, diz Dworkin. Quando perguntada especificamente sobre suas discussões sobre incesto, ela apontou diversos fatores que a influenciaram nessa parte da escrita. Primeiro, na época em que ela escreveu o livro, ela estava cuidando de uma criança que tinha sofrido abuso incestuoso, e ainda que ela tivesse falado com a polícia da Holanda sobre a prevalência do incesto lá, ela conta que havia uma lacuna entre sua análise intelectual e experiência prática da questão. Foi apenas com a escrita de Woman Hating e com as respostas que recebeu a ele que sua experiência subjetiva — não apenas sobre incesto, mas sobre violência doméstica e prnografia também — foi validada pela experiência de outras pessoas, e foi quando ela começou a entender o incesto como uma forma de abuso sexual. Ela também fez referência ao fato de ter sido influenciada por “anos de leitura de Freud e tentativas de fazer aquilo tudo fazer sentido de forma abstrata”, especialmente em razão da falta de informação disponível publicamente sobre a predominância do abuso sexual. Finalmente, Dworkin também destaca que ainda que feministas e pornógrafos estivessem se movendo em direções diferentes na época em que Woman Hating foi escrito, eles ainda compartilhavam das mesmas raízes da contra-cultura e do movimento de liberação sexual. Dworkin, em entrevista à autora, 1989.

[5] Sobre a portaria, veja Pornography: Men Possessing Women, edição comemorativa de dez anos (1989), nova introdução, P. XXXIII. Ver também a portaria de Massachusetts (1992).

[6] “The Sex/Gender Binary: Essentialism” (2015).

[7] “Becoming an Ally to Queer and Trans People of Color (QTPOC)“. Ver também o primeiro parágrafo em “11 Ways To Be A Trans* Ally, According To Transgender People Themselves” (2015). Que meu privilégio branco masculino sirva para chamar todos à honestidade e integridade.

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Traduções

Um chamado às feministas para se lembrarem da natureza sexual da opressão das mulheres

O real brilhantismo do patriarcado… é que ele não apenas naturaliza a opressão. Ele sexualiza atos de opressão. Ele erotiza a dominação e a subordinação. Ele os institucionaliza como masculinidade e feminilidade. Então, ele naturaliza, erotiza e institucionaliza a dominação e a subordinação. O brilhantismo do feminismo é que nós descobrimos isso.

Lierre Keith

Nos últimos meses muita legislação tem passado ou foi proposta nos Estados Unidos e em outros lugares o suficiente para indicar uma assustadora escalada na guerra — sim, é uma guerra — contra as mulheres. O parlamento Russo acabou de votar a 380-3 para descriminalizar a violência doméstica. Trata-se de um país onde em média 40 mulheres por dia — 14.000 mulheres por ano — são mortas por seus parceiros homens. Os Estados Unidos, onde 1.000 mulheres são mortas por seus parceiros por ano, acabou de eleger um presidente que diz que “quando você é uma estrela, elas deixam você pegá-las pela buceta”, está envolvido com pornografia e tráfico sexual. Ele planeja eliminar o financiamento a 25 programas de combate a violência doméstica e está ordenando às funcionárias mulheres para que “se vistam como mulher”. O estado do Texas está pensando em retirar os direitos eleitorais de mulheres que fizeram aborto; o estado do Arkansas quer permitir a estupradores que processem mulheres por abortar.

Todas essas empreitadas se baseiam, é claro, em uma noção há muito estabelecida de que mulheres são propriedades dos homens. O estigma do aborto se baseia na ideia de que as mulheres não criam a vida humana através de um processo de dez meses de gestação e trabalho; seriam os homens a ejacular vida nas mulheres, e as mulheres, como incubadoras reguladas pelo estado, são obrigadas a levá-la a termo. A violência doméstica, a indústria da pornografia e da prostituição que abastecem o tráfico sexual, normas de vestimenta, tudo isso se baseia no mesmo princípio do merecimento sexual dos homens. Não surpreende que os comentadores estejam comparando essa tendência atual a O Conto da Aia de Margaret Atwood; uma nova era de regras e normas mais ortodoxas e estritas para as mulheres do Ocidente. Tudo isso justificado através dos mitos de que as mulheres são biologicamente predispostas a essas regras e normas.

Dada a situação que enfrentamos, é alarmante confrontar a realidade de que a esquerda é tão mal preparada e indisposta a discutir a opressão das mulheres quanto a direita conservadora. Hoje em dia, noções como a de “identidade de gênero” por exemplo, ameaçam engolir a compreensão coletiva das mulheres a respeito do todo da opressão baseada no sexo. A ideologia da “identidade de gênero” afirma que gênero é uma questão pessoal de identificação, e que o sexo biológico de alguém pode ser trocado e mudado à vontade. “Cis” é uma palavra que as mulheres estão adotando cada vez mais como sinal de sua compreensão de que possuem o “privilégio” de ter sua identidade de gênero em conformação com seu sexo biológico. Ao mesmo tempo, é claro, mulheres estão sofrendo pressão para engolirem a ideia de que o sexo biológico propriamente dito não é real.

A questão é que ser fêmea é algo muito real, e que ser consequentemente generificada como mulher também é — e não se trata de uma forma de privilégio. É uma forma de opressão que as mulheres têm resistido desde a criação do patriarcado. Ao oferecer uma curta história do sistema ocidental canceroso e globalizado de objetificação sexual sob o qual vivemos hoje, espero oferecer aqui um pequeno lembrete disso. Esse ensaio busca resgatar o desenvolvimento da opressão baseada no sexo desde as suas raízes, passando pela caça às bruxas, ao comércio de escravos, à patologização dos corpos das mulheres na ginecologia, e às reações à insurgência feminista recente.

Matricentralidade e a criação do patriarcado

Apesar da insistência ortodoxa de que a dominação dos machos reflete simplesmente a ordem “natural” das coisas, o patriarcado é apenas um desenvolvimento relativamente recente na história da humanidade. Durante 99% de nossa existência, os humanos não viveram sob o domínio patriarcal. A autora feminista Marilyn French chama os grupos de parentesco matrilineares de subsistência horticulturais que existiram amplamente antes do desenvolvimento do patriarcado de matricêntricos; Audre Lorde escrever sobre os cultos a deusas como Afrekete, Iemanjá, Oyo e Mawulisa; o filme Woman Shaman de Max Dashu explora a arte e os achados arqueológicos que restaram dessas culturas matricêntricas ao redor do mundo.

Imagem: Max Dashu

History of Women de French e The Creation of Patriarchy de Gerda Lerner são textos incríveis sobre os processos históricos por meio dos quais os homens criaram o patriarcado que forma a base da sociedade ocidental. Isso aconteceu ao longo de aproximadamente 2500 anos, desde cerca de 3100 a.C., durante a revolução agrícola. De acordo com Lerner, a transição de um modo de vida de subsistência para a agricultura significou que as crianças se tornaram um ativo econômico, uma fonte de trabalho — e as mulheres se tornaram a primeira forma de propriedade privada.

French mostra como a dominação masculina foi primeiramente afirmada através de reivindicações paternais de posse e direito de nomear filhos. O assassinato dos primogênitos era comum nos primeiros grupos patrilineares, quando homens queriam garantir que o primeiro filho de suas esposas eram realmente “seus”. O fato de o aborto ainda estar na legislação criminal da Nova Zelândia é uma expressão contemporânea da presunção de que a vida humana é feita por e pertence aos homens. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde também santificou os “direitos” dos homens sobre as crianças através de uma nova política declarando que a incapacidade de encontrar um parceiro sexual é uma “deficiência”.

Com a apropriação do controle sobre os filhos, a instituição do casamento progressivamente se tornou uma prática que comodifica, desempodera e isola mulheres de suas famílias e comunidades. Para colocar em perspectiva, o estupro dentro do contexto do casamento não era ilegal na Nova Zelândia até 1985.

Com a instituição do casamento veio o dote, e o maior valor no que diz respeito a ter filhas mulheres vinha de seu potencial enquanto esposas; “roubo de noivas” e “defloração ritual” eram comuns, como ainda são hoje no Quirguistão, por exemplo. As “esposas” raptadas são em geral crianças, e hoje uma média de 15 milhões de meninas por ano são forçadas a casar. Em 2013, uma garota iemenita de oito anos morreu de sangramentos internos na noite em que foi casada com um homem cinco vezes mais velho. É isso que o patriarcado faz às meninas.

Uma das práticas que melhor exemplifica a comodificação através do casamento é o costume indiano do suttee, banido legalmente apenas em 1829. Essa prática envolvia queimar vivas as viúvas, incluindo garotas sequestradas como esposas, nas piras funerárias de seus maridos. O mito de que meninas e mulheres perderam seus maridos como resultado de seu próprio carma ruim motivava a prática. Como este era para ser um ritual de “limpeza”, os homens tipicamente evitavam queimar mulheres enquanto elas estivessem menstruadas, e esperavam dois meses depois do nascimento de uma criança se ela estivesse grávida. Incontáveis mulheres poderiam ser queimadas depois da morte de um único homem da realeza.

Depois de os homens terem se apropriado das mulheres e da esfera doméstica, o estatuto das mulheres foi futuramente institucionalizado e codificado como lei através da construção das religiões monoteístas, do estado, e do desenvolvimento da prostituição comercial. Se alguém tentar te dizer que a prostituição é “a profissão mais velha do mundo”, estarão sendo condescendentes e essencialistas: como Max Dashu mostra, mulheres praticavam a medicina muito antes de os homens se darem conta de como objetificar e lucrar com as mulheres através da prostituição. Lerner discute como a burqa, o costume de as mulheres usarem véu, foi criado para ajudar os homens a distinguir entre as mulheres “respeitáveis e não respeitáveis”, entre as esposas e as mulheres na prostituição.

Como escreve Moana Jackson, a colonização sempre acontece com com uma tomada da memória histórica, saqueada de forma que um vasto silêncio se prolifera. “Algumas vezes, esse silenciamento é descrito como uma amnésia social”, diz Jackson, “na qual o passado sumiu das mentes quase como um esquecimento acidental e sem culpados que ocorre com a passagem do tempo”. O que realmente acontece porém, diz ele, é que as histórias são conscientemente redefinidas de modo que ficam “na cara” das realidades políticas e sociais dos colonizados. O mesmo se aplica às mulheres. Hoje, poucas de nós sabe sua história — seja a da nossa opressão ou da nossa resistência a ela, uma vez que a história é contada pelos patriarcas. Mas podemos retomá-la.

A queima das bruxas e a ginecologia

A “pérola”. Durante a caça às bruxas, os torturadores aqueciam essa ferramenta no fogo e então a enfiavam nas vaginas das mulheres, abrindo lá dentro as suas peças. Imagem da autora.

As mulheres continuaram a praticar amplamente a medicina na Europa até o chamado período do “Iluminismo”. Entre o Império Romano e este período, a caça às bruxas e o seu “mito da feminilidade maléfica” resultaram no assassinato de 9 milhões de pessoas, a maioria delas mulheres, ao longo de 300 anos. A história se lembra deste esforço de 300 anos, quando se lembra, como uma espécie de episódio isolado de loucura supersticiosa (pense no The Crucible de Arthur Miller). Escritoras feministas como Mary Daly, Andrea Dworkin e Max Dashu oferecem outra versão.

Dworkin escreve que muitas das mulheres tidas como bruxas eram praticantes de medicina, uma verdade que ainda existe na nossa memória cultural, de forma distorcida e corrompida, no estereótipo da bruxa dos sapos e caldeirões. Mas estas não eram mulheres más de cara esverdeada. De acordo com Dworkin, eram parteiras, principalmente, uma vez que mulheres educadas realmente ofendiam a Igreja.

As bruxas utilizavam drogas como a beladona e acônito, anfetaminas orgânicas e alucinógenos. Elas também foram pioneiras no desenvolvimento de analgésicos. Elas realizavam abortos, providenciavam toda a ajuda médica necessária para realizar partos, eram consultadas em casos de impotência que tratavam com ervas e hipnose, e foram as primeiras praticantes da eutanásia.

Anna Göldi é tida como a última mulher executada como bruxa na Europa. Ela era a empregada de um médico, que a acusou de colocar agulhas nos pães de seus filhos através de meios sobrenaturais. Depois de tentar escapar do julgamento, ela foi capturada e decapitada na Suíça em 1782.

Em seu livro Gyn/Ecology, Mary Daly aponta como a ginecologia foi estabelecida como uma prática governada pelos homens depois do tempo da queima das bruxas. O ano de 1873 marca a publicação da invenção da castração feminina de Robert Battey: a remoção dos ovários das mulheres para a “cura da insanidade”. Desde então, os homens ginecologistas têm rotineiramente patologizado, torturado e ferido cirúrgica e medicamente as mulheres e seus corpos através de práticas violentas de parto, mastectomias e histerectomias radicais, “terapias” de choque e hormonais, e lobotomias.

Imagem da autora

Desde os anos de 1890, houve um interesse louco em úteros mecânicos ou prostéticos feitos de madeira e vidro (“mães artificiais” ou “incubadoras”) — tecnologias que tentavam desafiar a indispensabilidade dos corpos das mulheres. Nessas incubadoras nós podemos ver que a pressão atual dos transativistas em neutralizar e desumanizar a linguagem da gravidez e do parto, e separar a conexão dos corpos das mulheres de sua saúde, possui ecos através da história.

Daly aponta que a tomada do controle da saúde das mulheres pelos homens depois da caça às bruxas não foi coincidência:

Muitas feministas notaram a significância do fato de que o massacre das mulheres sábias e curandeiras durante a caça às bruxas foi seguido de um crescimento no número de homens parteiros, que eventualmente se tornaram dignificados pelo nome de “ginecologistas”. A ginecologia demorou a crescer. Os homens parteiros dos séculos dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove foram combatidos pelas mulheres parteiras, tais como Elizabeth Nihell, que discreveu seus instrumentos como “máquinas da morte”. Mesmo assim, o século dezenove viu a ereção da ginecologia sobre montes de corpos de mulheres mortas.

O acúmulo de abusos

J. Marion Sims, “o Pai da Ginecologia Moderna”, usou mulheres afro-americanas escravas para conduzir seus experimento cirúrgicos. Sims fez experimentos em mulheres negras para pesquisar doenças como câncer — sem prover anestésicos ou outros remédios para controlar a dor. Caso uma mulher morresse das complicações ou por sangramento excessivo, ele simplesmente substituiria ela por outra escrava, e sua prática era completamente legal.

Harriet Tubman. Imagem da autora.

O acúmulo de opressões sobre as mulheres negras é o tópico do livro Mulher, Raça e Classe de Angela Davis. Nele, Davis discute a experiência das mulheres negras durante o tráfico escravagista; incluindo Harriet Tubman (foto), que resgatou mais de trezentas pessoas através da Underground Railroad e foi a única mulher nos Estados Unidos a liderar tropas em uma batalha.

As mulheres negras, segundo Davis, tinham de trabalhar tão duramente quanto os homens nas plantações, performando as mesmas tarefas independente dos mitos que o patriarcado perpetua sobre as mulheres.

As mulheres não eram femininas demais para trabalhar em minas de carvão, nas fundições de ferro ou para serem lenhadoras ou escavadoras de valas. Quando o canal Santee foi construído na Carolina do Norte, mulheres escravizadas eram cinquenta porcento da força de trabalho.

As mulheres eram também escravas sexuais, além disso. “Se as punições mais violentas dos homens consistiam em flagelos e mutilações”, escreve Davis, “as mulheres eram flageladas e mutiladas, bem como estupradas”. Os homens brancos também viam as mulheres negras como “matrizes”:

Durante as décadas que precederam a guerra civil, as mulheres negras foram crescentemente avaliadas em função de sua fertilidade (ou falta dela): aquela que era potencialmente mãe de dez, doze, quatorze ou mais se tornava um tesouro cobiçado. Isso não significava, porém, que como mães as mulheres negras desfrutassem de um status mais respeitável do que o que desfrutavam enquanto trabalhadoras. A exaltação ideológica da maternidade — tão popular no século dezenove — não se estendia às escravas. De fato, para os proprietários de escravos, as mulheres escravas não eram mães; eram apenas instrumentos para a garantia do crescimento da força de trabalho. Elas eram “parideiras” — animais cujo valor monetário pode ser calculado precisamente em termos de sua habilidade de multiplicar seus números.

Uma vez que as mulheres escravas eram consideradas “parideiras” ao invés de “mães”, seus filhos ainda crianças poderiam ser vendidos e tirados delas como novilhos das vacas.

Imagem da autora

Este é outro motivo pelo qual devemos olhar com desconfiança para a introdução de termos como “menstruadores” e “incubadores” na linguagem da saúde da mulher, da gravidez e do parto como resultado da ação do transativismo hoje. Estes termos possuem uma história, e estão ligados especialmente ao tratamento desumanizador da escravidão sexual das mulheres negras. O documentário Google Baby mostra como como as mulheres são atualmente forçadas a tolerar uma vida sob o tratamento de “incubadoras” em clínicas de barriga de aluguel na Índia, muitas vezes dando à luz a bebês brancos feitos com o uso de óvulos e espermatozoides de doadores externos. O tratamento de linha de produção que as mulheres que dão à luz a bebês em clínicas de barriga de aluguel recebem é de dar arrepios, mas o mercado prevê 12 mil estrangeiros por ano indo à Índia para alugar úteros, em geral de mulheres pobres, em uma indústria de valor anual de US$ 1 bilhão.

Uma expressão de colonização racista e patriarcal tão dolorosa e brutal quanto as clínicas de barriga de aluguel na Índia seria difícil de encontrar, se não fosse pela mais velha das opressões: a prostituição. Hoje, 80% das pessoas usadas na prostituição são mulheres, 98% das quais são vítimas do tráfico sexual. Quase todos os prostituintes são homens e o tráfico sexual gera aos homens US$ 32 bilhões por ano. Uma crescente indústria de pornografia violenta acumula cerca de US$ 97,06 bilhões, o que é mais que o lucro combinado das 10 maiores companhias de tecnologia. A mais recente “tendência” na pornografia é a de mulheres sendo analmente estupradas até que sofram prolapso retal (“rosebudding“). Mesmo assim, a Anistia Internacional mostrou seu apoio a esta indústria, submetendo-se às pressões de prostituintes influentes.

Como Cherry Smiley aponta, as mulheres indígenas são mais desproporcionalmente afetadas. Na Nova Zelândia, 15% das mulheres são maori. Em nosso país onde o comércio sexual é completamente descriminalizado, 32% das pessoas prostituídas são maori. Existe uma narrativa ganhando força na Nova Zelândia, sem dúvida abastecida por homens brancos administrando os programas no Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC), de que criticar a prostituição é racista por causa das mulheres maori e do Pacífico na indústria. Lembre-se que a demanda por esta indústria vem de homens brancos ricos. Em 2017, os liberais ainda estão sendo doutrinados a acreditar que mulheres indígenas são de alguma forma inatamente pré-dispostas a serem sujeitas a abusos de homens brancos ricos.

O livro de Angela Davis aponta não apenas como as mulheres negras têm sido afetadas pelo acúmulo das opressões de raça, classe e baseadas no sexo, mas que também tiveram que lutar mais arduamente por representação política, mesmo dentro dos movimentos de resistência. Seu livro mostra a interseção entre os movimentos abolicionista pelo fim da escravidão e a primeira onda do feminismo; nenhum dos quais tendo sido suficiente para representar o jugo das mulheres negras. Sojourney Truth lutou com as feministas brancas da primeira onda, assim como bell hooks com as da segunda. Hoje, novamente vemos um movimento de classe média branca liberal que marqueteia um liberalismo identitário chamado “sex positive” como feminismo. Isso aconteceu porque a reação a cada onda feminista assegurou que o feminismo mainstream sairia do outro lado domesticado, branqueado e sexualizado.

Sexologia, pornografia e feminismo

Em seu ensaio Sexology and Antifeminism, Sheila Jeffreys descreve como a “disciplina” da sexologia foi construída como uma reação à primeira onda das feministas sufragistas.

Esse período, imediatamente depois da Primeira Guerra Mundial, foi um tempo no qual muitas mulheres tinham uma considerável maior liberdade e independência do que jamais tiveram. O fato de que grandes números de mulheres não estavam se casando, estavam escolhendo ser independentes, e estavam lutando contra a violência masculina causou considerável preocupação. Essa preocupação é aparente na literatura da sexologia.

Muitas mulheres tinham pouco interesse em intercurso sexual, e mais comumente, pensavam que “nenhuma mulher deveria ser obrigada a fazer intercurso sexual” (isso foi, é claro, muitas décadas antes da segunda onda feminista lutar para criminalizar o estupro marital). Em resposta a essa crescente resistência e independência, e para defender o status quo da opressão das mulheres, a subordinação sexual das mulheres foi naturalizada na sexologia. Havelock Ellis, o fundador do campo, argumentava que

a sexualidade masculina era absoluta e inevitavelmente agressiva, tomando a forma de busca e captura, e que era inevitável aos homens sentir prazer ao infligir dor nas mulheres. A sexualidade das mulheres, dizia ele, era passiva. As mulheres deveriam ser capturadas e “desfrutar” a experiência de dor nas mãos de seus amantes homens.

Os sexologistas também inventaram o conceito da “frigidez” feminina: mulheres “frígidas” eram doentes, e tinham que ser mandadas aos ginecologistas e psicanalistas.

No encalço da sexologia veio a indústria pornográfica que conhecemos hoje. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, houve um crescimento no negócio da promoção dessa objetificação das mulheres. Pornógrafos-empresários como Hugh Hefner (Playboy), Bob Guccione (Penthouse) e Larry Flynt (Hustler) começaram a preparar o mercado para tornar a pornografia socialmente aceitável. Nos anos 90, produtos do coelhinho estavam sendo consumidos por meninas em todo lugar — a marca do coelhinho estampava tudo, de papelaria a pijamas. Os publicadores da Cosmopolitan, Bauer Media, estão envolvidos no lobby global do tráfico sexual, e chegaram a possuir os direitos de publicação da Playboy na Alemanha.

“Era um mundo muito diferente”, diz a escritora feminista Gail Dines, “depois de Hefner ter erodido as barreiras culturais econômicas e legais da produção e distribuição em massa de pornografia”. Agora é passível de discussão se pole dancing é a melhor atividade extracurricular para garotas de 8 anos de idade.

Como essa mudança ao mainstream aconteceu? A resposta é simples: de propósito. O que vemos hoje é resultado de anos de estratégia e marketing cuidadosos da indústria pornográfica para sanitizar seus produtos… reconstruindo a pornografia como divertida, deferente, chique, sexy e quente. Quanto mais a indústria se tornou sanitizada, mais ela escorregou para dentro da cultura pop e da nossa consciência coletiva.

A segunda onda feminista reconheceu e resiste aos abusos e à normalização da pornografia — mas os departamentos de Estudos das Mulheres das universidades nos quais muitas críticas como essa poderiam ser feitas não existem mais. Até mesmo os livros estão ameaçados. A disciplina que usurpou os Estudos das Mulheres é a teoria queer, e de acordo com as feministas, a teoria queer está para a segunda onda do feminismo como a sexologia era para a primeira: uma contra-reação [backlash]. Sheila Jeffreys esclarece como ela veio

dos liberais sexuais da esquerda — em particular, homens — e em grande parte do movimento gay masculino. É daí que vem a contra-reação, mas também possui representantes dentro do feminismo.

Lierre Keith ilustra a representação dessa contra-reação dentro do feminismo:

Já em 1982, Ellen Willis inventou o termo “sex positive” para se distinguir das feministas radicais — porque somos tão negativas, nós feministas radicais. Estupro, estupro, estupro — isso é tudo sobre o que queremos falar. Bom, proponho um trato — se os homens pararem com o estupro, eu paro de falar a respeito.

Keith também aponta que a busca pelo termo “torture porn” gera 32 milhões de resultados. Vale notar que a estética, as ferramentas e as práticas da pornografia moderna e do BDSM endossadas como “diferentes”, a “sexualmente positiva” teoria queer e as “taras” remontam aos tribunais de caça às bruxas. O ensaio de Max Dashu Reign of the Demonologists mostra como a tortura das bruxas era sexualizada, através da fetichização de procedimentos e equipamentos de tortura e as confissões forçadas de sexo grotesco com demônios. Uma entrevista com Audre Lorde em Burst of Light critica o sadomasoquismo por razões similares.

O sadomasoquismo é congruente com com outros desenvolvimentos acontecendo neste país que tem a ver com dominância e submissão, com desigualdade de poder — político, cultural e econômico… O sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada das relações de dominação e subordinação… O sadomasoquismo alimenta a crença de que a dominação é inevitável e legitimamente desfrutável.

A feminista Susanne Kappeler nos oferece um lembrete para quando encontrarmos esses tipos de práticas aceitos e celebrados como revolucionários na academia.

Enquanto feministas, faremos bem em lembrar e destacar o fato de que a história do liberalismo, do libertarianismo e da libertinagem tem sido a história de cavalheiros advogando liberdade e permissão para cavalheiros — liberdades pelas quais os direitos e as liberdades das mulheres têm sido rotineiramente sacrificadas.


Cópia de um desenho de 1515 de “witch porn” de Hans Franck.

Comoditização e “escolha”

A produção dos robôs sexuais é um aprofundamento contemporâneo da objetificação das mulheres que disciplinas como a teoria queer sancionam, e até celebram. Distúrbios alimentares e a demanda por cirurgias cosméticas como a labioplastia são apenas dois exemplos do impacto da escalada de objetificação das mulheres. Estamos vendo outras invenções bizarras no mercado, também: o FitBit peniano, uma peça bucal para sexo oral.

Imagem da autora

Um jeito que o lobby do mercado sexual se infiltra sob a pele das mulheres, suga sua confiança, encoraja competição e instiga dependência a um parceiro abusivo ou um prostituinte, é através da mídia, através das revistas femininas. 70% das mulheres alega sentir culpa ou vergonha depois de três minutos folheando esse tipo de revista. É é notório que publicadores e seus anunciantes alimentam inseguranças — e abuso. A maioria das modelos nessas revistas pesa 25% menos que a média das mulheres, e está na faixa de peso da anorexia. Agora, na Europa e nos Estados Unidos, 50 milhões de mulheres sofrem de distúrbios alimentares, e meninas de 6 anos de idade vêm crescentemente expressando ansiedade a respeito de seu corpo.

A Bauer Media publica a Cosmopolitan, a Woman’s Day e a revista adolescente Dolly. Atualmente ela também lucra com pornografia online, e costumava possuir os direitos de publicação de uma série de revistas pornográficas alemãs: a Playboy alemã; Das neue Wochenend; Blitz Illu; Schlüsselloch (que significa “fechadura”); Sexy, Praline e Coupe. A Bauer Media também possui um terço do famoso canal privado RTL II, que transmite reality shows a favor de “trabalho sexual” quase diariamente. Não é surpreendente ver a última edição da Cosmopolitan oferecer conselhos sobre tratamentos cosméticos invasivos indo de micropigmentação de sobrancelha a preenchimento labial, tratamento a laser e terapia de luz.

Labioplastia — redução cirúrgica dos lábios vaginais das mulheres — é outra tendência ocidental que está aumentando e que tem conexões com práticas mais brutais, nesse se caso a mutilação genital feminina (FGM). De acordo com a OMS (que apoiava essa prática em 1958), mais de 200 milhões de mulheres e meninas vivas hoje passaram pelo procedimento em 30 países da África, do Oriente Médio e da Ásia onde a prática da FGM é concentrada. Nessas práticas, as meninas têm seus clitóris e lábios vaginais removidos; na Somália, há a prática de costurar os lábios, deixando apenas um pequeno buraco. A mulher somali Hibo Wardere diz que urinar através dessa pequena abertura é como se “uma ferida tivesse sido esfregada com sal ou pimenta”. O feminismo deve trabalhar para acabar com a mutilação genital, e não se ocupar de glorificar variedades novas e comerciais dela como “escolhas” sexualmente positivas.

O patriarcado mina e recorta os corpos das mulheres enquanto diminui o valor delas. Desde o décimo século e por dez séculos, os patriarcas chineses perceberam que as meninas e mulheres jamais conseguiriam correr, amarrando seus pés e fetichizando esse ato de aleijar mulheres. Hoje vemos o comércio de cabelos, óvulos, leite materno e aluguel de úteros através da prática da barriga de aluguel. Enquanto as incubadoras são normalmente mulheres pobres, as doadoras de óvulos são geralmente mulheres estudadas e jovens, cuja saúde foi investigada em busca de doenças hereditárias e que não foram alertadas para as implicações ou possíveis efeitos colaterais da coleta de seus óvulos.

O feminismo branco mainstream hoje irá classificar a labioplastia como algo que as mulheres “escolhem“. Da mesma forma que a imolação foi “escolhida” através da prática indiana do suttee. Da mesma forma que as mães “escolheram” amarrar os pés de suas filhas, “escolheram” cortar seus clitóris; como as mulheres que “escolhem” ser prostituídas e até mesmo traficadas, “escolhem” usar burqa, salto alto, não comer, amarrar seus seios. Essas práticas são por vezes não apenas marqueteadas e chamadas de “escolha”, mas também de altruísmo. A prostituição, a barriga de aluguel e a imolação tem sido chamadas de práticas “altruístas”. As mulheres, obviamente, querem ser capazes de escolher e contribuir. E que escolhas a sociedade nos permite fazer? Estas. Então alegamos que nós mesmas fizemos estas escolhas. Mas o feminismo precisa entender que, conforme Megan Tyler, sim, “nós fazemos escolhas, mas estas escolhas são moldadas e constritas por condições desiguais nas quais nós vivemos.”

NZPC promove a prostituição como uma “escolha” da mulher. Imagem da autora.

Quando se trata de tendências modernas como o transativismo, não podemos separar o desejo masculino de acesso aos espaços das mulheres e por transplantes de útero, de uma história de apropriação patriarcal (incluso aí as imitações de “úteros prostéticos”). Não podemos separar este movimento de uma história inteira que o precede, da exploração simultânea dos corpos e da desvalorização da mulheres. Também não podemos separar os desejos dos homens de sufocar e apropriar a discussão e a capacidade da habilidade das mulheres de criar vida de uma história inteira disso. O sistema masculino tem trabalhado para se apropriar do controle dos corpos das mulheres e de sua habilidade de criar vida humana, e para sufocar a discórdia feminista desde que chegou ao poder. Nessa Era Trump, a história continua.

Por outro lado, não podemos separar os desejos manufaturados das mulheres pelo privilégio masculino nem esquecer que as escolhas das mulheres de passar por procedimentos como binding e queima dos seios, mastectomias e cirurgias invasivas de uma história de opressão, demonização, mutilação e auto-destruição.

Não podemos separar qualquer discurso sobre gênero das realidades da opressão baseada no sexo — isso se realmente quisermos liberdade.

Imagem: Barbara Kruger

Traduzido do original: “A call to feminists to remember the history and sex-based nature of women’s oppression“. In: Writing by Renee, 7 de fevereiro de 2017.