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Sadomasoquismo: O Culto Erótico do Fascismo

Comentário da autora: Esse artigo foi escrito em 1984, quando eu [Sheila Jeffreys] fazia parte do grupo Lésbicas Contra o Sadomasoquismo em Londres. As feministas lésbicas na Grã-Bretanha sabiam dos desenvolvimentos do sadomasoquismo lésbico nos Estados Unidos, mas nenhum grupo havia se reunido no entorno deste assunto até que o novo London Lesbian and Gay Center concordou que sadomasoquistas deveriam ser aceitos lá. Os eventos dessa época são descritos no capítulo “A Pale Version of the Male” no livro The Lesbian Heresy. O artigo foi originalmente escrito para uso do próprio grupo, e também foi distribuído em forma de fotocópias para outras lésbicas interessadas. Ele não deve ser considerado uma afirmação definitiva das políticas do grupo, mas uma visão individual. Em 1986 ele foi publicado na Lesbian Ethics nos Estados Unidos.


Cartaz do filme The Night Porter (1974). Arte de Liliana Cavani.

Soube das ligações entre o sadomasoquismo e o fascismo em 1981, quando visitei Amsterdam vinda de Londres para participar de um festival de mulheres. Um tema importante do festival, senão o principal, era o sadomasoquismo. As mulheres do festival de Amsterdam demonstravam cenários sadomasoquistas, por exemplo, um homem transexualizado chicoteando uma mulher, ambos vestidos em roupa fetichisticamente “feminina” e couro negro. Um número considerável de mulheres no festival estava vestida de couro negro, e algumas usavam coleiras e guias enquanto eram conduzidas por outras mulheres. As oficinas que promoviam o sadomasoquismo argumentavam com base na liberdade pessoal para as minorias sexuais. Os seus promotores argumentavam que o sadomasoquismo era basicamente um assunto privado, ainda que os praticantes de sadomasoquismo tivessem que “sair do armário” por serem oprimidos por preconceito e discriminação contra as práticas sexuais de sua preferência.

Na mesma semana em que o festival aconteceu, o primeiro membro fascista do parlamento foi eleito em Amsterdam desde a guerra. Houveram brigas de rua naquele fim de semana nas quais fascistas celebraram batendo em membros da população imigrante de Amsterdam, e uma rede de contatos por telefone teve de ser operada para distribuir os antifascistas a diferentes partes da cidade para resistirem à violência racista. As feministas de Amsterdam que me contaram da violência e do triunfo eleitoral não viam nenhuma conexão entre o aumento do fascismo e a promoção do sadomasoquismo como uma prática sexual. Elas aceitavam que o sadomasoquismo era simplesmente uma questão pessoal. Eu não estava convencida. Uma importante estação policial de Amsterdam ficava na mesma rua do prédio onde aconteceu o festival, o Melkweg. Fora do prédio do festival havia um poster gigante de uma mulher nua com suas mãos amarradas às costas. A mulher escrava estava do lado oposto da estação policial. Ela não me parecia representar um símbolo de provocação. Parecia mais que o sadomasoquismo, a polícia, a crescente ameaça fascista, os meninos adolescentes que jogaram pedras em mim e em minha namorada por andarmos de mãos dadas na rua depois do festival, tinham muita coisa em comum. Qual era o fio que os ligava?

Berlim nos anos 1930

Existe um exemplo histórico da conexão entre sadomasoquismo e fascismo que ignoramos, e que nos prejudica. Antes de os nazistas dominarem na Alemanha em 1933, o sadomasoquismo estava florescendo e crescendo enquanto prática sexual, particularmente entre homens gays. Christopher Isherwood, um novelista britânico gay que viveu em Berlim naquela época, deixou um registro escrito dos flertes com o sadomasoquismo que estavam acontecendo não apenas entre os gays, mas também entre a juventude alienada e desempregada da Alemanha. Em um livro de 1962, Down There on a Visit, Isherwood discorreu sobre as conexões entre o sadomasoquismo e o crescente fascismo em suas descrições de um jovem alemão, Waldemar.

Tenho certeza que Waldemar instintivamente sente a relação entre as cruéis senhoras vestidas de botas que costumavam frequentar seu comércio fora da Kaufhaus des Westens e os jovens valentões em uniformes nazistas que estavam lá naqueles dias agredindo os judeus. Quando uma senhora dessas reconhecia um cliente promissor, ela costumava arrastá-lo, puxando-o para um táxi e o batia com um chicote. Os garotos da SA não fazem exatamente a mesma coisa com os seus fregueses — exceto que, nesse caso, o chicoteamento é fatal? Um não era uma espécie de ensaio psicológico para o outro? [1]

Martin Sherman usa o sadomasoquismo como um tema subjacente importante em sua poderosa peça chamada Bent. A peça abre com o personagem principal, Max, pegando e levando para casa consigo, presumivelmente para sexo a três com seu amante, um jovem homem vestido de couro que praticava sadomasoquismo. Na manhã seguinte, os oficiais da Gestapo chegam à procura do jovem alemão e cortam sua garganta. O ano é 1934. Max e seu amante estavam então foragidos. Depois que seu amante foi morto, Max acabou em um campo de concentração. Na cena mais comovente da peça, Max e um companheiro de cela, que estava no campo porque assinou uma petição que repelia o estatuto alemão contra a homossexualidade, interagem sexualmente apenas conversando, enquanto moviam pedras sob vigilância pesada. Max é incapaz de fazer sexo sem dor e inclui mordidas dolorosas nos mamilos durante a fantasia falada. Horst, o amante, reclama e relaciona o sadomasoquismo com o fascismo que os aprisionou.

Horst: …Você tentou me machucar. Você me conforta, e então me machuca. Já estou machucado o suficiente. Não quero mais sentir dor. Por que você não pode ser gentil?
Max: Eu sou gentil.
Horst: Não, você não é. Você é como eles. Você é como os guardas. Você é igual a Gestapo. Nós paramos de ser gentis. Eu observei, enquanto estávamos lá fora. As pessoas fazem dor e chamam de amor. Eu não quero ser assim. Não se faz amor para machucar. [2]

A peça relaciona o sadomasoquismo de Max à sua inabilidade de aceitar sua homossexualidade e realmente amar outro homem. Ao fim da peça, embora Horst seja morto, Max alcança algum tipo de triunfo moral e pessoal ao demonstrar que ele ama Horst, ao deliberadamente vestir o triângulo rosa dos homossexuais e caminhar em direção à cerca elétrica.

A tragédia da prática sadomasoquista nos anos 1930 em Berlim era que os cenários que os homens gays estavam encenando para seu desfrute sexual, complementados com os uniformes nazistas, eram apenas uma antecipação da grande violência que cairia sobre eles, vinda dos valentões fascistas, quando esses homens gays foram internados em campos de concentração. A experiência dos homens gays nesses campos é graficamente descrita no livro de Heinz Heger, The Men with the Pink Triangles. Um exemplo de tortura e morte de um prisioneiro gay é interessante pela forma com que esclarece como funciona a prática sadomasoquista.

O primeiro “jogo” que o sargento da SS e seus homens faziam era fazer cócegas em suas vítimas com penas de ganso, nas solas dos seus pés, entre suas pernas, nas axilas e em outras partes de seu corpo nu. A princípio, o prisioneiro se forçava a manter o silêncio, enquanto os seus olhos se contraíam de medo e tormento, olhando de um homem da SS para o outro. Até que ele não podia mais se conter e finalmente explodia em uma risada aguda que logo se transformava em um choro de dor, enquanto lágrimas escorriam de seu rosto, e seu corpo se retorcia contra as correntes…
Mas os homens depravados da SS estavam prontos para se divertir ainda mais com a pobre criatura. O chefe do bunker trouxe duas tigelas de metal, uma cheia de água fria e outra com água quente. “Agora nós vamos cozinhar seus ovos, sua abominação suja [filthy queer, no original], logo logo você vai estar quentinho”, disse o oficial do bunker alegremente, levantando a tigela de água quente entre a virilha da vítima de modo que suas bolas fossem mergulhadas nela…
“Ele é um fodido, não é?, que tenha o que tanto quer”, rosnou um dos homens da SS, pegando uma vassoura que ficava no canto e enfiando o seu cabo no ânus do homem… [3]

Eventualmente o homem foi morto ao ser atingido na cabeça por uma pá de madeira.

As descrições a seguir são de um capítulo de uma cartilha lésbica sobre como praticar sadomasoquismo com segurança.

Fisting ou fistfucking significa mover a mão inteira dentro ou para dentro para fora da vagina ou do reto de alguém. A introdutora começa colocando um ou dois dedos dentro de sua parceira, colocando um dedo de cada vez, e dentro de alguns minutos o movimento estimulatório entre eles aumenta, até que ela coloca toda a sua mão lá dentro, até que os dedos se curvem para preencher o espaço, formando um “punho”. Neste ponto, a inclinação usual da pessoa que está recebendo a ação é pedir “dá para colocar mais?”
A primeira coisa a se fazer antes de qualquer fisting é manter as unhas curtas e sem rebarbas. Suas unhas devem ser cortadas bem rentes, e então polidas com uma lixa ou lima, polindo tanto as laterais quanto das costas das mãos ao lado da palma. Também é importante utilizar um bom e espesso lubrificante que não se transforme em uma poça de água em cinco minutos, óleo é bom. Deve-se cobrir a mão de forma espessa com óleo sem passar do ponto em que encaixe muito facilmente… [etc]
O modo de se gotejar cera de uma vela de forma segura é deixar uma gota ou duas cair por vez, ao invés de deixar cera derretida acumular em volta da base do pavio e espirrar na pele de sua parceira tudo de uma vez… [etc.] [4]

Incluí as duas práticas acima porque elas se aproximam bastante de replicar os métodos de tortura usados nos exemplos da vida real dos campos de concentração. (Outras instruções incluem como cortar os seios de uma mulher com lâminas e como perfurar seus lábios vaginais.) Elas deixam claro que a prática sadomasoquista vem de nenhum lugar menos misterioso que a própria história da opressão bastante real que sofremos. Os cenários sadomasoquistas reencenam a tortura dos gays pelos fascistas bem como a tortura dos negros pelos brancos, dos judeus pelos nazistas, das mulheres pelos homens, dos escravos pelos senhores. Tais práticas podem ser vistas como rituais performáticos, como um talismã. Uma vez que parece improvável que os praticantes gays do sadomasoquismo realmente desejem ser torturados de forma inteiramente fora de seu controle, parece provável que tais práticas cumpram o papel do alho para espantar o demônio, ou sejam simplesmente uma antecipação ansiosa do que pode acontecer de pior para que se acostume-se a ele.

Ambientação fascista

Os proponentes do sadomasoquismo geralmente são bastante abertos a respeito de seu uso de símbolos e fantasias fascistas e nazistas, por exemplo os quepes de couro negro da SS, suásticas, uniformes e sobretudos de couro parecidos com os da SS. Assim explica Pat Califia, principal teórica do sadomasoquismo nos Estados Unidos:

Uma cena sadomasoquista pode ser feita usando as personas do guarda e do prisioneiro, do policial e do suspeito, do nazista e do judeu, branco e negro, homem hétero e queer, pais e filhos, padre e penitente, professor e estudante, puta e cliente etc. Entretanto, nenhum destes símbolos têm um único significado. Seu significado é derivado do contexto onde é utilizado. Nem todo mundo que porta uma suástica é nazista, nem todo mundo que tem um par de algemas em seu cinto é um policial, e nem todo mundo que usa um hábito de freira é católico. O sadomasoquismo é mais uma paródia da natureza sexual oculta do fascismo do que uma adoração ou uma aquiescência a ele. Quantos nazistas, policiais, padres ou professores reais estariam envolvidos em uma cena sexual kinky? [5]

A resposta para a ingênua pergunta de Califia é, claro, um bom tanto de gente. Pelo menos uma membra do grupo de apoio ao sadomasoquismo lésbico de Londres foi vista usando um quepe da SS e suásticas em eventos sociais. Ela foi questionada a respeito do fato de esses símbolos serem ofensivos a muitas mulheres e respondeu com ameaças de violência a qualquer outra crítica feita.

No começo de 1984, skinheads gays foram à uma festa gay na discoteca Bell em Kings Cross. Um deles fez uma saudação nazista abrupta direta e deliberadamente dirigida à face de um homem gay negro na pista de dança, e três deles seguiram um homem negro gay portador de deficiência ao banheiro e o ameaçaram. Um homem gay branco puxou o som da tomada para que se discutisse a respeito do incidente e se tomasse alguma atitude. Ele foi expulso e barrado da discoteca. Este era um clube que supostamente fazia parte da cena gay alternativa, política ou pelo menos não-comercial. Os skinheads eram clientes regulares. O organizador nacional do Young National Front também apareceu no Bell e foi expulso quando tirou sua jaqueta e revelou suásticas. O coletivo do Bell e outros coletivos que gerenciavam clubes tiveram de instituir normas de vestimenta, isto é, sem suásticas ou camisetas “Hitler’s European Tour”, mas o uniforme de couro foi aceito.

Mas, diriam os proponentes do sadomasoquismo, somente usamos insígnias nazistas por diversão e não gostaríamos de ser associados a comportamentos violentos. Até é possível, mas como os outros gays vão saber a diferença? O medo será igual independente de as suásticas serem usadas por “diversão” ou perseguição. No que diz respeito à suásticas, a diversão de uma mulher é o terror de outra. Os fascistas obtêm exatamente o mesmo tipo de diversão ao usarem suásticas que os proponentes do sadomasoquismo, o poder conseguido a partir do medo e da angústia de outra mulher. Um perigo sério que resultará da tolerância ao simbolismo nazista na cena gay, sob a guisa de “diversão”, prática sexual, ou moda, é a paralisia da nossa vontade ou habilidade de agir em face de violência fascista real. É tão importante combater e rejeitar o uso irônico de emblemas nazistas agora tanto quanto o era na Alemanha nos anos 1920 e 1930, quando o fascismo tomou conta. Os indubitavelmente antifascistas de então que questionaram as suásticas encontraram os mesmos tipos de ameaças que os proponentes do sadomasoquismo já fazem quando seu prazer é questionado. O nazismo era a moda daqueles tempos?

O sadismo do fascismo alemão

Um dos termos usados para ofender as feministas em Londres que estavam realizando um encontro para questionar a promoção do sadomasoquismo era “fascistas”. As feministas lésbicas eram acusadas de serem “exatamente iguais ao Front Nacional” por ousarem realizar tal encontro. Essa linha de ataque, que se assemelha às tentativas atuais dos libertários sexuais socialistas de rotular feministas como de direita, é feita com base em um pressuposto de que as políticas fascistas seriam opostas ao sadomasoquismo. Na realidade o oposto é verdadeiro, e essa acusação é um bom exemplo do que Mary Daly chama de “reversal patriarcal”. [6]

Dorchen Leidholdt, do grupo Mulheres Contra a Pornografia de Nova York, em um artigo esclarecedor, Where Pornography Meets Fascism, explica a extensão do papel que o sadomasoquismo erótico cumpria enquanto esteio da ideologia e da prática fascista.

Hitler adotou o chicote como seu símbolo pessoal, por exemplo, e quando exaltado geralmente batia com ele em suas próprias pernas. Ele sentia muito prazer ao citar a máxima de Nietzsche, “Vais encontrar mulheres? Não esqueças teu chicote!” Talvez o mais revelador a respeito da resposta sexual de Hitler às mulheres era o seu deleite em assistir mulheres parcamente vestidas arriscarem suas vidas. Em The Psychopathic God, Waite aponta, “Ele apreciava particularmente assistir belas mulheres em um circo no alto do trapézio e fortemente amarradas… Ele não se impressionava particularmente com atos de animais selvagens a menos que mulheres bonitas estivessem envolvidas. Ele então assistia avidamente, sua face avermelhada, sua respiração logo vinha em assovios enquando seus lábios trabalhavam avidamente.” O sadismo de Hitler direcionado às mulheres provavelmente tinha algo a ver com seu histórico ruim de relações românticas: das seis mulheres com quem ele se envolveu romanticamente durante sua vida, cinco cometeram ou tentaram suicídio.
O sadomasoquismo também caracterizava as interações de Hitler com seus subordinados imediatos — “Toda vez que o encaro”, relembra Hermann Goering, “meu coração vai parar nas calças” —, bem como sua relação com o povo germânico como um todo. Eric Fromm apontou que a orientação sadomasoquista de Hitler jogava com a subordinação sadomasoquista das massas alemãs, seu desejo de ser dominado por um líder poderoso enquanto domina outros. Hitler estava bastante consciente desse teor dos tempos e das pessoas que ele governava. Em um discurso aos cadetes do exército alemão em 1942 ele declarou, “Por que resmungar a respeito da brutalidade e se indignar com a tortura? É isso que as massas querem. Eles precisam de algo que lhes dê um terror emocionante?” [7]

Leidholdt parece sugerir que o povo alemão tinha uma tendência particular para o sadomasoquismo. Toda a evidência disponível iria sugerir que toda a supremacia masculina está imbuída na mesma tendência. Mas as suas observações nos forçam a considerar a extensão com que o apelo do fascismo e do próprio racismo são abastecidas pelo erotismo. Ela prossegue apontando que Jacobo Timerman, um argentino judeu torturado por direitistas, descreveu o antissemitismo argentino como tendo um caráter erótico e sádico: “o ódio aos judeus era visceral, explosivo, um relâmpago sobrenatural, um excitamento das tripas, o senso de um ser inteiro abandonado ao ódio.” [8]

Em virtude de algum processo misterioso, tudo o que diz respeito ao sexo nesta sociedade tem sido separado da política até mesmo por aqueles que se consideram a si mesmos socialistas e radicais. Na tentativa de tornar a prática sexual um enclave privado de deleite individual, de alguma forma a sexualidade tem sido vista como removida dos efeitos do sexismo, do racismo, e de qualquer opressão que acontece no mundo fora do quarto, e se considera que ela não tem qualquer efeito ou relevância neste mundo. Na verdade, o sexo cumpre um papel crucial ao abastecer e regular a opressão das mulheres e a opressão racista. Não há nada puro a respeito do sexo ou de qualquer outra coisa que possa justificar uma exceção especial da crítica política.

Os promotores do sadomasoquismo chamam suas oponentes feministas de fascistas com a intenção de nos evitar, para nos calar, para dificultar que apontemos as ligações entre o sadomasoquismo e o fascismo. Eles devem saber que estão em uma posição exposta e acusam de “fascista” desesperadamente, na intenção de que nós não depositemos tais acusações sobre eles.

Seriam fascistas os proponentes do sadomasoquismo? Eles provavelmente não são membros de organizações fascistas e não se importam com nenhum aspecto do fascismo fora da sua esfera erótica. Eu diria que a maioria deles não é fascista, ainda que experienciar prazer ao aterrorizar outras lésbicas ao vestir iconografia fascistas se aproxime bastante disso, mas sim são promotores de valores fascistas. A erotização da dominação e da submissão, a glamourização da violência e da opressão dos gays, judeus e mulheres, é do que o fascismo é feito.

As raízes eróticas do fascismo

Qual o principal apelo do fascismo? O sistema político do fascismo oferece aos capitalistas uma forma de manter seus lucros sem qualquer ameaça de resistência da classe trabalhadora. A violência e o racismo do fascismo oferecem aos desiludidos e desempregados, aos jovens e alienados, um bode expiatório para os seus problemas em uma forma substituta de “satisfação” e excitamento. Oferece-lhes comícios, um sentimento de poder (assédio), orgulho nacionalista e um auto-respeito espúrio baseado na ideia de que se se é branco, homem e gentio, ao menos se é superior a outros grupos raciais e às mulheres. Sem dúvida há muitos outros mecanismos operando conforme o fascismo e seus valores tomam conta. Um deles inclui o excitamento do erotismo. As raízes eróticas do fascismo não têm recebido muita atenção, talvez porque exijam uma avaliação bastante assustadora da nossa própria sexualidade.

Para entender as raízes eróticas do fascismo é necessário realizar uma análise um tanto diferente e mais complexa do fascismo que a versão simplista geralmente empreendida pelos homens de esquerda. É errado assumir que o fascismo é uma força do mal que existe em algum lugar já completamente desenvolvida no mundo lá fora, que ele é facilmente reconhecível e chegará de repente, de forma óbvia, chamando-se a si mesmo de fascismo e em uma forma que seja facilmente desafiada. Esse foi, penso, o erro conceitual atrás de muito do trabalho antifascista de meados dos anos 1970. A Liga Anti-Nazi confrontou, de maneira bem sucedida, as organizações claramente fascistas. Embora estes partidos estejam atualmente adormecidos conforme o governo conservador na Grã-Bretanha faz muito de seu trabalho para eles, as pessoas envolvidas na política de esquerda podem acreditar que o uso de suásticas por pessoas que não são membros dessas organizações não é importante. Mas o fascismo não cai do céu pronto na forma de organizações fascistas. Partidos fascistas necessitam de apoio amplo, ou pelo menos tolerância para serem bem sucedidos. Membros de partidos não nascem fascistas, e às vezes são homens e mulheres que foram socialistas. Oswald Mosley é o exemplo britânico mais famoso desse fenômeno. O jovem Isherwood descrevendo que esteve em um partido nazista em um dia e no partido comunista no próximo, levado pela sedução das oportunidades para a violência e pelos sentimentos de poder pessoal, é outro exemplo.

Houve um tempo, no final dos anos 1960 e início dos 1970, em que os radicais de esquerda falavam sobre as raízes psicológicas e emocionais do fascismo em todos os que viviam sob uma sociedade supremacista masculina. Wilhelm Reich era lido avidamente. Artigos eram escritos sobre a formação da personalidade autoritária dentro da família patriarcal e sobre a necessidade de se criar um modo completamente novo de se viver que reduziria a atração por figuras do tipo do fuehrer. A análise era parcial porque não havia muita consideração a respeito da opressão das mulheres para além da simples crença de que a eliminação da família nuclear resolveria todos os problemas das mulheres. Mas havia um entendimento de que as raízes emocionais do fascismo são imbricadas nas nossas personalidades a partir de um tipo de estrutura familiar na qual nós nascemos e pelos tipos de autoridade aos quais nós somos submetidos ao longo da infância e do nosso crescimento. Esse era um entendimento de crucial importância, e seus frutos existem hoje nas novas atitudes em relação à criação das crianças, na organização política dentro do feminismo, e em algumas partes da esquerda e do movimento gay. Esse entendimento da importância das políticas pessoais, na base na qual o movimento de libertação das mulheres foi formado, parece agora cada vez mais impopular. Estou convencida, mas pode ser que seja ilusão, de que o significado do uso de suásticas poderia ser claro em 1971 de um modo que hoje não é mais.

As raízes eróticas do fascismo residem no modo pelo qual a sexualidade sob a supremacia masculina é estruturada nos indivíduos. Porque a supremacia masculina ocidental encoraja-nos a experienciar a sexualidade como uma força imensamente poderosa e quase incontrolável, o aspecto erótico do fascismo tem grande significado. Nós não aprendemos a expressar-nos sexualmente em um mundo de relações igualitárias e amorosas. Mulheres e homens nascem dentro de um sistema heterossexual de dominação masculina e submissão feminina. Isso é verdade independente de sermos capazes de escapar o suficiente disso para amar mulheres. A sexualidade na infância é construída através de interações com garotos agressivos puxando as calcinhas das meninas e através de abuso sexual e exploração por parte de homens adultos. Os modelos oferecidos a nós de sexualidade feminina são os de passividade e submissão. Somos ensinadas a responder sexualmente a investidas agressivas dos homens. Muitas lésbicas tem dificuldade em aprender qual a resposta feminina correta à sexualidade submissa dócil aos homens, todavia não emergimos facilmente incólumes da construção da sexualidade feminina no entorno do sadomasoquismo. Vivemos sob opressão e onde não há virtualmente nenhuma forma de escapar, pelo menos até atingirmos uma idade avançada, em direção a relacionamentos igualitários nos quais tomamos iniciativas sexuais, temos pouca alternativa além de nos aprazer de nossa opressão. A resposta mais comum é a de erotizar nosso desempoderamento no masoquismo. Para algumas mulheres que vêm isso como muito “afeminado”, o papel de humilhar mulheres pode ser utilizado no sadismo — os modelos para isso em uma cultura que odeia mulheres estão em todo lugar.

Lésbicas e gays sofrem pressões particulares que podem levar à posse de uma sexualidade construída no entorno do sadomasoquismo. Como resultado do heterossexismo e do anti-lesbianismo, frequentemente crescemos odiando a nós mesmos e particularmente a nossa sexualidade. É difícil para nós construir uma sexualidade própria que seja positiva, igualitária e livre de conotações sadomasoquistas. Algumas lésbicas e gays não conhecem nenhuma outra sexualidade além das fantasias sadomasoquistas que influenciam sua prática, ainda que possam evitar agir dentro do ritual sadomasoquista. Qualquer questionamento do sadomasoquismo é sentido por algumas dessas lésbicas e gays como uma ameaça séria. Eles se enxergam como não tendo nenhuma alternativa de prática sexual se tiverem de abandonar essa que é baseada na erotização da opressão. Mas existe, no nosso próprio entendimento de que a sexualidade é algo construído e não dado, uma mensagem de esperança. Podemos reconstruí-la. Existe espaço para otimismo. Algumas lésbicas e gays são bem pouco afetados pelo sadomasoquismo, e são capazes de praticar um tipo diferente de sexualidade. Até mesmo aqueles de nós que sabem do alcance da influência do sadomasoquismo em nossas vidas usualmente experienciam momentos de intensidade e prazer sexual incomum nos quais não há envolvimento de fantasias de dominação e submissão em qualquer grau. As sementes da mudança estão em todos nós. Podemos buscar maximizar a sexualidade positiva ao invés de maximizar a sexualidade negativa do sadomasoquismo.

Os gatilhos da resposta sexual construída no entorno do masoquismo são os símbolos de poder e autoridade. Os símbolos particularmente poderosos são aqueles que representam poder e autoridade abusiva, cruel e arbitrária, sendo o chicote o símbolo mais poderoso que um distintivo de chefe. Os aparatos e rituais do fascismo são símbolos perfeitos para esse propósito. Uniformes, marchas, suásticas, retratos de Hitler, discursos autoritários são todos gatilhos eróticos. Os sádicos do Front Nacional são estimulados através da visão repetida de vídeos de marchas e paradas nazistas na Alemanha. Toda a parafernália do fascismo é calculada para obter uma resposta erótica poderosa daqueles cuja sexualidade tem sido formada sob a supremacia masculina e modelada no sadomasoquismo. Isso inclui a maioria de nós.

É a capacidade de ser atraído pelo nazismo que entorpece a resposta de ultraje que muitas pessoas podem de outra forma sentir por ele. A construção da sexualidade sadomasoquista é um poderoso e inteligente truque para o opressor. Nossa resistência é minada nas nossas próprias vísceras se nossa resposta à tortura dos outros ou às armadilhas do militarismo é mais erótica do que politicamente indignada. É muito difícil lutar contra o que te excita. Esse é um problema que as feministas anti-pornografia já reconheceram e entenderam. É humilhante e paralisante ser estimulada pela própria degradação das mulheres que você visa combater. O único jeito de lutar é transformar essa dor em raiva. Não somos culpados pela forma como a nossa sexualidade é construída, ainda que sejamos totalmente responsáveis pela forma como escolhemos agir sobre isso. Temos direito de estar furiosas e de direcionar a nossa dor ao ataque aos mercadores da pornografia, aos apologistas da pornografia (infelizmente eles incluem as lésbicas do sadomasoquismo), os compradores e consumidores de pornografia. É difícil, mas devemos entender que as imagens e mensagens — das mulheres como objetos, torturadas, usadas e abusadas — que influenciam nossa própria resposta sexual têm a intenção de nos paralisar. Não podemos nos dar ao luxo de ser debilitadas por essas imagens, mas podemos compartilhar nossos sentimentos e construir nossa raiva.

Da mesma forma que com o sexismo, as armadilhas do fascismo e até mesmo suas práticas podem ser excitantes não apenas para o opressor mas também para suas vítimas. Edmund White, um novelista gay americano, entrevistou um casal de homens gays que tinha o hábito de usar uniformes policiais em seu livro States of Desire: Travels in Gay America. Ele explica que havia um bar cheio de homens gays em uniformes policiais no qual entre os clientes se incluíam homens gays vestidos como policiais e policiais na vida real. Esse flerte trágico e degradante com a opressão teve implicações alarmantes. Um homem fantasiado de policial, quando mais tarde foi preso do lado de fora do bar, passou esse tempo extasiado pelas botas do policial. Outro que também foi preso e surrado não falava de outra coisa que não a sua paixão pelo seu atormentador. [1]

Os promotores do sadomasoquismo constantemente destacam que o sadomasoquismo é “apenas fantasia” e não possui nenhuma relação com a realidade. A promoção do sadomasoquismo e de sua imagética vai assegurar que seja cada vez mais e mais difícil no futuro para algumas lésbicas e gays, e talvez até mesmo para todos aqueles que fazem parte da cena gay social que são afogados em imagética sadomasoquista, serem apenas raivosos e de forma nenhuma excitados eroticamente pela imagética de prática real de fascistas, policiais e valentões. Acredito que é importante que sejamos capazes de distinguir as ameaças fascistas de forma precisa e lutar contra elas de forma clara. Não quero pensar que quando os tanques, as botas marchando e as suásticas passarem em um golpe fascista real, a população gay esteja experienciando uma onda de desejo erótico que nos imobilize.

O sadomasoquismo é racista?

Os promotores britânicos e americanos do sadomasoquismo ficam moralmente indignados a respeito da sugestão de que possa haver alguma coisa de racista em suas políticas. Assim, Pat Califia, representante do sadomasoquismo lésbico californiano, proeminente “top” ou sádica, dispensou as críticas de racismo feitas quando disseram ao grupo sadomasoquista Samois que eles não poderiam alugar um espaço em um edifício de mulheres em São Francisco, “Espera-se que nos defendamos contra acusações de que somos racistas…”, ela reclamou indignada. [10] Ela claramente não o faz, nem menciona em qualquer lugar o conteúdo das alegações e os modos pelos quais ela enxerga essas acusações como falsas. Tal crença arrogante de uma mulher branca de que eles estão acima e além de qualquer possibilidade de comportamento ou atitude racistas seria, espera-se, em qualquer outra esfera além dessa da sexualidade, vista como uma forma de racismo.

Os proponentes do sadomasoquismo deveriam estar cientes da ofensa a todos os gays não brancos que o emblema de uma ideologia política que significa a morte ou a perseguição odiosa significa a todos os não arianos. O Gay Black Group deixou bastante claras as suas perspectivas em resposta à imagética nazista em eventos gays mistos.

Estamos cada vez mais conscientes da presença de pessoas usando insígnias fascistas e nazistas em vários eventos lésbicos e gays, orgulhosamente exibindo símbolos do Movimento Britânico e do Front Nacional. Crescem as denúncias de ataques a homens gays e mulheres por esse tipo de gente. Não é mais aceitável para nós que pessoas usando tais tipos ofensivos de roupas sejam perdoados ao justificarem que se trata apenas de “moda”.
Achamos ofensivo e perturbador que o racismo continue incontestado, tido como normal ou de outra forma tolerado por toda a comunidade lésbica e gay. Estamos atordoados com a ignorância a respeito dos numerosos ataques, abusos e hostilidade direcionadas às pessoas gays pelos grupos de fascistas. Sentimos que um esforço conjunto precisa começar a identificar e erradicar as raízes do racismo e do fascismo inerentes na comunidade lésbica e gay…
O Gay Black Group tem experimentado violência nas mãos dos fascistas tanto por motivo de racismo quanto por causa da nossa sexualidade. [11]

A feminista negra americana Alice Walker, em um comovente e, poderia-se pensar, incontestável artigo, explanou o modo pelo qual ela via a prática do sadomasoquismo como sendo racista. Walker escreve como uma professora que passou um período com mulheres estudantes, negras e brancas, tentando “chegar a um consenso, pela imaginação e pelos sentimentos”, a respeito do que significa ser uma escrava, senhor ou sinhá. “Mulheres negras, brancas ou mestiças escreveram sobre cativeiro, estupro, procriação forçada para reabastecer as senzalas do senhor de escravos. Elas escreveram sobre tentativas de fuga, sobre a venda de seus filhos, sobre sonhos com a África, sobre tentativas de suicídio.” [12] Em seguida, ela escreve sobre os efeitos de assistir a um programa de TV no qual duas mulheres do Samois participam como mestra e escrava. Ainda que o artigo seja escrito em um estilo ficcional e tenha sido publicado originalmente em um livro de contos, o programa de TV sadomasoquista não era ficção, mas realmente acontecia conforme ela descreve.

Imagine nossa surpresa, portanto, quando muitas de nós assistimos a um especial de televisão sobre sadomasoquismo que foi ao ar na noite anterior ao fim das nossas aulas, onde o único casal interracial que aparece, lésbicas, se apresentavam como escrava e senhora. A mulher branca, que falou todo o tempo, era a senhora (usando um anel em forma de chave que ela disse encaixar na fechadura da corrente em volta do pescoço da mulher negra), e a mulher negra, que permaneceu sorrindo e silenciosa, era — disse a mulher branca — sua escrava…
Tudo o que estive ensinando foi subvertido por aquela única imagem, e eu fiquei enfurecida de pensar que a difícil luta das minhas estudantes para se livrarem dos estereótipos, para combater o preconceito, para se colocarem na pele das mulheres escravizadas, e então verem sua luta ridicularizada, e a condição real de escravizadas de literalmente milhões de nossas mães trivializada porque duas mulheres ignorantes insistiram em seu direito de encenarem publicamente uma “fantasia” que ainda causa terror nos corações das mulheres negras. E também vergonha e nojo, pelo menos nos corações da maior parte das mulheres brancas em minha sala de aula.
Uma estudante branca, aparentemente com ligações próximas ao grupo local de lésbicas sadomasoquistas, disse que não conseguia ver nada de errado com o que vimos na TV. (A propósito, havia muitos homens brancos nesse programa que possuíam mulheres brancas como “escravas”, e até mesmo diziam ter documentos legais atestando isso. De fato, um homem exibia sua escrava pela cidade com um arreio de cavalo em seus dentes e a “emprestava” a outros sadomasoquistas para ser chicoteada.) É tudo fantasia, disse ela. Nenhum mal estava sendo feito. A escravidão, a escravidão real havia acabado afinal.
Mas ela não acabou… e os livros de Kathleen Barry sobre escravidão sexual feminina e de Linda Lovelace relatando sua experiência como escrava não são os únicos indicadores de que isso é verdade. [13]

Pat Califia resolveu responder o artigo de Alice Walker em duas frases inteiramente desdenhosas em sua contribuição ao livro do grupo Samois, Coming to Power. “…Em uma tentativa de provar que o sadomasoquismo é racista, Walker descreve essas mulheres [aquelas interpretando senhora e escrava no programa de TV] como uma mulher branca dominadora e uma mulher negra masoquista. Na verdade, a dominadora nesse casal é uma lésbica latina.” [14] Esse é o nível de seriedade com qual o grupo Samois, a partir do qual os grupos de apoio ao sadomasoquismo lésbico britânico parecem usar de modelo, aborda o assunto do racismo.

O grupo britânico lésbico de sadomasoquismo apoiado pelo Coletivo Inglês de Prostitutas (ECP) e o Wages Due Lesbians (dois subgrupos dentro da organização guarda-chuva Wages for Housework, uma campanha fortemente antifeminista que tenta se infiltrar onde quer que vejam assuntos de interesse das mulheres que possam ser usados para destruir o movimento de libertação delas) foi ao encontro de algumas lésbicas feministas em Londres que queriam planejar uma campanha para questionar a disseminação das políticas sadomasoquistas. Uma mulher do ECP apresentou uma razão, pensada a partir da literatura padrão propagandista do sadomasoquismo, do porquê o sadomasoquismo poderia ser bastante útil nas relações. Ela explicou que em relacionamentos entre mulheres negras e brancas, os rituais sadomasoquistas poderiam ser encenados de modo a equilibrar as diferenças de poder ou ao menos ajudar a entendê-las. Essa mulher, que era branca, não disse quem deveria representar o papel de dominadora e quem deveria ser a dominada nessas relações. No exemplo americano citado acima, a dominada era uma mulher negra. Mas apenas supondo que não seja sempre este o caso, é realmente possível ver encenações de rituais racistas, mesmo nos casos em que as relações de poder não são com brancos sendo dominadores e negros os dominados, como formas de ajudar a eliminar o racismo? Na literatura pornográfica masculina, a mulher negra é representada tanto como uma vítima escrava submissa quanto como dominatrix. Os rituais do sadomasoquismo podem apenas reforçar um ou ambos desses estereótipos. O sadomasoquismo não oferece qualquer chance de se libertar deles.

Pode o sadomasoquismo ser reformado?

Pat Califia explica, em Coming to Power, que alguns membros do grupo Samois acharam que alguns dos seus princípios estavam em oposição à prática sadomasoquista, e que isso levou a alguns problemas dentro do grupo. Ela não diz quais são esses princípios e não se mostra simpática a eles, mas podemos tentar adivinhar que dizem respeito a coisas como o uso de suásticas ou até mesmo rituais onde mulheres negras eram escravas. Não parece que as mulheres britânicas sadomasoquistas estejam com a consciência pesada, uma vez que ao menos uma delas foi vista abertamente usando suásticas. Mas seria possível para os praticantes do sadomasoquismo “limparem” suas performances e cortarem fora simbolismo obviamente racista como resultado da crítica? (Até o momento, a resposta deles à crítica tem sido chamar os críticos de fascistas e racistas, dizer que os sadomasoquistas não iriam permitir qualquer encontro público sem lésbicas sadomasoquistas vestidas a caráter, e impedir a discussão.)

O ritual sadomasoquista erotiza as relações de dominação e submissão, e envolve a encenação da opressão. Os cenários de nazistas e judeus, ou de escravos e senhores podem possivelmente ser tirados da pauta por aqueles com a consciência mais sensível. Isso deixaria um escopo amplo de cenários e figurinos representando opressão sexista, usando imagens da prostituição, de assédio sexual ou simplesmente estereotipificação fetichizada sexista, como por exemplo um dos personagens vestido como ciclista forte e outro afeminado usando espartilhos e babados. Isso é realmente uma solução?

Fora o fato de que esse imagético permaneceria terrivelmente sexista e heterossexista, qualquer erotização do poder, qualquer glorificação da opressão pode apenas fortalecer os valores que mantém todas as formas de opressão. A opressão racista depende tanto das ideias de que o poder é um direito, de que a violência é um razoável modo de ameaçar aqueles tidos como inferiores, que as desigualdades de poder são desejáveis e inevitáveis, quanto o sexismo. A prática do sadomasoquismo reforça esses valores. Tal prática não permite qualquer espaço para a existência de uma alternativa a esses valores. Se estamos comprometidos com a meta de uma sociedade na qual nenhum grupo da população está sujeito a violência, discriminação e exploração, então devemos desenvolver uma forma de prática sexual que reflete o tipo de sociedade que queremos criar. Do contrário, o que estamos dizendo é que o sexo e as emoções envolvidas nele estão bastante desconectados do restante de nossas vidas e não possuem nenhuma relevância política. Tal prática precisa ser mútua, carinhosa e igualitária. Isso, claro, é um pecado na opinião dos proponentes do sadomasoquismo. Práticas assim são chamadas de bambi por homens gays defensores do sadomasoquismo como Jeffrey Weeks e de vanilla pelas lésbicas do Samois. [15] Ambos os termos foram criados de forma a mostrar desdém e afastar as pessoas. Práticas sexuais igualitárias são representadas como desprovidas de intensidade, monótonas, apropriadas apenas para fracotes.

Os proponentes do sadomasoquismo estão conscientes de que estão sujeitos à crítica política, de modo que alguns deles desenvolveram uma defesa engenhosa. Alguns anos atrás, um membro do agora defunto grupo Gay Left realizou uma fala em defesa do sadomasoquismo, com apresentação de slides, em um workshop gay. Ele mostrou slides de homens vestidos com uniformes nazistas urinando em sarjetas e forçando homens algemados a lamberem a urina nos seus joelhos. Intrigada, perguntei a ele o que tudo aquilo tinha a ver com socialismo. A princípio, ele respondeu que não tinha nada a ver com o socialismo mesmo, tratava-se apenas de prática sexual. Mais tarde, ele forneceu uma justificativa que alguns ex-sadomasoquista políticos se sentiram obrigados a desenvolver. A prática sadomasoquista seria uma forma de ajudar os envolvidos entenderem as diferenças de poder existentes no mundo e trabalharem mais efetivamente para o fim delas. (Vide também o argumento descrito acima dado pelo ECP e pelo grupo de apoio sadomasoquista lésbico.) Um defensor americano do sadomasoquismo expressou essa defesa de forma bastante sucinta:

Talvez um dos modos mais efetivos de lutar contra o poder político e até mesmo torná-lo desnecessário é entender os impulsos de poder e submissão em si mesmo e integrá-los. O envolvimento no sadomasoquismo tende a remover a “necessidade” pessoal de oprimir e ser oprimido, manipular e ser manipulado socialmente e politicamente — outra razão porque aqueles que possuem delírios de poder político tendem a se opor tão fortemente a ele. O sadomasoquismo pode ser parte de uma verdadeira rebelião contra a opressão social estruturada, o que é parte da razão porque anarquistas e libertários estão sub-representados entre os praticantes do sadomasoquismo. [16]

Para esse homem, a opressão parece ser algo que as pessoas “precisam” e atraem para si. Essa é a análise lógica da perspectiva do sadomasoquismo, que vê a violência e o abuso como algo que as pessoas podem “precisar” ou escolher. É uma análise completamente individualista, da qual a opressão da vida real não faz parte. É um argumento espúrio e auto-indulgente. De que forma a prática do sadomasoquismo nos ajuda a desmantelar o complexo militar-industrial, confrontar grupos de valentões fascistas ou ajudar uma mãe lésbica a conseguir a custódia de seus filhos?

Lutar contra a opressão estrutural requer amor-próprio e alguma ideia de que uma alternativa existe fora dos círculos de dominação e submissão. Podemos nos guiar apenas pela noção de que as estruturas de poder opressivas não “precisam” existir para a felicidade humana, seja ela sexual ou de qualquer outro tipo.

Sadomasoquismo como política

Os promotores do sadomasoquismo estão atraindo apoio de liberais com base em sua reivindicação de liberdade individual, o direito pessoal de seguir a prática sexual escolhida. Mas o argumento de liberdade pessoal não é necessariamente progressiva. Esse era o alicerce da política econômica e social Thatcheriana. Tal argumento depende da condição de que o comportamento em questão não fira qualquer outra pessoa além da própria praticante. (Algumas pessoas argumentam que deveria haver limites ao direito de qualquer ser humano causar dano físico a si mesmo ou requerer que outro ser humano cause dano a eles. Qual seria a nossa responsabilidade se confrontados com um cenário de fistfucking anal brutal em um contexto de uso de drogas e álcool, quando sabemos que a prática poderia levar a lesões terríveis ou a morte? Iríamos intervir nos masturbar para isso, ou dar as costas?) A promoção do sadomasoquismo causa dano para além de apenas aos seus praticantes e trata-se da promoção de muito mais coisas do que a de uma prática sexual; não se trata de um hobby, mas de uma política e de um estilo de vida.

O uso de roupas de sadomasoquismo em eventos sociais, marchas etc, na forma de fantasias de couro negro, algemas e rebites, cria uma atmosfera de ameaça e ansiedade para todas as lésbicas presentes. As lésbicas geralmente procuram a companhia de outras mulheres para escapar do assédio e da intimidação dos homens na rua, em anúncios e na pornografia. Estamos acostumadas ao “masculino”, a homens agressivos usando roupas de sadomasoquismo rotineiramente no intuito de intimidar, por exemplo Hell’s Angels. Não deveríamos ter que temer outras lésbicas ou sermos ostracizadas porque não aceitamos esse tipo de vestimenta intimidadora. Há muitas lésbicas em Londres agora cujas vidas sociais estão restritas pela prevalência do uso de roupas sadomasoquistas, seja à guisa de moda ou como extensão da prática do sadomasoquismo. Essas lésbicas não são fracotes. Temos direito de não sentir medo e direito a espaços livres da violência.

O uso de emblemas nazistas e fascistas, por exemplo, suásticas, quepes de couro negro da SS, sobretudos de couro negro da SS, ofendem e causam grande agonia em todas as lésbicas que estão conscientes do que o fascismo germânico significa em termos de violência e morte para os judeus, ciganos, lésbicas, aqueles física e mentalmente diferentes, todos os que não sejam homens brancos, gentios, heterossexuais e fisicamente capazes.

A aceitação de vestimenta sadomasoquista, particularmente a emblemática nazista, torna a comunidade lésbica menos apta a entender o florescimento bastante real de valores e práticas fascistas na sociedade britânica atualmente. Não precisamos que as distinções sejam ofuscadas. Devemos ver e questionar claramente qualquer tentativa de tornar os valores e comportamentos racistas e fascistas aceitáveis. Alguns daqueles que vestem emblemática fascista estão assediando e atacando gays, particularmente gays negros, agora mesmo. Eles se tornam mais difíceis de expor e rejeitar quando a emblemática fascista e “masculina”, e os valores agressivos se tornam lugar comum na cena social gay.

A erotização do poder e da opressão na sexualidade de crueldade que é o sadomasoquismo nos treina a nos excitarmos pelas armadilhas do fascismo. O apelo erótico do fascismo, estruturado em nossa sexualidade conforme aprendemos nossas respostas sexuais vivendo sob a supremacia masculinista, é aumentado pelas políticas do sadomasoquismo. Apenas a construção de uma prática sexual igualitária pode se encaixar em uma política antifascista.

O sadomasoquismo não é uma prática sexual que caiu do céu, mas uma resposta e um eco do crescente domínio dos valores e práticas fascistas no mundo fora do gueto gay. Como na Alemanha no início dos anos 1930, os ataques racistas estão aumentando agora. Militarismo crescente infecta a sociedade ocidental. O pornô e os anúncios publicitários se tornaram mais e mais violentos e sádicos com as mulheres. Temos um governo conservador que está dedicado a restringir as liberdades pessoais com a desculpa de aumentá-las. Há uma atmosfera de medo e tensão social crescentes conforme as políticas governamentais polarizam as diferenças entre os pobres e ricos, negros e brancos, mulheres e homens. Nesse contexto, o sadomasoquismo pode ser visto como sendo não uma saída corajosa e radical, mas um modo em que lésbicas podem traduzir diretamente o ódio e o desprezo por mulheres, e particularmente por lésbicas, em suas relações entre si, que os valores fascistas representam. Talvez esta seja uma forma de autodefesa mal direcionada, isto é, se lésbicas causam medo e dor umas às outras agora, não será tão angustiante quando recebermos tal tipo de abuso dos outros no futuro.

Os advogados do sadomasoquismo defendem que sua prática sexual não afeta de nenhum modo as suas relações uns com os outros e o resto do mundo fora do quarto, exceto em fazê-los se sentirem mais fortes. Nas escolas de treinamento para a tortura na Grécia sob ditadura militar e também em outros regimes de extrema-direita, os torturadores treineiros eram treinados sendo eles mesmos torturados. Pode ser que as lésbicas dominadas ou masoquistas, que correspondem à vasta maioria delas, tenham tido as suas sensibilidades enfraquecidas pela tortura a qual escolhem se sujeitar. Para criar um número suficiente de sádicas, algumas masoquistas precisam progredir na prática para distribuir o que receberam anteriormente.

A prática do sadomasoquismo escorre para fora do quarto em outras áreas das relações lésbicas. O trecho a seguir é de um artigo do Coming to Power no qual Susan Farr explica como ela e sua amante usam punição física para superar o ciúme que sentem uma pela outra na não-monogamia.

Se eu chicoteio Rae após ela ter feito sexo com alguma pessoa, isso também expressa diretamente o quanto estou com raiva e ciúmes. Este é um exercício de poder, inquestionavelmente. Ele me dá um escape para os sentimentos “negativos” e bastante naturais que existem independente do meu comprometimento com os princípios da não-monogamia. A punição também funciona como um alívio da culpa da pessoa tendo o caso, outro sentimento “negativo” e natural que existe independente das crenças sinceras de que os baixos ocasionais da não-monogamia são preferíveis à sufocação da monogamia monótona… Essa discussão dos rituais de punição usados como uma resposta à não-monogamia é um exemplo de como a agressão física pode funcionar para manter o relacionamento às claras. [17]

Os sadomasoquistas diriam que existe uma diferença entre o que é descrito aqui e um relacionamento onde ocorre agressão explícita. A distinção, baseada na falsa premissa de que podemos consentir com abuso (lembre da velha anedota na qual esposas agredidas na verdade gostam de apanhar), pode facilmente se tornar confusa de modo que a agressão se torna bastante danosa para um ou ambos os parceiros. Marissa Jonel, uma sobrevivente do sadomasoquismo, descreve uma situação em Against Sadomasochism. [18] Tal agressão “consensual” não é capaz de ajudar na nossa luta enquanto mulheres e lésbicas para afirmar o desejo das mulheres de viverem livres de violência, nosso direito de não sermos vistas como alvos apropriados para violência. O sadomasoquismo é muito mais do que uma prática sexual. É um estilo de vida e uma abordagem ao mundo que glorifica e legitima a violência. Relações onde ocorrem agressões reduzem o potencial de seus participantes e de todos nós de encontrar modos alternativos de lidar com o conflito. A agressão entre lésbicas, onde lésbicas direcionam seu anti-lesbianismo e auto-ódio internalizado umas às outras, é um problema sério com o qual a comunidade lésbica tem que lidar, não é uma brincadeira.

É importante compreender que se trata de uma política do sadomasoquismo que está sendo promovida, não apenas uma prática sexual. As táticas do sadomasoquista deixam isso claro. Os promotores do sadomasoquismo, com a desculpa de fazerem parte de uma minoria oprimida, levaram um cartaz sadomasoquista na marcha Lesbian Strength em junho de 1984. Isso significa que muitas lésbicas que sabiam desse cartaz nunca foram à marcha, e muitas outras se sentiram incapazes de fazer parte da marcha naquele dia. Os promotores do sadomasoquismo estavam bastante conscientes de que estavam dessa forma dividindo e excluindo muitas lésbicas da marcha, mas o direito de três lésbicas sadomasoquistas de causar dano à unidade e às políticas lésbicas foi defendido pelos seus asseclas e toda a objeção foi rejeitada. Os promotores do sadomasoquismo incitam deliberadamente esses confrontos e o estilhaçamento da unidade política que decorre deles. Nos EUA, o grupo Samois primeiramente destruiu a unidade das marchas do Orgulho Gay, e então buscaram dividir o centro coletivo de mulheres de São Francisco reservando espaços onde seriam realizadas atividades, e depois começaram a intimidar e assediar livrarias feministas que não exibissem sua literatura propagandista de forma proeminente. O grupo de lésbicas sadomasoquistas britânicas reservou espaço em um centro de mulheres de Londres, A Woman’s Place. A mesma tática foi usada no Lesbian and Gay Center. Apesar da oposição da vasta maioria das feministas lésbicas que eram membras do centro, os sadomasoquistas foram permitidos no espaço em junho de 1985.

Essa campanha coordenada para espalhar confusão, desunião e medo, de forma desproporcional ao seu número de integrantes, lembra nada menos do que as táticas fascistas. Fiando-se no apoio do liberalismo, eles criam confrontos para causar discórdia na oposição política e enfraquecer nossa capacidade de confrontar práticas e valores fascistas em qualquer forma que se apresentem. (Um exemplo de fascistas utilizando essa tática foi um movimento recente do Front Nacional demandando ajuda do Conselho Nacional pelas Liberdades Civis [NCCL, na sigla em inglês]. Isso foi calculado para dividir a NCCL e causou dano considerável.) O que está acontecendo é muito mais do que a tentativa de uma minoria “oprimida” de ganhar o direito de agir conforme suas práticas sexuais. O sadomasoquismo é uma política com táticas definidas, que incluem a intimidação por mulheres vestidas em uniforme de couro negro. Raras vezes um grupo “oprimido” foi tão opressivo e potencialmente destrutivo.

As implicações das políticas sadomasoquista são muito alarmantes para se ignorar. Não apenas as políticas feministas, mas todas as políticas antirracistas, antifascistas e anticapitalistas dependem de um entendimento de que os oprimidos não buscam, precisam ou querem sua opressão. O grande mito que une a ideologia da democracia ocidental é o do consentimento. No pensamento democrático ocidental todos os grupos dentro de uma população consentem com um sistema de governo. Aí existe consenso. Mas não é bem assim. Somente aqueles que são homens brancos detentores de riqueza estão em qualquer posição de exercer consentimento verdadeiro a um sistema político que rotineiramente degrada, explora e controla todos os outros. O sadomasoquismo utiliza essa noção politicamente manipulativa de consentimento para se justificar. A noção de que qualquer pessoa deliberadamente busca abuso e degradação pode ser explorada de forma muito fácil para justificar sistemas opressivos políticos, por exemplo, o valor fascista básico de que as massas “precisam” de um líder forte. A doutrina política básica do sadomasoquismo está então em contradição com a nossa luta por um sistema político baseado no direito de todo ser humano à dignidade, igualdade, amor-próprio e auto-governo.

A sexualidade de crueldade que é o sadomasoquismo não é nem inata nem inevitável. Ainda que muitos de nós experienciemos fantasias e práticas que incorporam valores de dominância e submissão do sadomasoquismo, também experienciamos uma sexualidade positiva com valores igualitários. É essa sexualidade positiva que precisamos promover e ampliar. Nossa capacidade de amarmos uns aos outros com dignidade e amor-próprio, não apenas com intensidade de sensações e prazer, tem sido danificada pela nossa experiência de opressão. Mas essa capacidade não foi destruída. Devemos lutar contra todas as pressões que nos encorajam a amar as botas que nos curvarão à submissão. Podemos decidir não participar de um romance com nossos opressores. Podemos ter uma sexualidade que é integrada, não com a nossa opressão, mas com as nossas políticas de resistência.


Notas

[1] ISHERWOOD, Christopher. Down There on a Visit. Londres: Methuen, 1962. P. 73-74.
[2] SHERMAN, Martin. Bent. Derbyshire, UK: Amber Lane Press, 1980. P. 67.
[3] HEGER, Heinz. The Men with the Pink Triangle. Tradução de David Fernback. Londres: Gay Men’s Press, 1980. P. 82-83.
[4] BELLWETHER, Janet. “Love Means Never Have to Say Oops: A Lesbian Guide to S/M Safety”. In: SAMOIS (editor). Coming to Power: Writings and Graphics on Lesbian S/M. Segunda edição. Boston: Alyson, 1982. P. 70-71 e 74.
[5] CALIFIA, Pat. “Feminism and Sadomasochism”. Heresies. Sex Issue 12. P. 32.
[6] Cf. várias passagens em DALY, Mary. Gyn/Ecology. Boston: Beacon Press, 1978; e também Beyond God the Father: Toward a Philosophy of Women’s Liberation. Boston: Beacon Press, 1973.
[7] LEIDHOLDT, Dorchen. “Where Pornography Meets Fascism”. WIN, 15 de março de 1983. P. 18. As citações usadas por Leidholdt estão em WAITE, Robert G. L. The Psychopathic God. Nova York: Basic Books, 1977. P. 153, 375 e 380.
[8] TIMERMAN, Jacobo. Prisioner without a Name, Cell without a Number. Nova York: Knopf, 1981. P. 66.
[9] WHITE, Edmund. States of Desire: Travels in Gay America. Nova York: Dutton, 1983. Aparentemente, o uso de violência real como excitação sexual tem aumentado desde as observações de White. Recentemente, uma pessoa da equipe da livraria Glad Day em Boston me disse que o livro History of Torture de Daniel P. Mannix (Nova York: Dell, 1983) é o campeão de vendas da loja.
[10] CALIFIA, Pat. “A Personal View of the History of the Lesbian SM Community and Movement in San Francisco”. In: Samois (editor). Coming to Power, 1982. P. 274.
[11] Gay Black Group. “Letter to the Editor”, Capital Gay. Londres, 14 de fevereiro de 1984.
[12] WALKER, Alice. “A Letter of the Times, or Should This Sadomasochism Be Saved?” In: LINDEN, Robin Ruth et al (editores). Against Sadomasochism: A Radical Feminist Analysis. Palo Alto, California: Frog in the Well Press, 1982. P. 206–207. Reimpresso de WALKER, Alice. You Can’t Keep a Good Woman Down: Stories by Alice Walker. Nova York: Harcourt Brace, 1981. P. 118–123.
[13] WALKER, Alice. “A Letter of the Times”, 1982. p. 207.
[14] CALIFIA, Pat. “A Personal View”, 1982. p. 268.
[15] Vide a contribuição de Jeffrey Weeks ao Gay News. No. 243. Edição de 10º aniversário, 1982. Vanilla é um termo que aparece com frequência na literatura lésbica sadomasoquista.
[16] YOUNG, Ian. Comentários sobre o “Forum on Sadomasochism”, em JAY, Karla; YOUNG, Allen (editores). Lavender Culture. Nova York: Harcourt Brace, 1978. P. 104.
[17] FARR, Susan. “The Art of Discipline: Creating Erotic Dramas of Play and Power”. In: Samois (editor). Coming to Power, 1982. P. 16.


REFERÊNCIA: JEFFREYS, Sheila. “Appendix — Sadomasochism: The Erotic Cult of Fascism”. In: The Lesbian Heresy: A Feminist Perspective on the Lesbian Sexual Revolution. Melbourne: Spinifex Press, 1993. P. 172-189.

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Resumos

Da prática à teoria, ou: O que exatamente é uma “mulher branca”? [Resumo]

No feminismo, a prática (vivência social) vem antes da teoria, e a teoria precisa ser construída a partir da prática. No caso das mulheres, não dá pra partir de uma teoria da igualdade porque as que existem são feitas por homens e vêm das práticas de resistência deles. O problema é que homens nunca estiveram sob o mesmo contexto de dominação com base nas suas capacidades reprodutivas que as mulheres vivem.

Catharine MacKinnon

Falar que uma mulher foi tratada “como mulher” é fazer uma afirmação empírica a respeito da realidade. E levando em conta a forma como somente mulheres são tratadas sob a dominação dos homens, socialmente institucionalizada, isso inclui uma série de outras coisas. Ser tratada “como mulher” está longe de indicar uma visão universal da condição das mulheres, mas sim se refere às desvantagens que as mulheres têm pela forma como o sexo feminino é valorado socialmente.

“Como mulher” não significa a incorporação de uma experiência coletiva; não significa que todas as mulheres têm experiências iguais. Pensar na situação das mulheres exige formas diferentes de se pensar teoria e prática. Algumas feministas pensaram a condição das mulheres em termos de inevitabilidade biológica (Brownmiller e Beauvoir) em função de como funciona a reprodução e a vulnerabilidade das mulheres ao estupro. Falta apontar a dominação dos homens propriamente dita. É a exploração da reprodução que causa problemas às mulheres, não a reprodução propriamente dita. Isso diz respeito a todas as mulheres de todas as raças e etnias vivendo sob dominação, então não faz sentido dizer que se trata de um tipo de feminismo universalizante.

As críticas ao feminismo, de que ele falha em fazer os “recortes” de classe e raça, geralmente assumem “classe” e “raça” como abstrações prontas, sem discutir do que se tratam e fazendo uso dessas categorias apenas pra bater no feminismo. “Mulher branca”, em algumas críticas do tipo, é uma mulher que não passa os perrengues da dominação (não de verdade): ela não trabalha, não é estuprada, não é explorada, não apanha etc. Ela é a imagem que os homens branco e negro têm dela: fútil, privilegiada, autoindulgente e protegida, oprimida por seus privilégios, que acha que precisa de libertação.

O problema é que a realidade das mulheres brancas está longe de ser essa abstração fantasiosa. O mito de que os homens protegem as mulheres brancas serve à manutenção do racismo e à dominação masculina. A pele branca não protege as mulheres da brutalidade de homem nenhum: assumir que as brancas são privilegiadas num contexto de dominação sexual é assumir que não existe dominação dos homens, porque ela pode ser “cancelada” de alguma forma. As mulheres negras estão mais sujeitas a violação, mas tanto negras quanto brancas estão nessa posição de sujeição. Ser “menos estuprada” não esconde o fato de que ambas o são por serem mulheres e tratadas enquanto tal. Não significa dizer que a raça é irrelevante, mas que o sexo (e a dominação baseada nele) é uma experiência de todas as mulheres.

A pornografia é um exemplo bem ilustrativo de como essa dimensão do sexo afeta mulheres de todas as etnias e raças. O tratamento horrendo destinado às mulheres brancas ali — entre tantos tropos do tipo, como as “hot mommas latinas” ou as “asiáticas passivas” — é o melhor possível que uma mulher pode obter. Cada mulher na pornografia abrange um conjunto de particularidades, mas cada uma dessas experiências significa o que é ser mulher na pornografia. Não existe uma categoria padrão de mulheres: até mesmo “brancas” são marcadas como uma preferência sexual.

A crítica às abordagens que vêem a opressão das mulheres “como mulheres” exige que as mulheres se des-identifiquem de sua condição de mulher. O ponto é que as pessoas preferem fazer parte de qualquer outro grupo que possa incluir homens do que ser “apenas mulher”, um grupo que significa o resumo da noção de opressão. Se uma opressão também é aplicada a homens, ela tem mais chances de ser reconhecida enquanto tal, e não algo aplicado a um grupo subhumano. Se inclui homens, está dentro dos padrões de humanidade; as mulheres são apenas mulheres. A mulher branca não partilha nenhuma opressão com homens, então não é oprimida.

Quando se cria teoria a partir da prática, esse problema de se deparar com abstrações limitantes deixa de existir. A assunção de que todas as mulheres são iguais vem do mesmo sexismo que o feminismo visa combater. Teóricos que falham em identificar isso precisam mudar sua forma de pensar teoria para além dos formatos da dominação masculina. A base sexual da opressão que as mulheres sofrem vem da prática, e não de um constructo abstrato ou de uma “essência” partilhada por elas.


MACKINNON, Catharine. “From Practice to Theory, or What is a White Woman Anyway?” 4 Yale J. L. & Feminism. 1991. Disponível em: <link> — Acesso em 12 de outubro de 2019.

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Traduções

Um chamado às feministas para se lembrarem da natureza sexual da opressão das mulheres

O real brilhantismo do patriarcado… é que ele não apenas naturaliza a opressão. Ele sexualiza atos de opressão. Ele erotiza a dominação e a subordinação. Ele os institucionaliza como masculinidade e feminilidade. Então, ele naturaliza, erotiza e institucionaliza a dominação e a subordinação. O brilhantismo do feminismo é que nós descobrimos isso.

Lierre Keith

Nos últimos meses muita legislação tem passado ou foi proposta nos Estados Unidos e em outros lugares o suficiente para indicar uma assustadora escalada na guerra — sim, é uma guerra — contra as mulheres. O parlamento Russo acabou de votar a 380-3 para descriminalizar a violência doméstica. Trata-se de um país onde em média 40 mulheres por dia — 14.000 mulheres por ano — são mortas por seus parceiros homens. Os Estados Unidos, onde 1.000 mulheres são mortas por seus parceiros por ano, acabou de eleger um presidente que diz que “quando você é uma estrela, elas deixam você pegá-las pela buceta”, está envolvido com pornografia e tráfico sexual. Ele planeja eliminar o financiamento a 25 programas de combate a violência doméstica e está ordenando às funcionárias mulheres para que “se vistam como mulher”. O estado do Texas está pensando em retirar os direitos eleitorais de mulheres que fizeram aborto; o estado do Arkansas quer permitir a estupradores que processem mulheres por abortar.

Todas essas empreitadas se baseiam, é claro, em uma noção há muito estabelecida de que mulheres são propriedades dos homens. O estigma do aborto se baseia na ideia de que as mulheres não criam a vida humana através de um processo de dez meses de gestação e trabalho; seriam os homens a ejacular vida nas mulheres, e as mulheres, como incubadoras reguladas pelo estado, são obrigadas a levá-la a termo. A violência doméstica, a indústria da pornografia e da prostituição que abastecem o tráfico sexual, normas de vestimenta, tudo isso se baseia no mesmo princípio do merecimento sexual dos homens. Não surpreende que os comentadores estejam comparando essa tendência atual a O Conto da Aia de Margaret Atwood; uma nova era de regras e normas mais ortodoxas e estritas para as mulheres do Ocidente. Tudo isso justificado através dos mitos de que as mulheres são biologicamente predispostas a essas regras e normas.

Dada a situação que enfrentamos, é alarmante confrontar a realidade de que a esquerda é tão mal preparada e indisposta a discutir a opressão das mulheres quanto a direita conservadora. Hoje em dia, noções como a de “identidade de gênero” por exemplo, ameaçam engolir a compreensão coletiva das mulheres a respeito do todo da opressão baseada no sexo. A ideologia da “identidade de gênero” afirma que gênero é uma questão pessoal de identificação, e que o sexo biológico de alguém pode ser trocado e mudado à vontade. “Cis” é uma palavra que as mulheres estão adotando cada vez mais como sinal de sua compreensão de que possuem o “privilégio” de ter sua identidade de gênero em conformação com seu sexo biológico. Ao mesmo tempo, é claro, mulheres estão sofrendo pressão para engolirem a ideia de que o sexo biológico propriamente dito não é real.

A questão é que ser fêmea é algo muito real, e que ser consequentemente generificada como mulher também é — e não se trata de uma forma de privilégio. É uma forma de opressão que as mulheres têm resistido desde a criação do patriarcado. Ao oferecer uma curta história do sistema ocidental canceroso e globalizado de objetificação sexual sob o qual vivemos hoje, espero oferecer aqui um pequeno lembrete disso. Esse ensaio busca resgatar o desenvolvimento da opressão baseada no sexo desde as suas raízes, passando pela caça às bruxas, ao comércio de escravos, à patologização dos corpos das mulheres na ginecologia, e às reações à insurgência feminista recente.

Matricentralidade e a criação do patriarcado

Apesar da insistência ortodoxa de que a dominação dos machos reflete simplesmente a ordem “natural” das coisas, o patriarcado é apenas um desenvolvimento relativamente recente na história da humanidade. Durante 99% de nossa existência, os humanos não viveram sob o domínio patriarcal. A autora feminista Marilyn French chama os grupos de parentesco matrilineares de subsistência horticulturais que existiram amplamente antes do desenvolvimento do patriarcado de matricêntricos; Audre Lorde escrever sobre os cultos a deusas como Afrekete, Iemanjá, Oyo e Mawulisa; o filme Woman Shaman de Max Dashu explora a arte e os achados arqueológicos que restaram dessas culturas matricêntricas ao redor do mundo.

Imagem: Max Dashu

History of Women de French e The Creation of Patriarchy de Gerda Lerner são textos incríveis sobre os processos históricos por meio dos quais os homens criaram o patriarcado que forma a base da sociedade ocidental. Isso aconteceu ao longo de aproximadamente 2500 anos, desde cerca de 3100 a.C., durante a revolução agrícola. De acordo com Lerner, a transição de um modo de vida de subsistência para a agricultura significou que as crianças se tornaram um ativo econômico, uma fonte de trabalho — e as mulheres se tornaram a primeira forma de propriedade privada.

French mostra como a dominação masculina foi primeiramente afirmada através de reivindicações paternais de posse e direito de nomear filhos. O assassinato dos primogênitos era comum nos primeiros grupos patrilineares, quando homens queriam garantir que o primeiro filho de suas esposas eram realmente “seus”. O fato de o aborto ainda estar na legislação criminal da Nova Zelândia é uma expressão contemporânea da presunção de que a vida humana é feita por e pertence aos homens. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde também santificou os “direitos” dos homens sobre as crianças através de uma nova política declarando que a incapacidade de encontrar um parceiro sexual é uma “deficiência”.

Com a apropriação do controle sobre os filhos, a instituição do casamento progressivamente se tornou uma prática que comodifica, desempodera e isola mulheres de suas famílias e comunidades. Para colocar em perspectiva, o estupro dentro do contexto do casamento não era ilegal na Nova Zelândia até 1985.

Com a instituição do casamento veio o dote, e o maior valor no que diz respeito a ter filhas mulheres vinha de seu potencial enquanto esposas; “roubo de noivas” e “defloração ritual” eram comuns, como ainda são hoje no Quirguistão, por exemplo. As “esposas” raptadas são em geral crianças, e hoje uma média de 15 milhões de meninas por ano são forçadas a casar. Em 2013, uma garota iemenita de oito anos morreu de sangramentos internos na noite em que foi casada com um homem cinco vezes mais velho. É isso que o patriarcado faz às meninas.

Uma das práticas que melhor exemplifica a comodificação através do casamento é o costume indiano do suttee, banido legalmente apenas em 1829. Essa prática envolvia queimar vivas as viúvas, incluindo garotas sequestradas como esposas, nas piras funerárias de seus maridos. O mito de que meninas e mulheres perderam seus maridos como resultado de seu próprio carma ruim motivava a prática. Como este era para ser um ritual de “limpeza”, os homens tipicamente evitavam queimar mulheres enquanto elas estivessem menstruadas, e esperavam dois meses depois do nascimento de uma criança se ela estivesse grávida. Incontáveis mulheres poderiam ser queimadas depois da morte de um único homem da realeza.

Depois de os homens terem se apropriado das mulheres e da esfera doméstica, o estatuto das mulheres foi futuramente institucionalizado e codificado como lei através da construção das religiões monoteístas, do estado, e do desenvolvimento da prostituição comercial. Se alguém tentar te dizer que a prostituição é “a profissão mais velha do mundo”, estarão sendo condescendentes e essencialistas: como Max Dashu mostra, mulheres praticavam a medicina muito antes de os homens se darem conta de como objetificar e lucrar com as mulheres através da prostituição. Lerner discute como a burqa, o costume de as mulheres usarem véu, foi criado para ajudar os homens a distinguir entre as mulheres “respeitáveis e não respeitáveis”, entre as esposas e as mulheres na prostituição.

Como escreve Moana Jackson, a colonização sempre acontece com com uma tomada da memória histórica, saqueada de forma que um vasto silêncio se prolifera. “Algumas vezes, esse silenciamento é descrito como uma amnésia social”, diz Jackson, “na qual o passado sumiu das mentes quase como um esquecimento acidental e sem culpados que ocorre com a passagem do tempo”. O que realmente acontece porém, diz ele, é que as histórias são conscientemente redefinidas de modo que ficam “na cara” das realidades políticas e sociais dos colonizados. O mesmo se aplica às mulheres. Hoje, poucas de nós sabe sua história — seja a da nossa opressão ou da nossa resistência a ela, uma vez que a história é contada pelos patriarcas. Mas podemos retomá-la.

A queima das bruxas e a ginecologia

A “pérola”. Durante a caça às bruxas, os torturadores aqueciam essa ferramenta no fogo e então a enfiavam nas vaginas das mulheres, abrindo lá dentro as suas peças. Imagem da autora.

As mulheres continuaram a praticar amplamente a medicina na Europa até o chamado período do “Iluminismo”. Entre o Império Romano e este período, a caça às bruxas e o seu “mito da feminilidade maléfica” resultaram no assassinato de 9 milhões de pessoas, a maioria delas mulheres, ao longo de 300 anos. A história se lembra deste esforço de 300 anos, quando se lembra, como uma espécie de episódio isolado de loucura supersticiosa (pense no The Crucible de Arthur Miller). Escritoras feministas como Mary Daly, Andrea Dworkin e Max Dashu oferecem outra versão.

Dworkin escreve que muitas das mulheres tidas como bruxas eram praticantes de medicina, uma verdade que ainda existe na nossa memória cultural, de forma distorcida e corrompida, no estereótipo da bruxa dos sapos e caldeirões. Mas estas não eram mulheres más de cara esverdeada. De acordo com Dworkin, eram parteiras, principalmente, uma vez que mulheres educadas realmente ofendiam a Igreja.

As bruxas utilizavam drogas como a beladona e acônito, anfetaminas orgânicas e alucinógenos. Elas também foram pioneiras no desenvolvimento de analgésicos. Elas realizavam abortos, providenciavam toda a ajuda médica necessária para realizar partos, eram consultadas em casos de impotência que tratavam com ervas e hipnose, e foram as primeiras praticantes da eutanásia.

Anna Göldi é tida como a última mulher executada como bruxa na Europa. Ela era a empregada de um médico, que a acusou de colocar agulhas nos pães de seus filhos através de meios sobrenaturais. Depois de tentar escapar do julgamento, ela foi capturada e decapitada na Suíça em 1782.

Em seu livro Gyn/Ecology, Mary Daly aponta como a ginecologia foi estabelecida como uma prática governada pelos homens depois do tempo da queima das bruxas. O ano de 1873 marca a publicação da invenção da castração feminina de Robert Battey: a remoção dos ovários das mulheres para a “cura da insanidade”. Desde então, os homens ginecologistas têm rotineiramente patologizado, torturado e ferido cirúrgica e medicamente as mulheres e seus corpos através de práticas violentas de parto, mastectomias e histerectomias radicais, “terapias” de choque e hormonais, e lobotomias.

Imagem da autora

Desde os anos de 1890, houve um interesse louco em úteros mecânicos ou prostéticos feitos de madeira e vidro (“mães artificiais” ou “incubadoras”) — tecnologias que tentavam desafiar a indispensabilidade dos corpos das mulheres. Nessas incubadoras nós podemos ver que a pressão atual dos transativistas em neutralizar e desumanizar a linguagem da gravidez e do parto, e separar a conexão dos corpos das mulheres de sua saúde, possui ecos através da história.

Daly aponta que a tomada do controle da saúde das mulheres pelos homens depois da caça às bruxas não foi coincidência:

Muitas feministas notaram a significância do fato de que o massacre das mulheres sábias e curandeiras durante a caça às bruxas foi seguido de um crescimento no número de homens parteiros, que eventualmente se tornaram dignificados pelo nome de “ginecologistas”. A ginecologia demorou a crescer. Os homens parteiros dos séculos dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove foram combatidos pelas mulheres parteiras, tais como Elizabeth Nihell, que discreveu seus instrumentos como “máquinas da morte”. Mesmo assim, o século dezenove viu a ereção da ginecologia sobre montes de corpos de mulheres mortas.

O acúmulo de abusos

J. Marion Sims, “o Pai da Ginecologia Moderna”, usou mulheres afro-americanas escravas para conduzir seus experimento cirúrgicos. Sims fez experimentos em mulheres negras para pesquisar doenças como câncer — sem prover anestésicos ou outros remédios para controlar a dor. Caso uma mulher morresse das complicações ou por sangramento excessivo, ele simplesmente substituiria ela por outra escrava, e sua prática era completamente legal.

Harriet Tubman. Imagem da autora.

O acúmulo de opressões sobre as mulheres negras é o tópico do livro Mulher, Raça e Classe de Angela Davis. Nele, Davis discute a experiência das mulheres negras durante o tráfico escravagista; incluindo Harriet Tubman (foto), que resgatou mais de trezentas pessoas através da Underground Railroad e foi a única mulher nos Estados Unidos a liderar tropas em uma batalha.

As mulheres negras, segundo Davis, tinham de trabalhar tão duramente quanto os homens nas plantações, performando as mesmas tarefas independente dos mitos que o patriarcado perpetua sobre as mulheres.

As mulheres não eram femininas demais para trabalhar em minas de carvão, nas fundições de ferro ou para serem lenhadoras ou escavadoras de valas. Quando o canal Santee foi construído na Carolina do Norte, mulheres escravizadas eram cinquenta porcento da força de trabalho.

As mulheres eram também escravas sexuais, além disso. “Se as punições mais violentas dos homens consistiam em flagelos e mutilações”, escreve Davis, “as mulheres eram flageladas e mutiladas, bem como estupradas”. Os homens brancos também viam as mulheres negras como “matrizes”:

Durante as décadas que precederam a guerra civil, as mulheres negras foram crescentemente avaliadas em função de sua fertilidade (ou falta dela): aquela que era potencialmente mãe de dez, doze, quatorze ou mais se tornava um tesouro cobiçado. Isso não significava, porém, que como mães as mulheres negras desfrutassem de um status mais respeitável do que o que desfrutavam enquanto trabalhadoras. A exaltação ideológica da maternidade — tão popular no século dezenove — não se estendia às escravas. De fato, para os proprietários de escravos, as mulheres escravas não eram mães; eram apenas instrumentos para a garantia do crescimento da força de trabalho. Elas eram “parideiras” — animais cujo valor monetário pode ser calculado precisamente em termos de sua habilidade de multiplicar seus números.

Uma vez que as mulheres escravas eram consideradas “parideiras” ao invés de “mães”, seus filhos ainda crianças poderiam ser vendidos e tirados delas como novilhos das vacas.

Imagem da autora

Este é outro motivo pelo qual devemos olhar com desconfiança para a introdução de termos como “menstruadores” e “incubadores” na linguagem da saúde da mulher, da gravidez e do parto como resultado da ação do transativismo hoje. Estes termos possuem uma história, e estão ligados especialmente ao tratamento desumanizador da escravidão sexual das mulheres negras. O documentário Google Baby mostra como como as mulheres são atualmente forçadas a tolerar uma vida sob o tratamento de “incubadoras” em clínicas de barriga de aluguel na Índia, muitas vezes dando à luz a bebês brancos feitos com o uso de óvulos e espermatozoides de doadores externos. O tratamento de linha de produção que as mulheres que dão à luz a bebês em clínicas de barriga de aluguel recebem é de dar arrepios, mas o mercado prevê 12 mil estrangeiros por ano indo à Índia para alugar úteros, em geral de mulheres pobres, em uma indústria de valor anual de US$ 1 bilhão.

Uma expressão de colonização racista e patriarcal tão dolorosa e brutal quanto as clínicas de barriga de aluguel na Índia seria difícil de encontrar, se não fosse pela mais velha das opressões: a prostituição. Hoje, 80% das pessoas usadas na prostituição são mulheres, 98% das quais são vítimas do tráfico sexual. Quase todos os prostituintes são homens e o tráfico sexual gera aos homens US$ 32 bilhões por ano. Uma crescente indústria de pornografia violenta acumula cerca de US$ 97,06 bilhões, o que é mais que o lucro combinado das 10 maiores companhias de tecnologia. A mais recente “tendência” na pornografia é a de mulheres sendo analmente estupradas até que sofram prolapso retal (“rosebudding“). Mesmo assim, a Anistia Internacional mostrou seu apoio a esta indústria, submetendo-se às pressões de prostituintes influentes.

Como Cherry Smiley aponta, as mulheres indígenas são mais desproporcionalmente afetadas. Na Nova Zelândia, 15% das mulheres são maori. Em nosso país onde o comércio sexual é completamente descriminalizado, 32% das pessoas prostituídas são maori. Existe uma narrativa ganhando força na Nova Zelândia, sem dúvida abastecida por homens brancos administrando os programas no Coletivo de Prostitutas da Nova Zelândia (NZPC), de que criticar a prostituição é racista por causa das mulheres maori e do Pacífico na indústria. Lembre-se que a demanda por esta indústria vem de homens brancos ricos. Em 2017, os liberais ainda estão sendo doutrinados a acreditar que mulheres indígenas são de alguma forma inatamente pré-dispostas a serem sujeitas a abusos de homens brancos ricos.

O livro de Angela Davis aponta não apenas como as mulheres negras têm sido afetadas pelo acúmulo das opressões de raça, classe e baseadas no sexo, mas que também tiveram que lutar mais arduamente por representação política, mesmo dentro dos movimentos de resistência. Seu livro mostra a interseção entre os movimentos abolicionista pelo fim da escravidão e a primeira onda do feminismo; nenhum dos quais tendo sido suficiente para representar o jugo das mulheres negras. Sojourney Truth lutou com as feministas brancas da primeira onda, assim como bell hooks com as da segunda. Hoje, novamente vemos um movimento de classe média branca liberal que marqueteia um liberalismo identitário chamado “sex positive” como feminismo. Isso aconteceu porque a reação a cada onda feminista assegurou que o feminismo mainstream sairia do outro lado domesticado, branqueado e sexualizado.

Sexologia, pornografia e feminismo

Em seu ensaio Sexology and Antifeminism, Sheila Jeffreys descreve como a “disciplina” da sexologia foi construída como uma reação à primeira onda das feministas sufragistas.

Esse período, imediatamente depois da Primeira Guerra Mundial, foi um tempo no qual muitas mulheres tinham uma considerável maior liberdade e independência do que jamais tiveram. O fato de que grandes números de mulheres não estavam se casando, estavam escolhendo ser independentes, e estavam lutando contra a violência masculina causou considerável preocupação. Essa preocupação é aparente na literatura da sexologia.

Muitas mulheres tinham pouco interesse em intercurso sexual, e mais comumente, pensavam que “nenhuma mulher deveria ser obrigada a fazer intercurso sexual” (isso foi, é claro, muitas décadas antes da segunda onda feminista lutar para criminalizar o estupro marital). Em resposta a essa crescente resistência e independência, e para defender o status quo da opressão das mulheres, a subordinação sexual das mulheres foi naturalizada na sexologia. Havelock Ellis, o fundador do campo, argumentava que

a sexualidade masculina era absoluta e inevitavelmente agressiva, tomando a forma de busca e captura, e que era inevitável aos homens sentir prazer ao infligir dor nas mulheres. A sexualidade das mulheres, dizia ele, era passiva. As mulheres deveriam ser capturadas e “desfrutar” a experiência de dor nas mãos de seus amantes homens.

Os sexologistas também inventaram o conceito da “frigidez” feminina: mulheres “frígidas” eram doentes, e tinham que ser mandadas aos ginecologistas e psicanalistas.

No encalço da sexologia veio a indústria pornográfica que conhecemos hoje. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, houve um crescimento no negócio da promoção dessa objetificação das mulheres. Pornógrafos-empresários como Hugh Hefner (Playboy), Bob Guccione (Penthouse) e Larry Flynt (Hustler) começaram a preparar o mercado para tornar a pornografia socialmente aceitável. Nos anos 90, produtos do coelhinho estavam sendo consumidos por meninas em todo lugar — a marca do coelhinho estampava tudo, de papelaria a pijamas. Os publicadores da Cosmopolitan, Bauer Media, estão envolvidos no lobby global do tráfico sexual, e chegaram a possuir os direitos de publicação da Playboy na Alemanha.

“Era um mundo muito diferente”, diz a escritora feminista Gail Dines, “depois de Hefner ter erodido as barreiras culturais econômicas e legais da produção e distribuição em massa de pornografia”. Agora é passível de discussão se pole dancing é a melhor atividade extracurricular para garotas de 8 anos de idade.

Como essa mudança ao mainstream aconteceu? A resposta é simples: de propósito. O que vemos hoje é resultado de anos de estratégia e marketing cuidadosos da indústria pornográfica para sanitizar seus produtos… reconstruindo a pornografia como divertida, deferente, chique, sexy e quente. Quanto mais a indústria se tornou sanitizada, mais ela escorregou para dentro da cultura pop e da nossa consciência coletiva.

A segunda onda feminista reconheceu e resiste aos abusos e à normalização da pornografia — mas os departamentos de Estudos das Mulheres das universidades nos quais muitas críticas como essa poderiam ser feitas não existem mais. Até mesmo os livros estão ameaçados. A disciplina que usurpou os Estudos das Mulheres é a teoria queer, e de acordo com as feministas, a teoria queer está para a segunda onda do feminismo como a sexologia era para a primeira: uma contra-reação [backlash]. Sheila Jeffreys esclarece como ela veio

dos liberais sexuais da esquerda — em particular, homens — e em grande parte do movimento gay masculino. É daí que vem a contra-reação, mas também possui representantes dentro do feminismo.

Lierre Keith ilustra a representação dessa contra-reação dentro do feminismo:

Já em 1982, Ellen Willis inventou o termo “sex positive” para se distinguir das feministas radicais — porque somos tão negativas, nós feministas radicais. Estupro, estupro, estupro — isso é tudo sobre o que queremos falar. Bom, proponho um trato — se os homens pararem com o estupro, eu paro de falar a respeito.

Keith também aponta que a busca pelo termo “torture porn” gera 32 milhões de resultados. Vale notar que a estética, as ferramentas e as práticas da pornografia moderna e do BDSM endossadas como “diferentes”, a “sexualmente positiva” teoria queer e as “taras” remontam aos tribunais de caça às bruxas. O ensaio de Max Dashu Reign of the Demonologists mostra como a tortura das bruxas era sexualizada, através da fetichização de procedimentos e equipamentos de tortura e as confissões forçadas de sexo grotesco com demônios. Uma entrevista com Audre Lorde em Burst of Light critica o sadomasoquismo por razões similares.

O sadomasoquismo é congruente com com outros desenvolvimentos acontecendo neste país que tem a ver com dominância e submissão, com desigualdade de poder — político, cultural e econômico… O sadomasoquismo é uma celebração institucionalizada das relações de dominação e subordinação… O sadomasoquismo alimenta a crença de que a dominação é inevitável e legitimamente desfrutável.

A feminista Susanne Kappeler nos oferece um lembrete para quando encontrarmos esses tipos de práticas aceitos e celebrados como revolucionários na academia.

Enquanto feministas, faremos bem em lembrar e destacar o fato de que a história do liberalismo, do libertarianismo e da libertinagem tem sido a história de cavalheiros advogando liberdade e permissão para cavalheiros — liberdades pelas quais os direitos e as liberdades das mulheres têm sido rotineiramente sacrificadas.


Cópia de um desenho de 1515 de “witch porn” de Hans Franck.

Comoditização e “escolha”

A produção dos robôs sexuais é um aprofundamento contemporâneo da objetificação das mulheres que disciplinas como a teoria queer sancionam, e até celebram. Distúrbios alimentares e a demanda por cirurgias cosméticas como a labioplastia são apenas dois exemplos do impacto da escalada de objetificação das mulheres. Estamos vendo outras invenções bizarras no mercado, também: o FitBit peniano, uma peça bucal para sexo oral.

Imagem da autora

Um jeito que o lobby do mercado sexual se infiltra sob a pele das mulheres, suga sua confiança, encoraja competição e instiga dependência a um parceiro abusivo ou um prostituinte, é através da mídia, através das revistas femininas. 70% das mulheres alega sentir culpa ou vergonha depois de três minutos folheando esse tipo de revista. É é notório que publicadores e seus anunciantes alimentam inseguranças — e abuso. A maioria das modelos nessas revistas pesa 25% menos que a média das mulheres, e está na faixa de peso da anorexia. Agora, na Europa e nos Estados Unidos, 50 milhões de mulheres sofrem de distúrbios alimentares, e meninas de 6 anos de idade vêm crescentemente expressando ansiedade a respeito de seu corpo.

A Bauer Media publica a Cosmopolitan, a Woman’s Day e a revista adolescente Dolly. Atualmente ela também lucra com pornografia online, e costumava possuir os direitos de publicação de uma série de revistas pornográficas alemãs: a Playboy alemã; Das neue Wochenend; Blitz Illu; Schlüsselloch (que significa “fechadura”); Sexy, Praline e Coupe. A Bauer Media também possui um terço do famoso canal privado RTL II, que transmite reality shows a favor de “trabalho sexual” quase diariamente. Não é surpreendente ver a última edição da Cosmopolitan oferecer conselhos sobre tratamentos cosméticos invasivos indo de micropigmentação de sobrancelha a preenchimento labial, tratamento a laser e terapia de luz.

Labioplastia — redução cirúrgica dos lábios vaginais das mulheres — é outra tendência ocidental que está aumentando e que tem conexões com práticas mais brutais, nesse se caso a mutilação genital feminina (FGM). De acordo com a OMS (que apoiava essa prática em 1958), mais de 200 milhões de mulheres e meninas vivas hoje passaram pelo procedimento em 30 países da África, do Oriente Médio e da Ásia onde a prática da FGM é concentrada. Nessas práticas, as meninas têm seus clitóris e lábios vaginais removidos; na Somália, há a prática de costurar os lábios, deixando apenas um pequeno buraco. A mulher somali Hibo Wardere diz que urinar através dessa pequena abertura é como se “uma ferida tivesse sido esfregada com sal ou pimenta”. O feminismo deve trabalhar para acabar com a mutilação genital, e não se ocupar de glorificar variedades novas e comerciais dela como “escolhas” sexualmente positivas.

O patriarcado mina e recorta os corpos das mulheres enquanto diminui o valor delas. Desde o décimo século e por dez séculos, os patriarcas chineses perceberam que as meninas e mulheres jamais conseguiriam correr, amarrando seus pés e fetichizando esse ato de aleijar mulheres. Hoje vemos o comércio de cabelos, óvulos, leite materno e aluguel de úteros através da prática da barriga de aluguel. Enquanto as incubadoras são normalmente mulheres pobres, as doadoras de óvulos são geralmente mulheres estudadas e jovens, cuja saúde foi investigada em busca de doenças hereditárias e que não foram alertadas para as implicações ou possíveis efeitos colaterais da coleta de seus óvulos.

O feminismo branco mainstream hoje irá classificar a labioplastia como algo que as mulheres “escolhem“. Da mesma forma que a imolação foi “escolhida” através da prática indiana do suttee. Da mesma forma que as mães “escolheram” amarrar os pés de suas filhas, “escolheram” cortar seus clitóris; como as mulheres que “escolhem” ser prostituídas e até mesmo traficadas, “escolhem” usar burqa, salto alto, não comer, amarrar seus seios. Essas práticas são por vezes não apenas marqueteadas e chamadas de “escolha”, mas também de altruísmo. A prostituição, a barriga de aluguel e a imolação tem sido chamadas de práticas “altruístas”. As mulheres, obviamente, querem ser capazes de escolher e contribuir. E que escolhas a sociedade nos permite fazer? Estas. Então alegamos que nós mesmas fizemos estas escolhas. Mas o feminismo precisa entender que, conforme Megan Tyler, sim, “nós fazemos escolhas, mas estas escolhas são moldadas e constritas por condições desiguais nas quais nós vivemos.”

NZPC promove a prostituição como uma “escolha” da mulher. Imagem da autora.

Quando se trata de tendências modernas como o transativismo, não podemos separar o desejo masculino de acesso aos espaços das mulheres e por transplantes de útero, de uma história de apropriação patriarcal (incluso aí as imitações de “úteros prostéticos”). Não podemos separar este movimento de uma história inteira que o precede, da exploração simultânea dos corpos e da desvalorização da mulheres. Também não podemos separar os desejos dos homens de sufocar e apropriar a discussão e a capacidade da habilidade das mulheres de criar vida de uma história inteira disso. O sistema masculino tem trabalhado para se apropriar do controle dos corpos das mulheres e de sua habilidade de criar vida humana, e para sufocar a discórdia feminista desde que chegou ao poder. Nessa Era Trump, a história continua.

Por outro lado, não podemos separar os desejos manufaturados das mulheres pelo privilégio masculino nem esquecer que as escolhas das mulheres de passar por procedimentos como binding e queima dos seios, mastectomias e cirurgias invasivas de uma história de opressão, demonização, mutilação e auto-destruição.

Não podemos separar qualquer discurso sobre gênero das realidades da opressão baseada no sexo — isso se realmente quisermos liberdade.

Imagem: Barbara Kruger

Traduzido do original: “A call to feminists to remember the history and sex-based nature of women’s oppression“. In: Writing by Renee, 7 de fevereiro de 2017.

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A interdependência entre militarismo e prostituição

Traduzido de: GERLICH, Renee. “Conquest: on the inseparability of militarism and prostitution“. In. GERLICH, Renee. Writing by Renee — trigger warning: feminism and women’s rights. 20 de dezembro de 2018.


Desde que os homens começaram a se envolver com guerra, eles têm sequestrado mulheres e crianças para a escravidão sexual. De acordo com o historiadora Gerda Lerner, a conquista militar levou à escravidão e ao abuso sexual de mulheres e crianças capturadas no terceiro milênio antes da era comum. Em The Creation of Patriarchy, Lerner escreve:

Conforme a escravidão se tornou uma instituição estabelecida, donos de escravos alugavam suas escravas mulheres como prostitutas, e alguns senhores estabeleceram bordéis comerciais geridos por escravos. A pronta disponibilidade das mulheres capturadas para uso sexual particular e a necessidade de reis e chefes, frequentemente eles mesmos usurpadores da autoridade, estabelecerem sua legitimidade através da exibição de sua riqueza na forma de servas e concubinas levou ao estabelecimento dos haréns.

Os primeiros códigos legais encorajavam essa prática — como essa passagem do Velho Testamento (Deuteronômio 21:10-15):

Quando saíres à peleja contra os teus inimigos, e o Senhor teu Deus os entregar nas tuas mãos, e tu deles levares prisioneiros, e tu entre os presos vires uma mulher formosa à vista, e a cobiçares, e a tomares por mulher, então a trarás para a tua casa; e ela rapará a cabeça e cortará as suas unhas. E despirá o vestido do seu cativeiro, e se assentará na tua casa, e chorará a seu pai e a sua mãe um mês inteiro; e depois chegarás a ela, e tu serás seu marido e ela tua mulher. E será que, se te não contentares dela, a deixarás ir à sua vontade; mas de modo algum a venderás por dinheiro, nem a tratarás como escrava, pois a tens humilhado.

Ainda hoje, onde houver militarismo, haverá prostituição. Na ocupação de Papua do Leste foi reportado tráfico sexual no entorno das minas — como Freeport, a maior mina de ouro do mundo — sob a guarda do exército da Indonésia. A prostituição é abastecida pelas assim chamadas “tropas de manutenção de paz”: relatórios recentes de Rohingya mostram o envolvimento das tropas de paz no tráfico sexual e, antes de 2009, mostravam o envolvimento das tropas de paz no tráfico de mulheres e crianças para a prostituição nos Balcãs, Moçambique, Libéria, Guiné, Serra Leoa, Congo e Haiti. No começo dos anos 2000, mulheres tailandesas estavam sendo traficadas em bordéis frequentados por tropas de paz em Timor-Leste; tropas de paz criaram a indústria da prostituição em Ruanda em 1995; e no Camboja, a chegada das tropas de paz causou um aumento de 1.500 para 20.000 no número de mulheres e garotas prostituídas em 1990.

Conforme os Estados Unidos transforma o Oriente Médio em uma zona de desastre, a história está se repetindo. A autora feminista egípcia Nawaal El-Saadawi aponta em The Hidden Face of Eve que “[e]m um único ano, as Cruzadas tiveram de pagar os custos de alimentação e abrigo de mais de 13.000 prostitutas”. Hoje, o Oriente Médio tem a indústria de tráfico sexual que mais cresce no mundo, com tropas de paz envolvidas no tráfico de mulheres sírias.

Os comerciantes de escravas brancas introduziram a prostituição e as doenças sexualmente transmissíveis como parte de sua conquista e colonização: quando o capitão Cook foi ao Havaí em 1778, ele levou uma mulher havaiana chamada Lelamahoa-lani para si, em troca de ferro, e os marujos da Endeavour seguiram seu exemplo. De acordo com o historiador James Belich, pelo ano de 1810 na Nova Zelândia, a prostituição era mais lucrativa que o comércio de lã, laticínios e até mesmo ouro. Sheila Jeffreys no livro The Industrial Vagina escreve que “o estado colonial holandês agiu como um cafetão” em Curaçao, administrando, regulando e recrutando mulheres para bordéis desde o começo do século XX. Em Mulher, Raça e Classe, Angela Davis aponta que no tráfico escravagista, “as mulheres […] eram inerentemente vulneráveis a todas as formas de coerção sexual. Se a mais violenta forma de punição para um homem consistia em chicotadas e mutilações, as mulheres eram chicoteadas e mutiladas, mas também estupradas.”

A regulação do estupro pelo Estado originou de uma tentativa de evitar que a sífilis tivesse um efeito debilitante no exército como um todo. É isso que a prostituição é: a regulação do estupro no sentido de manter a capacidade dos homens de dominar. Feministas organizadas em campanha contra a regulação do estupro datam do Ato das Doenças Contagiosas de 1864 na Grã-Bretanha, que ditava que qualquer mulher encontrada em portos marítimos ou nos arredores de cidades militares (como Portsmouth) poderia ser presa, examinada e — se tivesse alguma doença venérea —, encarcerada em internamento forçado. Feministas como Josephine Butler reconheceram que essa lei significava que “homens podiam usar prostitutas com impunidade enquanto ao mesmo tempo puniam todas as mulheres”, conforme relata a jornalista Julie Bindel. Butler venceu sua luta contra o Ato das Doenças Contagiosas em 1886 — e então ela se voltou para a Índia, onde o exército britânico estava vendendo mulheres na prostituição em cidades militares usando os mesmos métodos legais. No século XIX, na Irlanda, as tropas britânicas também estavam prostituindo mulheres em cidades militares.

1884 foi o ano do “Passeio pela África” da Europa: foi quando nações européias dividiram o continente africano entre si mesmos em uma conferência em Berlim, antes de invadirem seus novos territórios reivindicados. Tropas italianas e francesas estabeleceram sistemas de prostituição assim que chegaram na África: o exército italiano montou um sifilicomio, para onde mulheres seriam levadas para se recuperar de doenças sexualmente transmissíveis, quase imediatamente depois de terem ocupado Massawa em fevereiro de 1885. Assim como os franceses: o primeiro sistema de prostituição regulamentada foi criado em Algiers em 13 de julho de 1830, apenas oito dias depois de as tropas francesas terem capturado a cidade. Filles soumises ou “garotas submissas” eram levadas a bordéis europeus e distritos da luz vermelha marcadas como “indígenas” — esse sistema gradualmente se estendeu por todos os territórios do norte da África que estavam sob o controle da França.

No Congo ocupado pela Bélgica, o rei Leopoldo II enviou soldados recrutas a vilarejos para sequestrar e manter mulheres reféns, de modo a forçar os homens locais a coletar a altamente lucrativa borracha cujas árvores que cresciam na floresta. “As mulheres capturadas durante a última incursão… não estão me causando nenhum tipo de perturbação”, escreveu em seu diário um oficial belga chamado Georges Bricusse em 22 de novembro de 1895. “Todos os soldados querem uma. Os sentinelas que deveriam estar as vigiando desacorrentam as mais bonitas e as estupram”. No início dos anos 1900, os invasores alemães causaram um genocídio na Namíbia. Eles então montaram um bordel para prostituir as mulheres nativas que sobreviveram.

Os livros The Industrial Vagina e Does Khaki Become You.
Imagem da autora do texto.

Na Nigéria, grandes porcentagens de mulheres de tribos nativas foram arrastadas para a prostituição durante essa era de colonização. A pesquisadora Mfon Ekpo-Otu conta que no ano de 1948, “a prostituição se tornou tão endêmica na região de Agwagune (Akunakuna) que seu nome se tornou sinônimo de prostituição” — tribos próximas chamavam mulheres prostituídas de akuna ou akwunakuna. No Quênia, um oficial da polícia reportou em 1917 que havia entre 300 e 500 mulheres e crianças sendo prostituídas em Nairóbi, algumas com 10 anos de idade. Na época da Segunda Guerra Mundial, muitas mulheres quenianas que estavam na prostituição de rua — que começou a ser chamada de watembezi — começaram a alugar camas, esteiras e quartos em cabanas de barro onde eram prostituídas em tempo integral por soldados alocados em Nairóbi.

De acordo com livro de Cynthia Enloe Does Khaki Become You, no começo da Segunda Guerra Mundial, os bordéis em Trípoli (Líbia) passaram a ser controlados diretamente pelo exército britânico. Oficiais foram postos em seu comando. Comandantes do exército britânico alocados na Índia também administravam bordéis oficiais, e em ambos os casos, as mulheres foram submetidas a exames médicos obrigatórios, e os bordéis eram designados de acordo com a raça e a posição na hierarquia dos soldados. Quando mais tarde vieram ordens de Londres para fechar os bordéis na Índia, os militares colocaram a culpa na epidemia de sífilis. Em seu livro A Man’s Country, Jock Phillips narra como soldados da Nova Zelândia queimaram bordéis no Egito em 1915 como uma vingança por contraírem sífilis, como se as mulheres fossem as culpadas — uma vez que era esperado delas se manterem “limpas” para o uso das tropas.

Nos anos 1930 e 40, o Japão continuou expandindo seu território através da China e do Pacífico. Em Japan’s Comfort Women, Yuki Tanaka explica que em abril de 1933, o exército imperial japonês criou uma estação chamada “Instalação Higiênica para Prevenção de Epidemias” em Xangai, onde mantinha 35 mulheres coreanas e três japonesas. Duas camisinhas eram distribuídas para cada soldado — um total de 15.528 camisinhas. No ano de 1942, 32,1 milhões de camisinhas foram enviadas para unidades alocadas fora do Japão, e além disso, as tropas japonesas sequestraram por volta de 200 mil mulheres e meninas da Coreia através de tráfico, trapaça e à força, para usá-las no que ficou conhecido como “mulheres conforto”. Mulheres japonesas chinesas e taiwanesas também foram usadas, e meninas filipinas de dez anos foram sequestradas por grupos de soldados. Jovens meninas virgens eram preferidas, uma vez que era menos provável que estivessem infectadas com sífilis, e sob o sistema das mulheres conforto, os oficiais tinham a preferência no “direito” às garotas mais jovens traficadas.

Os japoneses estabeleceram esse sistema de mulheres conforto na Indonésia; 3000 mulheres japonesas chinesas e coreanas foram também enviadas a Papua Nova Guiné ocupada pelo Japão, para lidar com entre 25 e 35 “clientes” por dia. As mulheres japonesas foram menos usadas no papel de “mulher conforto” porque se acreditava que seu papel era criar crianças japonesas saudáveis que cresceriam fiéis ao Império. O governo japonês no período das grandes guerras se inspirou na ideologia eugênica nazista, proclamando a Lei Eugênica Nacional em 1940. De acordo com Jeffreys, Himmler ordenou o estabelecimento de pelo menos nove bordéis em campos de concentração. Sob instruções do departamento de saúde, o gueto de Varsóvia estabeleceu um bordel com cinquenta mulheres judias para o uso dos soldados alemães, e em alguns lugares mulheres judias eram aprisionados para o uso dos guardas da SS.

Em 1945, no início da primeira guerra do Vietnã, os vietnamitas resistiram às tropas francesas entregando a eles as mulheres locais — mas em 1954 os franceses quebraram essa resistência. “Primeiro garotas baristas, e então casas de massagens para os fuzileiros navais em Da Nang, até que uma favela de bordéis, casas de massagens e negociantes de entorpecentes conhecidos como Dogpatch logo rodeavam a região”, lembra um veterano americano. Novamente, haviam bordéis separados para os soldados brancos e negros. Em seu livro Don’t Be Afraid of Gringo, Elvia Alvarado diz que o povo hondurenho se referia a sífilis como “flor de Vietnam”. “Quando os gringos chegaram”, diz Alvarado, a prostituição “deu início a algo terrível, com ruas inteiras cheias de bordéis”. Ela acrescenta,

Houve também um escândalo em torno do abuso sexual de crianças pelos gringos. Houveram casos de crianças que foram estupradas. Nunca ouvimos falar de nada parecido com isso antes de os gringos virem para cá.

E as pessoas começaram a falar sobre uma doença sexual chamada “flor de Vietnam”. Acredito que esse nome venha do país Vietnã, onde os Estados Unidos lutou outra guerra. Tudo que sei é que é uma doença sexual difícil de curar.

Mas o pior tem sido a AIDS… Dizem que quando os gringos contraem AIDS eles duram mais, porque tinham mais defesas que nós indígenas temos.

Protesto da organização filipina Gabriela.
Imagem da autora do texto.

Evento do fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão perdeu o seu domínio sobre a Coreia e ela se dividiu em dois estados: a do Norte e a do Sul, desencadeando a Guerra da Coreia. Desde então, mais de um milhão de mulheres coreanas foram prostituídas pelo exército dos Estados Unidos. Em seu livro In Order to Live, Yeonmi Park conta sua experiência de ter sido contrabandeada da Coreia do Norte por traficantes que tinham como alvo garotas norte-coreanas buscando passagem segura,de modo a vender essas garotas para casamento e prostituição na China.

Um dos focos do livro The Industrial Vagina de Jeffreys são as regiões que o exército americano transformou em regimes de “descanso e recreação”, antes desses países se tornarem destinos de turismo sexual. Coreia, Tailândia e Filipinas estão entre essas regiões: 100.000 mulheres em Bangkok foram prostituídas sob o pretexto de “descanso e recreação” antes de a Tailândia se tornar um destino para o turismo sexual. 70% dessas mulheres e garotas sofriam com sífilis. Por volta dos anos 1960, 55.000 mulheres filipinas foram usadas na prostituição por tropas americanas para “descanso e recreação”. A organização filipina feminista Gabriela foi criada para resistir ao modo como as mulheres e meninas filipinas eram responsabilizadas, punidas e medicalizadas por causa da epidemia de sífilis causada pelo influxo de tropas americanas que as estavam prostituindo.

De acordo com o expert em tráfico de pessoas Siddharth Kara, os países asiáticos tem agora o maior número total de mulheres e meninas na prostituição. Nações como Quênia, Hawaii, Tahiti e Brasil também estão entre os maiores destinos sexuais militarizados.

A conexão que a prostituição e a pornografia tem com o militarismo é cíclica. A prostituição organizada por exércitos abasteceu a demanda da indústria pornográfica que cresceu rapidamente depois da Segunda Guerra Mundial; a pornografia também é usada para encorajar a agressividade dentro das forças armadas. Pornografia foi usada com este propósito quando soldados paquistaneses invadiram Bangladesh durante o genocídio de 1971; um jornal de mulheres britânico chamado Outwrite reportou que filmes pornográficos hardcore eram exibidos as tropas britânicas com destino às ilhas Malvinas em 1982. A Iugoslávia foi saturada de pornografia antes do genocídio bósnio, e a pornografia foi um fator para o estabelecimento de campos de estupro por milícias sérvias na Bósnia. Combatente sérvios filmaram o estupro de mulheres não-sérvias para fazer pornografia dentro de um sistema de prostituição onde o assassinato era comum.

Prostituição e pornografia são inseparáveis do militarismo. Juntas, essas instituições mantém o domínio dos homens no poder sobre as mulheres, e sobre as regiões ocupadas: mais do que isso a pornografia e a prostituição encoraja os homens a fetichizar a violência e a dominação.

A resistência feminista contra o estupro regulamentado — como o trabalho da organização Gabriela nas Filipinas, e a campanha de Josephine Butler contra o Ato das Doenças Contagiosas na Grã-Bretanha e Índia — ainda é uma parte crucial da oposição a violência masculina e ao militarismo. A prostituição tem se tornado normalizada de forma crescente ao redor do mundo, com jurisdições como a Nova Zelândia implementando versões contemporâneas do Ato das Doenças Contagiosas de 1864. Sobre o modelo do legislativo da Nova Zelândia chamado de “redução de danos”, o “apoio” oferecido às mulheres na prostituição constitui em nada mais do que distribuição de preservativos, de modo que os homens possam se proteger de doenças sexualmente transmissíveis. O estupro de mulheres vai permanecer intocado, a menos que as feministas se deêm conta de que precisamos agir.

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Artigos inéditos

Corpo, alma e a mulher como vaso

Nos anos 1940, em uma crítica ao cartesianismo da divisão entre o corpo e a mente, o filósofo Gilbert Ryle denominou esse dualismo de “dogma do fantasma na máquina”. Essa ideia, adotada por vezes em algumas obras do cyberpunk, ilustra o dualismo como um espectro (a alma) que preenche o vazio de uma concha (a matéria). Ryle criticou esse pensamento no sentido de que compara mente e corpo como se fizessem parte da mesma categoria, filosoficamente errado por princípio.

Essa crítica, não por acaso, se aplica também a uma compreensão rasa e determinista da técnica, que enxerga artefatos produzidos pelos seres humanos de forma independente das forças conscientes que os produziram. Essa interpretação das “forças conscientes” como entes separados no reino do espírito tem origem em uma compreensão de mundo fundamentalmente cristã, ainda que iluminista (ou anti-iluminista, como era o caso de Descartes). Este tipo de visão enxerga deus como uma pré-consciência que cria os corpos humanos e os presenteia com uma consciência — o sopro da vida. Se esse corpo deixa de existir e morre, a consciência que o habita permanece, mas seu destino vai depender da interpretação teológica ou metafísica do freguês.

Uma vez que o eixo de análise feminista comprometida com o desmantelamento da dominação masculina precisa ser o sexo, o feminismo é, filosoficamente, materialista. Ainda que em suas discussões se abarque a “natureza da mulheridade”, muitas vezes essas discussões acarretam em desvios dualistas (ou que tendem ao dualismo). Sendo esses desvios deliberados ou não, eles têm como consequência justamente a retirada do sexo como eixo central da análise e ponto de partida feminista [1]. O sexo fêmea é a expressão material da existência das mulheres.

Se tivesse uma compreensão dualista, o feminismo entenderia a mulher como uma entidade mental que habita um corpo fêmea. A compreensão materialista e verdadeiramente feminista, no entanto, é necessária para que não haja essa ruptura entre o ser e o existir. Não existe uma alma-mulher que habita no corpo fêmea. Seu corpo fêmea é parte fundamental do que significa ser um ser humano mulher.

Sendo um corpo fêmea, as mulheres estão sujeitas às particularidades de se existir nesse tipo de corpo específico, com as suas especificidades. Ser uma fêmea é experienciar o mundo de forma qualitativa e materialmente diferente de experienciá-lo em um corpo macho. O tipo de corpo macho, biologicamente, existe em relação reprodutiva da espécie humana com as fêmeas, mas de nenhum modo esse aspecto material tem relação expressa com a existência do corpo fêmea [2], da mesma forma que um ser humano qualquer não tem, a priori, qualquer relação com outro ser humano qualquer para além do fato de que ambos são humanos. A espécie humana é dimórfica, o que significa dizer que podemos vir ao mundo de duas formas distintas de ser humano, macho ou fêmea. O que o feminismo defende, nos termos mais crus possíveis e sem modificadores externos, é que estar em um ou outro tipo de categoria sexual não pressupõe maior ou menor valor social.

Reconhecer a existência de fêmeas e machos e suas diferentes dinâmicas de relação com o mundo não é essencialismo, é materialismo. O contrário, não reconhecer essas dinâmicas, é medir a existência das mulheres pelas réguas e regras dos homens. É assumir que homens são o padrão da existência humana e que mulheres são um Outro desviante da norma, em um sentido bizarro de “minoria” que compõe mais da metade. É evitar que mulheres falem de si, interditando o debate antes mesmo que ele possa começar utilizando pressupostos de análise que sequer consideram a existência da mulher como uma coisa real, enxergando a dimensão sexual e reprodutiva como pertencente ao reino separado da matéria, uma concha vazia carente de alma. É interpretar a existência dos corpos fêmeas das mulheres como fora da dimensão do “humano”.

Uma visão materialista no feminismo enxerga as mulheres como seres humanos adultos do sexo feminino. Uma visão dualista enxerga as mulheres como úteros (no sentido físico) e como receptáculos (no sentido simbólico). Uma vez que a visão dualista tende ao espiritualismo, em uma visão patriarcal a mulher é o receptáculo, o vaso da Vontade do Pai. Conforme o domínio masculino vai se afrouxando, os dominadores encontram formas de se manter, cedendo aqui e ali, enxergando as mulheres não como iguais — como isso poderia ser possível? —, mas como instrumentos dos seus objetivos, depositárias de suas bênçãos e conhecimentos [3]. No sentido mais pejorativo desse mesmo patriarcado cambaleante, mulheres são “depósitos de porra”.

As mulheres não são fantasmas na máquina. Seu corpo fêmea não é um aparato. Melhor ainda seria dizer que o corpo das mulheres não é uma chocadeira para gerar novos seres humanos (ou mesmo filhos menos literais), à disposição dos propósitos dos homens, sejam eles quais forem. O corpo fêmea é uma pré-condição da existência da mulher. Que ele possa gerar novos seres humanos é uma capacidade própria sua explorada pela dominação masculina, e que ainda que não circunscreva a existência completa do ser humano mulher, é com um corpo fêmea que a existência dela acontece. Negar essa realidade não é uma postura que centre mulheres e, muito menos, uma postura feminista.


Notas

[1] Outros desvios com tendências dualistas podem incluir compreensões ginocêntricas emprestadas de visões de mundo religiosas, ou ainda uma compreensão “ecológica” mística ou quase.

[2] Muito pelo contrário. Pela ciência da embriologia, sabemos que a forma base do feto só se desenvolve em uma forma fenotípica masculina caso receba instruções genéticas e hormonais para tal. As críticas ao feminismo que evidenciam a existência de anomalias nesse processo falham em enxergar que se tratam, justamente, de anomalias e não de outros sexos diferenciados.

[3] Todos eles desenvolvidos por homens, que tão bondosamente presenteiam as mulheres para que frutifiquem a partir de seus saberes.