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Ódio às mulheres da esquerda à direita

Tradução do texto que Andrea Dworkin escreveu para o livro The Sexual Liberals and their Attack on Feminism em 1990.


Faz bastante tempo desde que nos reunimos para debater o que queremos dizer com “feminismo” e por que a luta pela libertação das mulheres importa tanto para nós, que dedicamos nossas vidas a ela: não três horas da tarde de sábado; não uma carta aqui e outra ali; não um “meu deus, não me diga” enraivecido. Nós realmente não achamos nossas vidas triviais. Imagina só. E nós não achamos que os crimes cometidos contra nós sejam menores ou insignificantes. E isso significa que fizemos um progresso fenomenal em entender que somos seres humanos que têm direitos neste planeta; que ninguém pode tirar esses direitos de nós; e que nós fomos lesadas pela subordinação sistemática das mulheres, pelo abuso sexual sistemático a que fomos expostas. E estamos politicamente organizadas para reagir e mudar a sociedade na qual vivemos, desde suas estruturas.

Acho que, enquanto feministas, temos uma maneira de olhar os problemas que outras pessoas parecem não compreender. Para dar nomes aos bois, a direita e a esquerda parecem não entender o que é isso que as feministas estão tentando fazer. Feministas estão tentando destruir uma hierarquia sexual, uma hierarquia racial, uma hierarquia econômica, nas quais mulheres estão sendo prejudicadas, desempoderadas, e nas quais a sociedade celebra a crueldade infligida contra nós, que nos recusa integridade corporal e uma vida digna.

Agora, este não é um problema que a esquerda considera que tem de ser resolvido. Vocês devem ter notado. E não é algo que a direita considere um problema. A direita ainda nem chegou ao ponto de dizer que o problema não importa, diferentemente da esquerda, porque esta última é sempre vanguardista. Como a esquerda é vanguardista, pode ficar lá na frente dizendo “bom, sim, entendemos o problema; ele só não é particularmente importante”. A direita, como os dinossauros que são, simplesmente nega o problema. E nós, mulheres, temos que escolher entre uma coisa e a outra.

Então, feministas olham a sociedade na qual vivemos e tentam entender como vamos combater o poder masculino. E para tentar entender como travaremos esta batalha, temos que entender como ele se organiza, como ele funciona. Como o poder masculino sobrevive? Como resolve suas questões? Como se mantém enquanto sistema de poder?

Ao olhar o poder masculino, olhar todas as suas instituições, tentando entender como funcionam, concluímos que é como colocar areia em seus tanques de gasolina; temos que fazer com que não funcionem. Então tentamos compreender como podemos fazer isso.

Devemos olhar para o papel da direita em manter o poder dos homens sobre as mulheres e olhar para o papel da esquerda em manter o poder masculino: não devemos olhar para o que dizem, mas para o que fazem. Então, deveremos ir além da realidade tal como eles nos apresentam quando falam, e frequentemente falam, de um jeito ou de outro: “gatinhas, a gente sabe o que é melhor pra vocês. Estamos agindo para defender seus melhores interesses”. A direita vai te prometer um marido que – sim, é verdade, você terá de obedecer, mas que vai ter que te amar por obedecer. Agora, há circunstâncias – essas sob as quais você vive – nas quais as mulheres vão considerar que esta não é uma oferta ruim. Porque você corta o número de homens que você deve obedecer, de bilhões para apenas um.

E a esquerda fará o que eles acreditam ser uma ótima proposta, eles dirão: “ei gatinhas – a não ser que eles estejam sendo particularmente progressistas no momento, e então eles dirão ‘vadias’, porque esta é a ideia deles de liberdade – e eles se dirigirão a nós em qualquer tom de voz que esteja na moda entre eles, e eles nos dirão – bom, o que a gente vai fazer é dar a vocês o direito ao aborto, contanto que continuem sexualmente acessíveis para nós. E se vocês embarreirarem esse acesso, se começarem com esse mimimi de um movimento autônomo de mulheres, nós vamos retirar todo apoio que já demos um dia: financeiro, político, social, tudo o que demos um dia para que vocês ganhassem o direito de abortar. Porque se esse direito não significa acesso aos corpos de vocês, gatinhas, então vocês vão ficar sem ele”. E é isso que eles têm feito nos últimos 15 anos.

Então as feministas chegam e dizem: bem, vamos entender como essas pessoas desejam o que desejam. Nós vamos abordar o problema politicamente. Isto significa que vamos tentar isolar e descrever sistemas de exploração que trabalham contra nós, do nosso ponto de vista, enquanto pessoas lesadas por eles. Isto significa que embora estejamos por baixo, e eles por cima, estamos procurando pelas vulnerabilidades deles. E quando as encontramos – e nós as encontramos anatomicamente, inclusive – nós vamos mover todos os nossos músculos, qualquer que seja nossa posição, e nós vamos tirar esse cara, em qualquer uma de suas manifestações coletivas, de cima da gente.

E isto significa que, politicamente, estamos organizando uma resistência política à supremacia masculina. Nós costumávamos falar em fazer revolução. Nós sorrimos e gargalhávamos e estávamos muito deslumbradas. Achávamos que seria fácil. Nós não compreendíamos, por algum motivo, que as pessoas no poder não iam gostar da revolução tanto quanto nós estávamos gostando. Eles pararam de se divertir quando começamos a nos organizar. Bom, eles foram ficando mais e mais chateados quando começaram a ver que eram vulneráveis, que a supremacia masculina não era apenas gigantesca e monolítica, que não tinha sido dada a eles por Deus nem pela natureza. Deus é a direita, a natureza é a esquerda.

E começou a parecer que, se por um lado, uma revolução da noite para o dia não seria possível, uma resistência consistente, séria e organizada às instituições do poder masculino que oprimem as mulheres, isto seria possível. Nós começamos a perceber e eles começaram também.

Então começaram os dias difíceis do movimento de mulheres. As pessoas de quem tentávamos tirar o poder não iam continuar nos atacando das maneiras que eram autorizados a atacar por milhares de anos. Eles iam se articular politicamente para nos refrear. E foi isso que fizeram.

Quando falo sobre resistência, estou falando de resistência politicamente organizada. Não estou falando de uma coisa intermitente. Não estou falando de sentimentos. Não estou falando de sentir, no seu coração, e viver seu dia normalmente, cheia de ideias decentes, boas e maravilhosas. Estou falando de quando você coloca o seu corpo e sua mente na reta e quando se compromete com anos de luta para mudar a sociedade em que vive. Isso não significa apenas mudar os homens que você conhece para que eles tenham boas maneiras – embora isto não seja mau. Faz quinze anos. As maneiras deles podem até ter melhorado consideravelmente. Mas não é isto que faz uma resistência política. Uma resistência política segue em frente noite e dia, clandestina ou abertamente, onde as pessoas podem ver e onde não podem. Passa de uma geração para outra. É ensinada. Encorajada. Celebrada. É inteligente. Experimentada. Comprometida. E um dia vencerá. Vencerá.

Nós encarnamos, também, uma resistência pessoal à dominação masculina. Fazemos isso da maneira como conseguimos. E parte do problema dos últimos anos tem sido sugerir que, tanto uma forma quanto a outra, resistência política ou pessoal, vai ser suficiente, porque feminismo seria um estilo de vida. Você é uma mulher jovem e moderna. Claro que você é feminista. Feminismo não significa isso. Feminismo é a prática política de lutar contra a supremacia masculina, em benefício das mulheres enquanto classe, incluindo todas as mulheres de quem você não gosta, de quem não quer estar perto,incluindo as mulheres que eram suas melhores amigas e com quem você agora não quer mais nenhum contato. Não importa quem são as mulheres individualmente. Todas elas estão igualmente vulneráveis ao estupro, espancamento, como as crianças estão vulneráveis ao incesto. Mulheres mais pobres têm mais vulnerabilidade à prostituição, o que é basicamente uma forma intolerável de exploração numa sociedade igualitária, a sociedade pela qual estamos lutando.

Parte do que fazemos nesta resistência da qual estou falando é a recusa em colaborar com o poder masculino. Recusa em sermos usadas por eles. Recusa em sermos as garotinhas deles. Recusa em colaborar para fazer nossas vidas ficarem um pouquinho mais fáceis. Recusa em colaborar com esse poder mesmo que seja para ganhar uma plataforma para falar nesta sociedade. Um ventríloquo poderia estar movendo seus lábios, se você for uma mulher à frente de um poder masculino. Você não está trabalhando em favor das suas irmãs. Você está trabalhando pros caras. E você está facilitando que eles prejudiquem as mulheres. É muito difícil não colaborar com o poder masculino, porque ele está em todo lugar. Onipresente.

Parte de ter uma resistência feminista ao poder masculino inclui expandir a base da resistência para outras mulheres, mulheres com quem você não tem tanto em comum, mulheres com quem você não tem nada em comum. Fazer proselitismo ativamente, em diálogo com mulheres de muitos pontos de vista diferentes, porque a vida delas tem valor, porque a sua vida também tem. Esse é o porquê.

Nós precisamos romper as barreiras políticas convencionais, as linhas que os homens traçaram para nos dividir. “Nossas meninas estão ali; vamos chamá-las de Democratas, socialistas, vamos chamar do que der na telha. Aquelas meninas estão lá, e são as meninas deles. As meninas do nosso lado não podem falar com as meninas deles”. Bom, se as meninas de qualquer um dos lados falasse com as outras, elas acabariam constatando que estão ferradas do mesmo jeito pelo mesmo tipo de homem.

E aí quando olhamos para a experiência vivida das mulheres – que é o que feministas fazem, e nem a direita, nem a esquerda fazem – o que percebemos? Percebemos que mulheres por todo o espectro político, quaisquer que sejam suas ideologias, são estupradas e que mulheres experimentam espancamento dentro e fora de casamentos. Encontramos um grande número de mulheres adultas que foram vítimas de incesto, descobrimos que o número de vítimas de incesto neste país [EUA] está crescendo [1]. Neste momento, especialistas acreditam que dezesseis mil novos casos de incesto de pais contra filhas – o que é apenas um dos tipos de incesto – ocorram todos os anos.

A experiência real das mulheres inclui a prostituição, a experiência real das mulheres inclui a pornografia. E quando olhamos para a experiência real das mulheres – e quando não aceitamos o blablabla que os homens nos forçam goela abaixo sobre o que nossas vidas supostamente seriam – o que encontramos, por exemplo, quando olhamos a pornografia, é que podemos traçar gerações de mulheres sexualmente abusadas. E encontramos diferentes gerações sendo abusadas: meninas, jovens mulheres, mães e avós. A pornografia não tinha que estar em todas as ruas para funcionar como parte do abuso sexual de mulheres na sociedade. Estou apenas lembrando vocês do que vocês já sabem: que a maior parte dos abusos sexuais acontece em ambiente privado. Acontece, para dizer a verdade, onde não podemos ver. E a conquista impressionante do movimento de mulheres foi dizer “não vamos mais respeitar sua privacidade, seu estuprador”.

As mulheres estão isoladas em seus lares. Não quer dizer que não possam sair; podemos. Mas as coisas acontecem conosco principalmente em nossos lares. O lar é o lugar mais perigoso para mulheres em nossa sociedade. Mais mulheres morrem em seus lares do que em qualquer outro lugar. Uma mulher é espancada nos EUA – casada ou coabitando – a cada dezoito segundos [2]. O lar é um lugar perigoso para mulheres.

E antes do movimento de mulheres, as mulheres que eram estupradas, espancadas, não sabiam que as demais também o eram. Acontecia para ela, sozinha no mundo. Por quê? Porque ela fez alguma coisa; porque ela era alguma coisa errada; porque fez algo errado; porque era má, de algum jeito. O problema – a violência – era efetivamente escondida pela supremacia masculina. O fato é que você podia dar a volta em qualquer quarteirão da cidade e encontrar massas de mulheres que tinham precisamente as mesmas experiências, com precisamente as mesmas violências masculinas, precisamente pelos mesmos motivos. E o motivo – de fato, há apenas um – é que elas são mulheres. É isso. São mulheres. A sociedade está organizada não apenas para punir mulheres como para proteger os homens que punem. É isto que estamos tentando mudar.

Agora, em termos de lidar com a direita e a esquerda e o ódio às mulheres, quero falar com vocês especialmente sobre pornografia e algumas estratégias que a envolvem, onde a esquerda e a direita se unem para resguardá-la, para manter mulheres subordinadas através da pornografia, e manter o abuso sexual que ela causa, protegidos e bem.

A pornografia existia no lar e era usada para o abuso sexual. Estava disponível em grupos exclusivamente masculinos. Muitas de nós, ao crescer (se hoje temos entre 40 e 50 anos) não víamos pornografia. Ela não saturava o nosso ambiente como agora. Como resultado, faltava uma peça quando tentávamos decifrar o abuso sexual. Nunca havia jeito para entendermos como os valores dos estupradores eram compartilhados, como compartilhavam técnicas para abusar das mulheres, ou como a racionalização do abuso era comunicada. Como os homens aprendiam essas coisas? Essas coisas não caíam do céu. Não achamos que caíam. Acho que algumas pessoas pensavam assim: junto aos Dez Mandamentos, veio a pornografia: é assim que se bate na mulher, é assim que se amarra uma mulher.

Mas não, nós não achamos que aconteceu assim. Então: lá estão as mulheres como propriedade privada, possuídas por homens, em casas, isoladas. E para lidar com este problema chamado pornografia temos algo chamado “leis de obscenidade”. E o que essas leis fazem, quando funcionam, é esconder a pornografia de mulheres e crianças. Impedem-nos de ver a pornografia. Não previnem que a pornografia seja usada contra nós por homens que nos abusam. Homens podem acessá-la e usá-la. Mas nós não a vemos, não falamos sobre ela, não nos organizamos a respeito dela, não aprendemos com ela como a supremacia masculina funciona. Não conseguimos fazê-lo. 

Uma das maneiras pelas quais a estrutura social protegeu a supremacia masculina foi a estratégia direitista de usar leis de obscenidade para manter a pornografia em segredo para mulheres e crianças enquanto a disponibilizava para o uso masculino privado, em grupos inteiramente masculinos.

Nós temos essa estranha noção que aparece de vez em quando no movimento de mulheres, e que é uma grande trivialização das nossas vidas; essa noção errada de que existe uma divisão fenomenologicamente real do mundo entre mulheres boas e mulheres más. E temos algumas mulheres esquerdistas orgulhosíssimas de serem reconhecidas, percebidas e consideradas enquanto más. Malvadonas. A realidade, porém, é que você pode fazer tudo neste mundo para ser uma mulher boa mas quando você está no privado, em casa, com seu marido privado que você atraiu através de sua conformidade com o que se estipulou como “uma boa mulher”, quando ele começa a bater em você, ele te bate porque você é má. E a premissa que subjaz à sociedade é de que todas as mulheres são más, que temos uma natureza que é má e que, portanto, merecemos punição. E você pode ser a mais malvadona mulher da esquerda – o que, na esquerda, equivale a ser uma mulher boa – e quando o esquerdista começa a bater em você, ele te bate porque você é uma mulher, porque você é má enquanto mulher, não enquanto má esquerdista; você é má porque você é mulher e merece ser punida.

A manifestação desse princípio pode ser observada nas instituições. Peço que o considerem em relação à pornografia, pois nela não existe nada que puna suficientemente uma mulher por ser mulher. A natureza mesma do ser mulher é extrair prazer sexual de sua punição. Você não tem que pedir pra ser transformada numa menina malvada. Você vive sob a supremacia masculina, você é uma. Você é mulher: o que há de odioso em você – em você, que te define – é a razão pela qual homens te machucam. É a razão pela qual eles não dizem “estou batendo em um ser humano, estou machucando um ser humano”. Eles dizem “estou punindo uma vagabunda, estou punindo uma puta”. Eles dizem o que a pornografia diz: “Você gosta disso, né. Há algo em você que se satisfaz com isso”.

Então, quando você busca ajuda, pensando que é uma pessoa que não gosta de ser machucada, o psicólogo diz: “Há algo em você que gostou, né?”. Você diz “Nossa, não. Eu não gostei”. E ele diz “Bom, você não está sendo honesta consigo própria e certamente não conhece a si mesma muito bem”. E você vai ao seu yogi, e pode contar, ele vai te dizer a mesma coisa. É um pouco desencorajador, não? Mesmo os vegetarianos acham que se você é uma mulher, você é má.

Supostamente, temos essa natureza que clama pelo abuso. Pornografia é sobre nos punir a ponto de nos aniquilar por sermos mulheres e tanto esquerda quanto direita têm um papel a cumprir na proteção da pornografia. Eles atuam em harmonia para que sejamos punidas. Esta batalha pública entre direita e esquerda é, do nosso ponto de vista, uma distração. Cada um dos lados tem um papel em nos manter por baixo. E o que importa é sabermos qual parte cabe a cada um deles.

O que acontece quando “leis de obscenidade” são implementadas é que juízes de direita – essas pessoas autoritárias que supostamente odeiam pornografia mais do que tudo neste mundo (acreditar nisso é comprar gato por lebre) – estabelecem uma fórmula legal que protege a pornografia. Ao definir obscenidade, eles estabelecem a fórmula que pornógrafos usarão para proteger a pornografia uma vez publicada. A Suprema Corte afirma “faça isso assim e assado, dessa maneira e daquela. Enquanto você tiver isto, isto e aquilo, a gente não põe a mão em vocês”.

Nessa hora, aparecem os esquerdistas, escritores de vanguarda, que se juntam ao coro e dizem “então está bem, vamos produzir um material socialmente redentor que vai estar de acordo com as fórmulas que os direitistas elaboraram”. E, aqui e ali, um escritor direitista vai fazer algo também. William Buckley ou qualquer um. Ele não recusa dinheiro; feministas recusam dinheiro. Pessoas que não recusam dinheiro não são feministas.

Assim, temos esse estupendo contrato social entre direita e esquerda – eles, que fingem estar lutando um contra o outro o tempo todo – que, na verdade, podem colocar no papel qualquer quantidade de exploração do ódio às mulheres, tortura, crueldade e selvageria em suas revistas, bastando embrulhá-la com um aviso de que sim, a publicação está de acordo com os padrões estabelecidos pela Suprema Corte. Basta isso. Eles nem precisam ser plenamente alfabetizados para fazê-lo. Eles, os homens de direita e os homens de esquerda, fazem isso em conjunto. E se você se deixar distrair pela briguinha de masculinidades que eles estão sempre travando, você não verá o fato de que, quando se trata de elaborar este produto chamado pornografia, eles estão de acordo.

O ódio às mulheres contido na pornografia não importa para nenhum dos lados. O ódio às mulheres não é tóxico – para usar uma palavra da moda [3] – nem à direita, nem à esquerda, e isto se refere tanto a mulheres sendo usadas como bichinhos de estimação, como coelhinhos e gatinhas, ou mulheres sendo torturadas. Os caras estão de bem com tudo isso. De ambos os lados.

A maneira pela qual os pornógrafos tocam seus negócios de fato tem a ver com a administração municipal em território nacional. Nós temos prefeituras em cidades por todo o país – compostas por Democratas e Republicanos – que estão tomando decisões inacreditáveis sobre nossas vidas todos os dias. A maior parte de nós é nariz-em-pé demais para prestar atenção nessas coisas. Nós temos ideologias sobre as quais pensar. Nós temos pautas políticas maiores para abocanhar. Enquanto isso, eles estão dando pedaços das cidades aos pornógrafos, naquelas prefeiturazinhas pequenas que não significam nada para nós.

Então você tem os políticos locais que se levantam, como de costume, contra a pornografia, à direita e à esquerda. Os liberais estão chocados – simplesmente chocados – mas precisam defender a pornografia. Eles precisam. Por quê? Quando perguntamos, eles mudam de assunto. O zoneamento é a permissão legal para explorar e traficar mulheres. É isso o que zoneamento significa. O zoneamento não impede a pornografia, apenas a restringe a um bairro específico. A maneira como os pornógrafos conseguem vasto poder municipal é que eles comparecem às reuniões de zoneamento. Eles vão, os advogados deles vão. Eles descobrem quais partes de quais cidades são destinadas para o desenvolvimento da cidade, quer seja no centro comercial, um projeto de moradias ou o projeto de um shopping. Eles vão e compram terra. Eles mantêm a terra refém até que as leis da cidade os favoreçam. Então eles conseguem vender o produto deles – que é o ódio às mulheres – em partes da cidade oficialmente autorizadas. E quais são as partes da cidade que eles ganham? Os lugares com menores concentrações de pessoas brancas, ou com brancos pobres.

Por exemplo, Minneapolis é uma cidade cuja população é 96% branca e 4% racializada, majoritariamente povos originários e negros e negras. Como explicar que 100% da pornografia é produzida nesta última área? Quero dizer que, se a pornografia estivesse caindo do céu, não seria assim.

É isso que acontece. Os lugares onde a pornografia é produzida são economicamente devastados. Negócios legítimos vão embora. Homens e todas as partes da cidade vêm, durante a noite, comprar pornografia e caçar mulheres. Crimes violentos contra mulheres e crianças crescem nesses bairros. Ninguém sai de outros bairros para visitar estes, a não ser que queiram pornografia. Logo temos uma nova forma de segregação espacial na cidade criada pelos efeitos sociais da pornografia. Temos um aumento de violência contra mulheres e crianças.

Então, esquerda e direita cooperam de maneira clandestina. Temos os Republicanos, que às vezes são Democratas, falando dos valores da propriedade. Eles vão proteger o valor da propriedade. Mas quem esses valores protegem? Protegem brancos ricos. É por isso que a pornografia vai parar onde vai parar. E então a esquerda se levanta, furiosa, e fala ‘como vocês podem fazer isso, queremos equidade econômica, não queremos devastação econômica aqui’. A esquerda não faz nada, porque enquanto a direita está defendendo a propriedade, a esquerda está defendendo o discurso.

Temos, agora, em várias municipalidades, uma nova forma de segregação criada pela pornografia. Novas áreas de danos econômicos criados pela pornografia. E temos um novo desespero para as pessoas que vivem ali.

Qual é o papel do Estado nisso tudo? As pessoas gostam de falar do papel do Estado. É abençoadamente abstrato. É como um teste de Rorschach, você pode dizer o que quiser. Ninguém sabe se está certo ou errado. O que eu gostaria de dizer, portanto, é que podemos olhar para um Estado, em particular, este sob o qual vivemos. Podemos olhar atentamente para como ele funciona e como veio a existir.

Algo que parece estar claro é que nem a direita, nem a esquerda, acredita que o papel do Estado é criar justiça econômica ou sexual. Isto parece nítido. Igualdade não é mais um objetivo da esquerda, se isso implicar mulheres. A esquerda desautorizou a igualdade enquanto objetivo, e para a direita, isto sequer foi um objetivo.

E esta é a realidade, e imploro para que vocês pensem nisso quando escutarem sobre a Primeira Emenda. Imploro para pensarem como a Constituição foi manufaturada para proteger a escravidão como instituição; manufaturada para não impedir a escravidão, para não interferir, para não danificar a compra e venda de seres humanos. Não é uma surpresa que o Estado regulado por esta Constituição seja profundamente insensível a crimes de compra e venda de seres humanos.

E eu devo lembrá-los que os Pais Fundadores eram – muitos deles – donos de escravos. Mas especialmente James Madison, que manufaturou a Primeira Emenda, não apenas possuía escravos, como se gabava de gastar doze ou treze dólares anuais para mantê-los vivos, ao passo que lucrava 257 dólares por ano em cima de cada escravo que possuía.

A Primeira Emenda não tem nada a ver com a proteção de direitos das pessoas que foram historicamente gado neste país. E não é uma surpresa que agora a Primeira Emenda esteja protegendo pessoas que compram e vendem seres humanos: A Primeira Emenda está protegendo os pornógrafos. E nos dizem que a liberdade de expressão deles fortalece a nossa. Veja só, eles pegam uma mulher, dez mulheres, trinta mulheres, colocam mordaças em nossas bocas, penduram a gente em algum lugar, e nossa liberdade de expressão ficou maior! Isso desafia a compreensão, mas eles juram de pés juntos que é verdade. Eu sigo dizendo que não é.

Por favor, entendam que agora vivemos em um país onde as cortes estão ativamente protegendo a pornografia e os negócios pornográficos. Quando a lei municipal de direitos civis foi aprovada em Indianapolis, a cidade foi processada uma hora depois, simplesmente por tê-la aprovado. Ela nunca foi usada. A cidade foi processada pela aprovação.

O primeiro juiz, numa corte federal do distrito, era uma juíza apontada por Reagan, uma mulher, uma mulher de direita. Em sua decisão, ela disse que a discriminação sexual não pode pesar mais que a Primeira Emenda. Esta é a posição da direita. A Primeira Emenda é mais importante do que qualquer dano infligido às mulheres. Esta primeira decisão foi apelada. Outro juiz apontado por Reagan, Frank Easterbrook, escreveu o apelo da corte que derrubou a lei municipal. Ele disse que a pornografia faz, de fato, tudo que dizemos que ela faz. Que promove dano e estupro. Ele disse que a pornografia leva a menores salários para as mulheres, que é uma afronta às mulheres, um insulto, uma injúria. Então disse que tudo isto atesta o poder da pornografia como discurso. A possibilidade de a pornografia machucar mulheres é a razão mesma pela qual precisa ser protegida. Um direitista, libertariano, apontado por Reagan.

Sendo assim, e sua teoria diz que a direita é contra a pornografia e usará quaisquer meios para impedi-la de existir, me parece que a realidade te força a mudar tua teoria, pois essa teoria está errada. Tanto direita quanto esquerda concordam que a mulher pendurada em algum lugar é discurso masculino. Discurso de alguém. Vocês entendem que, uma vez transformadas em discurso, viramos propriedade masculina enquanto discurso na era da tecnologia? Uma vez tecnologizadas, somos legalmente seu gado.

Supostamente, a esquerda não está nem aí para o livre mercado. Quero dizer: o livre mercado não é uma invenção da esquerda, certo? Quero dizer, o livre mercado significa vender o que se pode vender, você vende um monte, você aumenta os preços e lucra tanto quanto pode. E o mercado te diz o que é popular, o que não é, o que você pode ou não pode fazer. E se um monte de gente morrer porque eles não valem muito, esse é o custo, porque o maior valor reside na competição do livre mercado.

Talvez você já tenha ouvido a esquerda falar do livre mercado das ideias. Você não deve apenas vender porcos ou gado ou cebolas ou maçãs ou carros, no livre mercado. Existe um livre mercado de ideias. Neste mercado, as ideias competem. E as ideias boas vencem as ruins.

Você talvez pense como eu pensava, que as ideias são inefáveis, não uma commodity. Digo, você não pode pegar ideias no ar e colocá-las no mercado, vendê-las e dizer ‘pesa tanto, então vou vender por tal valor’. O que constatamos é que, se você analisar de quais ideias a esquerda está falando, eles estão falando de mulheres. Eles querem dizer que mulheres estão sendo objetificadas na pornografia, sendo usadas, exploradas. Esse é o tal ‘livre mercado das ideias’. E as ideias são estranhamente parecidas com a gente. Nós somos as ideias, e os caras têm um ‘livre mercado’ para nós. Eles efetivamente têm.

A verdade é que a opressão é uma realidade política. É um estado de arranjos de poder no qual algumas pessoas estão por baixo, e elas são exploradas e usadas pelas pessoas que estão por cima, ou que estão em cima delas. Neste país, onde tudo tem que ser psicologizado, e a seguir usado por sociólogos, nós não falamos de opressão como uma realidade política. Em vez disso, falamos de pessoas como vítimas. Dizemos que Fulana ou Ciclana foi vitimizada. Fulana foi vítima de estupro. É uma palavra sem problema algum. Verdadeira. Se você foi estuprada, foi vitimizada. Pode apostar. Você foi a vítima. Não significa que seja metafisicamente uma vítima, e seu Ser, como se fosse uma parte intrínseca de sua essência e existência. Ser uma vítima significa que alguém te machucou. Eles prejudicaram você.

E se isso acontece com você sistematicamente por você ter nascido mulher, isso significa que você vive em um sistema político que usa a dor e a humilhação para te controlar e prejudicar. Uma das coisas que nos aconteceram é que um monte de gente nos disse que somos vítimas porque nos sentimos assim. Nós sentimos isso, é um estado de espírito, é uma reação emocional desproporcional. Nós sentimos isso. Não é algo que nos aconteceu; em vez disso, nós estamos num estado de espírito ruim. E as feministas somos responsáveis por esse estado de espírito, porque fazemos com que mulheres se sintam vitimizadas.

Quando apontamos que um estupro acontece a cada três minutos [nos EUA] [4] , que uma mulher apanha a cada dezoito segundos, e dez bilhões de dólares são gastos para assistir esses estupros, por diversão, dólares gastos para vê-las sendo exploradas e objetificadas por diversão, e se você não se sente um pouco lesada, um pouco diminuída, me parece que você não apenas é uma vítima, como já está meio morta, totalmente anestesiada e é verdadeira tola. 

A exploração é real e identificável, e lutar contra ela te deixa forte, e não o contrário. A violação sexual é real, e é intolerável, lutar contra ela te faz forte, e não fraca. E a direita como a esquerda – tanto faz se é a Phyllis Schlafly dando palestra sobre como você não teria sido assediada se tivesse sido virtuosa, ou a esquerda explicando que você deveria celebrar sua sexualidade, esquecendo sobre estupro, deixando isso pra lá, pra não trazer bad vibes, não se vitimizando – ambos querem mulheres aceitando o status quo, para viver no status quo e não se organizarem politicamente na resistência sobre a qual eu falei antes. Porque o primeiro passo em resistir à exploração é reconhecê-la, vê-la, sabe-la, e não mentir sobre onde ela aperta o seu calo.

O segundo passo é se importar o suficiente com outras mulheres. Se hoje você está bem, e ontem você estava bem, mas a sua irmã, a que está pendurada em uma árvore, não estiver bem, você vai lá cortar a corda.

O feminismo é a oposição ao ódio às mulheres para, assim, construir uma sociedade realmente igualitária. E não pode haver qualquer movimento de mulheres enraizado na defesa política do ódio às mulheres. Aqueles que acham tudo bem odiar as mulheres – não são feministas. Não são. Aqueles que acham tudo bem de vez em quando, aqui e ali, onde eles gostam, onde eles têm prazer – especialmente prazer sexual – com o ódio às mulheres, não são feministas também. E as pessoas que acham o ódio às mulheres terrível em certos lugares, mas tudo bem na pornografia, porque pornografia causa orgasmos, essas pessoas não são feministas. Pornografia causa orgasmos em pessoas que odeiam mulheres – com certeza. E pessoas que odeiam tanto as mulheres que acreditam que sua exploração seja discurso ou ideia não são feministas. Pessoas que acreditam que mulheres não são exatamente humanas, tão humanas quanto eles, ou que as mulheres na pornografia não são tão humanas quanto eles, não são feministas. Qualquer um que defenda aqueles que odeiam as mulheres, que produza ódio às mulheres, que produzam pornografia, que celebrem ódio às mulheres no sexo, essas pessoas não são feministas.

Eu gostaria de ver este movimento retornar ao que chamo de feminismo primitivo. É simples. Muito simples. Significa que quando algo fere mulheres, feministas se colocam contra isso. O ódio às mulheres prejudica as mulheres. Pornografia é ódio às mulheres. Pornografia prejudica as mulheres. Feministas são contra a pornografia, e não a favor.

DWORKIN, Andrea. “Woman-Hating Right and Left”. IN: LEIDHOLDT, D. and RAYMOND, J. The Sexual Liberals and their Attack on Feminism. New York: Teachers College Columbia University, 1990. Tradução por @taticafeminista.


Notas:

[1] No Brasil, 40% dos casos de pedofilia são cometidos pelos pais. (https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/ministerio-divulga-dados-de-violencia-se xual-contra-criancas-e-adolescentes)

[2] No Brasil, em 2020, foram espancadas 17 milhões de mulheres, o que equivale a 8 mulheres por minuto. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

[3] No original, “ofender” foi a palavra usada por Dworkin. Mesmo que “tóxico” e “ofender” não sejam sinônimos, nem mesmo estejam na mesma classe gramatical, o adjetivo “tóxico” tem sido usado frequentemente para designar o que se podem considerar comportamentos desagradáveis, ofensivos ou violentos. E, claro, nem a direita nem a esquerda acham que a pornografia seja “tóxica”.

[4] Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dez minutos uma mulher foi estuprada no Brasil em 2021.

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Artigos inéditos

Por que as mulheres têm rejeitado a esquerda?

Nessas últimas eleições municipais, uma euforia otimista tomava os candidatos e militantes em campanha, uma resposta natural da luta contra a onda conservadora bolsonarista. No entanto, o efeito que repercutiu nas urnas foi o do refortalecimento da direita “normal”: ainda que o bolsonarismo tenha perdido bastante do seu espaço na esfera municipal, a esquerda retrocedeu mais uma vez. Aumentou o número de mulheres concorrentes e eleitas, e houve algumas primeiras nesse pleito. Aumentou também a participação política das mulheres da direita, buscando se colocar como alternativa ou ocupando o posto de vice, fazendo campanhas que se valiam de sua condição de mulher como atributo positivo para os cargos aos quais pleiteavam. “A mulher mais votada do Brasil”, no entanto, não é uma mulher, assim como alguns outros casos que vêm sendo computados na conta delas. Isso significa muito pouca mudança no panorama representativo, porque mesmo que se afirmem mulheres, essas pessoas não se interessam nem apóiam as urgências específicas da nossa condição sexual.

Quadrinho de Tatsuya Ishida.

Ainda que haja a preocupação com alguns temas que afetam mulheres, pelo menos na teoria, é somente quando elas estão à frente desses projetos que eles avançam, como foi o caso da Lei Maria da Penha, cujo projeto foi relatado por Jandira Feghali. O último avanço na legislação do aborto, o caso dos anencéfalos, foi uma decisão do STF de 2013, baseada em uma argüição da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde; perdeu-se no tempo a última vez em que a esquerda fez algum movimento ativo em direção a conquista da autonomia reprodutiva das mulheres. Por outro lado, projetos carentes de embasamento teórico-científico (ou mesmo dados demográficos básicos) que batem de frente com os direitos a princípio garantidos das mulheres e comprometem sua liberdade e segurança — como os PL João Nery e Gabriela Leite — foram discutidos em um momento em que o Brasil vivenciava o finzinho da sua última onda progressista. Quando a esquerda abraça uma “diversidade” baseada em sentimentos e autoidentidades, não há o que lhe faça olhar para a situação das mulheres, ao contrário: os direitos femininos param de importar.

Existe um punhado de interesses imbricados no que se convecionou chamar de “diversidade” e não é à toa que os patrocinadores dessa causa enfiam tanto dinheiro nela: os objetivos de um movimento como o transativismo não se resumem a acabar com o feminismo. O feminismo é, antes, a pedra no sapato deles, as mulheres inconvenientes que aparecem para acabar com a graça. O que o transativismo promove são ideais masculinistas, fetichistas, e até transhumanistas, uma vez que enxergam o corpo humano como descartável ou substituível por próteses, abrindo caminho através das possibilidades plásticas da Medicina e com a bênção de alguns de seus especialistas. O desprezo pela realidade de carne e osso dos corpos das mulheres fica visível quando seus membros se posicionam favoráveis a exploração sexual — vide o PL Gabriela Leite citado acima —, ao mesmo tempo em que se horrorizam com um cafetão lavajatista; ou ainda quando a gravidez subrogada aparece como alternativa para casais homossexuais, que só não virou pauta por essas bandas ainda por mera questão de a esquerda ter sido atropelada pelo trem do bolsonarismo. Nada disso é novidade, apenas fruto de décadas de disputas internas da maioria masculina que controla a esquerda institucional e mulheres buscando participar na política.

Dado que a esquerda se aboletou dessa esfera pública de atuação, as poucas mulheres que resistem são levadas a um discurso de apaziguamento das diferenças — onde foi parar a diversidade? —, tendo que lidar com masculinistas fantasiados de gravata e de batom. Muitas desistem dessa disputa de soma-zero, às vezes obrigadas a se calarem, quando se dão conta de que a esquerda não se interessa pelas mulheres em sua prática política: a esquerda geralmente “endireita” quando o assunto é mulher. A diferença entre o masculinismo praticado pela direita do masculinismo de esquerda é que os homens do lado de “cá” precisam ser um tanto mais criativos — e ridículos, a ponto de não se diferenciarem da sátira — se quiserem continuar se beneficiando da exploração das mulheres ao mesmo tempo em que buscam passar uma imagem moral condizente com os ideais que pregam e afirmam praticar. Existem mil maneiras de ser misógino, eles apenas inventaram mais algumas.

Programa de humor, ou horário eleitoral gratuito?

À direita, até existe a preocupação de formar politicamente as mulheres que se interessam a militar dentro dos termos dos interesses dos partidos, mas essa empolgação é similiar ou pior que na esquerda: como na esquerda, as mulheres se filiam pela vontade de atuar e terminam tendo que alinhar expectativas caso queiram poder fazer qualquer coisa. Mesmo que a tentativa de disputar o espaço político institucional seja louvável e a resistência das eleitas naqueles lugares já conquistados seja essencial para o movimento de libertação das mulheres, é preciso romper esse ciclo masculinista. A esquerda em disputa não tem como ser conquistada com pedidos encarecidos aos companheiros: mulheres reais estão tendo problemas reais em virtude do masculinismo praticado por homens de todo o espectro político que, se de um lado, não se fazem de rogados no que diz respeito ao papel subalterno que reservam às mulheres, de outro, dizem que eles mesmos é que encarnam o nosso papel, e reservam a nós algo não muito diferente. À esquerda e à direita, as mulheres são empurradas para fora: as mulheres são um Terceiro Excluído no diagrama do espectro político.

Isso não significa dizer que “é tudo a mesma coisa”. Historicamente, a esquerda é a posição daqueles que advogam pela mudança, pela emancipação dos povos, pelo fim do sofrimento daqueles oprimidos pelas estruturas de poder. Escolher entre Bolsonaro e Haddad claramente não é “uma escolha muito difícil” para as mulheres feministas. Se é verdade que Haddad está a anos-luz de distância de Bolsonaro, também é verdade que ele nunca se portou como um aliado de mulheres, muito pelo contrário: seu programa da gestão municipal que visava auxiliar na formação de pessoas em situação de prostituição simplesmente não incluía mulheres, o grupo demográfico mais numeroso e prejudicado na exploração sexual.

Mesmo assim, as mulheres continuam sendo admoestadas à fidelidade de uma forma que nem os seus correligionários mais ilustres sustentam. Não se vê por aí o tipo de cobrança que as mulheres sofrem para serem puras e fiéis ao único lado do espectro que lhes promete alguma salvação, nominal e cheia de ressalvas. Por ousarem verbalizar as suas necessidades e priorizar a associação com outras mulheres igualmente interessadas em nossa libertação coletiva, mulheres são forçosamente rotuladas de “direitistas”, ainda que elas é que se mantenham coerentes com o compromisso da mudança social. O espaço que a esquerda costumar “ceder” para as mulheres sempre foi limitado: em geral, elas o tomam por sua própria competência no jogo político, por sua habilidade de navegar esses entraves todos. O transativismo aparece em um momento em que as mulheres brasileiras não se contentam mais com a subordinação que lhes é forçada e lutam em todas as esferas para se libertarem. É justamente por isso que a campanha do transativismo acontece na disputa pelo significado do sujeito político do feminismo; isso não é uma coincidência. Como a esquerda não vai nem pode sair de si mesma, as mulheres se vêem sem opção: a opção é fazer concessões demais a qualquer lado que se escolha.

O que significa “se associar à direita” quando se trata de mulheres, se os interesses das mulheres raramente estão na pauta da esquerda? Os direitos das mulheres são para quem, senão para todas, inclusive para as conservadoras, as esposas perfeitas, as alienadas politicamente…? Por que nem ao menos conversar com mulheres de outra visão e repertório, mas com interesses comuns, nós podemos? O que a esquerda teme que aconteça a elas se se aproximarem de outras mulheres? Quando foi que mulheres realmente conseguiram alguma coisa que não através de uma coalizão ampla, sem interesses masculinos e masculinistas atrapalhando? Liberais de direita e esquerda se valem do “progressismo” e das associações mais espúrias quando conveniente, mas mulheres são desencorajadas a se associarem entre si em troca de uma promessa vazia.

Falta à esquerda voltar às suas raízes e abandonar essas modas que, crias de seu próprio ambiente intelectual, casam direitinho com as políticas neoliberais e individualistas de direita a ponto de serem praticamente indistinguíveis. Cabe a nós, feministas radicais, sermos mais uma vez as portadoras das más notícias: sendo metade da mão de obra, da população, dos eleitores habilitados a votar, metade de todas as pessoas do mundo, não somos nós, mulheres, que lhes devemos fidelidade; a esquerda que lute na recuperação da nossa confiança para trabalharmos juntos. Nós simplesmente não temos porquê nos defender das acusações infundadas do crime de “associação à direita”, porque esse tipo de acusação só serve para tirar de nós um reforço de complacência: não somos nós que temos que convencer mais da metade do eleitorado de que temos uma boa proposta (ou mesmo qualquer proposta) para as mulheres enquanto agimos como um bando perverso. As mulheres não perdem nada se unindo e organizando uma pauta comum em função de seus próprios interesses, uma vez que essas oportunidades nos enriquecem na troca de experiências das diferentes formas de ser mulher e de suas muitas necessidades compartilhadas. Somos nós que estamos só começando, viu, Sabrina!