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Prestes a virar o jogo: um manifesto radical

A revolução das mulheres é inevitável. Libertar-se da dominação masculina é por vezes visto como algo utópico, uma impossibilidade essencialmente vinculada à nossa condição material e biológica de gestadoras da humanidade, mesmo por algumas daquelas que anseiam muito essa liberdade. Mas, como dizia Shulamith Firestone em 1970, a situação atual exige essa revolução, e as pré-condições necessárias para que essa revolução aconteça já existem em alguns lugares. É apenas uma questão de tempo para tal, e depende fundamentalmente de as mulheres não cederem os espaços que com tanta dificuldade conquistaram. Exige, portanto, um tratamento radical. Os homens (que podem parecer, mas não são de todo ignorantes) sabem disso e é por isso mesmo que estão tão empenhados na busca por substitutxs.

Audre Lorde

As evidências dessa busca estão em todos os lugares. Uma vez que a revolução feminista já começou, está acontecendo, é contagiosa e pode em breve se concretizar, os homens buscam já há muito alternativas à mulheridade. Essa busca é por alternativas a habilidades que só as mulheres possuem e pode ser observada através de alguns exemplos: na industrialização e substituição do leite materno por fórmulas, que em 1977 provocou protestos em todo o mundo contra a Nestlé, quando crianças de países subdesenvolvidos sofreram as consequências da falta de nutrientes e da irresponsabilidade dos industriais que jogaram no mercado esses produtos sem fazer testes exaustivos; nas pesquisas em reprodução humana, algumas visando realizar transplantes de útero em indivíduos do sexo masculino, ou até mesmo a busca da gestação completa fora do órgão materno, em um mundo superpovoado e repleto de crises migratórias onde “falta de gente” não é um problema; na indústria da beleza, que utiliza corpos de mulheres como cobaias de suas aberrações cirúrgicas e de seus produtos desnecessários, e busca conformar seus corpos a um padrão irreal; nos testes antiéticos para o desenvolvimento e a recomendação irresponsável do uso de pílulas anticoncepcionais a mulheres jovens; na medicalização da infelicidade de pessoas a respeito dos papéis sociais, expectativas e estereótipos atribuídos a si em virtude de sua condição sexual… A lista é imensa.

Hoje, a principal força da dominação masculina diretamente envolvida nessa busca de alternativas ao corpo fêmea é provavelmente a ciência médica. Estabelecida e formalizada a partir do sequestro dos saberes populares que ficou conhecido como “caça às bruxas”, é de certo um dos pontapés fundamentais do início da chamada Era Moderna, período histórico onde alguns dos grilhões mais pesados do patriarcado tiveram reforço. Ela não atua sozinha, porém. Necessita de um grande aparato ideológico/epistemológico, infiltrado em movimentos sociais legítimos, para fazer suas ideias passarem. Apesar de ainda estarmos nas bordas do oceano cósmico em termos de saber científico e não termos como prever as implicações a longo prazo dessas intervenções todas, pessoas desinformadas ou deliberadamente instrumentalizadas em favor da construção dessa “mulher ideal” — em oposição a mulheres reais, vivas, sencientes e conscientes — estão propagando um duplipensar, onde ideias opostas ao feminismo são tidas como feministas. A alternativa à mulheridade se desenvolve, portanto, em um cenário onde a verdade já não importa, e o que vale é uma crença em uma verdade alternativa.

Uma das forças ideológicas empenhadas nessa desconstrução — literal e simbólica — da mulher, é a prostituição da sexualidade. Ao mesmo tempo em que ideias anti-feministas buscam tirar o sexo do centro da análise feminista, há a tentativa de convencer mulheres de que as fantasias masculinas de dominação são a única alternativa existente à sexualidade, e que todas as suas manifestações seriam legítimas. O “espaço para negociação” aí existente, defendido por alguns teóricos da sexualidade — comprometidos conscientemente ou não com a exploração das mulheres —, busca nominalmente romper com as regras ao mesmo tempo em que cria uma série de regulações que mantém as estruturas exatamente onde elas já estão. Isso fica evidente não apenas na prostituição propriamente dita, mas também na pornografia mainstream e sua “guinada à esquisitice” nas últimas décadas, com a expansão da internet e a exaustão da pulsão sexual viciada sempre em busca de novidades.

Existem pelo menos dois argumentos que buscam sustentar a separação da sexualidade em um reino específico das práticas humanas, que se pretende libertador, mas esquece que essa “liberdade” se dá na exploração das mulheres. Um deles é o de que “a pornografia existe desde tempos imemoriais” — o que, segundo esses ideólogos, estaria evidente nos mitos gregos e japoneses, nos grafites da Roma Antiga, e nas ilustrações e representações de “atos sexuais” ao longo dos tempos. Esse argumento ignora que tanto os exemplos utilizados se dão em contextos onde a dominação masculina foi ainda mais forte do que é hoje nesses mesmos territórios geográficos, e também que a pornografia hoje, inserida na lógica capitalista de produção, é ordens de magnitude diferente desses exemplos; portanto, comparações bastante longe de fazerem sentido. O segundo dos argumentos utilizados para essa normatização da sexualidade é o de que “prostitutas têm a profissão mais antiga do mundo”, se fundamentando nas chamadas prostitutas sagradas, ignorando todo o período anterior ao estabelecimento do patriarcado e fazendo uso de uma comparação errônea do modo como se davam os cultos e seus significados nos mais variados tipos de religiões da Antiguidade, e que essas religiões sofreram mutações influenciadas pela progressiva dominação masculina. Esse argumento falha em ver a prostituição como inerente ao militarismo que tornou possível essa dominação, e se faz de cego frente a uma divisão das mulheres em classes úteis ao patriarcado: a dicotomia santa x puta.

Frente a todos esses fatos e contextos, como construir uma revolução de mulheres?

O feminismo, como campo de conhecimento e movimento social, já possui alguma das bases teóricas e estratégicas para virar o jogo. Uma vez que muito desse trabalho já foi feito, não precisamos reinventar a roda: nos resta respeitar o legado das feministas que vieram antes de nós e estudar os seus tão preciosos insights. O feminismo não é qualquer coisa que uma mulher queira, seja ela uma mulher específica ou pertencente a um determinado grupo. Estamos dando continuidade a um trabalho que já começou, não precisamos reconstruir o movimento do zero toda vez que uma crise nova se abate sobre ele, e essa busca por uma “mulher alternativa” ainda mais submissa do que qualquer mulher é capaz de ser é um resultado da eficiência de nossa militância. O feminismo não sai da cabeça de uma única mulher, mas deve ser uma construção coletiva com objetivos universalistas: as nossas demandas precisam atender a todas as mulheres, principalmente no que diz respeito à sua situação enquanto mulheres. Existir em um mundo organizado pela dominação masculina em um corpo fêmea é qualitativamente diferente de habitá-lo em um corpo macho. As forças que buscam nos dominar o sabem muito bem, e é importante que nós também saibamos.

Não compactuar com os valores e instituições que reforçam essa dominação, e parar de canalizar nossas energias nos homens e nos seus objetivos para nos centrarmos nas mulheres é essencial para evitarmos a instrumentalização do movimento. Não se faz isso mergulhada em ignorância, atemorizada pelo medo de pensar ou questionar ideais anti-feministas que venham disfarçados em pele de cordeiro. É preciso uma militância baseada em objetivos, que se foque tanto na conscientização de suas membras quanto nos objetivos comuns das mulheres. Isso começa somente quando reconhecemos nas nossas iguais as nossas lutas e dificuldades conjuntas, e compartilhamos forças na construção de uma utopia feminista.

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Masculinismo de esquerda

A batalha no campo ideológico é uma batalha pela posse dos significados. Uma vez com poder para nomear e conceituar — e a infraestrutura necessária para fazer esses nomes e conceitos circularem por aí —, é possível fazer um baita estrago na mente das pessoas. Uma turma que tem deixado bastante a desejar nesse sentido é a tal da esquerda. Fragmentada (pra variar) e sem um projeto político coletivo realmente significativo, esse grupo de pessoas autoidentificadas com os valores desse lado do espectro político grita palavras de ordem e frases feitas que não faz a menor ideia de onde vieram. Na primeira oportunidade, prova a eficácia da Lei de Godwin na internet com acusações rasas de “fascismo”.

Um ato comum na esquerda é comparar feministas radicais com a direita. A Maisa já fez um texto que vale muito ser lido sobre isso, mas as ideias aqui meio que se completam [1]. Na mesma linha de raciocínio que a minha, ela destaca que, não é porque dois grupos apontam para o mesmo problema que eles enxergam as suas implicações de modo igual. Pelo contrário: afirmar esse tipo de coisa é atestado de desconhecimento completo das discussões que acontecem sobre assuntos onde qualquer um dos lados do espectro político têm interesses comuns. É de um simplismo que, se não estivéssemos tão acostumadas com o simplismo com que a esquerda costuma tratar “a questão da mulher”, já tínhamos desistido e/ou botado fogo na porra toda. Se dois grupos apontam para um problema, ainda que com visões tão díspares, isso só prova que o problema existe e que existe consenso, pelo menos, a respeito dessa existência. Tem gente que é canalha, mas canalha não é sinônimo de burro.

Quando a esquerda aponta para o movimento das mulheres e, conforme seus próprios critérios difusos, tenta determinar qual o modo correto de se fazer feminismo, é possível identificar aí pelo menos dois problemas. O primeiro deles é o problema óbvio de sentar no próprio rabo e fazer de conta que eles, a esquerda, sabe jogar o jogo político, algo que os últimos anos têm mostrado que não é verdade. O segundo problema é o de assumir a priori um caráter “identitário” para o feminismo, como se a luta do movimento das mulheres fosse contra “estereótipos” e “discriminações”, exatamente igual a qualquer outra luta de “minorias” que não possua a mesma prioridade que a tão sonhada e prometida revolução dos trabalhadores. Fato é que a esquerda nunca deu muito espaço para as mulheres para além da copa e da cozinha; elas é que tiveram de tomá-lo para si dentro desses movimentos mistos, isso quando não vencidas pelo cansaço.

Todo esse prelúdio foi só para preparar o terreno para o que quero abordar a seguir, o grande motivador para eu ter tirado a poeira do blog: o famigerado vídeo do MamãeFalei na oficina de masturbação feminina [2].

Houve todo um cuidado por parte das organizadoras do evento de deixar claro que se tratava de um evento para mulheres. Mulheres mesmo, as fêmeas da espécie humana. O problema é que relacionar “fêmea humana” ao termo “mulher” é hoje um pecado conceitual. Carreiras políticas e profissionais de mulheres estão sob constante risco de desmoronarem por conta do uso de uma palavra “errada”, mais até que as carreiras políticas e profissionais de homens abusadores, mesmo quando esses abusos acontecem dentro dos ambientes da própria esquerda. Seja por um medo legítimo de desenhar sem querer um alvo nas costas ou por uma crença legítima de que a mulheridade é uma essência a ser sentida a nível cerebral e manifestada no vestuário da seção feminina da Pernambucanas, essas mulheres abriram mão dos termos (e, consequentemente, dos espaços) que a nós nos são caros em nome da “inclusão” (de quê? de quem?), e não souberam peitar um babaca vestido de cachorro-quente cor-de-rosa.

O resultado é que um evento de mulheres voltado a educação sexual é dissolvido em poucos segundos pelo simples fato de o troll profissional que é o MamãeFalei dizer que é uma mulher. A autodeclaração nesse sentido é soberana, e nenhuma das presentes conseguiu questioná-lo quando ele pediu um critério objetivo que pudesse justificar sua exclusão do evento. Ter pinto numa oficina sobre masturbação feminina, aparentemente, não era um deles. Mulheres, e o ser/estar num corpo fêmea, com tudo o que isso acarreta, não são mais uma prioridade no movimento das mulheres, porque algumas pessoas que não são mulheres podem alegar que o são. Pela própria lógica das ideias antifeministas que se infiltraram no movimento através da livre possibilidade de se cruzar essa linha definidora, é impossível questioná-las e estabelecer limites. Não se pode usar certas palavras, porque qualquer escorregada no correto uso da novilíngua masculinista de esquerda pode levar ao temido “essencialismo”, seja lá o que queiram dizer com isso.

Não é a primeira vez que esse tipo de coisa acontece, e não vai ser a última. Não apenas porque casos assim abundam na história recente dessa “insurgência feminista” que vemos acontecer na internet nos últimos anos — vide o caso do Encontro das Mulheres Estudantes poucos anos atrás, onde um sujeito barbado emprestou uma saia, trocou de nome e insistiu para participar de um evento exclusivo de mulheres; vide, também, o caso do ato do último 8 de março no Rio (8MRJ), onde mulheres foram ameaçadas de violência por homens com escolhas peculiares de vestimenta apenas por não se submeterem à ideia de que 2 + 2 = 5; ou ainda a última Caminhada das Lésbicas e Bissexuais de São Paulo, onde um grandalhão de vestido e batom disse em visível tom de ameaça que pintos são vaginas com formatos diferentes e que quando mulheres não os aceitam em suas relações lésbicas, isso o deixa triste e é errado. As histórias da Primeira e Segunda Ondas feministas são cheia de exemplos didáticos de problemas que até hoje as mulheres enfrentam em militância mista.

Quando as mulheres deixam essas infiltrações masculinas/masculinistas acontecerem, seja porque esses homens são seus aliados, seus maridos, seus “iguais” (no caso do transativismo), ou seus companheiros de luta, o movimento das mulheres enfraquece. O MamãeFalei estava lá sob o pretexto frouxo de “meus impostos, dinheiro público, tenho direito de estar aqui” [3] — obvious troll is obvious —, mas seu ato provou o ponto das feministas radicais: basta um homem alegar que é mulher, e as mulheres aceitarem essa redefinição (acreditando ou não na pessoa que faz essa autoafirmação), para um espaço de mulheres deixar de existir.

Nosso problema principal enquanto movimento político — e, principalmente, como movimento de massa supostamente politicamente engajado e ligado em rede — é não saber fazer política. Quando não tercerizamos essa política a quem “entende”, a quem tem “acesso”, a quem “já está lá dentro e é nosso aliado” (homens), interpretamos mal a frase da Carol Hanisch e atribuímos a vontades individuais de mulheres específicas o rótulo de “pauta feminista”, tomando como certo tudo o que temos hoje. Ignoramos a história e os feitos do movimento das mulheres. Não fazemos a mais remota ideia de como foi que conseguimos, em menos de cinquenta anos, ir de um estado onde tínhamos os mesmos direitos e autonomia de uma criança a poder trabalhar fora e sair de casa sozinha tarde da noite, apesar da possibilidade de assédio e violência. Precisamos tomar não só a palavra e os espaços, mas criar os nossos próprios, e resistir às tentativas de invasão que, certamente, vêm. Não porque temos um direito adquirido e legitimado pelo nosso “local de fala”, mas porque é urgente que o façamos. Precisamos do feminismo , e não só depois que acontecer a tão esperada revolução do proletariado.


[1] Na mesma época em que a Lila estava escrevendo o texto dela, eu também estava rascunhando esse aqui. Acabei me enrolando porque obviamente sou muito mais incompetente nesse negócio de escrever que ela.

[2] Aqui é a deixa para você, querido e dissonante leitor de esquerda, incluir sua comparação rasa de mim com militantes de direita. Vai que é tua, campeão!

[3] A assembleia legislativa da cidade dele garanto que não invadiu pra saber o que fazem com seus impostos.