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Desconstruindo o “trans do bem”

Texto de Jennifer Bilek para o Uncommon Ground Media. Traduzido livremente do original.


Trans que se identificam como mulheres que reconhecem a misoginia inerente ao ativismo trans precisam ainda confrontar sua própria objetificação das mulheres e sua participação nisso.

Miranda Yardley, um “trans do bem” que ficou conhecido justamente por ser “crítico de gênero”.

Em espaços onde se criticam as políticas de gênero nas mídias sociais, há alguns homens que se identificam como “trans” que se destacam entre a maior parte das vozes “trans” e frequentemente criticam os motivos que levam seus companheiros de saias que afirmam serem mulheres de verdade. Esses homens identificados como “trans” que entendem e afirmam indubitavelmente que são homens geralmente têm uma compreensão abrangente das mulheres que se posicionam contra o transativismo. Muitos dão voz às nossas preocupações em plataformas de mídia e recebem a ira de outros ativistas “trans”. Por esses homens entenderem porque mulheres não querem homens em nossos espaços privados, expressam claramente os malefícios da “mitologia de gênero” sobre as crianças, bem como a destruição da linguagem, da lei, dos direitos das mulheres etc na sociedade, eles são comumente laureados por aqueles combatendo a “mitologia do gênero” como “um tipo de mulher trans do bem”.

Kristina Jayne Harrison, um homem que se identifica como “mulher trans” que vivem no Reino Unido é um desses caras. Ele “se posicionou a favor dos direitos das mulheres ao aborto, ao seu direito de controlar seus próprios corpos, definições, espaços, e de dirigir sua própria luta contra o sexismo”. Ele não tem nenhuma ilusão quanto a ser uma mulher de verdade e luta “contra a autodefinição de identidade de gênero”. Harrison acredita que sua transição médica vem de seu comprometimento de performar um papel social do sexo oposto, e isso torna suas escolhas diferentes (leia-se: menos sexistas) que aqueles que não se comprometem a uma transição completa. Ele acredita que mulheres eram/são mais receptivas em seus espaços privados a homens que fizeram todo o processo de adaptação de suas características sexuais secundárias, até que o guarda-chuva “transgênero” apareceu para incluir aqueles homens não “comprometidos”. Sua própria apropriação dos nossos corpos sexuados parece lhe escapar. Harrison acredita que sua performance é “não apenas baseada em estereótipos de papéis sexuais impostos a mulheres”, mas também “refle a agência das mulheres, porque mulheres também são agentes ativas na construção de seu mundo”. Ele não enxerga nenhuma desconexão no fato de que não nasceu com um corpo feminino, que é o único descritor universal de uma mulher, não foi criado no mundo como uma mulher, mas agora fala como homem que se apropriou de características sexuais secundárias de mulheres, e as têm usado como uma fantasia para falar sobre nossa agência.

Não existem equivalentes de mulheres identificadas como homens falando sobre a agência dos homens nas plataformas públicas, usando o espaço público para discutir o que homens são. Todo mundo sabe o que é um homem. Ainda que esses homens sejam “bons” em desmantelar o sexismo inerente às identidades transgênera e transexual, eles sempre perdem o ponto central: a objetificação é um ingrediente essencial do sexismo, ao qual eles se apegam como se fosse um bote salva-vidas. O custo do transativismo é a continuação do sexismo e da opressão das mulheres no mundo todo.

Debbie Hayton é outro homem que se identifica como “mulher trans” no Reino Unido que tem feito muitas aparições na mída e tem sido uma voz sólida no Twitter, apoiando aqueles que resistem à mitologia do gênero. Hayton, em uma entrevista bastante interessante com Benjamin Boyce, um produtor de mídia independente de agenda flexível, disse que evoluiu ao ponto que não necessariamente se identifica como mulher, mas mantém o desejo de “assinalar sexo” da mesma forma que “mulheres assinalam sexo” na sociedade. Ele sugere que “ser trans” é “o que ele faz, e não o que ele é”. O desejo de se ver como mulher, ele acrescenta, é para si, não para atrair a atenção de nenhum pretendente. Ele se entende como um autoginefílico.

A autoginefilia é precisamente o fetiche sexual masculino de enxergar a si mesmo como mulher. O que torna isso um fetiche, além do fato de estar fora do desejo “normal” ou “médio” por outras pessoas, é sua característica obsessiva, que Hayton assume, e seu foco na objetificação. Um fetiche implica uma fixação em um objeto particular para gratificação sexual. Homens que desenvolvem um fetiche de “assinalar sexo como as mulheres” necessariamente objetificam mulheres e a mulheridade. Para incorporar — como fetiche — o sexo oposto, essa pessoa precisa se desassociar de seu próprio corpo. É isso que o sexismo faz, e é isso que o transgenerismo também faz. Eles desassociam, desmembram e objetificam mulheres.

Em suas entrevistas, Boyce e Hayton discutem a vergonha social dessa propensão sexual particular e como isso contrasta com as marchas e eventos do orgulho LGBT. Ambos, inconscientemente, agrupam o trangenerismo com as relações e a atração entre pessoas do mesmo sexo — ou, pelo menos, discutem-nos como se fossem coisas aproximadas. Mas o desejo ou as relações entre pessoas do mesmo sexo não são obsessivas, não indicam dissociação nem a encorajam, não são fetiches nem necessariamente objetificam ninguém. O transgenerismo, por outro lado, é brilhantemente desconstruído pela Dr. Em em um artigo recente como um constructo social que tem suas raízes originárias no sexismo — na objetificação. Hayton parece entender isso — ou pelo menos chega perto. Ele diz que sua “identidade” como “trans” no momento é um compromisso com a sociedade. Ele não tem certeza de como lidar com seu desejo por objetificar mulheres ou “passar”, porque uma vez que “passe”, mesmo que isso lhe dê satisfação, o faz se perguntar se está mentindo para a sociedade. Ele está. Ele também entende, pelo menos agora, que o transgenerismo é um paliativo. Falando com Boyce, ele avalia o custo disso tudo para si e para sua família ao longo da vida e se pergunta se valeu a pena.

O que Hayton não considera é o custo disso para a sociedade. Esses homens, “identificados como mulheres”, “passando por mulheres”, com ou sem cirurgia, entendendo ou não sua situação, ainda estão objetificando mulheres. É incrível como eles chegam muito perto de compreender isso, de entender o quanto isso é destrutivo na sociedade, são capazes de descrever o problema eloquentemente para outras pessoas, e não têm qualquer pretenção de abandonar isso. Ainda se chamam de “mulheres trans”. Eles não são apenas caras que curtem batom e saias. Não estamos falando de Boy George ou do Prince aqui. Eles querem “assinalar sexo da mesma forma que as mulheres o fazem”. Eles querem se agarrar à sua obsessão pela objetificação das mulheres não importa quais sejam os custos disso para as mulheres no mundo real, sendo que essa é precisamente a forma como muitos homens se comportam. Eles não consideram o desenvolvimento da tecnologia e da farmacologia envolvidas na modificação de características sexuais, quando o que significa ser humano significa também fazer parte de uma espécie dimórfica, e como esses desenvolvimentos podem ser usados na manutenção dos estereótipos de sexo na sociedade.

Que esses caras entendam que o objetivo do transgenerismo é apoiar o aparato sexista através de avanços tecnológicos e farmacológicos que permitem a encenação de uma mentira social, não busquem a destransição nem falem enquanto os homens que são contra a transição, me lembra dos trabalhadores que furam greve ao passar por um piquete dos grevistas. Esses trabalhadores fazem examente o que o xingamento que recebem, “sarnentos”, descreve: sabem o que estão fazendo e continuam a fazê-lo, se beneficiando às custas de todos os outros que assumem a greve.

Os “trans do bem” não são tão ruins quanto os “do mal”, que descaradamente nos objetificam enquanto nos zombam e colecionam elogios de bravura enquanto isso, mas não são tão bonzinhos quanto a gente acha. Quando estiverem dispostos a assumir sua hombridade e pararem de tratar mulheres como se fôssemos objetos ou talismãs de desejo por conta de sua posição desconfortável na estrutural social dos estereótipos de sexo impostos a si, talvez aí eu tenha mais consideração por eles. Hacsi Horvath e Walt Heyer são homens assim. Ambos destransicionaram e se dispuseram a falar, como homens, sobre os males que o transgenerismo está causando às mulheres, crianças e à sociedade em geral. Se esse negócio de “trans do bem” existe, então esses homens, os que abandonaram o rótulo de “trans”, são isso.

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Por que John Stoltenberg Chama Andrea Dworkin de “trans aliada”?

Tradução livre do original em inglês no blog Radical Pro Feminist.

Andrea Dworkin e John Stoltenberg. Crédito da foto: ProFeministMen

Parte I: Introdução

Em reconhecimento ao décimo quinto aniversário da morte da grande Andrea Dworkin, seu parceiro John Stoltenberg, escreveu recentemente um artigo publicado da edição online do Boston Review. Você pode lê-lo aqui.

Aprecio e entendo completamente de onde o raciocínio de John vem; compartilho suas preocupações a respeito de qualquer ideologia ou ação que vise gerar preconceito, discriminação intrapessoal ou sistêmica, ou que replique qualquer encarnação de supremacia social. Como John, acredito que Andrea teria se oposto apaixonadamente a isso. Diferente de John, Andrea teria feito isso em qualquer lugar em que encontrasse esse tipo de coisa.

Acho tanto o título quanto o conteúdo desse novo artigo de Stoltenberg problemáticos em alguns aspectos. Stoltenberg aplica a Andrea um rótulo com a intenção de silenciar alguns sentimentos. Sua empatia pelos oprimidos é notória. Mas não existem declarações públicas dela que especificamente apóiem a pauta trans. Ela não era “anti-homem” e não acredito que ela seria “anti-trans”, muito menos deveria ser rotulada como tal. Mas não se pode atribuir afeição à ausência. Não se deve pegar termos de uma batalha que não era a dela e colá-los em alguém tão calejada quanto ela. Sei que John entende que rotular alguém incorretamente não é legal [1]. Chamo a atenção de John para que ele aponte com cuidado a posição dela e não se aproprie de algo que ela escreveu em um momento que seu trabalho teórico tinha problemas, reconhecidos por ela mesma. (Mais sobre isso adiante.)

Além disso, não vejo seu artigo apontando onde Andrea era ou não trans aliada. O artigo é sobre ideias e valores: dele, dela, e sua interpretação de termos que algumas feministas radicais às vezes usam. O artigo de John borra distinções, especialmente as de Andrea. Ainda mais grave, esse artigo ofusca os termos em que o trabalho público de Andrea exige para mobilizar ações em direção à mudança feminista revolucionária. Desses dois modos, sinto que ele exagera um bocado, desrespeitando-a no processo. Stoltenberg disse que foi ingênuo ao aprovar o título sugerido para seu artigo de 2014, “Andrea Dworkin Was Not Transphobic” [2]. Por quanto tempo a ingenuidade deve ser armazenada nesse seu arsenal defensivo? Somente uma grande quantidade de privilégio permite que esse prazo nunca expire. E tem mais: Andrea pediu postumamente para ser colocada em meio a uma batalha política polêmica que não escolheu?

Leitores, isso piora.

Parte II: Mulheres reais

John identifica usos de frases “mulheres de verdade” como uma afronta moral ao que Andrea trabalha e dava valor. Ao mesmo tempo, ele se recusa a evidenciar uma preocupação, um pesadelo muito evidente para ela na vida dentro do patriarcado que, eu acredito, a maior parte do feminismo radical coloca centralmente em sua teoria e ativismo: a mulheridade não é escolhida, é imposta. Ela tem um corpo; e o corpo é de uma fêmea. Andrea descreveu graficamente a violência contra ela, contra seu corpo, seu corpo de fêmea. Perceber essa conexão (e como uma pessoa não perceberia?) não torna a Dworkin, ou qualquer outra pessoa suportando e testemunhando as mesmas atrocidades, um essencialista de sexo. Como eu irei ilustrar, é o tema mais central, abordado em dúzias de discursos e artigos, e em todos os livros dela. Eu a vi falar muitas vezes, eu li os livros dela. Isso foi o que eu ouvi:

É contra o corpo feminino que a supremacia masculina de modo flagrante e sistematicamente se expressa na ordem de manter a dominância masculina de maneira natural, criada por deus, eterna, e inevitável. É contra o corpo feminino que a força patriarcal é lançada: brutalmente, sadicamente, quebrando ossos e matando. Através de todo o trabalho dela, Andrea abordou isso explicitamente: a violência contra os seios das mulheres, seus úteros, suas vaginas. O que eu ouço mais profundamente, mais ferozmente, na oposição raivosa das feministas radicais contra os elementos do essencialismo das políticas trans, em parte, é isso: Vocês estão fazendo esse entendimento parecer louco e imoral. E de forma amplamente literal. John não está ajudando. O patriarcado faz o tratamento dos homens para com as mulheres — para Andrea, para as feministas radicais, os teimosos seres humanos com a forma de fêmea — intimamente opressivo. As palavras dela expressam esse ponto muito melhor que as minhas.

Os atos de violência retratados na pornografia são atos reais cometido contra mulheres reais e meninas reais. (Letters from a War Zone, p. 11)

A realidade material das mulheres é determinada por sua característica sexual, a capacidade reprodutiva. O homem pega um corpo que não é dele, o reivindica, planta a dita semente, e colhe os seus frutos — ele coloniza o corpo feminino, rouba seus recursos naturais, o controla, usa, esgota aos seus desejos, nega a sua liberdade e sua auto-determinação para que ele continue a lucrar com esse corpo…(War zone, p. 118)

… Eu também aprendi muito sobre o poder masculino com [mulheres], quando eu me importei o bastante com as mulheres a ponto de entender que o poder masculino era um tema ao qual minha própria vida havia me levado. Eu conheço o poder masculino de dentro para fora, com o conhecimento que ganhei através desse corpo feminino. (War Zone, p 64)

Agora, essa repulsa é literal e linear: direcionada especialmente contra as genitais dela, e também os seios, e também a boca dela recentemente percebida como um órgão sexual. É um ódio esmagador (goose-stepping é uma expressão difícil de traduzir, alguma sugestão?) contra bucetas. A mulher não possui dimensão humana, nem significado humano. (Intercourse, p.9)

O que é incrível e inaceitável para mim é que apontar isso em voz alta é controverso, a não ser para o homem — então ainda é inaceitável enquanto é esperado e normal. John, muitas feministas radicais, e qualquer um que é familiarizado com ela sabe disso: Andrea valorizava a nomeação das condições da maneira que ela as enxergava, de maneira clara. Palavras educadas ou pisar em ovos eram repugnantes para ela. Ela odiava que palavras fossem colocadas em sua boca ou tiradas de contexto. Ainda assim, a representação dela feita por John retira o fato mais incisivo sobre isso: Materialmente, o diagrama de Venn consiste em um círculo.

Eu descobri de maneira perturbadora, através da última década e meia, que um pré-requisito para operar aceitavelmente em espaços queer liberais dominados por brancos, acadêmicos e variados, é especificamente o silenciamento de Andrea Dworkin, e de feministas radicais e lésbicas em geral. Esses são os locais onde eu cada vez mais evitei por causa do meu desdém pela ideologia que prevalece e as práticas anti-feministas.

Você não pode ler Dworkin racionalmente e terminar negando que a visão de mundo e a experiência dela funde-se com a experiência de milhões de mulheres, isso é compreendido: masculino significa homem, homens são macho; feminino significa mulher, mulheres são fêmeas. Ela não fugiu timidamente de dizer isso em círculos acadêmicos ou sociais. Ela não satisfez teoristas ocidentais que valorizam a diversidade sexual mais que a libertação das mulheres, que pensam que multiplicando os gêneros nós iremos chegar a uma nova forma de liberdade. Não há tal cobrança pela metamorfose metastática. Quando ela estava viva, Andrea nunca articulou uma hierarquia na qual mulheres oprimiam mulheres trans. Mulheres fêmeas eram, para ela, uma classe de (leia-se: reais) mulheres: “mulher”, não modificada por nenhum prefixo.

Recitar descaradamente essas quatro passagens acima não será tolerado em muitos espaços influenciados pelos essenciais especuladores liberais das teorias de sexo e gênero. Enquanto os Estudos das Mulheres foi modificado para Estudos de Gênero, as perspectivas feministas radicais foram marcadas como uma violação à política anti-discriminatória, sendo base para demissão. Aquelas feministas radicais corajosas que insistiram em nomear a realidade que elas e Andrea experimentaram, estão perdendo suas reputações, suas carreiras, e suas seguranças. De maneira alarmante, estão sofrendo doxxing, impedidas de falar, ameaças e aterrorizadas. Sobre isso, até agora, John permanece em silêncio.

Parte III: Transsexuais

Nesse artigo de Stoltenberg, em outros que ele publicou após a morte de Andrea, ele ressuscita o capítulo nove da seção quatro de seu primeiro livro feminista, o Woman Hating (1974). Do capítulo “Androgyny: Androgyny, Fucking, and Community”, a passagem que vem antes da citada no artigo de John.

Transsexualidade pode ser definida como uma formação particular da nossa multissexualidade geral que foi incapaz de se desenvolver naturalmente por conta de condições sociais adversas. (P. 186)

Seguindo sua discussão sobre transsexualidade, Dworkin prossegue discutindo travestismo no contexto de uma sociedade eroticamente repressiva:

O travestismo é fazer uso de figurinos que violam os imperativos de gênero. O travestismo geralmente é um ato sexualmente carregado: a violação pública e visível do papel sexual é erótica, excitante, perigosa. É um tipo de desobediência civil erótica, e este é precisamente o seu valor. O uso desses figurinos é parte da estratégia e do processo de destruição dos papéis sexuais. Vemos, por exemplo, que quando as mulheres rejeitam o papel feminino, elas adotam roupas “masculinas”. Com a dissolução dos papéis sexuais, o conteúdo erótico particular ao travestismo igualmente se dissolve. (P. 187)

Nesse capítulo, ela escreve de forma acrítica sobre contatos interpessoais estigmatizados ou abusivos que existem em uma sociedade eroticamente repressiva. O trecho a seguir é da introdução desta seção:

Homossexualidade, transsexualidade, incesto e bestialidade são tidas como “perversões” dessa “natureza humana” que presumimos saber tanto a respeito. Elas persistem independente das imensas forças dirigidas contra elas — leis discriminatórias e práticas sociais, ostracismo, perseguição ativa pelo estado ou por outros órgãos da cultura — como embaraços inexplicáveis, como exemplos odiosos de “imoralidade” e/ou “desajustamento”. (P. 174)

Na conclusão, ela acrescenta: “Devemos nos recusar a nos submeter aos medos inculcados pelos tabus sexuais” (P. 192). Em 1989, em uma entrevista, Dworkin aponta que nesse momento teorizava a partir de conhecimento pouco e não integrado; teoria essa que ela abandonou e criticou posteriormente [5].

Uma vez que conseguiu embasar e integrar a teoria, de Pornography: Men Possessing Women (1981) até Heartbreak (2002), ela jamais cita novamente questões centrais ou periféricas nos termos que John mais utiliza: não existe qualquer chamado à multiplicidade de gêneros; a importância da multissexualidade desaparece; o foco em papéis sexuais fictícios e estáticos se tornou cada vez mais fraco; os libertadores dos tabus sexuais se revelaram predadores; ela nega que a androginia seja a salvação. Ela se despede disso tudo sem remorsos.

A transsexualidade também desaparece da obra de Dworkin, com exceção de duas menções na portaria antipornografia escrita em parceria com MacKinnon: “O uso de homens, crianças e transsexuais no lugar de mulheres…” e, “qualquer homem, criança ou transsexual que alegar ter sofrido danos causados pela pornografia nos mesmos termos em que as mulheres sofrem…[5]” Sobre isso, John diz: “Quero apenas pontuar que Andrea entendia de forma profunda que uma pessoa poderia ser subjugada como uma mulher sem ter sido registrada como fêmea ao nascer…”

“Subjugada como uma mulher”. Não enquanto mulher. A portaria trouxe à consciência o fato de que a pornografia pode tratar todo mundo mal, da mesma forma que, mais frequente e mais centralmente, a pornografia faz com as mulheres. Uma menina, uma mulher: do nascimento à morte. Era claro para Andrea e Catherine, nesse mecanismo legal radical para acabar com a discriminação baseada no sexo, que elas não igualavam a condição de ser transsexual com ser mulher ou homem. Para os propósitos de sua portaria, refletindo a vida como elas a conheciam, “mulher” eram, como elas, uma classe política e sexual oprimida.

Parte IV: Responsabilização

Eu chamo o John à parar de inferir que o radicalismo dela é resumido na seção pré-feminista de Woman Hating e um capítulo colonialista em seu segundo livro, Our Blood(1976), na qual ela desembaraça a filosofia prevalente de gênero, e, de maneira alarmante, postula Columbus como um héroi radical. (p 97, 110). Eu acredito que o radicalismo dela, a missão dela, é encontrada em outros lugar. Da introdução de Woman Hating:

Esse livro é uma ação, uma ação política onde a revolução é o objetivo. Não há outro propósito. Não é uma sabedoria genial, ou merda acadêmica, ou ideias gravadas em granito ou destinadas à imortalidade. É uma parte de um processo e seu contexto é a mudança. (p. 17)

Se John está a referenciar o trabalho da Andrea, ele precisa parar de silenciar ela no que significava mais para ela. Ao não fazer isso é apropriar-se indevidamente em nome do pro feminismo radical. Nós sabemos que ele é familiarizado com a prática. Do artigo do John: “Após a morte da Andrea em 2005, eu fiquei cada vez mais preocupado que ela e a política radical que eu aprendi com ela estavam sendo apropriadas indevidamente por alguns…” Eu chamo o John para que ele resolutamente se responsabilize.

Após a sua morte, tem sido triste ver o grau de diferença em que se move a óbita da trajetória política do John. Eu já fiquei enraivecido em ver as maneiras em que ele apagou a trajetória da Andrea. Essa é a minha visão sobre os respectivos trabalhos. No diagrama de Venn, o círculo dele é aquele em várias cores; o dela é totalmente eclipsado.

O que segue em alguns trabalhos do John.[6] Eu acredito que é nisso que está a sua paixão — em discussões de gênero como essa:

Pense em uma roda de cores. E não pense em uma roda com as cores segmentadas por linhas como se fosse uma roda de carroça; pense em uma onde as cores se mesclam e borram entre elas como se fossem um arco-íris circular infinito que é o espectro visível:

Figura 1: Espectro cromático

Isso vale para qualquer indivíduo, o que pensamos sobre sexo e gênero é na verdade mais como um ponto qualquer numa roda de cores (ao contrário de um ponto qualquer em um contínuo linear com dois fins, no qual cada um representa dois pólos de um binário).

Leitores, isso não é coisa dela.

Parte V: Conclusão

Talvez Andrea não tenha estabelecido uma posição pública de um modo ou outro nessas batalhas por conta da época em que ela escrevia. Consciente da empatia e compaixão dela pelos oprimidos, simplesmente não há qualquer evidência dela sendo trans aliada da forma como tenho visto o termo ser usado [7]. Digo isso sem qualquer satisfação ou escárnio. Estou atestando um fato. Como ponto de comparação razoável: se, quarenta anos atrás, um heterossexual escrevesse afirmativamente sobre a comunidade lésbica, bi e gay e não tivesse se posicionado mais desde então sobre as dificuldades dessa comunidade de sobreviver numa sociedade ultrajantemente homofóbica, deveria ele ser considerado um aliado? Espero que todos concluamos que a resposta deva ser “não”. Aqui, John é o aliado; Andrea era a pesquisadora.

O que as pessoas — trans, queer ou quem quer que seja — podem fazer para honrar a memória de Andrea é ler todos os livros dela e lutar pelo fim da supremacia masculina racista em todas as suas manifestações, na teoria e na prática.

As visões de Andrea estão melhor exprimidas em seus próprios termos em seu próprio trabalho. Não que não possam ser discutido e debatidos. Não que não possamos imaginar que posições ela tomaria a respeito de um dado assunto. Não consigo contar quantas vezes me peguei me perguntando: O que Dworkin faria? Infelizmentes, desde sua morte, pessoas que se identificam das mais variadas formas possíveis, abraçando as mais várias ideologias, com diferentes pautas políticas, metaforicamente forçando o braço na tentativa de encaixá-la firmemente em um lado ou outro desse intenso debate trans. Ela deve ser defendida, mas não de formas indefensáveis. Andrea Dworkin lutou duramente o bastante no campo de batalha. Que ela descanse, com todas as honrarias, em poder e paz.


Notas

[1] John assume que “transsexual” e “transgênero” são termos sinônimos. Muitos de nós no Ocidente sabemos que isso é falso. Por exemplo, existem pessoas não brancas e indígenas que rejeitam a autoridade, as pautas e as apropriações racistas do pacote de políticas sexuais e de gênero do queer. Existem apoiadores do feminismo radical que são trans que não se identificam como transgêneros por razões políticas. O termo “trans” no título do artigo de John, na verdade, é comumente usado pela comunidade LGBTQIA como um termo guarda-chuva para incluir tanto pessoas que se identificam como transsexuais quanto aquelas que não. Às vezes, “trans” é sinônimo de “queer”. Se ele não sabia disso, deveria, antes de identificar Andrea como “trans aliada”. Ele, como homem gay, não está em posição de fazer essa afirmação. Sua falta de responsabilidade, se não de conhecimento, da existência de apoiadores trans do feminismo radical revela aliança com apenas algumas letras do acrônimo. Vide nota 7.

[2] Depois de escrever esse post, achei um artigo arquivado de John entitulado “Andrea Dworkin Was Not Transphobic” (2014). Eu lembrava de tê-lo lido quando me dei conta de que não o podia mais encontrar. Assim que encontrei, fiquei cativado pelos comentários. Eles casam tão bem com essa discussão que quero linká-los aqui, com destaque especial para os comentários de Morag e Lil Z.

[3] Os espaços onde atuei social e academicamente têm sido majoritariamente liderados ou dominados por teorizações anglófonas ou ocidentais. Quando nós que somos brancos falamos de feminismo ou políticas queer, geralmente significa um ponto de vista específico. Estou a par das comunidades, perspectivas e pautas antirracistas. Análises dos desafios complexos, não apenas no sentido da colonização ocidental e anglófona na cultura e no pensamento, estão além do escopo desse material sobre Andrea Dworkin e John Stoltenberg, e o uso dele dos escritos dela são a respeito de sexo e não sobre raça.

[4] Dworkin explica essa afirmação Without Apology: Andrea Dworkin’s Art and Politics (1998), de Cindy Jenefsky. Página 139, Nota 1 (fonte britânica). Cindy Jenefsky escreve:

Um minha entrevista com Dworkin em 1989, ela indica que não concorda mais com algumas sugestões propostas no fim do livro. “Acho que tem um monte de coisas realmente erradas no último capítulo de Woman Hating”, diz Dworkin. Quando perguntada especificamente sobre suas discussões sobre incesto, ela apontou diversos fatores que a influenciaram nessa parte da escrita. Primeiro, na época em que ela escreveu o livro, ela estava cuidando de uma criança que tinha sofrido abuso incestuoso, e ainda que ela tivesse falado com a polícia da Holanda sobre a prevalência do incesto lá, ela conta que havia uma lacuna entre sua análise intelectual e experiência prática da questão. Foi apenas com a escrita de Woman Hating e com as respostas que recebeu a ele que sua experiência subjetiva — não apenas sobre incesto, mas sobre violência doméstica e prnografia também — foi validada pela experiência de outras pessoas, e foi quando ela começou a entender o incesto como uma forma de abuso sexual. Ela também fez referência ao fato de ter sido influenciada por “anos de leitura de Freud e tentativas de fazer aquilo tudo fazer sentido de forma abstrata”, especialmente em razão da falta de informação disponível publicamente sobre a predominância do abuso sexual. Finalmente, Dworkin também destaca que ainda que feministas e pornógrafos estivessem se movendo em direções diferentes na época em que Woman Hating foi escrito, eles ainda compartilhavam das mesmas raízes da contra-cultura e do movimento de liberação sexual. Dworkin, em entrevista à autora, 1989.

[5] Sobre a portaria, veja Pornography: Men Possessing Women, edição comemorativa de dez anos (1989), nova introdução, P. XXXIII. Ver também a portaria de Massachusetts (1992).

[6] “The Sex/Gender Binary: Essentialism” (2015).

[7] “Becoming an Ally to Queer and Trans People of Color (QTPOC)“. Ver também o primeiro parágrafo em “11 Ways To Be A Trans* Ally, According To Transgender People Themselves” (2015). Que meu privilégio branco masculino sirva para chamar todos à honestidade e integridade.

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O Movimento de Mulheres da Coréia do Sul: “Nós não somos flores, somos uma fogueira”

Jen Izaakson e Tae Kyung Kim contam sobre o crescimento do Feminismo Radical inspirando as mulheres por toda a Coréia do Sul. Traduzido do original publicado no site Feminist Current.

Crédito da imagem: Ryu Hyo-lim/ Yeonhap via AP

No último outono, Jen Izaakson viajou para a Coreia do Sul para documentar o crescimento do Feminismo Radical como parte de um grupo de estudos da Cambridge University, após ganhar um fundo de pesquisa, e entrevistou 40 feministas. Ela escreveu este artigo junto a Tae Kyung Kim, uma Feminista Radical coreana de Seoul, que atualmente vive e estuda em Berlim.

As notícias do crescimento do movimento feminista na Coreia do Sul chegaram à mídia ocidental, mas as raízes deste levante radical ainda estão escondidas. A mídia convencional do ocidente costuma mostrar os aspectos do feminismo sul coreano que espelham nossas próprias conquistas, deixando as realizações das mulheres sul coreanas e os aspectos mais radicais do movimento menos visíveis. Em setembro, mais de 40 Feministas Radicais da Coreia do Sul foram entrevistadas como parte de uma pesquisa acadêmica. Os resultados dessa pesquisa estão resumidos neste artigo. Devido ao curto espaço deste texto, muitas informações não foram abordadas, mas tentamos incluir o material que melhor esclarece como o movimento surgiu, seu contexto histórico; e quais as práticas, estratégias e formações políticas constituem o Feminismo Radical na Coreia do Sul.

A violência masculina politiza e radicaliza

Em 2016, o infame “Assassinato de Gangnam” provocou uma onda de protestos entre as mulheres. Um homem de 34 anos chamado Kim Sung-min esfaqueou uma mulher de 23 anos (cujo nome permanece em sigilo) até a morte dentro de um banheiro para ambos os sexos em um bar de karaokê. Kim Sung-min esperou dentro do banheiro, permitindo que vários homens entrassem e saíssem, até que uma mulher entrou. No julgamento, ele explicou: “Fiz isso porque as mulheres sempre me ignoraram”. Esta é uma explicação similar àquela oferecida por outros “incels” (“celibatários involuntários”) que cometeram assassinatos violentos, mas na Coreia do Sul as autoridades explicitamente negaram a motivação misógina, mesmo com o testemunho de Sung-min.

Em resposta ao assassinato, as mulheres encheram as ruas do lado de fora da Gangnam Station e na região de Seocho-dong em protesto. Muitas dessas mulheres não se consideravam feministas nessa época, mas a natureza do assassinato e a motivação misógina ajudaram a politizá-las.

Em 2018, o “molka” (o ato de filmar secretamente mulheres em banheiros e vestiários, ou de filmar embaixo de suas saias em lugares públicos) já havia se tornado um problema generalizado na Coreia. Entrevistadas me contaram que isso acontece em parte porque os homens coreanos não são confidentes o bastante para assediar mulheres diretamente na rua, então suas tentativas para acessar mulheres sexualmente são feitas de modo mais sub reptício. Apesar de existirem leis contra este tipo de voyeurismo na Coreia do Sul, a polícia dificilmente aplica essas leis. A situação chegou a um ponto crítico quando uma estudante foi acusada de fotografar um modelo nu em sua escola de arte. De acordo com as mulheres entrevistadas, o homem rotineiramente saía despido da sala de aula, de modo que as estudantes eram forçadas a ver seus genitais. Por fim, uma estudante tirou uma foto do homem na sala de aula e a publicou na internet para condenar seu comportamento. Ela foi autuada, julgada, presa e forçada a se desculpar com o homem, que disse que as fotos dele mostrando seus genitais em público lhe haviam causado “dano psicológico”. A mulher foi inicialmente multada com o valor equivalente a 18,000 euros, mas o modelo insistiu na corte que a mulher fosse enviada para a prisão, e ela permaneceu lá por 10 meses.

Considerando que os homens usam câmeras escondidas com impunidade quase total, este incidente provocou uma onda de protestos contra a prática do molka. Centenas de milhares de (principalmente) jovens mulheres se uniram, indignadas que as leis a respeito do voyeurismo fossem usadas contra mulheres e não homens. Até o momento, 360,000 mulheres participaram em protestos contra câmeras escondidas. Essas manifestações consistem em procissões fortemente estruturadas, músicas políticas impressas em flyers e distribuídas entre as multidões e discursos cheios de vida, que frequentemente começam com os cantos, e então as manifestantes se juntam e alcançam crescendos que parecem com gritos de guerra. Em alguns protestos, mulheres sobem ao palco para ter seus cabelos cortados bem curtos, em outras, suas coleções de maquiagem são ritualisticamente jogadas no lixo.

A necessidade da organização exclusiva de mulheres

Por trás dos eventos reais, que foram o Assassinato de Gangnam Station e os protestos contra o molka, havia um cenário virtual central. A partir de 2015, uma guerra verbal se desenvolveu na internet entre os homens e as mulheres. Uma grande disputa aconteceu quando o MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) chegou na Coreia do Sul. No DC Inside Gallery, um popular fórum de internet com milhões de usuários em todo o país, usuários do sexo masculino começaram a fazer postagens dizendo que a Paciente Zero era uma mulher sul coreana, alegando que ela foi prostituída no Oriente Médio e voltou infectada para a Coreia do Sul. Outros homens se juntaram, escrevendo comentários como “as mulheres coreanas deviam morrer”, “as mulheres coreanas gastam dinheiro em futilidades” e “as mulheres coreanas são burras e espalham esse vírus”. Em resposta, mulheres começaram suas próprias postagens no fórum, discutindo essa misoginia escancarada. Eventualmente descobriu-se que, na verdade, a MERS foi levada para o país por um homem, e as mulheres encheram as postagens masculinas de comentários, se sentindo vingadas. Mas a misoginia não foi esquecida.

Como resposta, as mulheres criaram a Megalia, parecida com o Reddit, mas livre de misoginia. A Megalia se tornou um espaço de construção de companheirismo entre mulheres, centrado em amizade e humor afiado. Tornou-se comum que as mulheres chamassem umas às outras de “vulvas” no site, dizendo coisas como “Muito bem, você é a buceta mais forte” ou “Que ideia brilhante! Você é uma bucetão!”. No entanto, a Megalia tinha usuários do sexo masculino, e muitos dos administradores do site eram homens gays. Primeiramente esses homens eram fortes simpatizantes da experiência das mulheres com a misoginia, mas assim que as postagens começaram a discutir a misoginia de homens gays e a cultura gay (como o drag), os comentários das mulheres começaram a ser removidos.

A moderação pesada do discurso das mulheres não é uma surpresa para muitas feministas no Facebook, Mumsnet ou no Twitter. As mulheres perceberam que para ter um debate livre e justo a respeito da realidade de suas vidas e da misoginia pela qual passavam, precisavam de um espaço moderado por elas mesmas, sem administradores homens. Essa experiência mostrou a necessidade da organização exclusiva de mulheres. Mulheres começaram a deixar a Megalia em massa, e em Janeiro de 2016, milhares já haviam se inscrito em um fórum online chamado Womad, descrito pelas minhas entrevistadas como um espaço “feminista radical lésbico”.

A espantosa prevalência da lesbiandade entre as feministas sul coreanas é um dos aspectos mais marcantes e significativos. Todas as feministas com quem eu falei para as mais de 40 entrevistas se identificaram como lésbicas.

Na Coréia do Sul, o Feminismo Radical e o Feminismo Lésbico são fortemente ligados, gerando o movimento “4비”/“4B” (a pronúncia de 4비 soa para o ouvido anglófono como algo próximo a “4B” [1]). O 4B se baseia em 4 regras que orientam esse movimento feminista radical e agem como um guia que as mulheres podem adotar para destruir o patriarcado e viver vidas mais seguras e livres dos homens. Os princípios são, a grosso modo; não se casar com homens, não namorar com homens, não fazer sexo com homens e não engravidar. O movimento 4B tem hoje um número estimado de 50.000 seguidoras.

Um estudo de 2016 revelou que 50 por cento da população feminina da Coréia do Sul não vê o casamento como necessário — as mulheres perceberam que o casamento é um contrato leonino, o que levou o governo a agir. Em resposta às preocupações a respeito do aumento da idade média da população e o declínio das taxas de natalidade, o governo sul coreano encomendou várias novelas para promover uma visão idílica do amor romântico heterossexual. Vários reality shows — Heart Signal; We Got Married; Same Bed, Different Dreams e The Return of Superman — foram encomendados para encorajar o casamento e a reprodução. Essas séries tendem a seguir uma narrativa em progresso, na qual os casais heterossexuais expressam primeiro o desejo de um bebê, depois a concepção, a gestação e o nascimento, cada passo documentado e apresentado sob uma luz positiva.

Tire o espartilho

Entre 2015-2016 e 2017-2018, as mulheres sul-coreanas gastaram 53,5 bilhões a menos de wons [R$ 243,5 milhões] sul coreanos em produtos de beleza e cirurgias estéticas, optando por investir esse dinheiro em carros, escolhendo a independência à objetificação. Parte dessa rejeição cultural das práticas de beleza femininas foi estimulada pelo movimento 4B e também pelo “Tire o Espartilho”. Inspiradas por Beleza e Misoginia, o livro de Sheila Jeffreys (traduzido para o coreano como Espartilho: Beleza e Misoginia), o movimento descreve a remoção do “espartilho” moderno: práticas de beleza como depilação, maquiagem, sapatos de salto, cirurgias estéticas, cabelos longos, dietas restritivas etc. A Coreia do Sul tem uma indústria de cirurgia estética gigantesca, sendo que a cirurgia mais comum para as mulheres é o procedimento de duplicação de pálpebra — uma operação que altera as pálpebras para que pareçam mais “ocidentais”. Sendo semelhante ao clareamento de pele, esta prática voltada ao lucro é fundada em uma idéia racista e pode levar à infecções pós-operatórias, perda das pálpebras, problemas de visão e até mesmo cegueira.

Crédito da foto: XYFreeWorld

Muitas entrevistadas se referiram ao movimento como um ponto de partida da sua jornada para o Feminismo Radical, dizendo “tirei meu espartilho no último janeiro”, ou “já estou sem espartilho há dois anos”. Para as mulheres sul coreanas, o termo “backlash” está ligado a “Tirar o Espartilho” — ele não faz referência a um backlash de fora, contra o feminismo (como no Ocidente), mas é um backlash pessoal, em que uma mulher se volta para a feminilidade. Uma mulher me disse “minha melhor amiga e eu tiramos nossos espartilhos em 2017, mas desde então ela teve um backlash e voltou a usar maquiagem por causa da pressão familiar”.

Outros slogans predominantes no movimento tendem a girar em torno do poder e determinação das mulheres. Um grupo de entrevistadas assinou um cartão pra mim com alguns deles, escrevendo “Nos encontramos no topo”, “Seja ambiciosa”, e “Nós somos a coragem umas das outras”. Eu reconheci esses slogans rapidamente porque eles costumam aparecer nos perfis das feministas nas mídias sociais. Uma recorrente e proeminente chamada à ação é “Se não eu, quem? Se não agora, quando?”. Este slogan foi parafraseado, emprestado de Hilel, o Ancião (Pirkei Avot 1:14), uma figura babilônica famosa na história judia.

Uma base histórica para a cultura centrada nas mulheres

Parte da razão pela qual o feminismo se desenvolveu da forma que ele é na Coréia do Sul é histórica e cultural. As mulheres com que eu falei explicaram que, historicamente, não existiu a mesma cultura de “cavalheirismo” (educação masculina e proteção social das mulheres) que existe no Ocidente, o que significa que existe muito menos fingimento a respeito da dominação masculina. No começo dos anos 1950, soldados que estavam lutando na guerra da Coréia faziam que as mulheres andassem antes deles sobre campos minados para checar por caminhos seguros e detonar as bombas com seus corpos. Não existe um arrependimento quanto à história desta prática. Eu perguntei “se o Titanic fosse coreano, teria havido uma política de mulheres e crianças primeiro, determinando quem entraria nos botes salva vidas?” A pergunta foi recebida com gargalhadas e negativas. Uma das entrevistadas via a ausência de cavalheirismo como menos gentileza dos homens, nos termos em que o patriarcado se desenrola. Ao mesmo tempo, as mulheres estão bem menos suscetíveis ao casamento porque os homens são muito mais claros, mesmo antes do casamento, a respeito de quão desiguais as coisas serão. Não é que os homens coreanos se comportem contra as mulheres de modo mais opressor que aqueles no Ocidente, é só que eles são muito mais abertos ao se comportar assim. Dado que a opressão masculina está menos escondida, algumas entrevistadas argumentaram que isso permitiu às mulheres que detectassem as armadilhas do casamento e da domesticação mais facilmente. É muito mais claro o que significa optar por se casar.

Outra entrevistada explicou que, historicamente, esperou-se das mulheres que trabalhassem na lavoura, muitas vezes trabalhando mais que os homens, de modo que eles foram vistos menos como provedores de riqueza material do que eles costumam ser vistos em outros lugares. As mulheres trabalhavam fora assim como faziam o trabalho doméstico. O benefício econômico de ter um marido, mesmo um que tivesse um emprego, era muito menor que o de outras sociedades em que tradicionalmente as mulheres eram proibidas de trabalhar, ou que tinham acesso limitado ao mercado de trabalho. Historicamente, na Coréia do Sul, existiu um estrito sistema de classes, e as mulheres não tinham a oportunidade de se casar com outras classes, de modo que pudessem acessar uma maior riqueza material, como as mulheres de outros países tiveram a chance. Com a falta dessa vantagem havia ainda menos motivo para as mulheres aspirarem a se casar. Essas condições históricas combinadas produziram um conjunto particular de políticas sexuais na Coréia do Sul, que significa que é comum para as mulheres rejeitar o casamento, já que existem benefícios mais claros que o cálculo de custo.

Outra razão pela qual existiu espaço para o Feminismo Radical prosperar é porque existe literalmente espaço para que isso aconteça. Universidades femininas foram criadas por todo o país durante o último século, e a maioria das cidades possui várias instituições exclusivas para mulheres (algumas possuem professores homens, e às vezes estudantes homens de outras universidades podem se inscrever em cursos por determinado tempo no campus, mas existem toques de recolher noturnos e todos os homens são obrigados a sair do local). Nos prédios da união estudantil, professores e estudantes do sexo masculino estão proibidos de entrar. São zonas exclusivas para mulheres, 24 horas por dia.

Em algumas universidades femininas, masculinistas (MRAs) protestaram segurando placas com dizeres como “Mulheres, abandonem suas bolsas de marca!”. Aparentemente o feminismo se desenvolveu tão longe dos homens na Coréia do Sul que alguns deles não sabem exatamente o que é que as feministas exigem, já que, ironicamente, os MRAs esperam que as mulheres parem de gastar dinheiro em itens caros de feminilidade. Enquanto isso, o Feminismo Radical organiza boicotes contra empresas e produtos que façam propagandas misóginas, encoraja mulheres a comerem apenas em restaurantes cujas donas são mulheres, beber em bares de mulheres e comprar em lojas de mulheres, assim o dinheiro das mulheres retorna aos bolsos femininos.

Enquanto as universidades femininas emergiram de um contexto cristão que considerava impróprio que mulheres solteiras estivessem junto de homens, elas proporcionaram um terreno fértil para que o feminismo florescesse. Muitos desses campi estão cercados por ruas que apenas as mulheres frequentam, com lojas e cafés quase que exclusivamente cheios de mulheres. Como resultado desta norma cultural, a maioria das cidade tem pelo menos um ou vários bares exclusivos para mulheres. (A Coréia do Sul não é refém da política da auto-identidade, então isso significa que os espaços são genuinamente exclusivos para mulheres)

A marginalização inspira a organização política

O movimento 4B e as idéias do Feminismo Radical se espalharam pela Coréia do Sul durante a metade da última década, tomando diferentes vilas e cidades, apesar de suas diferenças culturais e políticas.

Daegu, a quarta maior cidade do país, existe em forte contraste com sua capital, Seoul. Daegu é sem dúvidas a cidade mais conservadora da Coréia do Sul, e apenas 3 a cada 7 pessoas no local são mulheres, devido a abortos para seleção sexual. Em Daegu, os filhos são tão desejados que se uma família tem duas filhas seguidas, a segunda filha frequentemente receberá um nome com um significado do tipo “Desejando um filho” ou “Por favor, que o próximo seja menino”. Como para cada 3 mulheres existem 4 homens, a política sexual segue a regra. As mulheres que vivem em Daegu me explicaram que, enquanto as mulheres de Seoul podem chamar a polícia para denunciar um caso de violência doméstica, as mulheres de Daegu temem que a polícia ficará do lado do agressor e perpetrará ainda mais violência contra elas.

Apesar disso, as mulheres de Daegu são firmes. Elas contaram sobre como se recusam a usar maquiagem, apesar de que isso certamente resultará em falta de emprego. A cidade é mais pobre que sua vizinha, Busan, e que Seoul ao norte, mas ainda assim as feministas de Daegu abordaram o problema do desemprego gerado pela recusa à feminilidade se organizando. Elas formaram “cartéis” femininos, reunindo recursos, vivendo juntas em moradias baratas e conjuntamente fazendo campanha nas ruas para alcançar outras mulheres. Esses “cartéis” me foram descritos como grupos organizados, mas com estruturas abertas e flexíveis, focadas em divulgação. Isso contrasta com o que vemos no Ocidente, onde o Feminismo Radical tende a florescer através de pequenos grupos de amigas/namoradas, funcionando em conjunto como uma rede privada, em vez de se organizar primariamente em torno de alianças políticas e se engajar em recrutamento e campanhas públicas.

A Coréia do Sul tem a mais alta disparidade salarial de todos os países da OCDE (os 37 países mais ricos do mundo, de acordo com o PIB), com mulheres ganhando em média um terço a menos que os homens. Enquanto as feministas do Ocidente que tem empregos, propriedades, famílias apoiadoras e que não encaram discriminação direta por recusar práticas de feminilidade dirão que não podem ser abertamente radicais devido à precariedade financeira ou medo de represálias, as mulheres em Daegu — cuja renda é precária e que vivem numa cultura muito mais masculinamente centrada, persistem [2]. A experiência de conhecer feministas em Daegu enfatizou que insegurança social e econômica não precisa prejudicar nossa disposição de falar sobre questões feministas. É possível que o status econômico mais elevado das Feministas Radicais no Ocidente – que tem mais a perder (carreiras, respeitabilidade, status, dinheiro) é o que impulsiona seu anonimato online e seu silêncio na vida pública.

Na Coréia do Sul, as leis atuais permitem que uma mulher aborte apenas se ela tiver consentimento de um parente homem ou de seu namorado/marido/parceiro. Se a mulher conseguir abortar sem a permissão do homem (abortando em outro país ou tendo um amigo que finja ser o namorado, por exemplo) ela corre o risco de ser julgada e condenada ou multada em até U$ 2.000. As feministas lutaram bravamente para mudar essa lei e, em abril, a Corte Constitucional da Coréia do Sul julgou que a lei que criminalizava o aborto era inconstitucional. A Corte deu ao Parlamento até o fim de 2020 para implementar a nova lei, uma vitória óbvia para o movimento.

Em fevereiro, o Partido das Mulheres foi criado, chegando a 8.000 membras em março — um número que agora cresceu para 10.000. O Partido visa representar os interesses de todas as gerações, e por isso tem 5 líderes, cada uma de uma década diferente: uma adolescente, uma mulher nos seus 20, 30, 40 e 50 anos. Embora o partido tenha conseguido mais de 200.000 votos, elas não conseguiram nenhum cargo. No entanto, o Partido das Mulheres conta com grande apoio, particularmente de mulheres jovens que, ao contrário do ocidente, são as maiores divulgadoras do Feminismo Radical. Teoricamente, estima-se que ao redor de 60 mil moças poderiam ter votado no Partido das Mulheres, se elas não fossem menores de 18 anos.

Mudar a linguagem muda a cultura

Em resposta às recentes vitórias feministas, os masculinistas da Coréia do Sul que se opõem ao movimento feminista mudaram de tática e começaram a afirmar que na verdade desejam “igualdade”, em vez da “violenta” exclusão e preconceito que eles dizem que o Feminismo Radical exige. A adoção da retórica liberal é notavelmente semelhante àquela dos transativistas ocidentais que se opõem à priorização de mulheres no feminismo. Os homens da Coréia do Sul são relativamente organizados e às vezes fazem ações. Jae-gi, um homem que criou um site para MRAs, pulou de uma ponte para demonstrar a difícil situação dos homens devido ao feminismo, e por acidente foi empalado analmente por um galho subaquático e morreu. Desde então, Jae-gi se tornou um verbo que significa suicídio masculino, e as feministas dizem aos masculinistas “vá se Jae-gir!!”, que significa basicamente “foda-se, morra!”.

Pode parecer rude, mas esse é um exemplo de “espelhamento”, uma tática em que as mulheres empregam reversões linguísticas e jogos de palavra à língua coreana. A criação de verbos como “Jae-gi” é uma resposta direta ao abuso verbal e físico por qual as mulheres passam, tanto na internet quanto na vida real, pelas mãos dos homens.

Com mais de 1 milhão de palavras, o coreano tem mais que o dobro do vocabulário que da língua inglesa. As regras gramaticais do coreano facilitam a criação de novas palavras e expõem o quanto a língua é usada para reprimir as mulheres. A palavra “pais” em coreano é ‘부모님’(bu-mo-nim) — “bu” [1] significa “pai” e “mo” significa “mãe”, colocando o pai na frente porque o homem é considerado mais importante. Em vez disso as feministas coreanas começaram a usar o termo ‘모부님’(mo-bu-nim), mudando a ordem para que “mãe” venha primeiro. A palavra “carrinho de bebê”, em coreano, é ‘유모차’(yu-mo-cha) — “yu” significa criança, “mo” significa mãe” e “cha” significa “cadeira de rodas”, o que sugere que o cuidado infantil é reservado às mães. As feministas mudaram a palavra para “유아차” (yu-ah-cha) — “yu-ah” significa “criancinha”, então a palavra “mãe” foi removida e agora a palavra significa “carrinho de criança” (similar ao termo “carrinho de bebê”). Ajustes como este são possíveis em várias palavras, permitindo que seus significados sejam alterados.

O termo “6.9” (literalmente o número 6,9) é outro exemplo de como as mulheres “espelharam” e responderam a uma cultura que valoriza as mulheres de acordo com o tamanho de seus corpos. 6.9 se refere ao tamanho médio (em centímetros) do pênis de um homem coreano. Usar o termo nas mídias sociais respondendo às discussões com os homens é um modo de envergonhá-los, assim como as mulheres se envergonham quando os homens discutem o tamanho de seus seios ou outras partes de seus corpos, além de servir para diminuir o poder que eles acreditam que possuem devido a seus pênis.

Infelizmente também existem adições misóginas novas à língua, graças às comunidades online como o ILBE, onde homens podem trocar fotos de familiares nuas para ganhar curtidas e capital social. Os usuários criaram expressões como “As mulheres deveriam apanhar a cada três dias, como o peixe seco, para que se tornem mais gostosas” e “Ponha uma lâmpada na vagina e a quebre”, que entraram recentemente para o vernáculo popular.

Esses tipos de expressão são considerados banais na Coréia do Sul, de modo que as feministas coreanas desenvolveram uma nova linguagem como resposta, redefinindo termos misóginos.

Feministas Radicais estrategicamente redefiniram o termo “feminina” para que signifique mulher forte, poderosa e ambiciosa. Elas também redefiniram “masculino”, para que signifique inveja, magreza, infantilidade e o desejo de se emperiquitar. O “espelhamento” faz com que as pessoas se lembrem de quantos termos misóginos elas usam diariamente, sem sequer notar, mas também gera uma forte negação reativa a respeito das expressões sádicas usadas contra as mulheres através do humor. Com “feminilidade” redefinida, as mulheres coreanas buscam características como força e excelência, concentrando-se no autodesenvolvimento para alcançar suas próprias ambições. O espelhamento é uma maneira pela qual as mulheres usam a linguagem para tirar o controle dos homens.

Um modelo para o ocidente

O movimento feminista sul-coreano se desenvolveu a partir de condições particularmente misóginas, comparadas com o ocidente, em conjunto com melhores oportunidades para organização política, criando uma situação em que a ação radical era tanto necessária quanto viável. Essas circunstâncias únicas e contraditórias produziram condições sociais em que a ação radical das mulheres era tão possível quanto urgente.

O movimento feminista sul-coreano não está em total acordo interno, mas o que o diferencia do ocidente é que suas diferenças são discutidas — não apenas online, mas na vida real — e o debate direto não é considerado uma força destrutiva que deve ser evitada a todo custo, mas algo aceito e parte necessária da política. Por causa da presença desse movimento verdadeiramente próspero existe um maior senso de comunidade e cooperação.

As mulheres do Ocidente podem aprender muito com suas irmãs coreanas: sua habilidade para se organizar coletivamente, seu foco crucial em política, sua inventividade e engenhosidade e, talvez o mais significativo, sua prática de levar a política às ruas.


Notas

[1] Nota da revisora: apesar de, na romanização do Hangul (o alfabeto silábico coreano), o símbolo “ㅂ” normalmente ser grafado como equivalente ao “B”, a pronúncia de “비” (bi) é um pouco mais complicada: faz-se um bico com a boca como se fosse pronunciar um B, mas na verdade faz-se um P soprado, quase um F.

[2] Nota das tradutoras: Finalmente um texto longo e bastante esclarecedor sobre as práticas do movimento de libertação das mulheres sul coreanas! Nós já havíamos ouvido falar do assunto há um tempo, mas não havíamos visto nenhum material tão pessoal. Parece-nos muito específico da Coreia do Sul que o movimento tenha um caráter identitário tão forte e mesmo assim se mantenha inabalado. Para nós, é questionável essa possibilidade de se recusar práticas de feminilidade sem sofrer represálias no Ocidente (ou em lugares sob influência do chamado Ocidente, como o Brasil): a possibilidade das mulheres perderem suas posições, empregos ou prestígio por se posicionarem ou atestarem o óbvio evidencia o quão frágeis são essas conquistas e liberdades. Uma vez que a pressão do masculinismo se faz sentir, mais mulheres têm se posicionado. Quanto mais próximas de posições de poder e independência, menor a possibilidade de sofrer os danos do contra-ataque — vide o caso de J.K. Rowling.


Tae Kyung Kim é uma estudante da Universidade de Mulheres de Sungshin. Siga-a no Instagram ou faça contato por email: dohsmath@gmail.com.

Jen Izaakson é uma candidata ao doutorado do CRMEP. Siga-a no Instagram ou faça contato por email: jenizaakson@gmail.com.

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Resumos

A contraditória relação entre o aborto e as mulheres da Direita [RESUMO]

Adaptado de: DWORKIN, Andrea. “Abortion”. In: Right-Wing Women. Nova York: Perigee Books, 1983. P. 71-105.


Andrea Dworkin, autora de Right-Wing Women.

Antes do aborto ser legalizado nos EUA, as estatísticas sobre ele eram criadas em cima das evidências que haviam disponíveis: depoimentos de mulheres e médicos, casos que deram errado e resultaram em atendimentos de emergência ou mortes. O perfil da mulher que abortava ilegalmente era: casada e com filhos, demonstrando que a ligação entre aborto e imoralidade sexual é falsa.

Essas mulheres permanecem em silêncio sobre o assunto e se dissociam das outras que realizaram o procedimento, se vendo como exceções, mulheres respeitáveis que tiveram que recorrer a isso em um momento de desespero. Admitir ter feito aborto seria como admitir sofrer violação e estar em uma posição vulnerável.

Há também o medo de ter feito algo imperdoavelmente errado, uma vez que qualquer coisa tem mais valor que a própria vida delas. Esse medo de ter cometido assassinato existe porque homens assumem em suas oposições ao aborto que se mulheres tivessem tido essa escolha, poderiam tê-los abortado. Coloca-se uma responsabilidade imaginária na mulher por vidas adultas já existentes a partir do óvulo fertilizado porque não é aceitável que mulheres afirmem possuírem existências separadas dos homens. Mulheres, aqui, não têm direito a um corpo fora dos domínios dos homens.

O medo e o silêncio acompanham uma experiência que só mulheres têm, e que são os seus maridos que as colocam nessa situação: o abortista termina o trabalho que o marido começou. O aborto é considerado um ato egoísta e de rebelião, sendo a mulher punida pela culpa de dispôr de seu útero conforme lhe convém e um modo estranho de dizer não.

As mulheres não podem ser responsabilizadas por gravidezes indesejadas porque não são elas que controlam as condições em que são engravidadas. O direito sexual do homem sobre sua esposa é garantido na lei, de modo que o estado define o uso sexual do corpo da mulher. Mesmo quando o estupro dentro do casamento é proibido por lei, o homem dispõe de outros meios para garantir a coerção sexual.

O casamento é a prova irrefutável da posição de desigualdade das mulheres. A lei é um instrumento da religião, que garante o direito do homem sobre o corpo da mulher abençoado por deus. Entretanto, a pressão para a submissão vem de várias fontes. A gravidez é uma consequência dessa submissão, e as mulheres vivem em um contexto de sexo forçado. O repúdio das mulheres ao estupro e sua vontade de liberdade são interpretados como aversão ao sexo.

O sexo forçado, geralmente a penetração, é um problema central na vida de toda mulher. Elas serão avaliadas pelos homens de acordo com a sua relação com a penetração, e tudo nela deve ser um sinal de sua aceitação dessa situação. O coerção que as mulhers sofrem dentro do casamento seria considerada coerção estatal caso elas não fossem mulheres, mas essa coerção é disfarçada por uma montanha de propaganda que busca fazer as mulheres se conformarem com a feminilidade.

A feminilidade é a aceitação do sexo nos termos dos homens e pode ser definida como submissão ritualizada. A propaganda da feminilidade, em tempos de resistência feminista, prega que o sexo pode ser bom se as mulheres o fizerem direito, e dentro da esfera da dominação dos homens. As regras da feminilidade quebram o espírito das mulheres e as treinam para desejar e depender dos homens. As mulheres são submetidas aos homens através da ignorância a respeito do sexo, vendo-se como buracos. Se elas soubessem o propósito deles para elas, repudiariam tudo, uma vez que o uso que eles fazem delas nada tem a ver com a mulher enquanto indivíduo.

Apesar da propaganda, a feminilidade precisa ser imposta à força. A força (e o sexo forçado) é o que mantem o vínculo sexual dos homens às mulheres, e se ela não fosse necessária, não seria tão disseminada. A violência física, o abuso de meninas, a manutenção das mulheres em estado de pobreza e dependência econômica, e a propaganda da feminilidade são o que permitem a manutenção da dominação.

É impossível falar de sexualidade feminina fora do contexto de sexo forçado; independente dos gostos ou experiências individuais de cada mulher, todas elas vivem nesse contexto. A força usada no sexo é tornada ela mesma “sexy”, romantizada e naturalizada. A coerção sexual é o que molda as mulheres à submissão e viola os limites de seu corpo. É pela penetração que os homens asseguram sua dominação e o direito ao uso do corpo das mulheres: a centralidade da penetração não tem nada a ver com reprodução ou prazer, mas acaba se tornando um sinônimo de sexo porque é uma das mais emblemáticas expressões da dominação masculina. É pelo intercurso sexual que a mulher é moldada.

O estupro e o sexo marital são formas opostas de expressão sexual apenas quando as mulheres são vistas como propriedade sexual, quando a propriedade de um homem é violadas por outro. É somente quando a mulher é reconhecida como um ser humano que o estupro é reconhecido como tal. Se o estado regula o uso da força sexual contra as mulheres, é o estado quem distingue o sexo “normal” do estupro. O consentimento se torna a aquiescência passiva, e esta a participação padrão das mulheres no sexo. E se as mulheres consentem com o que é feito a elas, não há como sinalizar, provar ou mesmo sugerir estupro. É o sexo forçado no casamento que valida todas as outras formas de uso da força sexual contra as mulheres.

Existe a crença de que os homens usam a força porque são homens, e também a crença de que as mulheres respondem sexualmente à violência infligida a elas. Existe toda a sexualização da violência e a crença de que a mulher casada é a mais protegida de todas: se está certo usar a força contra a mulher casada, contra que mulher isso será errado? A definição da mulher no contexto de dominação é feita nos termos de sua função, que é ser fodida. Se ela desperta desejo em um homem, é porque ela já é adulta o suficiente e, presumivelmente, já é uma mulher. Uma vez que uma mulher é fodida, ela cumpriu a sua função enquanto mulher e pode ser legitimamente fodida.

No que diz respeito à gravidez, se é possível forçar uma mulher a conceber dentro do casamento, e se a força é a norma, não existe diferença para a gravidez fruto de estupro ou incesto. O estupro só será considerado enquanto tal para os homens se o emprego da força for monstruosamente brutal. Se a função da mulher é ser fodida, se ela estiver grávida é porque ela já foi fodida. Ser fodida não viola a sua integridade de mulher, porque ser fodida é o que significa a integridade da mulher sob o sistema de dominação. O reconhecimento de alguns casos de estupro se dá pela vontade do homem de não reconhecer os frutos do estupro de outro homem — essas exceções existem para protegê-los. O aborto só é tolerado quando ele protege os homens.

O problema da revolução sexual é que ela esteve o tempo inteiro nas mãos dos homens. A ideia central era de que o sexo era bom. No caso das meninas, significava que elas queriam ser fodidas. A filosofia da revolução sexual vem de antes dos anos 1960 e se manifestou na esquerda de várias formas. Segundo esse pessoal, se fazia guerra porque se odiava o sexo/amor. Os homens que resistiram à convocação para a guerra deixaram seus cabelos crescer e foram comparados a covardes, a garotas. Por causa disso, muitas delas acreditaram que eles eram seus aliados.

As jovens mulheres eram idealistas e, como não corriam o risco de serem convocadas para a guerra, tinham no homem negro a sua figura para demonstração de empatia. Estupro era visto como uma arma racista para prejudicar homens negros. Essas jovens eram idealistas porque acreditavam que a paz e o amor prometidos eram para elas também. Elas não queriam a mesma vida que as suas mães tinham e aceitavam as ideias de amor livre e liberdade sexual dos homens porque isso as tornava diferentes das suas mães.

O radicalismo sexual dessa época era definido em termos masculinos: número de parceiros, frequência do sexo, variedade sexual (sexo grupal), disposição de se engajar em atos sexuais. Supostamente deveria valer para ambos os sexos. O estupro era comum e o lesbianismo jamais aceito em seus próprios termos. A homossexualidade masculina era tolerada, mas desprezada porque o homem heterossexual não toleraria ser fodido como mulher. O sonho das mulheres nessa utopia era a transcendência sexual, o sonho de ser menos mulher em um mundo menos masculino, uma erotização da igualdade fraterna.

A contradição das mulheres dessa época era buscar a liberação sexual justamente através do ato que mais reifica a dominação. A contracultura ficou cada vez mais agressiva e dominada pelos homens, enquanto que as mulheres se viram obrigadas a serem objetificadas e comercializadas em pornografia e tráfico, ou serem socialmente segregadas nos papéis tradicionalmente femininos. A liberação sexual não funcionou para as mulheres, e sua consequência acabou sendo a de libertar os homens para fazer uso das mulheres fora das restrições burguesas. Ao interagirem sexualmente com uma maior variedade de homens, as mulheres descobriram que sua individualidade era irrelevante diante da prática sexual masculina generalizada.

A ideologia do movimento de liberação sexual dos anos 1960 assumia que todo mundo queria fazer sexo o tempo todo, e não levava em conta o estado subordinado das mulheres. Segundo eles, a aversão das mulheres ao sexo era resultado e prova da repressão sexual. Havia a crença generalizada de que as mulheres não recusariam sexo se não fossem reprimidas, nem os homens precisariam fazer uso da força. O estupro era negado por razões políticas se o estuprador era negro e a mulher não. Por outro lado, se um estupro racial era fabricado, jamais era ignorado como falso. Quando uma mulher negra era estuprada por um branco, o reconhecimento do estupro enquanto tal dependia das alianças políticas de negros e brancos naquele território social específico. A mulher negra estuprada por um homem negro carregava o fardo de não poder prejudicar sua própria raça, não chamando atenção para a brutalidade cometida contra ela.

Em momento algum a ideologia da liberação sexual problematizou o estupro ou lutou pelo fim da subordinação social e sexual das mulheres aos homens: sequer reconheceu esses problemas. As mulheres eram punidas por qualquer tipo de limites que quisessem estabelecer em suas relações.

A gravidez era um problema e um real obstáculo às demandas masculinas por sexo, e tornava as mulheres relutantes e preocupadas. Nessa época a pílula não era tão fácil de se conseguir e nenhum outro método era mais seguro ou acessível. Por mais que as mulheres tolerassem ou gostassem do sexo em que participavam, para elas as consequências eram dolorosas e sangrentas, enquanto que os homens perdiam apenas talvez dinheiro. As formas de convencer as mulheres a cooperarem era tratar a possibilidade da gravidez como “natural” ou prometer uma criação comunal das crianças. Ao invés das punições tradicionais, a mulher que engravidava era frequentemente abandonada. A liberdade para os homens era foder, e a foda terminava para os homens quando a foda acabava. O fato da gravidez era um poderoso antiafrodisíaco, e a visão das mulheres abandonadas tornou-as um pouco mais preocupadas.

Foi justamente a realidade da gravidez que fez do aborto uma prioridade política alta para os homens nos anos 1960. A descriminalização do aborto tornaria as mulheres totalmente acessíveis, e foi por isso que se tornou uma prioridade da esquerda na época. E foi aí que as mulheres que viviam políticas radicais na contracultura se voltaram ao feminismo.

Feministas apontaram que mulheres eram excluídas de grupos políticos simplesmente porque o cara com quem elas estavam saindo no momento não estava mais afim, ou ainda que em certos contextos as mulheres eram excluídas ou classificadas como puritanas porque não estavam dispostas a serem estupradas. Houve o reconhecimento de que os camaradas eram na verdade exploradores cínicos como qualquer outro explorador. Conversando, as mulheres descobriram que suas experiências eram idênticas, indo do sexo forçado à humilhação e ao abandono. Os homens queriam as mulheres para foder, não como companheiras de revolução.

Por conta disso, as mulheres resolveram formar seu movimento autônomo, que tinha como premissa central a ideia de que a liberdade das mulheres não é possível sem que ela tenha o controle absoluto sobre seu corpo, tanto no sexo quanto na reprodução. Isso incluía não apenas o direito ao aborto, mas também o direito de dizer não ao sexo. Para os homens, as feministas eram as estraga-prazeres, e desde então eles tem trabalhado para frear os avanços do movimento. O direito ao aborto era uma parte intrínseca e essencial aos homens na revolução sexual, a liberdade das mulheres não tinha a menor importância.

As feministas lutaram a batalha pela descriminalização do aborto praticamente sozinhas nos EUA. A partir de 1973, a indiferença masculina se transformou em hostilidade, uma vez que o direito ao aborto conseguido naquele ano não levou as mulheres a abrirem as pernas. Ideias a respeito de traumas sofridos no útero e psicologia fetal floresceram na esquerda sem qualquer influência de pastores de direita; posteriormente, a direita iria defender a proteção de óvulos fertilizados como se fossem pessoas. O argumento do aborto como arma genocida contra negros e outras etnias ganhou tração política, mesmo diante do fato de que são as mulheres negras e latinas as que mais morrem em abortos ilegais. Alguns pacifistas da esquerda comparavam o aborto com armas nucleares.

O fim da fodinha fácil mudou as prioridades na esquerda. Havia ressentimento entre os homens pelo fato de as mulheres terem se retirado da revolução sexual: se uma mulher não servia para foder, ela não existia. A esquerda trabalhou deliberadamente contra o direito ao aborto, seja se posicionando ativamente, seja ignorando completamente o assunto. Esses homens envelheceram e agora queriam ter os seus bebês. A gravidez compulsória era a única forma de assegurar que eles pudessem tê-los.

As mães das garotas dos anos 1960 pareciam sexualmente conservadoras e diziam que suas filhas iriam se machucar, mas não diziam como nem porquê. Para essas mulheres, o sexo era uma obrigação do casamento. Elas ensinavam suas filhas a respeitarem os homens enquanto classe e, ao mesmo tempo, a não fazer sexo com eles. Essas jovens não entendiam a ambiguidade dessa mensagem: as mulheres tentavam proteger suas filhas dos homens tentando direcioná-las para um único homem bom, ensinando-as a navegar pelo sistema de dominação masculina. Não havia vocabulário para explicar essa ambivalência do sexo — aceitável em alguns contextos como o casamento, mas não em outros. O silêncio a respeito do assunto por parte dessas mães era um jeito de evitar que suas filhas descobrissem que tipo de vida elas viviam.

Uma característica essencial da dominação masculina é manter as mulheres distraídas e ocupadas com os detalhes dela, impedindo-as de conversarem a respeito da natureza da força que as domina. Essas mães foram incapazes de deter a esperança e o entusiasmo trazidos pela liberação sexual — elas não podiam conversar e contar o que sabiam sobre a natureza e a qualidade da sexualidade masculina, dentro de sua própria experiência no casamento. O que essas mães sabiam sobre a promiscuidade é que o que um homem é capaz de fazer, dez também são. Suas filhas não sabiam o que os homens poderiam fazer com elas, mas elas não tinham nenhuma outra alternativa a oferecer. O repúdio que essas mães tinham do sexo não era visto como tendo uma causa objetiva.

As mulheres da direita cresceram em movimento político. O que elas têm a dizer a respeito do aborto está relacionado ao que elas sabem a respeito do sexo, e elas sabem algumas coisas horríveis a respeito. Elas viram os homens se utilizarem cinicamente do aborto para tornarem as mulheres mais acessíveis. Depois que o aborto foi legalizado, elas viram um movimento social em direção à ampliação do acesso sexual às mulheres sob os termos da dominação masculina expresso na pornografia — e relacionam as duas coisas. Elas acreditam que o que a direita tem a oferecer é um pouco menos cruel.

As mulheres da direita acreditam que a promiscuidade generaliza, enquanto que o casamento contém, a força destruidora dos homens — um de cada vez. Elas continuam silenciosas a respeito da natureza do sexo dentro do casamento tradicional, mas o que elas falam se baseia em experiência real. As mulheres da direita também acreditam que a gravidez é a única consequência do sexo que torna os homens responsáveis pelos seus atos sobre elas, e é por isso que se opõem ao aborto e aos anticoncepcionais. Sem a inevitabilidade da gravidez, se ampliariam as crueldades que os homens poderiam fazer às mulheres.

As mulheres da direita enxergam o cinismo dos homens da esquerda, e sabem que as posições políticas deles são sempre congruentes com o sexo que eles querem. Elas também sabem que as mulheres podem se foder querendo ou não nas mãos deles, e fazem o melhor acordo de que são capazes dentro de suas possibilidades. A gravidez é uma arma de sobrevivência dessas mulheres. Ela confirma, assim, o que aprendeu a respeito de sua própria natureza enquanto mulher: que ela merece ser punida, e que a punição por fazer sexo é o aborto ilegal. Elas se sentem envergonhadas porque é mesmo vergonha o que se sente quando se é usada para sexo. Uma vez que a vergonha confirma a sua culpa, o aborto ilegal é um sofrimento merecido.

Aborto, sendo ilegal, fica fora do campo de visão das mulheres de direita. Tira da visão delas a opção de escolher não ser uma mãe, a opção de não conformidade ao casamento. As mulheres rebeldes devem fazê-lo em segredo, sem causar confusão em outras mulheres. Sendo ilegal, o aborto coloca a vida e a morte nas mãos de Deus, o homem superior e juiz absoluto. Nenhuma mulher deve ser obrigada a encarar o aborto, até que aconteça com ela. Mulheres que realizam o procedimento e recusam a maternidade, segundo as mulheres da direita, merecem morrer. As mulheres da direita seriam, portanto, mártires, sobreviventes e preocupadas individualmente com a sua própria sobrevivência.

Não existe medida melhor para se calcular o que o sexo forçado faz às mulheres. O estupro destrói a autoestima e a vontade de sobreviver enquanto ser humano autodeterminado. O treino da feminilidade sobre as meninas e o uso sexual das mulheres no casamento significa a aniquilação de qualquer vontade de liberdade nelas. Seu senso de personalidade está tão danificado que ela prefere correr o risco de morrer a dizer não a um homem que vai fodê-la de qualquer modo, com a benção de Deus e do Estado, até que a morte os separe.

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Artigos inéditos Resumos

A Promessa da Extrema-Direita para as Mulheres [RESUMO]

Adaptado de: DWORKIN, Andrea. “The Promise of the Ultra-Right”. In: Right-Wing Women. Nova York: Perigee Books, 1983. P. 13-35.


Andrea Dworkin, autora de Right-Wing Women.

Socialmente, as ações de homens e mulheres são valoradas de forma diferente, sempre colocando mulheres em posições subjugadas. Elas são vistas, portanto, como “biologicamente conservadoras”. A ideia de que mulheres têm filhos porque por definição mulheres podem ter filhos, tomada como fato, pensa o ato de ter filhos (e as obrigações que vêm com isso) como instintivo e inerente às mulheres. Se o estado atual de coisas é supostamente mais seguro para as mulheres terem filhos, então isso seria melhor que os potenciais perigos da mudança.

Segundo os homens que filosofaram sobre o assunto, o imperativo biológico devido ao potencial reprodutivo das mulheres se traduz em mentes estreitas, vidas sem muito significado e, por conseguinte, puritanismo. Resultado dessa ideia: mulheres obrigadas a terem filhos, com exceção de alguns curtos intervalos onde os homens ficam meio desorientados — o exemplo dado no texto é o que resulta do sexo depois de certas revoluções.

Mulheres de todo o espectro político apoiaram conflitos onde seus filhos acabam mortos. Essa contradição mostra como a realidade das mulheres vai contra as teorias criadas sobre elas. Mas as mulheres enquanto classe acabam aderindo a normas e tradições de seu contexto social; se rebelar ao credo dos homens em volta delas é perigoso. A aquiescência das mulheres se dá em razão de conseguir alguma proteção da violência masculina para si mesmas.

Às vezes, essa conformidade é militante: provando sua fidelidade a estes princípios, ela pode encarnar a puta feliz ou a puritana fervorosa. Isso raramente a salva, contudo. Mas reconhecer essas traições dos homens pode ser o prego no caixão dessa mulher: confrontar a violência pode levar a mais violência. A luta é sempre contra “algo pior” que sempre tem a possibilidade de ocorrer, e a maioria das mulheres não tem condições de se dar ao luxo de reconhecer que não existe nível suficiente de lealdade aos homens.

Geralmente, as mães criam suas filhas para se conformarem aos valores ideológicos dos homens à sua volta, independente de orientação política. A maioria das meninas não quer a vida da mãe, mas às vezes acaba se conformando dada a violência masculina à volta dela. Mesmo quando se rebela, a filha acaba reproduzindo os padrões de sua mãe, e assim os homens acabam conseguindo atar mulheres em seu lugar de subjugação através de culpa e ressentimento.

Os homens sempre criam “tipos” de mulheres para odiarem e fazerem piadas internas. A caricatura da “mulher burguesa”, megera vaidosa que abusa da paciência do marido bondoso, por exemplo, está na boca de todos eles independente de classe social. Falar mal desse espantalho de mulher é instantaneamente gratificante aos homens. Outros tipos desses são a mãe judia castradora, a mulher negra matriarca raivosa, a lésbica que na verdade é frustrada porque queria ser um homem etc.

A maior piada entre os homens e a maior ofensa a uma mulher é reduzi-la ao seu sexo: a mulher é uma boceta, é um útero, e todo o resto do seu corpo (principalmente o que o caracteriza como humano) é cortado fora como inútil. A obcenidade favorita entre os homens é esse ser desmembrado.

Toda mulher, independente de sua condição, luta contra isso com todos os recursos de que dispõe, e eles são muito poucos. Por causa disso, elas sempre se agarram com todas as forças às próprias estruturas de poder que as degradam. É uma fidelidade cravada no auto-ódio, e é isso que define a própria feminilidade no contexto da dominação masculina.

O medo que Marilyn Monroe tinha de atuar a paralisava, independente de ela se saber capaz disso. No entanto, a atuação da atriz se dá dentro das espectativas dos homens que controlam os processos do audiovisual. O medo de Marilyn Monroe poderia estar ligado ao fato de ela mesma não estar convencida do papel de mulher que deram para que ela representasse. A morte de Monroe provocou nos homens que fizeram uso sexual dela ou de suas imagens o questionamento de que talvez ela não gostasse de todas as coisas que eles faziam a ela — é daí que viriam, talvez, os rumores de que ela poderia não ter se matado. A ilusão dela enquanto mulher ideal era encantadora demais para esses caras.

Mulheres morrem sozinhas e solitárias, sorrindo até o momento final, tentando encarnar a fantasia masculina que se coloca sobre elas. Talvez se elas fossem a mulher perfeita — esposa perfeita, puta perfeita, mãe perfeita —, talvez não sofressem tanto. Elas morrem não insatisfeitas com o que fizeram com elas, mas por não terem conseguido encarnar o papel imposto a elas pelos homens. Sua própria sobrevivência depende disso.

A sobrevivência das mulheres, portanto, é prometida em troca de sua conformidade com as correntes que as prendem. Elas não podem fazer nada que as destaque individualmente, que chame atenção predatória sobre si. Elas acabam esperando que essa atenção masculina destruidora caia sobre outra mulher, menos hábil em se conformar, que não elaa.

As histórias de violência sobre as mulheres são dispensadas e ridicularizadas como se fossem nada até mesmo por aqueles que dizem se importar. Para reconhecer a realidade e a validade das queixas das mulheres é preciso antes reconhecer a existência daquela pessoa. Nem homens nem mulheres acreditam da existência das mulheres enquanto seres dignos. Se as mulheres negam a validade de sua própria experiência vivida, elas não têm como reagir.

Para buscarem seu próprio valor, as mulheres acabam se aliando aos homens e aos seus valores. E se os homens demandam obediência delas, elas irão valorar sua própria existência enquanto servas deles, e não irão reconhecer o roubo da sua dignidade realizados por eles.

A direita nos EUA atua sobre as mulheres através da propagação do medo de que a violência masculina é imprevisível e incontrolável. Sua promessa se baseia na restrição dessa violência oferencendo:

  • Forma: os homens moldam as mulheres através da ignorância, do não cultivo de suas capacidades físicas e intelectuais.
  • Abrigo: a direita promete proteger as mulheres através da crença de que uma mulher sem um homem (ou sem uma família, um lar) está completamente à mercê dos perigos da vida.
  • Segurança: em um mundo indubitavelmente violento com mulheres, a direita promete que, se a mulher se comportar direito nenhum mal cairá sobre ela.
  • Regras: ignorantes em um mundo construído por homens, mulheres devem seguir regras para bem viver; a direita promete a elas um bom comportamento da parte dos homens, mas sem nenhuma garantia.
  • Amor: o conceito de amor é crucial na aliança das mulheres; uma mulher será amada (e recompensada com a proteção do homem ou de deus, sendo Jesus o único homem a quem ela pode se submeter sem medo de ser violada) se for obediente em cumprir suas funções de mulher (maternidade e servitude sexual).

Jesus jamais é enxergado como um filho perfeito, ele é apenas uma outra encarnação do deus-pai. E as mulheres passam a vida tentando agradar esse homem ideal, sofrendo com seu próprio apagamento no processo. Jesus é o modelo de homem perfeito que as mulheres devem projetar sobre todos os outros, e através do qual as mulheres perdoam as faltas e abusos deles. As mulheres também são levadas a creditar ao próprio espírito santo qualquer lampejo seu de inventividade intelectual.

O casamento é a esfera onde, com a força da religião, as mulheres devem tolerar a servidão e levantar as barreiras de sua resistência. O desejo de servir Cristo leva as mulheres à conformidade e a realizarem as vontades de seus maridos. E a autoridade paterna sobre os filhos é o que justifica algum grau de violência física dentro da família e da vida doméstica.

Essa tentativa de se tornar perfeita aos olhos dos homens e de deus pode levar as mulheres a se verem e agirem como “one of the boys“. Assim, mulheres acabam lutando contra seus próprios interesses na tentativa de alcançar suas ambições individuais. Porém, eventualmente elas acabam descobrindo que são também mulheres e não têm acesso aos altos escalões. Mas é através da manipulação dessa habilidade desenvolvida nas mulheres de respeitarem aqueles que as usam que muitas dessas advogadas do antifeminismo conseguem converter outras mulheres à direita.

As mulheres da direita temem as lésbicas. A fantasia que elas criam entorno das lésbicas é que elas são estupradoras e abusadoras de crianças, independente da falta de qualquer evidência para embasar isso. O abuso cometido pelos homens acaba normalizado por ser heterossexual, enquanto que o desejo homossexual das mulheres é visto como monstruoso.

O aborto para as mulheres da direita, uma vez que elas abdicam de seu próprio valor, valorando mais um óvulo fertilizado que uma mulher adulta, é equivalente ao assassinato de crianças. Os fatos sobre o aborto — realizado principalmente por mulheres mais velhas com filhos, e que a ilegalidade do procedimento leva muitas à morte — não as convencem. O aborto seriam então um ato de mulheres cruéis e sem deus, o exato oposto delas mesmas. O reconhecimento do direito ao aborto seria, portanto, o reconhecimento da desigualdade de condições da mulher que é obrigada a parir um filho indesejado. Reconhecer que mulheres não queiram parir filhos indesejados é devastador para essas mulheres.

A direita americana é um movimento social e político quase que controlado totalmente por homens, mas contruído sobre a ignorância e os medos das mulheres, ambos consequências da dominação dos homens. Os sentimentos conflitantes, resultados dessa experiência de dominação, acabam projetados em outros, em estrangeiros, nos diferentes, não não-cristãos. Isso pode resultar em nacionalismo, racismo, homofobia e desprezo por aquelas mulheres que não tiveram tanta sorte — grávidas na adolescência, mulheres prostituídas etc.

Elas se apegam a esses ódios irracionais temendo danos aos seus, e projetando o medo em um “mal maior”. Uma vez não têm meios de externar essa raiva, acabam se tornando odiadoras obedientes e manipuláveis. Esse comprometimento com sua própria sobrevivência individual leva mulheres a não reconhecerem que estão jogando contra si mesmas. Com sorte, sua própria experiência da realidade pode levá-las a questionar sua posição inferior. Independente das crenças ideológicas de origem masculina que as mulheres possam adotar, essa é uma luta compartilhada por mulheres de todo o espectro político.