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Artigos inéditos

Reflexões sobre terapia e feminismo


Fazer uma crítica feminista à terapia, assim como questionar a indústria da beleza, a heterossexualidade compulsória e a pornificação da cultura, frequentemente gera polêmica. Discutir essas questões em seu contexto coletivo é um desafio, muitas vezes resultando na personalização do debate e na culpabilização de quem traz à tona o assunto. Essas atitudes não apenas dificultam o diálogo, mas também impedem ações que poderiam advir dele.

Eu mesma já considerei a terapia uma ferramenta incrível. Cheguei a pensar que, se todos se dedicassem ao autoconhecimento com auxílio profissional, isso poderia transformar o mundo. Felizmente, temos à nossa disposição os escritos das feministas radicais notáveis que nos precederam. Elas deixaram não apenas suas pesquisas e reflexões registradas, mas também uma história de luta contra a patologização feminina, que não passa de uma abordagem patriarcal arcaica, convenientemente reembalada, que busca rotular as mulheres como “loucas”. Através disso, somos medicadas (no passado, até procedimentos como eletrochoque e lobotomia eram usados) ou então ficamos enredadas em reflexões dolorosas, enquanto os homens continuam a explorar, violentar e assegurar sua supremacia.

A teoria feminista se estabelece como o único espaço capaz de dar nome à vivência de ser um ser humano do sexo feminino em um mundo que odeia as mulheres. Isso é crucial para desmantelar a hierarquia social baseada no sexo. Entretanto, a teoria por si só não é suficiente.

Nos seis milênios de patriarcado, apesar de todos os esforços masculinos para apagar a História das Mulheres, muitas resistiram e lutaram incansavelmente contra a supremacia masculina. No início do século passado, as feministas não apenas batalhavam pelo direito ao voto, mas também enfrentavam a pedofilia, a objetificação das mulheres e buscavam proteger as mulheres da sífilis e gonorreia transmitidas por homens às suas esposas (Jeffreys, 1997). Mary Daly observa que a terapia surgiu como uma resposta direta à primeira onda do movimento feminista. De acordo com ela,

O objetivo [da terapia] não é curar no sentido mais profundo, mas impor violentamente o sistema de castas sexuais. O deus da terapia é a própria terapia. Além disso, como acontece com todas as religiões, há uma fixação no próprio ato de adoração, o qual tende a funcionar como um refúgio contra a falta de sentido. Por essa razão, qualquer crítica à terapia é vista como ameaça e causa terror naqueles que a seguem.

 (Daly, 1978)

Além da psicologia, tanto a sexologia (que fundamenta a terapia sexual) quanto a psicanálise contribuíram significativamente para reforçar a subordinação feminina e a dominação masculina. Ambas categorizaram qualquer comportamento feminino que não estivesse relacionado a servir e amar os homens como patológico e desviante. A “frigidez” e o lesbianismo eram algumas dessas “doenças” (Jeffreys, 1990, 1997). Adicionalmente, através do mito do orgasmo vaginal (Koedt, 1970), do diagnóstico de “histeria” e da transformação dos relatos de incesto em uma teoria da sedução – onde afirmava que as meninas inventavam esses relatos devido a um suposto desejo pelo pai (Rush, 1980, 1996), Freud e sua psicanálise garantiram não apenas o silenciamento da violência sexual masculina, mas também a manutenção da heterossexualidade como uma instituição política.

Segundo Daly, o que precisamos é ter a coragem de enxergar e identificar a raiva que pode nos fortalecer e, assim, não mais bloquear nossa paixão e criatividade. Jeffreys reforça a importância de não menosprezar o que sentimos:

aquelas qualidades que nos tornam revolucionárias, raiva, ódio e medo, são nossas forças, não nossas fraquezas. Nossos sentimentos de paranoia são uma percepção clara da realidade; realmente vivemos em território ocupado, onde os homens estão tentando nos matar. Precisamos usar essas emoções, não suprimi-las.

(Jeffreys, 1978)

Isso é exatamente o que a terapia (e a análise) nos impede de fazer. Ao nos colocar individualmente sob a orientação de um terapeuta, é apagada a nossa tendência natural de buscar apoio entre iguais, compartilhar angústias, reconhecer que a raiz de nossos problemas reside na estrutura patriarcal e fazer algo para mudar essa realidade.

Os grupos de conscientização da segunda onda do feminismo proporcionaram esse espaço coletivo para as mulheres explorarem sua raiva. Foi neste contexto que surgiu o slogan “o pessoal é político” (Hanisch, 1970) pois elas perceberam que o que cada uma achava que acontecia apenas consigo – sobrecarga doméstica e estupro marital, por exemplo – na verdade estavam ocorrendo a todas as outras, com pequenas diferenças. A partir disso, surgiram marchas, manifestações, grupos de autodefesa e abrigos para mulheres vítimas de violência. O acesso das mulheres ao ensino superior permitiu o início de pesquisas e estudos sobre a classe feminina. Foi um período intenso de escrita, debates e refinamento da teoria feminista. Além disso, essas mulheres ocuparam imóveis abandonados para morar, acolher outras mulheres e também criaram livrarias e cafés feministas, locais de encontro para construir amizades e elaborar estratégias políticas (Jeffreys, 2018).

O contra-ataque masculino à segunda onda do feminismo não demorou a aparecer e veio com grande força. A promoção de fetiches como identidades socialmente aceitáveis, juntamente com o aumento expressivo da produção, distribuição e consumo de pornografia cada vez mais violenta, ambos sob a benção do neoliberalismo, contribuiu significativamente para o crescimento da violência masculina contra as mulheres, a desvalorização do feminismo e o apagamento da categoria mulher nas leis, na história e na cultura (Jeffreys, 2022).

Nesse contexto, a terapia ganhou ainda mais força, criando agora um nicho de “terapia feminista” que promete a “cura interior” ao auxiliar as mulheres a se conectarem com seus “verdadeiros eus” e a se empoderarem. Em situações extremas, talvez algumas mulheres necessitem de psicoterapia, mas considerando que a maioria dos nossos problemas deriva da estrutura social, investir em soluções individuais não resolverá nossas questões (Kitzinger, 1996). Mesmo que alcancemos certa autonomia individual, enquanto a dominação masculina persistir, nada estará verdadeiramente seguro e garantido, como demonstram os casos das meninas afegãs privadas do direito à educação e das americanas enfrentando restrições ao aborto.

A situação atual da classe feminina é crítica, e mais do que nunca, precisamos do engajamento de todas as mulheres possíveis na luta coletiva pela nossa emancipação. O patriarcado não cederá apenas com pedidos educados para que os homens cessem a violência. Cabe a todas nós recuperar o nosso arsenal de raiva, estudar a teoria e a história do movimento feminista e nos organizarmos com outras mulheres para revolucionar esse mundo. Faremos isso por nós mesmas, em honra àquelas que vieram antes de nós e para as que virão.


Referências

DALY, Mary. Gyn/ecology: The metaethics of radical feminism. Boston: Beacon, 1978.

HANISCH, C. The Personal is Political. Notes from the Second Year: New York: Women’s Liberation, 1970. Disponível em: https://repository.duke.edu/dc/wlmpc/wlmms01039

JEFFREYS, Sheila. Therapy: Reform or Revolution. Reino Unido: Spare Rib, nº 69, abr/1978.

JEFFREYS, Sheila. Sexology and antifeminism. IN  LEIDHOLDT, D; RAYMOND, J. (editors). The Sexual liberals and the attack on feminism. — 1st ed. p. cm. — (Athene series) 1990. pp. 14-27.

JEFFREYS, Sheila. The spinster and her enemies: feminism and sexuality 1880 – 1930. Melbourne: Spinifex, 1997.

JEFFREYS, Sheila. The Lesbian Revolution: Lesbian Feminism in the UK 1970–1990. Abingdon: Routledge, 2018.

JEFFREYS, Sheila. Penile Imperialism. The Male Sex Right and Women’s Subordination. North Geelong: Spinifex Press, 2022.

KITZINGER, Celia. Terapia e como ela Minimiza a Prática do Feminismo Radical. IN: BELL, D.; KLEIN, R. (eds) Radically Speaking: Feminism Reclaimed. Melbourne: Spinifex Press, 1996. Disponível em: http://radfem.info/terapia-e-como-ela-minimiza-a-pratica-do-feminismo-radical/

KOEDT, Anne. The Myth of the Vaginal Orgasm. New England Free Press, 1970. Disponível em: https://docs.wixstatic.com/ugd/63d11a_f1aa3818f1b6471aa113c28aeb5130f7.pdf

RUSH, Florence. The Best Keep Secret: Sexual Abuse of Children. New Jersey: Prentice-Hall, 1980.

RUSH, Florence. The Freudian Coverup. In: Feminism & Psychology. London: Thousand Oaks and New Delhi, 1996. Vol. 6(2) : 261-276. Disponível em: https://sci-hubtw.hkvisa.net/10.1177/0959353596062015

PARA SABER MAIS:

WDI. Is therapy useful for feminist struggle? Feminist Question Time. 22/07/2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-UksXdCdVwY

O Mito do Orgasmo Vaginal, da Anne Koedt. Audiobook em português disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=CHRwsxat9cc

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Traduções

Terapia e como ela minimiza a prática do Feminismo Radical

Por Celia Kitzinger, traduzido livremente de Radically Speaking.


Uma das grandes percepções do feminismo da segunda onda foi o reconhecimento de que “o pessoal é político”, uma frase cunhada pela primeira vez por Carol Hanisch em 1971. Com isso, queríamos dizer que todas as nossas atividades pequenas, pessoais e do dia a dia tinham um significado político, quer fosse intencional ou não. Aspectos de nossas vidas que antes eram vistos como puramente “pessoais” – trabalho doméstico, sexo, relacionamentos com filhos e pais, mães, irmãs e amantes – eram moldados e influenciados pelo contexto social mais amplo.

O slogan… significava, por exemplo, que quando uma mulher é obrigada a ter relações sexuais com o marido, isso é um ato político, pois reflete as dinâmicas de poder no relacionamento: as esposas são propriedade a que os maridos têm total acesso.

(Rowland: 1984, p. 5)

Uma compreensão feminista de “política” significava desafiar a definição masculina de política como algo externo (ligado a governos, leis, protestos com bandeiras e marchas) em direção a uma compreensão da política como algo central para nosso ser, afetando nossos pensamentos, emoções e as escolhas aparentemente triviais do dia a dia sobre como vivemos. O feminismo significava tratar o que havia sido percebido como questões meramente “pessoais” como preocupações políticas.

Este artigo explora a forma como o slogan “o pessoal é político” é utilizado na escrita psicológica feminista, com referência especial à terapia. O crescimento das terapias feministas (incluindo livros de autoajuda, co-aconselhamento, grupos de doze passos e assim por diante, bem como terapia individual) foi rápido e atraiu críticas de muitas feministas preocupadas com suas implicações políticas (Cardea: 1985; Hoagland: 1988; Tallen: 1990a e b; Perkins: 1991). No entanto, muitas psicólogas feministas (tanto pesquisadoras quanto profissionais) afirmam explicitamente sua crença de que “o pessoal é político”.

Esse princípio tem “prevalecido como um pilar fundamental da terapia feminista” (Gilbert: 1980), e metodologias qualitativas muitas vezes têm sido adotadas pelas feministas precisamente porque permitem acesso à experiência “pessoal”, cujas implicações “políticas” podem ser extraídas por meio da pesquisa. Seria incomum encontrar uma psicóloga feminista que negasse acreditar que “o pessoal é político”, apesar da existência de críticas feministas a algumas de suas implicações (como a universalização falsa da experiência das mulheres, por exemplo, veja hooks: 1984, e a tendência irônica de algumas mulheres de perceberem as categorias “pessoal” e “político” do slogan como polarizadas e em competição, veja David: 1992). No entanto, a concordância generalizada com esse slogan entre psicólogas feministas esconde uma variedade de interpretações. Este artigo ilustra quatro dessas interpretações psicológicas divergentes de “o pessoal é político” e argumenta que, longe de politizar o pessoal, a psicologia personaliza o político, concentra a atenção na “revolução interna”, foca em “validar a experiência das mulheres” em detrimento da análise política dessa experiência e busca “empoderar” as mulheres, em vez de conceder poder político real.

Duas ressalvas antes de entrar em meu argumento principal

Primeiro, este artigo não pretende apresentar uma visão abrangente de toda a psicologia feminista – uma área imensa e em crescimento. Além disso, ao contrário de outras críticas (por exemplo, Jackson: 1983; Sternhall: 1992; Tallen: 1990a e b), este artigo não é um ataque a uma marca específica de psicologia, nem uma discussão de dentro da disciplina (por exemplo, Burack: 1992). Pelo contrário, seu objetivo é estar fora do quadro disciplinar da psicologia e chamar a atenção para os problemas políticos inerentes ao próprio conceito de “psicologia feminista”.

Segundo, “não parece justo”, disse um árbitro, “zombar das instituições que ajudam as mulheres a viverem suas vidas com menos dor.” Muitas mulheres foram ajudadas pela terapia. Já ouvi mulheres o suficiente dizerem “ela salvou minha vida” para me sentir quase culpada por desafiar a psicologia. Muitas mulheres dizem que foi apenas com a ajuda da terapia que elas se tornaram capazes de sair de um relacionamento abusivo, livrar-se de medos incapacitantes e ansiedades, ou parar o abuso de drogas. Qualquer coisa que salve a vida das mulheres, qualquer coisa que as deixe mais felizes, deve ser feminista – não é mesmo? Bem, não. É possível remendar as mulheres e capacitá-las a fazer mudanças em suas vidas sem nunca abordar as questões políticas subjacentes que causam esses problemas pessoais em primeiro lugar. “Eu costumava reclamar com meu marido para fazer o trabalho doméstico e nada acontecia”, disse uma mulher de Minnesota a Harrit Lerner (1990, p. 15); “agora estou em um programa intensivo de tratamento para co-dependência e estou me afirmando muito. Meu marido está mais prestativo porque ele sabe que sou codependente e apoia minha recuperação”. Para essa mulher, a explicação psicológica (“sou codependente e preciso me recuperar”) foi mais bem-sucedida do que a explicação feminista (o trabalho das mulheres como trabalho doméstico não remunerado para os homens, Mainardi: 1970) em criar mudanças. Com a ideia de si mesma como doente, ela conseguiu fazê-lo fazer o trabalho doméstico. Como Carol Tavris (1992) diz,

as mulheres recebem muito mais simpatia e apoio quando definem seus problemas em termos médicos ou psicológicos do que em termos políticos.

A explicação da codependência esconde o que as feministas veem como a verdadeira causa de nossos problemas – a supremacia masculina. Em vez disso, somos informadas de que a causa está em nossa própria “codependência”. Isso não é feminismo. Embora seja claro que “muitas mulheres tenham sido ajudadas pela terapia”, também é claro que muitas mulheres foram ajudadas e se sentem melhores consigo mesmas como resultado de (por exemplo) fazer dieta, comprar roupas novas ou entrar em um culto religioso. Historicamente, como aponta Bette Tallen (1990a, p. 390), as mulheres têm “procurado refúgio em instituições como a igreja católica ou o exército. Mas isso significa que essas são instituições que devem ser plenamente abraçadas pelo feminismo?” As razões por trás da corrida para a psicologia e os benefícios que ela oferece (bem como o preço que ela exige) são discutidos com mais detalhes em outro lugar (Kitzinger e Perkins: 1993). Neste artigo, foco mais estreitamente nas interpretações psicológicas do slogan “o pessoal é político” e nas implicações disso para o feminismo.

A personalização do Político

Nessa interpretação de “o pessoal é político”, em vez de politizar o “pessoal”, o “político” é personalizado. Preocupações políticas, políticas nacionais e internacionais, e grandes desastres sociais, econômicos e ecológicos são reduzidos a questões psicológicas pessoais e individuais.

Essa tradução completa do político para o pessoal é característica não apenas da psicologia feminista, mas da psicologia em geral. Nos EUA, um grupo de vinte e dois profissionais gastou três anos e $73.500 para concluir que a falta de autoestima é a causa raiz de “muitos dos principais males sociais que nos afligem hoje” (The Guardian: 13 de abril de 1990). A violência sexual contra mulheres é abordada criando sessões de treinamento de habilidades sociais e gerenciamento da raiva para estupradores (agora disponíveis em sessenta prisões na Inglaterra e no País de Gales, The Guardian: 21 de maio de 1991), e o racismo se torna algo para desabafar em uma oficina de aconselhamento (Green: 1987). Muitas pessoas agora pensam em questões sociais e políticas importantes em termos psicológicos.

Na verdade, toda a vida pode ser vista como um grande exercício psicológico. Lá em 1977, Judi Chamberlin apontou que hospitais psiquiátricos tendem a usar o termo “terapia” para descrever absolutamente tudo o que acontece dentro deles:

… fazer as camas e varrer o chão podem ser chamados de “terapia industrial”, ir a uma dança ou filme é “terapia recreativa”, drogar os pacientes é “quimioterapia” e assim por diante. Hospitais mentais de custódia, que oferecem muito pouco tratamento, frequentemente fazem referência à “terapia de ambiente”, como se o próprio ar do hospital fosse de alguma forma curativo .

(1977, p. 131)

Uma década mais tarde, com a principal clientela da psicologia não mais nos hospitais mentais, mas na comunidade, tudo em nossas vidas é traduzido para a “terapia”. Ler livros se torna “biblioterapia”; escrever (Wenz: 1988), manter um diário (Hagan: 1988) e fazer arte são todos atribuídos a funções terapêuticas. Até mesmo tirar fotos é agora uma técnica psicológica: a “fototerapeuta” feminista Jo Spence se baseou nas teorias psicanalíticas de Alice Miller (1987) e defende a cura (entre outras “feridas”), “a ferida da vergonha de classe” por meio da fotografia. E embora a leitura, a escrita e a fotografia sejam atividades comuns, em sua manifestação terapêutica elas exigem orientação especializada: “Eu não acho que as pessoas possam fazer isso com amigos ou sozinhas… elas nunca terão a segurança de trabalhar sozinhas como terão trabalhando com um terapeuta, porque elas encontrarão seus próprios bloqueios e não conseguirão superá-los” (Spence: 1990, p. 39). Embora não queiramos negar que a leitura, a escrita, a arte, a fotografia, entre outros, possam fazer algumas pessoas se sentirem melhor consigo mesmas, é perturbador encontrar tais atividades sendo avaliadas em termos puramente psicológicos. Como feministas, costumávamos ler para aprender mais sobre a história e a cultura feministas; escrever e pintar para nos comunicarmos umas com as outras. Essas eram atividades sociais direcionadas para fora; agora elas são tratadas como explorações do eu. O sucesso do que fazemos é avaliado em termos de como nos faz sentir. Condições sociais são avaliadas em termos de como a vida interior dos indivíduos responde a elas. Compromissos políticos e éticos são julgados pelo grau em que melhoram ou prejudicam nosso senso individual de bem-estar.

As terapeutas feministas agora “prescrevem” atividades políticas para suas clientes – não por seu valor político inerente, mas como remédios milagrosos. As “Diretrizes para a Terapia Feminista” oferecidas pela terapeuta Marylou Butler no Manual de Terapia Feminista (1985) incluem a sugestão de que as terapeutas feministas devem “encaminhar para centros de mulheres, grupos de conscientização e organizações feministas, quando isso seria terapêutico para as clientes” (p. 37). A Conscientização – a prática de tornar o pessoal político – nunca foi destinada a ser “terapia” (Sarachild: 1978). Mulheres que participam do ativismo feminista com o objetivo de se sentirem melhores consigo mesmas provavelmente ficarão desapontadas. Ao enviar mulheres para grupos feministas, cujos objetivos primários são ativistas e não terapêuticos, as terapeutas estão fazendo um desserviço tanto à suas clientes quanto ao feminismo.

Nossos relacionamentos também são considerados não em termos de suas implicações políticas, mas sim em termos de suas funções terapêuticas. A terapia costumava nomear o que acontecia entre um terapeuta e um cliente. Agora, como Bonnie Mann aponta, isso descreve com precisão o que acontece entre muitas mulheres em interações diárias: “qualquer atividade organizada por mulheres é encaixada em uma estrutura terapêutica. Seu valor é determinado com base em se é ou não ‘curativo'”:

Eu frequentemente vi uma conversa honesta se transformar em uma interação terapêutica diante dos meus olhos. Por exemplo: eu menciono algo que me incomodou, machucou ou foi difícil para mim de alguma forma. Algo muda. Vejo a mulher com quem estou a assumir o papel de amiga de apoio. É como se uma fita se encaixasse em seu cérebro, sua voz muda, posso vê-la começar a me ver de maneira diferente, como uma vítima. Ela começa a recitar as frases: “Isso deve ter sido muito difícil para você”, ou “Isso deve ter sido tão invalidante” ou “O que você acha que precisa para se sentir melhor com isso?” Eu conheço muito bem a fita correspondente que supostamente deve se encaixar em meu próprio cérebro: “Acho que só precisava te dizer o que estava acontecendo comigo”, ou “Ajuda ouvir você dizer isso, parece muito validador”, ou “Acho que só preciso ficar sozinha e me cuidar um pouco”.

(1987, p. 47)

As formas psicológicas de pensamento saíram do consultório do terapeuta, dos grupos de AA e dos livros de autoajuda, dos workshops de experiência e das sessões de renascimento para invadir todos os aspectos de nossas vidas. O político foi completamente personalizado.

A revolução de Dentro para Fora

Outra interpretação comum da máxima “o pessoal é político” no contexto da psicologia feminista é algo assim:

A atividade supostamente “pessoal” da terapia é profundamente política, porque aprender a se sentir melhor sobre nós mesmas, elevar nossa autoestima, aceitar nossas sexualidades e nos reconciliarmos com quem realmente somos – tudo isso são atos políticos em um mundo heteropatriarcal. Com o ódio às mulheres ao nosso redor, é revolucionário nos amarmos, curarmos as feridas do patriarcado e superarmos a autossupressão. Se todos se amassem e se aceitassem, de modo que mulheres (e homens) não projetassem mais uns nos outros seus próprios ódios reprimidos, teríamos uma mudança social real.

Este é um argumento muito comum, recentemente reiterado no livro “Revolução de Dentro para Fora” de Gloria Steinem. Como aponta Carol Sternhall em uma análise crítica, “O objetivo de toda essa psicoterapia moderna e psicodélica não é simplesmente se sentir melhor consigo mesmo – ou melhor, é, porque se sentir melhor com todas as nossas partes agora é a chave para a revolução mundial” (1992, p. 5).

Neste modelo, o “eu” é naturalmente bom, mas precisa ser desenterrado de sob as camadas de opressão internalizada e curado das feridas infligidas por uma sociedade heteropatriarcal. Apesar de suas diferenças evidentes em outras áreas, a terapeuta feminista lésbica Laura Brown (1992) compartilha a noção de “verdadeiro eu” de Gloria Steinem. Ela escreve, por exemplo, sobre a “luta da cliente para recuperar seu eu das armadilhas do patriarcado” (pp. 241-42), ao “descascar as camadas do treinamento patriarcal” (p. 242) e “curar as feridas da infância” (p. 245); na terapia com Laura Brown, uma mulher é ajudada a “se conhecer” (p. 246), a ir além de seu “eu acomodado” (p. 243) e descobrir seu “verdadeiro eu” (p. 243) (ou “eu interior fingido” p. 245) e viver “em harmonia consigo mesma” (p. 243). Na maioria da psicologia feminista, esse eu interior é caracterizado como uma linda e espontânea menininha. Entrar em contato e nutri-la é o primeiro passo para criar uma mudança social: é uma “revolução de dentro para fora”.

Esse conjunto de ideias tem raízes no “movimento de crescimento” dos anos 1960, que enfatizava a liberação pessoal e o “potencial humano”. Naquela época, a imagem central era de uma “sociedade doente” vagamente definida.

“O Sistema” foi envenenado pelo seu materialismo, consumismo e falta de preocupação com o indivíduo. Essas coisas foram internalizadas pelas pessoas; mas sob as camadas de “porcaria” em cada pessoa repousava um “eu natural” essencial que poderia ser alcançado por meio de várias técnicas terapêuticas. O que isso sugere é que a mudança revolucionária não é algo que precisa ser construído, criado ou inventado com outras pessoas, mas que é de alguma forma natural, adormecido em cada um de nós individualmente e só precisa ser liberado.

(Scott e Payne: 1984, p. 22)

A absurdidade de levar esse argumento de “revolução de dentro para fora” a sua conclusão lógica é ilustrada por um projeto, descendente de um programa terapêutico popular, que propôs acabar com a fome. Não, como poderia parecer sensato, por meio da organização de cozinhas comunitárias, distribuição de pacotes de comida para os famintos, campanhas para que países empobrecidos fossem liberados de suas dívidas nacionais ou patrocínio de cooperativas agrícolas. Em vez disso, oferece o simples expediente de fazer indivíduos assinarem cartões dizendo que eles estão “dispostos a serem responsáveis por fazer do fim da fome uma ideia cujo tempo chegou.” Quando um número não revelado de pessoas tiver assinado esses cartões, um “contexto” terá sido criado em que a fome de alguma forma acabará (citado em Zilbergeld: 1983, pp. 5–6). Claro, Laura Brown, assim como muitas outras terapeutas feministas, provavelmente também quereria desafiar a obscenidade desse projeto. No entanto, a lógica de seus próprios argumentos permite precisamente esse tipo de interpretação.

Tais abordagens estão muito distantes da minha própria compreensão de “o pessoal é político”. Eu não acredito que a mudança social aconteça de dentro para fora. Não acredito que as pessoas tenham crianças interiores esperando para serem nutridas, reparentadas, e que sua bondade natural seja liberada para o mundo, sob as camadas de opressão internalizada. Pelo contrário, como argumentei em outros lugares (Kitzinger: 1987; Kitzinger e Perkins: 1993), nossos eu interiores são construídos pelos contextos sociais e políticos em que vivemos e, se quisermos alterar o comportamento das pessoas, é muito mais eficaz mudar o ambiente do que psicologizá-las individualmente. No entanto, como Sarah Scott e Tracey Payne (1984, p. 24) apontam, “quando se trata de fazer terapia, é essencial que cada técnica seja vista pelas mulheres como seus ‘verdadeiros’ e ‘sociais’ eus como distintos.” Isso significa que o processo de tomar decisões éticas e políticas sobre nossas vidas é reduzido à suposta “descoberta” de nossos verdadeiros eus, a honra de nossos “desejos do coração”. A compreensão política de nossos pensamentos e sentimentos é ocultada, e nossas escolhas éticas são moldadas em um quadro terapêutico em vez de político. Um conjunto de condições sociais repressivas tornou a vida difícil para mulheres e lésbicas. No entanto, a solução da “revolução de dentro para fora” é melhorar os indivíduos, em vez de mudar as condições.

A psicologia sugere que só depois de se curar você mesmo, você pode começar a curar o mundo. Discordo disso. As pessoas não precisam ser seres humanos perfeitamente funcionais e auto-realizados para criar mudanças sociais. Pense nas feministas que você conhece que foram influentes no mundo e que trabalharam com afinco e eficácia pela justiça social: Todas elas se amaram e se aceitaram? A grande maioria daqueles admirados por seu trabalho político continua lutando pela mudança não porque alcançaram a autorrealização (nem para atingi-la), mas por causa de seus compromissos éticos e políticos, e muitas vezes apesar de seus próprios medos, dúvidas pessoais, angústias pessoais e auto ódio. Aqueles que trabalham para uma “revolução externa” muitas vezes não estão mais “em contato com seus verdadeiros eu” do que aqueles fixados na mudança interna: essa observação não deve ser usada (como às vezes é) para desacreditar seu ativismo, mas sim para demonstrar que a ação política é uma opção para todos nós, independentemente do nosso estado de bem-estar psicológico. Espere até que seu mundo interno esteja resolvido antes de direcionar sua atenção para o externo, e você está, de fato, “esperando pela revolução” (Brown: 1992).

Validar a Experiência das Mulheres

Uma terceira versão psicológica de “o pessoal é político”, aplicada à terapia, é mais ou menos assim:

A política se desenvolve a partir da experiência pessoal. O feminismo deriva das próprias histórias de vida das mulheres e deve refletir e validar essas histórias. As realidades das mulheres sempre foram ignoradas, negadas ou invalidadas sob o heteropatriarcado; a terapia serve para testemunhar, afirmar e validar a experiência das mulheres. Como tal, ela torna o pessoal político.

A política da terapia, de acordo com essa abordagem, não envolve mais do que “validar”, “respeitar”, “honrar”, “celebrar”, “afirmar”, “prestar atenção” ou “testemunhar” (essas palavras são geralmente usadas de forma intercambiável) a “experiência” ou “realidade” de outra mulher.

Esse processo de “validação” supostamente tem enormes implicações: “Quando honramos nossos clientes, eles se transformam” (Hill: 1990, p. 56).

Obviamente, faz muito sentido nos ouvirmos e estarmos dispostas a entender o significado da experiência de outras mulheres. Costumávamos fazer isso em Grupos de Conscientização, e agora fazemos isso na terapia. Por ter sido transformada em uma atividade terapêutica, ela agora carrega todos os riscos de abuso de poder endêmicos ao empreendimento terapêutico (Kitzinger e Perkins: 1993, capítulo 3; Silveira: 1985). Em particular, os terapeutas são seletivos sobre quais experiências irão ou não validar na terapia. Aquelas emoções e crenças de uma cliente que são mais similares às do terapeuta são “validadas”; as outras são mais ou menos sutilmente “invalidadas”.

Poucas terapeutas feministas, por exemplo, irão validar sem críticas uma sobrevivente de abuso sexual infantil que fala sobre ser a culpada pelo estupro na infância devido ao seu comportamento sedutor; em vez disso, é provável que lhe seja oferecida uma análise sobre a forma como a culpabilização da vítima opera sob o heteropatriarcado. Da mesma forma, poucas terapeutas feministas validarão a experiência de uma mulher que diz estar doente e pervertida por ser lésbica: em vez disso, como a própria Laura Brown (1992) argumenta, seus “pensamentos disfuncionais” (p. 243) serão questionados e a terapia será direcionada para modificá-los para a crença de que “o patriarcado ensina que o lesbianismo é mal como um meio de controlar socialmente todas as mulheres e reservar recursos emocionais para homens e instituições dominantes (uma análise que ofereci, em várias formas, para mulheres que questionavam em voz alta em meu consultório por que se odeiam tanto por serem lésbicas)” (Brown: 1992, p. 249). Embora afirmem “validar” todas as realidades das mulheres, na verdade, apenas um subconjunto, consistindo das realidades com as quais o terapeuta concorda, é aceito como reflexão “verdadeira” da realidade. As outras são “invalidadas”, quer como “cognições defeituosas” (Padesky: 1989) ou como “distorções patriarcais” (Brown: 1992, p. 242).

Em outras palavras, toda essa conversa sobre “validar” e “honrar” a realidade das clientes é um disfarce fino para a moldagem terapêutica da experiência das mulheres em termos das próprias teorias do terapeuta.

De qualquer forma, a “experiência” é sempre percebida por meio de uma estrutura teórica (implícita ou explícita) dentro da qual ganha significado. Sentimentos e emoções não são simplesmente respostas imediatas, não socializadas e auto-autenticadoras. Eles são socialmente construídos e pressupõem certas normas sociais. A “experiência” nunca é “bruta”; ela está embutida em uma teia social de interpretação e reinterpretação. Ao encorajar e perpetuar a noção de “experiência” pura, não corrompida e pré-socializada e emoção natural surgindo de dentro, os terapeutas disfarçaram ou obscureceram as raízes sociais de nossos “eus internos”. Colocar a “experiência” além do debate dessa maneira é profundamente antifeminista precisamente porque nega as fontes políticas da experiência e as torna puramente pessoais. Quando a psicologia simplesmente “valida” emoções específicas, ela as retira de um quadro ético e político.

Empoderamento

Uma quarta interpretação psicológica de “o pessoal é político” se baseia na noção de “empoderamento”. Ela segue mais ou menos assim:

A terapia nos capacita a agir politicamente. Elevar a conscientização pessoal por meio da terapia permite que os indivíduos liberem suas energias psíquicas em direção a uma mudança social criativa. Através da terapia, lésbicas podem adquirir tanto a consciência feminista quanto a autoconfiança para se envolver em ação política. Muitas ativistas políticas radicais feministas são empoderadas a continuar através de seu auto cultivo contínuo na terapia.

Aquelas em terapia muitas vezes usam essa justificativa: de acordo com Angela Johnson (1992, p. 8), a terapia (junto com a escalada) “me dá energia para continuar meu ativismo com renovado entusiasmo.” E as terapeutas concordam. De acordo com a psicóloga clínica Jan Burns (1992, p. 230), escrevendo sobre a psicologia do atendimento à saúde lésbica, “parece intuitivamente razoável que um indivíduo possa preferir se envolver na autoexploração antes de escolher se envolver em ações mais políticas, e pode de fato precisar disso antes de ser capaz de tomar outras medidas”. Laura Brown (1992) diz que muitos de seus clientes “têm muito pouco a contribuir para a luta maior da qual muitos estão desengajados quando os vejo pela primeira vez” (p. 245). Sua cliente, “Ruth”, foi ajudada a entender que a “cura final reside em sua participação em uma mudança cultural, não apenas pessoal” (p. 246) e Laura Brown mostrou a ela como “levar seu processo de cura para uma esfera mais ampla” (p. 245). Como resultado da terapia, suas “energias” foram “liberadas” (p. 245) e ela se tornou uma palestrante, poetisa e professora sobre mulheres e guerra, além de se envolver em ativismo público contra a guerra. Da mesma forma, a psicóloga clínica Sue Holland (1991), em um artigo intitulado “Dos sintomas privados à ação pública”, promove um modelo de terapia no qual o cliente passa de “paciente/vítima ‘doente’ e passivo” no início do tratamento para o “reconhecimento da opressão localizada no ambiente objetivo”, o que leva a um “desejo coletivo de mudança” em que “energias psíquicas podem… ser direcionadas para inimigos estruturais” (p. 59).

De acordo com essa interpretação, o “pessoal” consiste em “energias psíquicas” (nunca claramente definidas) que operam de acordo com um modelo hidráulico. Há uma quantidade fixa de “energia” que pode ser bloqueada, liberada ou redirecionada por outros canais. O “político” é simplesmente um desses “canais”. A terapia pode (e alguns diriam que deve) direcionar a energia feminista ao longo de “canais políticos”. Muitas vezes, é claro, ela não faz isso, e as mulheres permanecem perpetuamente focadas internamente, um problema notado com pesar pelas terapeutas lésbicas/feministas mais radicais. Mas, segundo elas, sua terapia resulta em suas clientes se tornando ativas politicamente.

Longe de incorporar a noção de que “o pessoal é político”, essas ideias dependem de uma separação radical entre os dois. O aspecto “pessoal” da terapia é distinguido do trabalho “político” de participar de marchas, e ao terem separado o “pessoal” e o “político” dessa maneira, os dois são então examinados quanto ao grau de correlação.

O argumento de “empoderamento” ignora totalmente a política da própria terapia. É visto simplesmente como um hobby (como a escalada) ou uma atividade pessoal sem implicações éticas ou políticas em si mesma. Desprovido de significado político intrínseco, é avaliado apenas em termos de suas consequências presumidas para a “política” – definida em termos da velha variedade de bandeira acenando do antigo movimento de esquerda masculino. Se “o pessoal é político”, o próprio processo de fazer terapia é político, e esse processo (não apenas seus resultados alegados) deve ser criticamente avaliado em termos políticos.

Em conclusão, e apesar da frequência com que as terapeutas feministas afirmam rotineiramente que “o pessoal é político”, parece completamente errado afirmar que esse objetivo é um “pilar da terapia feminista” (Gilbert: 1980). Certamente, as noções de “revolução de dentro”, a importância de “validar” a realidade das mulheres e “empoderar” as mulheres para o ativismo político são centrais para o pensamento de muitas psicólogas feministas. Essas ideias sobrepostas e inter-relacionadas estão entrelaçadas em grande parte na teoria e na prática psicológica lésbica/feminista. No entanto, tais noções estão longe da perspectiva radical feminista de que “o pessoal é político” e muitas vezes são interpretadas em contradição direta com essa perspectiva. Muitas vezes, promovem conceitos ingênuos dos mecanismos pelos quais a mudança social é alcançada; envolvem a aceitação acrítica de “verdadeiros sentimentos” e/ou “reinterpretações” manipulativas da vida das mulheres em termos preferidos pelo psicólogo; levam as mulheres a reverter a definições “externas” de política em contraposição ao aspecto “pessoal” da terapia; e nos deixam carentes de linguagem ética e política. Reconhecer que o pessoal realmente é político significa rejeitar a psicologia.

Reconheço que algumas mulheres cuja política eu admiro e respeito não rejeitaram a psicologia: muitas estão “em terapia” ou são provedoras de terapia. Essa observação às vezes é usada para contestar nossos argumentos. Depois de ler um capítulo (Kitzinger e Perkins: 1993) que cita o processo judicial de Nancy Johnson contra o governo dos EUA por condenar as pessoas de Utah ao câncer (por causa do armazenamento nuclear), um leitor comentou que Nancy Johnson agora trabalha como curandeira psíquica de uma maneira que eu provavelmente consideraria politicamente problemática. “Acho que a situação é mais complicada do que você apresentou: Feminismo e psicologia não parecem ser mutuamente exclusivos”, disse ele. Obviamente, ativistas feministas às vezes são praticantes ou consumidoras de psicologia: muitas feministas claramente acham possível incluir ambos em suas vidas. Mas, assim como os defensores da saúde às vezes fumam cigarros; os ecologistas às vezes jogam lixo; e os pacifistas às vezes batem em seus filhos. A coexistência observada de duas visões ou comportamentos na mesma pessoa não os torna lógicamente éticos ou politicamente compatíveis.

O debate sobre a compatibilidade ética e política das diferentes ideias e comportamentos das pessoas é uma parte importante do que a discussão política feminista é. Meu argumento é que o feminismo e a psicologia não são eticamente ou politicamente compatíveis. Não significa necessariamente que as mulheres envolvidas na psicologia sejam apolíticas ou antifeministas. Muitas levam a sério o feminismo e estão profundamente engajadas em atividades políticas. Mas, na medida em que organizam suas vidas com base em ideias psicológicas e na medida em que limitam seus pensamentos e ações ao que aprendem da psicologia, estão negando o princípio feminista fundamental de que “o pessoal é político”.

KITZINGER, Celia. Terapia e como ela Minimiza a Prática do Feminismo Radical. IN: BELL, D.; KLEIN, R. (eds) Radically Speaking: Feminism Reclaimed. Melbourne: Spinifex Press, 1996. Tradução livre.

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Traduções

O sexo cotidiano: coerção e consentimento

Por Sheila Jeffreys, traduzido livremente de Penile Imperialism.


Thérèse e Edmondo Morbilli, por Edgar Degas (1865)

O direito sexual masculino se expressa mais claramente no casamento e na convivência heterossexual. Através das instituições da heterossexualidade e do casamento em todas as suas formas, desde a óbvia escravidão sexual até a “união estável” e as uniões mais informais, os homens adquirem o direito de acesso sexual constante, bem como o controle da reprodução e cuidado infantil e do trabalho doméstico não remunerado. Em alguns países, os maridos não têm mais a propriedade total dos corpos de suas esposas e o direito de fazer o que quiserem com eles, embora isso ainda persista em muitas jurisdições. No Reino Unido, por exemplo, o estupro no casamento é agora um crime, mas o contrato não escrito que está na base do casamento é de propriedade. Este contrato era claro na lei do século XIX e fez com que as feministas questionassem se havia alguma diferença significativa entre o status das esposas e o dos escravos.

Argumentarei que, embora a maioria das mulheres no casamento e em relacionamentos heterossexuais agora tenham o direito de acusar seus parceiros de estupro, o direito do sexo masculino, ou direito conjugal, como era chamado na lei, ainda permanece. Este capítulo trata dos encontros sexuais que geralmente não são chamados de estupro, mas sexo indesejado ou coercitivo ou, por serem tão normativos, sexo “cotidiano”. A relação de poder de dominação masculina e subordinação feminina constrói o sexo que acontece nas relações heterossexuais e o exercício de diversas formas de força garantem que as mulheres não tenham direito à autodeterminação em relação aos seus corpos. O escopo deste capítulo é limitado aos ‘direitos conjugais’ na cultura dominante do Reino Unido, Estados Unidos e Austrália, mas já escrevi sobre esse problema em outros países e regimes religiosos em outros lugares (Jeffreys, 2012a).

A origem do direito do sexo masculino no casamento

As feministas do século XIX escreveram poderosamente sobre como o status das mulheres casadas se assemelhava ao dos escravos (Thompson e Wheeler, 1970, publicado originalmente em 1825). Na lei, as mulheres não tinham o direito de recusar o uso sexual, não tinham direito a qualquer liberdade de movimento sem o consentimento de seus maridos, a possuir dinheiro ou ferramentas de uma profissão ou à guarda dos filhos. Como diz Carole Pateman:

Até o final do século XIX, a posição legal e civil de uma esposa assemelhava-se à de uma escrava. Pela doutrina legal comum do casamento, uma esposa, como um escravo, estava civilmente morta (Pateman, 1988: 119).

Os direitos sexuais do marido eram chamados de “direitos conjugais” na lei. Eles foram descritos pelo jurista Lord Hale em 1778, 

“o marido não pode ser culpado de estupro cometido por si mesmo em sua esposa legítima, pois pelo consentimento e contrato matrimonial, a esposa se deu a ele neste sentido” (citado em Pateman, Ibid: 123).

De fato, como explica Pateman, até 1884, uma esposa poderia ser presa por recusar os direitos conjugais do marido. Ela afirma que 

“O direito conjugal do marido é o exemplo mais claro da maneira pela qual a origem moderna do direito sexual como direito político é traduzida pelo contrato de casamento ao direito de cada membro da fraternidade na vida cotidiana” (Ibid: 123).

William Thompson e Anna Wheeler, em seu manifesto feminista de 1825, procuraram explicar a condição de escravas das mulheres no casamento e como isso diferia de outras formas de escravidão e outras formas de trabalho, dizendo que os desejos sexuais dos homens os levavam a instituir “estabelecimentos de reprodução isolados, chamados de vida conjugal”, em vez de usar as mulheres apenas como trabalhadoras (Ibid: 123). A penetração vaginal de uma mulher é tão central para o casamento heterossexual, por exemplo, que a não consumação, como é chamada, ainda é uma base para a anulação (GOV.UK n.d., acessado em 26 de abril de 2021).

Feministas fizeram campanha nas décadas de 1970 e 1980 para remover da lei a isenção de estupro conjugal, que dizia que um marido não poderia estuprar sua esposa. Tiveram sucesso no Reino Unido em 1992 como resultado de uma decisão da Câmara dos Lordes, em vez de uma mudança na lei (Hart, 2014). A isenção de estupro conjugal persistiu em metade dos países da Commonwealth Britânica até 2019, bem como em muitos outros países do mundo (Sisters for Change, 2019).

A partir desse momento, tanto na lei quanto na teoria, as mulheres no Reino Unido, que supostamente teriam sido libertadas pela revolução sexual, deveriam ser capazes de rejeitar o sexo indesejado nos relacionamentos. Mas, como veremos neste capítulo, o sexo indesejado continua a ser um problema muito sério e a erotização da igualdade não ocorreu. O que mudou é que as práticas mais abusivas e assassinas que foram popularizadas pelos movimentos de direitos sexuais dos homens e pela indústria do sexo foram disseminadas no sexo cotidiano de tal forma que as mulheres estão sendo extremamente pressionadas pelos homens  para permitir práticas como  sexo anal e estrangulamento em seus corpos. A marcha progressiva da ‘revolução sexual’ levou a uma situação em que muitas mulheres e jovens adolescentes em relações heterossexuais estão experimentando sérias dores e humilhações.

A heterossexualidade compulsória

O sexo só pode ser entendido como voluntário se as mulheres tiverem uma escolha real quanto a entrar em relacionamentos heterossexuais. As teóricas feministas lésbicas questionaram o grau de escolha que as mulheres são capazes de exercer e argumentaram que a heterossexualidade é uma instituição política que é social e politicamente construída e imposta às mulheres (Hawthorne, 1976/2019; Rich, 1980; Wilkinson e Kitzinger, 1993; Jeffreys, 1990). Ela é, como explicou Adrienne Rich,  “compulsória” (Rich, 1980). Essas teóricas argumentam que a heterossexualidade não é simplesmente um direcionamento do desejo sexual para o sexo oposto, uma orientação sexual. Em vez disso, é a base institucional da dominação masculina porque permite a extração de muitas formas de trabalho não remunerado para os homens: sexual, reprodutivo, emocional e trabalho doméstico. É funcional à dominação masculina também, mantendo mulheres individuais sob o controle de homens individuais e separadas umas das outras. É, dizem elas, imposta em vez de livremente escolhida. As alternativas, lesbianismo ou solteirice, são difamadas, punidas ou tornadas invisíveis ao serem excluídas da cultura e da sociedade. O movimento de libertação lésbica dos anos 1970 e 1980 permitiu que muitas mulheres deixassem a heterossexualidade e se tornassem lésbicas. Por várias décadas, uma cultura, teoria e comunidade positivamente lésbica existiram nas quais as lésbicas podiam encontrar irmandade e força  (Jeffreys, 2018a). Essa cultura e comunidade não existem mais para apoiar as mulheres no orgulho de serem lésbicas e o lesbianismo agora é comumente entendido como o resultado da biologia, o que não permite escolha (Ibid).

Durante a maior parte da história recente no ocidente, as mulheres foram obrigadas a entrar em casamentos ou outras formas de relacionamentos heterossexuais por uma necessidade econômica urgente. Embora o imperativo financeiro não seja mais tão poderoso, há muitas forças que encaminham as mulheres para a instituição da heterossexualidade, como ser criada em famílias heterossexuais onde qualquer alternativa provavelmente será excluída ou rejeitada, sistemas de educação que não mencionam a história, cultura ou existência de lésbicas, e a ausência de lesbianismo aberto entre professoras e outros possíveis modelos. As vantagens dos relacionamentos lésbicos não são divulgadas na educação sexual para crianças, como uma maior chance de compartilhamento de cuidados infantis e tarefas domésticas, evitando a violência masculina em casa, a falta de necessidade de contracepção, a maior possibilidade de prazer sexual com outras mulheres que entendem os corpos das mulheres e não são dedicadas apenas à sua própria satisfação. Os romances lésbicos não são estudados. Existem novas forças envolvidas em fazer o lesbianismo desaparecer e fazer com que uma nova geração de mulheres jovens evite a palavra lésbica (Morris, 2017). Por exemplo, jovens lésbicas estão sendo medicinalmente modificadas ao serem identificadas como meninos pelos médicos com a conivência do sistema escolar. Elas estão passando por uma ‘terapia de conversão’, como veremos em um capítulo posterior (Jeffreys, 2018a).

Este capítulo pressupõe que a heterossexualidade é uma instituição em que as mulheres não estão em posição de escolher livremente se desejam entrar ou rejeitar. Considerando que todas as forças e punições muito significativas das sociedades masculinas dominantes se juntam para forçar as mulheres à heterossexualidade, não é de surpreender que o sexo que ocorre nela muitas vezes não seja escolhido livremente ou adequado aos interesses das mulheres, mas imposto pela força. Ele ocorre, proeminentemente, em uma relação de poder.

Sexo pênis na vagina (piv)

O casamento é legalmente baseado na entrada do pênis na vagina. Essa forma de sexo, no entanto, tem muitas contra-indicações para as mulheres e poucas vantagens. As teóricas e pesquisadoras feministas postularam que o coito não é adequado para o prazer sexual das mulheres e apresenta problemas para a saúde e segurança das mulheres (Jeffreys, 1990; Dworkin, 1987). Uma pesquisa no Reino Unido descobriu que 80% das mulheres não conseguiam atingir o orgasmo apenas com essa prática (Delvin e Webber, 2017).

No entanto, o que Alex Comfort chamou de “o bom e velho casamento” ainda é a prática preferida dos homens e comumente vista como a essência do sexo. Pesquisadoras feministas têm procurado estabelecer por que o sexo com pênis na vagina sobreviveu como a forma primária e “natural” de se engajar em relações heterossexuais, apesar do fato de ser inadequado para o prazer das mulheres, requerer a tecnologização do corpo com contracepção, e ter o risco de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Elas examinaram as diferentes formas de força envolvidas para garantir que muitas mulheres deem aos homens acesso a seus corpos, por mais relutantes que estejam. Um estudo procurou entender por que coito continuou a ser o principal ato sexual, apesar de

os efeitos colaterais das formas mais eficazes de contracepção e das implicações sociais, psicológicas e de saúde da gravidez não planejada e indesejada ou do aborto

(Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 36).

Como explicam esses pesquisadores, a vagina é 

apresentada como a melhor parte do corpo da mulher para atender às necessidades sexuais do pênis. É um encaixe que foi ‘projetado’, os órgãos são ‘construídos para se prenderem uns aos outros’, e a prática é vista como mais natural do que o uso da boca ou da mão de uma mulher

(Ibid: 41).

A maioria das razões dadas pelas quais o sexo com pênis na vagina é natural são, dizem eles, biológicas ou procriativas. Tais razões não se relacionam, é claro, com o prazer sexual das mulheres. A pesquisa reconhece que muitas mulheres não têm escolha sobre permitir ou não o sexo na vagina por causa da violência e do controle masculino, mas se concentra nas forças mais sutis que induzem as mulheres a permitir que seus corpos sejam usados dessa maneira, “nosso interesse aqui é em entender mais sobre as normas que regem as relações sexuais em situações que não parecem envolver coerção direta” (Ibid: 37).

O modelo de consentimento

O sexo cotidiano que pode ser profundamente indesejado pelas mulheres, ou mesmo doloroso e angustiante, é justificado pela noção de ‘consentimento’. A própria ideia de que os encontros sexuais requerem ‘consentimento’, em vez de serem experiências de prazer mutuamente desejadas, torna clara a dinâmica de poder da heterossexualidade. Os homens heterossexuais não têm problema em saber se consentiram o uso de seus corpos por mulheres, porque a exigência de submeter seus corpos ao prazer de outro não existe para eles. No sexo heterossexual, espera-se que o homem inicie o sexo e que a mulher concorde ou discorde de seus avanços e demandas por meio do mecanismo de consentimento. Supõe-se que iniciação e consentimento sejam iguais, mas na verdade representam os comportamentos de dominação e submissão. Catharine MacKinnon rejeita a ideia de que o consentimento forneça qualquer tipo de proteção ou vantagem para as mulheres. Como ela explica:

O consentimento é supostamente a forma das mulheres controlarem a relação sexual, diferente mas igual à prática da iniciativa masculina. O homem propõe, a mulher dispõe. Até mesmo o ideal não é recíproco… esse modelo não imagina uma situação em que a mulher tenha controle ou escolhas a fazer.

(MacKinnon, 1989: 174)

Fora do contexto do sexo, o consentimento é o mecanismo que justifica a aplicação de um procedimento que pode colocar em risco a saúde e a vida; um comportamento que é arriscado. Assim, os formulários de consentimento são usados regularmente para cirurgias ou para práticas em que há risco de divulgação de informações confidenciais. O consentimento não é entendido como algo que ocorre entre iguais, mas como indício de desigualdade. Apesar disso, como explica Carole Pateman

[As] relações mais íntimas das mulheres com os homens são regidas pelo consentimento; as mulheres consentem com o casamento, e a relação sexual sem o consentimento da mulher constitui crime de estupro

(Pateman, 1989: 72).

Expliquei o problema com o conceito em 1993:

A ideia de consentimento implica em um modelo de sexualidade em que uma pessoa, geralmente homem, usa o corpo de outra pessoa que não está necessariamente interessada sexualmente e possivelmente relutante e angustiada, como um recurso sexual. É um modelo dominante/submisso e ativo/passivo… O consentimento é uma ferramenta para negociar a desigualdade nas relações heterossexuais. Espera-se que as mulheres tenham seus corpos usados, mas a ideia de consentimento faz com que esse uso e abuso pareçam justos e justificados.

(Jeffreys, 1993: 178)

O conceito de consentimento molda o sexo heterossexual. Espera-se que a mulher disponibilize seu corpo sem objeções para que um homem possa usá-lo para se satisfazer, mas seu próprio prazer e até mesmo sua presença psicológica não são necessários. Ela pode, como a literatura sexológica sugere, estar com a cabeça inteiramente em outro lugar. Ela pode estar lendo um livro durante o procedimento ou estar pintando as unhas dos pés (Jeffreys, 1990).

Um modelo de sexualidade que se baseia na noção de que uma pessoa tem a iniciativa e a outra pode apenas dar ou negar consentimento é profundamente desigual e simplesmente replica as relações de poder social de dominação masculina. No entanto, o conceito de consentimento forma a base das leis internacionais sobre estupro, agressão sexual e crimes sexuais contra menores de idade. A lei tanto replica esse modelo de desigualdade sexual quanto o promove e molda. A legislação atual do Reino Unido sobre estupro, a Lei de Ofensas Sexuais de 2003, é baseada em um modelo de iniciação/consentimento (Legislation.gov.uk, 2003). Na Seção 1, afirma que:

Uma pessoa (A) comete um delito se –

(a) ele penetra intencionalmente a vagina, o ânus ou a boca de outra pessoa (B) com seu pênis, e

(b) B não consente com a penetração, e 

(c) A não tem motivo razoável para acreditar que B consente.

Um outro problema com a legislação do Reino Unido é que ela continua a tradição dentro da dominação masculina de definir se uma mulher foi estuprada de acordo com o que acontece na cabeça de um homem, incluindo uma cláusula de ‘motivo razoável para acreditar’. A legislação revela a influência de um movimento feminista ao acrescentar a necessidade por parte do homem de tentar averiguar se a mulher que ele penetrou estava consentindo:

(2) Se uma convicção é justificável deve ser determinada tendo em conta todas as circunstâncias, incluindo quaisquer passos que A tomou para verificar se B consente.

O conceito não apenas mede o que é um estupro muito mais pelo que um homem considera do que pelo que uma mulher experimentou, mas também define sexo aceitável como o que um homem faz a uma mulher, que pode ser totalmente passiva e desejar estar em outro lugar. Os sentimentos dela não entram na definição.

Fabricando o consentimento

As meninas e mulheres, membras da casta sexual subordinada, alvos da iniciativa sexual de membros da casta sexual superior, supostamente têm o direito de recusar. Mas esse direito de recusar ou aceitar o consentimento de uma mulher é construído a partir de sua posição nas relações de poder da dominação masculina. São muitas as razões pelas quais o consentimento de uma menina ou mulher não é livre e todas se relacionam com sua posição subordinada. Elas incluem como meninas e mulheres são treinadas para se curvarem aos homens, para não deixá-los irritados e para não se expressarem de forma assertiva perto de homens. Algumas das razões tradicionais pelas quais as mulheres não são iguais em relacionamentos heterossexuais podem ter sido um pouco amenizadas no Reino Unido nos últimos cinquenta anos, com o resultado de que as mulheres agora têm muito mais independência econômica. Muitas outras, no entanto, permanecem, como as formas pelas quais os homens mantêm o controle por meio da violência, ameaça ou as mais variadas formas de coerção. Na década de 1980, pesquisadoras feministas formularam um vasto entendimento das forças que estão envolvidas na construção do que a lei penal e os perpetradores masculinos entendem como consentimento, ou seja, a ausência de uma recusa direta por parte de uma mulher para permitir que seu corpo seja usado como um receptáculo.

O primeiro exemplo desse tipo de trabalho é a pesquisa de Diana Russell em seu livro de 1982, Rape in Marriage. Ela descobriu que, nos EUA, o estupro de esposas com força ou ameaça de violência era comum:

Em meu estudo financiado pelo governo federal… 14 por cento das mulheres que se casaram uma vez ou mais relataram ter sido estupradas por seus maridos

(Russell, 1982/1989: XXII).

É importante ressaltar que ela também prestou atenção às maneiras pelas quais as esposas foram forçadas a aceitar o acesso sexual de seus maridos, o que não se encaixava na definição usual de estupro e que as próprias esposas viam como consensual. As muitas razões que as mulheres deram para terem que ‘consentir’ podem ser resumidas em algumas categorias. Uma delas era que as mulheres sentiam que tinham que permitir o acesso sexual de seus maridos porque esse era seu dever de esposa, parte do contrato. Como uma esposa explicou:

Quando estou dormindo, não quero ser incomodada. Ele não me forçou, mas se eu não quisesse, ele faria de qualquer forma. Eu não gostei. Eu disse apenas ‘pode fazer, mas eu não estou no clima’

(Ibid: 82).

Outra queria agradar o marido:

Às vezes, meu marido quer fazer coisas que eu não quero fazer ou que são desconfortáveis para mim. Certas posições são desconfortáveis ou cansativas para mim, como ficar de pé. Não é forçado como estupro, mas às vezes, quando digo não, ele nunca me força, mas talvez eu faça mesmo assim para agradá-lo

(Ibid: 82).

Outro motivo era evitar discussões e a raiva do marido:

Eu simplesmente não queria fazer e ele queria, então fizemos sexo. Eu disse que não queria e não ajudei o sexo a acontecer, mas por outro lado, não fui forçada. Isso provavelmente acontece muito com pessoas casadas. (Você se sentiu forçada?) Sim, me senti forçada a fazer isso. Não fisicamente. Mas você não pode simplesmente começar a brigar com seu marido. Não estávamos nos comunicando bem. Era a noite de nosso casamento e eu estava muito, muito bêbada

(Ibid: 83).

A raiva de um marido podia ser expressa em retraimento emocional e as mulheres faziam questão de evitar isso:

Houve um número razoável (de experiências sexuais indesejadas) um ano antes de nos separarmos. Parei de querer fazer amor, e era uma pressão constante. (Força física?) Não, não houve coerção física; foi apenas retraimento emocional ou nenhum contato físico

(Ibid: 77).

Outra forma de força que o marido poderia exercer era a ameaça de infidelidade:

Eu estava cansada. Eu estava trabalhando muito. Eu queria dormir. Como ele é meu marido, não pude dizer não. Eu nunca disse ‘estou com dor de cabeça’ como as americanas, porque senão ele iria procurar em outro lugar

(Ibid: 83).

No final do século XX, as pesquisas feministas como a de Russell criaram uma compreensão das dinâmicas de poder nas relações heterossexuais e contribuíram para o sucesso de campanhas feministas em muitos países para criminalizar o estupro marital. Mas outras forças estavam trabalhando ao mesmo tempo para consolidar esse sexo de dominação masculina, incluindo a liberação das indústrias de prostituição e pornografia, a promoção de parafilias como BDSM (Bondage, Disciplina, Sadomasoquismo) e o apoio a essas práticas pelos profissionais da terapia sexual. A compreensão feminista que estava sendo construída com tanto cuidado não era páreo para essas forças. Apesar de toda a excelente pesquisa e campanha em torno da violência sexual, os muitos sucessos do Movimento de Libertação das Mulheres não mudaram a maneira como as mulheres eram forçadas a “consentir” ao sexo. O sexo como um direito legal do marido deu lugar ao sexo por “consentimento”.

A derrota do trabalho feminista ficou clara na pesquisa de Lynn Phillips com estudantes universitárias (Phillips, 2000). Ela entrevistou jovens estudantes, de 19 a 21 anos, que fizeram um curso de estudos feministas e aprenderam sobre a violência masculina. Se alguma mulher estivesse em posição de lutar contra o estupro, deveriam ser essas estudantes que estavam bem informadas e preparadas, mas elas sofreram estupros que não podiam nomear e muito sexo abusivo, violento e doloroso que não conseguiam evitar em seus relacionamentos sexuais cotidianos. Um aspecto importante da construção da sexualidade feminina que Lynn Phillips descobriu em suas entrevistas foi que as jovens praticavam atos sexuais com homens se guiando detalhadamente pelo que achavam que seus parceiros desejavam, e não por qualquer coisa que elas estivessem sentindo:

As participantes relataram repetidamente que suas decisões sobre como se apresentar fisicamente, como e quando fazer ruídos e como mover seus corpos foram determinadas muito menos por suas próprias sensações corporais do que por seus cálculos mentais do que os homens gostariam que eles fizessem

(Phillips , 2000: 108).

As universitárias descreveram em detalhes para Phillips as estratégias que usavam para sobreviver a experiências sexuais muito insatisfatórias com homens abusivos e indiferentes. Algumas estratégias foram adotadas para que o homem parasse sem ela precisar mostrar que não gostava do que ele estava fazendo.

Às vezes, demora demais… Então, eventualmente, finjo que não consigo manter os olhos abertos e que gostaria de poder, porque estou amando muito isso. Assim eu não firo os sentimentos dele… Dessa forma, eu não pareço frígida ou muito esquisita

(Ibid: 146).

Uma estudante fez um relato sobre quando estava sendo usada sexualmente, ela não queria transar, estava sentindo dor, ela chorou e ele não notou:

Então eu fiquei deitada embaixo dele, chorando, enquanto ele fazia. Eu não sentia que poderia dizer não, mas esperei que ele me visse chorando e simplesmente parasse, não sei, por culpa ou preocupação ou algo assim, talvez até pena. Ele não parou, claro. Ele simplesmente continuou e depois disse: ‘Você não gostou?’ E eu disse: ‘Sim, foi bom’

(Ibid: 145).

Um motivo pelo qual as alunas se sentiram compelidas a atender os homens foi o fato de que eles poderiam se tornar violentos se seus avanços fossem rejeitados:

Alguns caras ficam furiosos quando seus egos masculinos são feridos. Eu simplesmente não posso correr esse risco

(Ibid: 139).

Phillips descobriu que as universitárias reformulavam sua experiência sexual para que não tivessem que pensar em si mesmas como tendo sido estupradas, embora o que elas descrevessem muitas vezes se encaixasse na definição legal de agressão sexual. Ela diz que das 27 mulheres que descreveram experiências que envolveram violência e coerção, 25 delas – ou 93 por cento – não chamavam nenhuma de suas experiências de abuso ou vitimização. Em vez disso, recorreram a várias formas de assumir, elas mesmas, a responsabilidade pelo que os homens lhes fizeram ou, pelo menos, de sobreviver à violência. Elas fizeram muito esforço para ter uma resposta sexual ao serem usadas sexualmente, porque isso significaria que não foi estupro. Um jovem de 19 anos explicou:

Se eu pudesse apenas encontrar uma maneira de me excitar, saberia que estava envolvida e isso não seria realmente como um estupro

(Ibid: 144).

Uma jovem de 21 anos disse quase a mesma coisa:

Eu estava pensando que, se eu conseguisse me excitar, seria consensual, como uma boa experiência

mas isso foi em uma situação em que o homem a forçou violentamente à submissão:

Eu me envolvi em uma situação em que fui para o apartamento deste cara, e estávamos nos beijando e tal, mas eu não queria fazer sexo, mas ele sim. Foi uma luta longa e tudo mais. E ele me bateu e tudo, e então eu pensei: ‘Ok, tudo bem’. Eu cedi, sabe, porque se eu realmente tentasse lutar e acabasse sendo espancada, o que eu diria para a minha mãe?

(Ibid: 143).

A mesma mulher aprendeu uma técnica quando criança para fazer um homem que a estava assediando sexualmente se apressar e acabar logo com isso:

Eu aprendi bem cedo, por volta dos treze anos, eu acho, a fazer o boquete perfeito. Eu também sei fazer a punheta perfeita, para que eu possa tirar os homens de cima de mim e acabar logo com isso. Dessa forma, estou totalmente no controle. Porque uma vez que eles gozem, então você está livre… Com sorte, se você jogar as cartas certas, eles simplesmente irão cair no sono

(Ibid: 141).

Ela aprendeu a amenizar as piores condições do uso sexual que fazem do seu corpo, mas não foi capaz de recusar.

As experiências de violência sexual que as mulheres se recusaram a ver como estupro incluíram a seguinte situação em que uma mulher foi asfixiada pela mão de um homem e sofreu fortes dores quando foi penetrada pela primeira vez:

Eu pensei, estou pronta para fazer isso… Ele estava, tipo, me ignorando completamente, e nós não estávamos mais nos agarrando (ela chora e soluça). Ele estava apenas enfiando o pau dentro de mim, e tampando a minha boca com a mão, então eu não podia falar nada… Só posso dizer que nunca senti tanta dor na minha vida… Depois que ele gozou, o que não demorou muito, graças a Deus, ele apenas rolou para o lado, parecendo tão orgulhoso de si mesmo. Ele me disse: ‘Você quer que eu te acompanhe até sua casa?’

(Ibidem: 94).

Outra mulher descreveu uma agressão sexual dolorosa que ela se recusou a chamar de estupro:

Eu penso nisso principalmente como uma noite muito ruim. Se você está me perguntando se eu acho que fui estuprada, não, eu realmente não chamaria isso assim. Quero dizer, fui forçada, sim, e me machuquei, e as coisas não saíram como eu queria, mas eu estava no carro com ele. Foi tudo muito complicado. Quero dizer, eu estava lá, poderia ter escolhido não ir. Então não, eu realmente não chamo isso de estupro.

(Ibid: 154).

As jovens que sofrem essas agressões sexuais aprenderam a crítica feminista da violência masculina em seus cursos feministas, mas, no caso dessa mulher, o ensino permitiu que ela se diferenciasse das mulheres que ela via como verdadeiras vítimas, em vez de se ver como uma:

Eu só agradeço a Deus por não ter passado por algo tão extremo quanto as mulheres que são abusadas… Nós estudamos isso nas aulas de feminismo. Às vezes eu apanhava e era humilhada pelo meu namorado, mas não era espancada como muitas mulheres são.

(Ibid: 158)

Uma razão dada para negar o estupro foi que admitir ser uma vítima era humilhante:

Se eu me considerasse uma vítima, seria como se eu fosse apenas uma garotinha burra que perdeu a cabeça. Na época, eu queria provar para mim mesma o quão adulta eu era, não queria nem pensar que poderia ter sofrido abuso … porque então eu seria ingênua e estúpida.

(Ibid: 95)

Em outro estudo, as pesquisadoras feministas descobriram que a principal razão pela qual as mulheres eram usadas sexualmente quando não queriam era a pressão social para agradar aos homens ou para não parecer frígida. Uma mulher falou sobre se sentir forçada a dizer sim por medo de ser “rotulada e julgada (como frígida) se dissesse ‘não'” (Gavey, McPhillips e Braun, 1999: 43). “É isso que devo fazer, é isso que preciso fazer para manter o respeito ou a amizade deles.” Outra forma de pressão que encontraram em suas entrevistas foi a necessidade das mulheres de “agradar sexualmente seus homens”, pelo menos estando sexualmente ‘disponível’ ou enfrentar a “consequência previsível de que ele procurará em outro lugar para ter suas ‘necessidades sexuais’ atendidas”. As pesquisadoras comentam:

Se o papel da mulher nas relações heterossexuais é construído em torno da necessidade de agradar seus parceiros masculinos, então a relação sexual pode não ser uma escolha real

(Ibid: 48).

É provável que todas as experiências angustiantes aqui descritas tenham sido vistas pelas mulheres como ‘consensuais’.

O ensino do consentimento

A falsa ideia de que o ‘consentimento’ indica a atividade sexual desejada está por trás do ‘treinamento de consentimento’, que é a solução preferida por governos, universidades e outras instituições para lidar com o problema do assédio sexual. No treinamento de consentimento, homens e mulheres aprendem a buscar e dar um consentimento inequívoco antes que a atividade sexual ocorra. O governo do Reino Unido, por exemplo, lançou uma campanha “para ajudar a combater o estupro, educando jovens homens sobre a necessidade de consentimento antes do sexo” em 2006. O jornal The Guardian citou uma porta-voz do Ministério do Interior dizendo: “Dar consentimento é uma ação, não uma omissão, e cabe a todos garantir que o parceiro concorde com a atividade sexual” (Travis, 2006). Mas, é claro, embora o ‘consentimento’ possa ser ativo, a mulher que consente pode se sentir forçada a concordar em ser usada passivamente ou a simular entusiasmo. O conceito de consentimento usado por tais campanhas é notavelmente simplista. A União Nacional dos Estudantes (NUS) do Reino Unido lançou uma campanha com objetivo semelhante em 2015, chamada Eu amo o consentimento:

A campanha das mulheres da NUS e a Sexpression UK se uniram para criar um programa educacional de consentimento que visa facilitar conversas e campanhas positivas, informadas e inclusivas sobre consentimento em universidades e faculdades em todo o Reino Unido.

A definição de consentimento do programa é: “Uma pessoa consente se concorda por escolha própria e tem a liberdade e capacidade de fazer essa escolha” (NUS, 2015, ênfase no original). O treinamento de consentimento é onipresente, mas falho pois assume a iniciativa sexual masculina e que as relações entre homens e mulheres são baseadas na igualdade, em vez das relações de poder.

Uma notável pesquisa de Celia Kitzinger e Hannah Frith, de 1999, procura mostrar por que o treinamento de consentimento pode não funcionar (Kitzinger e Frith, 1999). Elas apontam que a “teoria da má comunicação”, que fundamenta esses programas, não descreve com precisão o que acontece entre homens e mulheres na atividade sexual. Essa teoria acredita que as mulheres não são suficientemente incisivas ao expressar seu “não” ao sexo e que os homens são facilmente confundidos em pensar que podem prosseguir quando uma mulher não deseja fazê-lo. Elas explicam que

o ensino de “habilidades de recusa” é comum a muitos programas de prevenção de estupro em encontros, treinamentos de assertividade e habilidades sociais para jovens mulheres. A suposição subjacente a esses programas é que as jovens mulheres acham difícil recusar a atividade sexual indesejada e um objetivo comum é ensinar as mulheres a dizer “não”, de forma clara, direta e sem desculpas

(Kitzinger e Frith, 1999: 293).

Boas pesquisas feministas qualitativas mostram as falhas na teoria da má comunicação, apontando que formas complexas de entendimento social estão em jogo quando as pessoas tomam essas decisões, que podem, na verdade, ser prejudicadas pela exigência de que as mulheres rejeitem de modo duro e explícito (Beres, 2020). O problema mais grave com essa teoria é que ela culpa as mulheres pela violência sexual que sofrem, sugerindo que tudo o que elas precisam fazer para evitar a agressão é tornar sua recusa mais clara. Pode ser por essa razão que o treinamento de consentimento é o preferido como resposta à violência sexual, porque culpa as vítimas, as mulheres, sem exigir nenhuma mudança no comportamento dos perpetradores, os homens.

Kitzinger e Frith utilizaram a análise da conversa (AC) para examinar a maneira como os jovens falam sobre consentimento. Elas apontam que

os resultados empíricos da AC demonstram que as recusas são interações conversacionais complexas e finamente organizadas, e não são adequadamente resumidas pelo conselho de apenas dizer não

(Kitzinger e Frith, 1999:294).

Elas observam que em interações cotidianas, tanto homens quanto mulheres não usam recusas diretas quando solicitados a fazer algo, porque isso é ofensivo. Eles tendem a usar atrasos, hesitações e desculpas em vez disso. A análise da conversa depende da atenção cuidadosa aos pequenos detalhes da fala, como breves pausas, hesitações, falsos começos e autocorreções, bem como “paliativos” – frases usadas para “acalmar” um homem para que ele não se sinta tão ofendido. Além disso, eles apontam que dizer simplesmente “não” sem prestar atenção às regras sociais que geralmente se aplicam em todas as situações pode colocar as mulheres em perigo, causando uma reação de raiva em um homem que interpreta a recusa como grosseria. A teoria da má comunicação oferece uma forma de defesa para estupradores no tribunal: eles podem argumentar que não entenderam porque a mulher não sinalizou sua falta de consentimento com bastante clareza. Mas isso não ajuda as mulheres.

Kitzinger e Frith explicam que “apenas dizer não” é visto como grosseria e “as mulheres jovens sabem disso” (Ibid: 305). Os programas de prevenção de estupro que insistem em ‘apenas dizer não’, ‘são profundamente problemáticos na medida em que ignoram e anulam formas culturalmente normativas de indicar recusa’ (Ibid). A evidência, dizem elas, ‘é que as pessoas geralmente ouvem recusas sem que a palavra ‘não’ seja necessariamente pronunciada” (Ibid). Elas concluem que “a raiz do problema não é que os homens não entendam as recusas sexuais, mas que eles não gostam delas” (Ibid: 310). Elas fundamentam essa ideia com pesquisas que registram as reações de meninos adolescentes e homens jovens que foram questionados sobre quais seriam suas reações se as mulheres os recusassem. A agressividade sexual (que apresentavam) era bastante extrema”. Elas concluíram que “o problema da coerção sexual não pode ser solucionado pela mudança do modo com que as mulheres falam” (Ibid: 311).

A diferença do desejo sexual entre homens e mulheres

A noção de ‘consentimento’ é necessária por causa do que tem sido chamado pelos sexólogos de ‘diferença do desejo’. Talvez não fosse necessário se não houvesse um problema de imposição de algo indesejado a parceiros relutantes, se as mulheres estivessem tão entusiasmadas em serem penetradas quanto os homens estavam em penetrá-las. Sexólogos no início do século XX buscaram descrever, quantificar e curar o que eles viam como o principal impedimento ao direito sexual masculino – a falta de interesse ou recusa das mulheres em responder com entusiasmo suficiente a serem penetradas pelos homens. Como vimos no Capítulo 1, eles inventaram uma série de termos para descrever o problema enquanto buscavam por uma solução.

A resistência das mulheres era vista como política e a derrota dessa resistência era a principal tarefa da ciência do sexo e da prática da terapia sexual ao longo do século XX. As demandas importunas dos homens, por outro lado, eram vistas como naturais e não eram questionadas. No século XXI, sexólogos inventaram um novo termo para descrever o que antes era chamado de frigidez, “diferença de desejo”. A “diferença” é atribuída às mulheres. Os homens não precisam mudar, mas a falta de interesse das mulheres deve ser medicalizada e tratada. As mulheres não conseguem simplesmente rejeitar o sexo que não desejam, porque o direito sexual masculino exige que elas concedam acesso.

Na pesquisa sobre “Negociação de diferenças de desejo sexual para mulheres em relacionamentos de parceria”, uma entrevistada explica que a “negociação” é um problema relacionado ao direito sexual masculino, já que as parceiras femininas não fazem as mesmas exigências. Ela também explica que o tipo de pressão que os homens colocam sobre as mulheres para que elas permitam o uso de seus corpos não existe em relacionamentos lésbicos:

Eu achei que com os caras [o sexo] é algo que eles querem imediatamente, mas nas minhas experiências com as garotas eu sinto que não há pressão alguma. Com homens, sempre senti essa pressão para ter sexo, enquanto com minha namorada nunca tive essa pressão

(Fahs, Swank e Shambe, 2020:233).

As pesquisadoras concluem que as relações de poder de dominação masculina persistem dentro de relacionamentos heterossexuais, apesar dos avanços que o movimento feminista alcançou para as mulheres na esfera pública. No âmbito privado/doméstico, eles afirmam que

as mulheres se sentem “presas” em estereótipos sexuais e dinâmicas de poder que não necessariamente as beneficiam, mesmo quando expressam consciência sobre o dano dessas normas. Em outras palavras, as mulheres continuam suportando o sexo pelo qual não sentem entusiasmo ou “aguentando” o sexo que parece chato ou pouco recíproco, mesmo quando estão obtendo progressos em outros aspectos de suas vidas

(Ibid: 236).

A forma como o que é chamado de “diferença de desejo” afeta as mulheres é explorada em uma pesquisa na qual dez mulheres em relacionamentos de longo prazo foram entrevistadas sobre sua prática sexual (Hayfield e Clarke, 2012). As autoras apontam que o problema com a forma como a falta de interesse das mulheres pelo sexo é apresentada é que ela vê a “falta de desejo” das mulheres como problemática em vez de apontar o “desejo excessivo” dos homens como um problema (Ibid: 68). Algumas das mulheres entrevistadas tinham desejo sexual por seus parceiros, mas a maioria não tinha. Uma comentou “Nunca me vi com um impulso sexual, muito raramente”, e outra afirmou “Não acho que eu tenha um impulso sexual muito alto”. Ambas essas mulheres e muitas das outras, explicam as pesquisadoras, tinham “pouco interesse em sexo”, mas todas sentiam que o interesse sexual era desejável e lamentavam a sua falta. As pesquisadoras apontam que há um imperativo coital que posiciona o sexo de pênis na vagina como essencial para os homens e algo em torno do qual as mulheres devem ajustar suas vidas. Isso é acompanhado por um “imperativo de orgasmo”. Como Gavey, McPhillips e Braun acima, elas apontam que a exigência de fazer sexo com pênis na vagina sobrepõe todo conhecimento de quão problemático pode ser para a saúde das mulheres, embora

a relação sexual com penetração vaginal apresenta riscos diretos (por exemplo, ISTs, HIV/AIDS, gravidez indesejada) e riscos indiretos (por exemplo, câncer cervical causado por ISTs específicas, efeitos colaterais de contraceptivos, consequências sociais e psicológicos de gravidez indesejada)

(Ibid: 71).

Elas expressam sua perplexidade de que

existe uma expectativa de que as mulheres (e homens) participem regularmente em um ato, mesmo quando ele tem o potencial de prejudicar sua saúde e bem-estar, e quando pode não ser prazeroso para ambas as partes envolvidas.

As entrevistadas explicaram que fizeram uma ‘escolha’ “de estar passivamente presentes no sexo para satisfazer as ‘necessidades’ de seus parceiros” (Ibid).

Terapia sexual

As duas principais forças envolvidas na construção do sexo cotidiano são a pornografia e a terapia sexual. Essas duas indústrias estão interligadas e abraçam os mesmos valores na aplicação do direito sexual masculino e da obediência feminina. Como resultado da “diferença do desejo”, é provável que muitas mulheres prefiram ler um bom livro ou terminar um quebra-cabeça em vez de buscar conexão sexual. Para obter seus direitos sexuais, então, os homens devem se impor às mulheres. É trabalho das mulheres negociar a iniciativa sexual dos homens, seja ao caminhar na rua ou no local de trabalho, onde pode ser chamado de “assédio sexual”, ou em relacionamentos. Quando essa iniciativa acontece em casa, nunca é chamada de assédio, embora haja muitas evidências de pesquisas feministas e literatura de aconselhamento sexual que as mulheres o experimentam dessa forma. As mulheres em relacionamentos heterossexuais provavelmente serão o objeto da iniciativa sexual dos homens e têm a escolha de cumprir ou pensar em uma razão para recusar. As dinâmicas de poder do sexo heterossexual são tais que simplesmente dizer que não estão com vontade não é suficiente. Uma tarefa central dos terapeutas sexuais é garantir que as mulheres reajam adequadamente às demandas sexuais dos homens em vez de buscar um hobby mais interessante.

Um exemplo do site de aconselhamento psicológico online, Psychcentral, ilustra isso bem. Em 2017, uma mulher escreveu ao site explicando que estava em um relacionamento de longo prazo com um homem, tinha quatro filhos e sua vida sexual tinha sido boa, mas

[Naquela noite] eu estava cansada e queria assistir um pouco de TV e ir dormir, meu namorado queria fazer sexo, e quando eu disse que não estava com vontade… ele ficou violento e tentou me dar um tapa na cara. E fez algum comentário do tipo ‘você vai pagar por isso’, brincando ou não

(Randle, 2019).

Ela diz que “fazem sexo com bastante frequência”, mas quando ela não “está a fim” uma vez ou outra, ele “fica bravo ou violento”. O conselho que ela recebe é simpático à situação do marido: “Ele fica bravo porque se sente rejeitado. O sexo aparentemente é muito importante para ele”. A terapeuta não demonstra preocupação com a violência e não dá conselhos sobre como a mulher pode manter a si mesma e seus filhos em segurança. Em vez disso, ela aconselha a mulher a satisfazer as demandas sexuais do homem, desde que sejam “razoáveis”: “Você tem que aprender a garantir o atendimento de uma quantidade razoável da necessidade dele, mas ele não pode esperar que você atenda 100% do desejo sexual dele”. A tarefa da terapia sexual aqui é claramente defender o direito sexual masculino. A terapia sexual é divulgada em revistas e livros para mulheres, bem como em tratamento individual. A terapeuta sexual mais conhecida na Austrália é Bettina Arndt.

A ‘diferença de desejo’ e mulheres idosas

Esse disciplinamento cruel das mulheres a serviço do direito sexual masculino fica claro no trabalho de Arndt, Os diários sexuais (Arndt, 2009). Arndt não é uma terapeuta sexual qualificada, mas isso não a impediu de exercer sua profissão de maneira proeminente na mídia australiana. Seu livro surgiu de sua preocupação de que muitas mulheres ficavam entediadas com o sexo em relacionamentos de longo prazo e rejeitavam as demandas de seus parceiros. Ela recrutou 98 casais na Austrália com mais de 60 anos para escrever diários nos quais descreviam se e quando o sexo acontecia e como eles, os homens e mulheres, se sentiam sobre isso. Ela embarcou em seu projeto porque estava preocupada que homens idosos sofriam com suas parceiras femininas limitando o que ela chama de “suprimento de sexo”, ou seja, não dando aos homens acesso às suas vaginas. Ela explica suas motivações da seguinte forma:

O que mais escuto é a respeito de negociar o suprimento de sexo. Como os casais lidam com a pressão do homem que deseja e espera enquanto tudo o que ela quer é a felicidade do sono ininterrupto? É um drama noturno que acontece em quartos de todos os lugares, a fonte de grande tensão e infelicidade

(Arndt, 2009: 2).

No entendimento dela, as mulheres são a oferta e podem abrir ou fechar o acesso em detrimento daqueles que razoavelmente esperam receber a oferta, os homens. Ela estava alarmada com a resistência das mulheres. No caso de um “casal em que o marido quer sexo duas vezes por dia”, ela explica que “eles estão fazendo algumas vezes por semana” e a mulher diz: “ainda prefiro ler um livro” (Ibid: 3). O direito das mulheres à autodeterminação não foi reconhecido pelo parceiro ou por Arndt.

Arndt descobriu que para as esposas, fornecer “suprimento” aos seus maridos quando não desejavam fazê-lo era uma experiência extremamente angustiante. Uma mulher escreveu:

Acho que ter relações sexuais quando você realmente não quer é a coisa mais horrível. Antes eu ainda respondia e até tinha orgasmos mesmo sem querer, mas agora não tenho mais nenhuma resposta, então é horrível. Por dentro, estou gritando para acabar rapidamente

(Ibid: 4).

Arndt aconselha as mulheres que elas devem “simplesmente fazer” quer queiram ou não. Outra mulher forneceu uma descrição gráfica de sua repulsa a esse conselho:

Odeio essa ideia! Por que diabos as mulheres deveriam simplesmente fazer isso quando não têm desejo? São elas que têm que lidar com o frio escorrendo entre as pernas, as infecções urinárias, as infecções fúngicas, a dor causada pela mucosa seca, o tédio de todo o processo… simplesmente fazer isso é um tipo de uma provação quando você tem mais de 40 anos e as secreções secaram.

Ela acrescentou: “Não há nada de errado comigo, então por que devo ser tratada como se eu fosse a anormal?… Por que os homens não podem ser tratados por sua libido mais alta?” (Ibid: 291).

Arndt expressa grande simpatia pelos homens cujas parceiras não desejam ser usadas para o sexo. Ela explica que: “Com meus diários sexuais, foram as histórias dos homens que realmente me chocaram” (Ibid: 5). Os homens realmente sofriam, ela disse, e “Eles ficam atordoados ao descobrir que suas necessidades são completamente ignoradas. Muitas vezes isso sai em um grito de raiva e decepção” (Ibid: 6). Eles esperam acesso contínuo e não acham que as mulheres devem ser capazes de mudar de ideia à medida que envelhecem. Como um homem coloca, “O que faz as mulheres pensarem que, na metade do jogo, podem mudar as regras para atender às suas próprias necessidades e esperar que o macho aceite?” (Ibid: 6). Arndt comenta: “É apenas quando você ouve os homens falando honestamente sobre o que é estar no lado receptor que você percebe o impacto do desprezo com o qual estamos tratando eles” (Ibid: 8). Se Arndt tivesse alguma simpatia pelas mulheres, ela poderia ver que o desprezo não vinha das esposas, mas sim dos maridos que estavam determinados a usar os corpos de suas esposas como ajudas de masturbação.

A razão para se chegar a essa situação lamentável, quando algumas mulheres achavam razoável poder recusar o acesso sexual dos homens aos seus corpos, segundo ela, foi o feminismo. Arndt afirma que:

O direito das mulheres de dizer ‘não’ foi consagrado em nossa história cultural há quase cinquenta anos. Mas simplesmente não funcionou para a vida sexual de um casal depender da frágil e fraca libido feminina. O direito de dizer ‘não’ precisa dar lugar a dizer ‘sim’ com mais frequência – desde que tanto homens quanto mulheres acabem desfrutando da experiência. A noção de que pode estar no melhor interesse das mulheres parar de racionar o sexo certamente vai causar controvérsia, mas este é um problema que merece atenção séria

(Ibid: 12).

Era simplesmente absurdo, segundo ela, que os parceiros fizessem outras coisas um pelo outro, como cozinhar pratos favoritos ou assistir a programas de TV que não gostavam, quando as mulheres não permitiam o acesso sexual de seus maridos: “Por que, então, somos tão mesquinhos quando se trata de ‘fazer amor’, que deveria ser a expressão máxima desse cuidado mútuo?” (Ibid: 14). Recusar o sexo era algo egoísta, ela considerava. Arndt lamenta o fato de que tantas das mulheres de seus diários não estavam dispostas a fazer o trabalho sexual de seduzir seus maridos com performances usando lingerie sexy, mesmo enquanto cozinhavam, e a razão, novamente, é que o feminismo as desencorajou: “De alguma forma, a sedução veio a ser vista como um ato anti-feminista, uma traição da igualdade bem diferente de outros gestos de cuidado” (Ibid: 17). A sedução se assemelha às técnicas de prostituição, projetadas para excitar os homens por meio das mulheres interpretando papéis.

O livro de Arndt é uma visão muito útil do que acontece nos casamentos de casais mais velhos. A questão que ela ilustra tão bem a partir das palavras das mulheres em seus diários é a maneira como as esposas se sentem quando os homens exercem sua iniciativa sexual indesejada, comportamento que poderia ser chamado de assédio sexual no relacionamento. O assédio sexual é um termo geralmente limitado ao comportamento dos homens em relação às mulheres em lugares públicos, como o local de trabalho ou a rua, e não se aplica ao que os parceiros masculinos fazem com as mulheres em suas casas. No entanto, a experiência para as mulheres que são assediadas, embora compreenda diferentes elementos relacionados ao fato de o perpetrador ser um parceiro, parece ser semelhante a outras formas da prática em seu desconforto e na angústia que causa. Em um caso, a esposa descreve sua angústia: “Esta manhã eu estava no chuveiro quando ele saiu para o trabalho; ele veio me beijar, o que foi adorável. Mas ele teve que me esfregar na vagina, o que me deixa louca!” O assédio sexual era frequente na cama e seu marido estava jubilante com isso, dizendo: “Às vezes, à noite, nos últimos anos, até comecei a deslizar minha mão em sua calcinha enquanto ela está dormindo e apenas toco seus pelos pubianos” (Ibid: 33). Outra mulher também descreve como perturbador o assédio sexual de seu marido: “Quando ele começa a mexer nas minhas partes íntimas, sinto vontade de chicoteá-lo com uma raquete de mosquitos!” (Ibid: 169).

O papel de Arndt em impor o direito ao sexo masculino em nome dos homens mais velhos foi recompensado pelo governo. Em janeiro de 2020, ela recebeu uma homenagem do Dia da Austrália, ostensivamente por “serviços à ‘equidade de gênero’ por meio da defesa dos homens” (Zhou, 2020).

A medicalização da “disfunção sexual”

A falta de interesse das mulheres em serem penetradas por um parceiro do sexo masculino e sua incapacidade de sentir prazer na atividade foram medicalizadas com a entrada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) do que era chamado de ‘disfunções sexuais’ (Mitchell et al., 2016). Os problemas descritos pelas mulheres neste capítulo são chamados de ‘transtornos’. Um deles é o ‘Transtorno Orgásmico Feminino’, o que significa que a mulher está doente porque não tem orgasmo durante o sexo com penetração vaginal, e outro é o ‘Transtorno de Interesse/Excitação Sexual Feminino’, que transforma a preferência de uma mulher por assistir televisão em um problema médico (Couples and Sexual Health Laboratory, 2016). A medicalização da falta de resposta ‘correta’ das mulheres às iniciativas sexuais dos homens fazia parte de uma medicalização geral da ‘disfunção sexual’ nos anos 90, que visava obter lucros para médicos e empresas farmacêuticas.

Inicialmente, o mercado-alvo consistia em homens que não tinham o tipo de ereção que lhes permitia se sentir adequadamente masculinos; mas a solução oferecida, o medicamento Viagra, criou ainda mais problemas para as mulheres. Leonore Tiefer, a sexóloga feminista dos EUA, explica que,

em 1998, em mais uma grande reviravolta, uma nova era da farmacologia sexual foi inaugurada com a aprovação governamental do Viagra, um medicamento para tratar a impotência que rapidamente alcançou níveis incríveis de reconhecimento global.

Tiefer diz que o desenvolvimento do Viagra foi resultado do falocentrismo, a noção de que ereções rígidas que permitissem a penetração de parceiras femininas simbolizavam a masculinidade (Tiefer, 2006a). O Viagra para homens foi lucrativo e exacerbou a ‘diferença de desejo’, à medida que os homens buscavam agir com sua nova potência nos corpos de suas parceiras femininas. As mulheres não desejantes foram transformadas em ‘pacientes’ que precisavam de tratamento (Tiefer, 2001). A solução foi seguir a criação do Viagra para homens com uma tentativa de criar um ‘Viagra’ feminino (Tiefer e Hartley, 2003).

Tiefer iniciou uma campanha composta por cientistas sociais feministas para combater a medicalização da sexualidade feminina em 2000 (Tiefer, 2006b). A campanha, intitulada A Nova Visão, era contra “A rápida incursão da influência da indústria farmacêutica na pesquisa sobre sexo e na educação profissional.” Seu objetivo, ela diz, era

expor as decepções e consequências do envolvimento da indústria na pesquisa sobre sexo, na educação sexual profissional e nos tratamentos sexuais, e gerar alternativas conceituais e práticas ao modelo médico prevalente da sexualidade

(Ibid).

A campanha continuou, com conferências e tentativas de proibir o uso de drogas que foram usadas para curar a ‘disfunção sexual’ das mulheres, geralmente formas de testosterona, proibidas para este uso até 2017, quando o site da campanha foi arquivado. As acadêmicas envolvidas na campanha A Nova Visão argumentaram firmemente que as supostas ‘disfunções sexuais’ das mulheres eram social e politicamente construídas. Elas disseram que o diagnóstico do DSM não reconhecia

aspectos relacionais da sexualidade feminina, que muitas vezes estão na raiz das satisfações e problemas sexuais, por exemplo, desejos por intimidade, desejos de agradar um parceiro ou, em alguns casos, desejos de evitar ofender, perder ou irritar um parceiro

(Working Group on a New View of Women’s Sexual Problems, 2017).

A campanha, no entanto, não deixa claro que o termo ‘relacional’ se refere a problemas que surgem das relações de poder. Ao se concentrar em como os problemas sexuais das mulheres podem ser resolvidos sem recorrer a drogas, eles prestam um grande serviço às mulheres, mas não questionam a suposição de que a falta de interesse das mulheres em satisfazer o direito sexual masculino constitui um problema. Eles não vão tão longe a ponto de sugerir que as demandas dos homens, em vez da resistência das mulheres, requerem tratamento.

Acadêmicas feministas questionaram a forma como a falta de orgasmo das mulheres durante a penetração é tratada na terapia sexual. Hannah Frith, por exemplo, argumenta que os orgasmos femininos não são “naturais”. Ela escreve sobre a construção social do orgasmo, isto é, a maneira como a realização do orgasmo, e especificamente o orgasmo vaginal, foi elevada a uma posição de importância primordial na literatura sobre a sexualidade feminina e na terapia sexual. Isso, segundo ela, simplesmente reproduz o modelo masculino de sexo e confirma que o sexo é e deve ser a penetração vaginal. Ela explica que as mulheres frequentemente têm que “trabalhar” para atingir o orgasmo, realizando os exercícios recomendados pelos terapeutas sexuais e se esforçando muito.

Efeitos do uso do Viagra masculino nas mulheres

A medicalização da sexualidade masculina através do desenvolvimento do Viagra criou um problema para as mulheres (Potts, Gavey, Grave e Vares, 2003). Este medicamento foi visto como totalmente positivo para os homens, pois curou a impotência e permitiu que homens, mesmo os mais velhos, se envolvessem em relações sexuais de penetração vaginal. A pesquisa sobre o Viagra e seus efeitos preocupou-se apenas com as vantagens que oferecia aos homens, como a oportunidade de se sentir mais “masculino” e dominante, e ignorou quaisquer efeitos negativos que possa ter em suas parceiras femininas. A pouca pesquisa feita por estudiosas feministas sobre as implicações do desejo renovado dos homens por acesso sexual às vaginas de suas esposas sugere que o medicamento constituiu, em muitos casos, um sério retrocesso. A pesquisa utilizando entrevistas com 27 mulheres cujos parceiros masculinos usavam Viagra revelou as muitas desvantagens que elas sofreram (Ibid). Para algumas mulheres mais velhas, o fato de seus maridos não poderem mais se envolver em relações sexuais de penetração vaginal foi um alívio, o que significava que elas não seriam mais importunadas e poderiam se dedicar a hobbies mais prazerosos. Para muitas, também, estar na pós-menopausa significava que as relações sexuais de penetração vaginal eram dolorosas ou desconfortáveis e elas não reagiam favoravelmente às demandas renovadas de seus maridos por acesso sexual.

As mulheres entrevistadas para este estudo falaram de seus maridos as incomodando para terem relações sexuais de penetração vaginal quando já estavam acostumadas a não ter que fazê-lo e preferiam, se ainda estivessem sendo sexuais com seus parceiros, relações sexuais não-vaginais que foram projetadas para lhes dar satisfação em vez de uma prática dedicada ao orgasmo masculino. As mulheres falaram do sofrimento que seus parceiros causaram a elas exigindo a penetração, porque eles tinham pago muito pelo medicamento e precisavam aproveitar a ereção antes que os efeitos desaparecessem. As mulheres mais velhas que estavam muito felizes por não terem mais que ser penetradas, falaram da dor que a retomada dessa prática lhes causou. Uma mulher de 60 anos disse: “Às vezes pode durar muito tempo e eu estou pensando “oh, está demorando demais, e está ficando… dolorido” (Ibid: 704).

As autoras comentam que existem estudos que sugerem uma conexão entre o uso de Viagra pelos homens e a ocorrência de infecções urinárias em suas esposas, o que é chamado de “cistite da lua de mel”. Uma mulher de 65 anos disse:

[E]le teria relações sexuais naquela noite e novamente na manhã seguinte e … ele pode ter mais relações sexuais do que eu, porque fico dolorida… Eu só tive candidíase uma vez e outra vez tive uma infecção urinária… Eu estava urinando sangue, então presumo que ter relações sexuais tenha algo a ver com isso

(Ibid: 704).

As pesquisadoras explicam que “as mulheres pós-menopáusicas podem experimentar mais secura vaginal, o que exacerba o início desse tipo de cistite” e que existem outros problemas de saúde causados ​​pelo sexo prolongado, como “dor pélvica inferior e irritação e rasgamento da parede vaginal” (Ibid: 704).

Algumas das entrevistadas disseram que usavam lubrificantes, conforme aconselhadas, para aliviar o desconforto, mas isso não resolveu o problema. Uma entrevistada de 51 anos disse que a relação sexual era dolorosa por causa de uma doença, e que estava tentando cumprir o conselho dado na literatura médica que estava lendo, que dizia que as mulheres mais velhas deveriam permitir o acesso sexual para que seus maridos não “percam ‘a prática'” (Ibid: 704). As mulheres falaram que não queriam fazer sexo ou estavam cansadas, mas tinham que “acompanhar” para não ferir os sentimentos dos homens. Uma mulher de 65 anos descreveu como seu marido não falava com ela por 24 horas se ela não quisesse ser usada sexualmente, pois isso o fazia “desperdiçar” um medicamento caro.

Sexo anal

O desenvolvimento da indústria da pornografia mudou a natureza do sexo a que os homens sentem ter direito nos relacionamentos, de modo que as práticas que manifestamente nada têm a ver com o prazer das mulheres, e são dolorosas e prejudiciais à saúde, podem ser letais e outrora teriam sido incomuns na prática heterossexual, foram normalizadas. Essas práticas incluem sexo anal, estrangulamento (chamado por seus normalizadores de ‘brincadeira’) e outras formas de práticas sadomasoquistas, eufemisticamente chamadas de ‘sexo violento’. O sexo anal, que antes era raro nas relações heterossexuais na Anglosfera, tornou-se agora uma parte aceitável do uso masculino do corpo feminino, de acordo com a literatura sexológica e de aconselhamento sexual. Foi normalizado por ter a dor que causa descrita como uma disfunção sexual com um nome especial próprio, anodispareunia, o que implica que a pessoa que sente a dor é o problema e não a prática em si (Hollows, 2007).

A literatura sugere que a prática foi disseminada a partir da pornografia (Stulhofer e Adjukovic, 2011) e é comum na subcultura BDSM entre homens gays. Existe uma considerável literatura médica sobre a dor que o sexo anal causa em homens gays, mas para alguns homens gays há uma compensação, porque a prática oferece satisfações particularmente sadomasoquistas (Grabski e Kasparek, 2020). Os ‘ativos’ podem se ver como dominantes e em um papel masculino, enquanto os ‘passivos’, apesar da dor que possam sentir, podem experimentar os prazeres masoquistas de se sentir ‘como uma mulher’, ou seja, subordinados (Jeffreys, 1990). Nenhuma dessas satisfações está disponível para as mulheres, que geralmente falam apenas sobre a dor e o desconforto do sexo anal e o trabalho que têm que realizar para permitir que os homens as usem dessa maneira.

Um artigo de revista sexológica sobre ‘anodispareunia’ deixa claro que o sexo anal é doloroso e desagradável para as mulheres (Stulhofer e Adjukovic, 2011). Os autores definem ‘anodispareunia’ como “dor debilitante persistente durante a relação sexual anal” (Ibid: 349). Eles observam que “o sexo anal está se tornando cada vez mais comum entre mulheres e homens heterossexuais”, mas descobriram que para a maioria das mulheres o sexo anal era doloroso e elas não queriam fazê-lo. O aumento da prática foi marcante. Eles observam que uma pesquisa realizada nos EUA em 2002-3 constatou que 35% das mulheres tinham experiência de sexo anal, enquanto na década anterior a figura era apenas de 23%.

Eles também realizaram uma pesquisa com 2.002 mulheres jovens na Croácia sobre a experiência delas com sexo anal em 2010, na qual descobriu-se que 62,3% delas haviam sido penetradas analmente. Mostrou-se que, embora quase metade, 48,8%, tenha sido forçada a encerrar sua primeira experiência de “intercurso anorretal” devido à dor ou desconforto, a maioria das mulheres, 62,3%, continuou a se submeter às exigências dos homens. Os pesquisadores consideraram que a representação comum do sexo anal na pornografia online explicava o aumento da prática. Eles descobriram que, das 788 mulheres que afirmaram ter continuado a praticar sexo anal, apenas 61, ou 7,7%, relataram que nunca sentiram dor ou desconforto durante o intercurso anal receptivo, e entre as mulheres com dois ou mais episódios de intercurso anorretal no ano anterior, apenas 18 ou 3,6%, estavam livres de qualquer dor ou desconforto (Ibid: 352).

Embora o sexo anal tenha consideráveis desvantagens para as mulheres, ele se tornou tão normalizado nas últimas décadas que passou a ser visto como uma prática sexual cotidiana. Conselhos sobre como fazê-lo são onipresentes em uma variedade de fontes de mídia, especialmente em sites de saúde. Alguns desses recursos detalham os danos. O Medical News, por exemplo, explica que a penetração anal é um problema para a pessoa penetrada, seja ela masculina ou feminina, porque “o ânus não possui as células que criam o lubrificante natural que a vagina possui. Também não tem a saliva da boca” e diz que “a mucosa retal também é mais fina do que a da vagina” (Nall, 2019). Ele lista os riscos que envolvem a saúde, como infecção bacteriana por lacerações na mucosa retal, incontinência, risco de ISTs e, potencialmente, o dano muito grave de fístula.

Algumas fontes de mídia, no entanto, minimizam firmemente seus danos. Um exemplo é a cobertura do sexo anal na Teen Vogue, uma revista para adolescentes do sexo feminino. Um artigo publicado pela primeira vez em 2017 chamava-se ‘Um guia para o sexo anal’ (Engle, 2017/2019). Isso provocou considerável controvérsia na mídia, com os pais dizendo que ele não era adequado para crianças. A justificativa para o artigo foi que as meninas estariam fazendo sexo anal de qualquer maneira, então precisavam saber como fazê-lo. O artigo começa dizendo:

O sexo anal, embora muitas vezes estigmatizado, é uma maneira perfeitamente natural de se engajar na atividade sexual… Então, se você está um pouco preocupado em experimentar ou está tendo problemas para entender o apelo, saiba que não é estranho ou nojento

(Ibid).

O artigo não mostra nenhuma consciência de que a atividade heterossexual ocorre dentro de uma estrutura de poder que torna difícil para as mulheres, ainda mais para as meninas, impedir os homens de fazer o que querem, por medo de violência, de perder o namorado ou simplesmente de não agradá-lo como deveriam. A Teen Vogue promove a prática dizendo: “O ânus está cheio de terminações nervosas que, para algumas pessoas, dão sensações incríveis quando estimuladas”. Ela reconhece que o sexo anal provavelmente será difícil e desconfortável, se não doloroso, para a adolescente, então uma série de instruções é dada sobre como o músculo anal ficará rígido e objetos de vários tamanhos devem ser inseridos para soltá-lo, e então a penetração deve ocorrer muito lentamente com o auxílio de lubrificação. Por meio desse tipo de trabalho, espera-se que as meninas transformem seus ânus em tubos de masturbação para seus usuários masculinos.

As adolescentes em cujos corpos essas práticas serão provavelmente executadas quando os rapazes experimentarem seu repertório sexual estão em uma posição muito pior para exercer um “não” do que as mulheres mais velhas cujas dificuldades com o consentimento foram delineadas anteriormente neste capítulo. Há evidências de que as adolescentes são particularmente vulneráveis à violência sexual de parceiros masculinos. Uma pesquisa de 2015 com meninas de 13 a 17 anos em cinco países europeus descobriu que mais de quatro em cada dez foram coagidas a atos sexuais. Nas entrevistas, muitas crianças disseram que a pressão para fazer sexo era tão persistente que se tornou ‘normal’. Katie, uma jovem de 15 anos que participou da pesquisa na Inglaterra, disse aos pesquisadores: “Tive relacionamentos em que não podia sair com meus amigos porque eles ficavam com raiva de mim. Eu fui estuprada e outras coisas assim” (Topping, 2015).

Um artigo do British Medical Journal de 2014 descreve as experiências de sexo anal de adolescentes no Reino Unido com idades entre 16 e 18 anos (Marston e Lewis, 2014). As motivações e consequências para meninos e meninas eram extremamente diferentes. Foi descrito como sendo prazeroso para os meninos e um indicador de realização sexual, enquanto para as mulheres era uma fonte de dor ou reputação prejudicada. Um rígido duplo padrão estava em operação. Onde antes os homens competiam entre si para penetrar uma garota vaginalmente e assim obter uma vitória sobre ela da qual pudessem se gabar, o sexo vaginal agora era muito comum e não era mais um desafio. Os jovens passaram para o sexo anal. Os meninos do estudo descreveram o sexo anal como “algo que fazemos para uma competição” e “cada buraco é um gol”. Em contraste, tanto homens quanto mulheres disseram que as mulheres arriscavam sua reputação pelo mesmo ato (Ibid: 3). Os meninos descreveram como forçaram uma menina relutante a passar por uma penetração que ela desconfiava que seria dolorosa:

Shane nos disse que se uma mulher dissesse ‘não’ quando ele começasse a ‘colocar o dedo’, ele poderia continuar tentando: ‘Eu posso ser muito persuasivo […]. Como às vezes você continua, apenas continua até que elas se cansem e deixem você fazer de qualquer maneira’. Um ‘não’ verbal da mulher não impediu necessariamente as tentativas de penetração anal

(Ibid: 3).

O fato de a penetração em uma mulher poder causar danos consideráveis ao seu esfíncter anal não é necessariamente um impedimento, pois existe um grande nicho de pornografia dedicado especificamente a mostrar os danos (Shrayber, 2014).

Neste capítulo, eu examinei o sexo ‘consensual’ que ocorre em relacionamentos heterossexuais. Eu descrevi as muitas forças que permitem aos homens exercer seu direito sexual, mesmo quando as mulheres não querem participar, a dor, humilhação e simples irritação que muitas sentem quando não têm uma maneira realista de dizer não, e as repercussões abusivas que podem experimentar caso se recusem.

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Ódio às mulheres da esquerda à direita

Tradução do texto que Andrea Dworkin escreveu para o livro The Sexual Liberals and their Attack on Feminism em 1990.


Faz bastante tempo desde que nos reunimos para debater o que queremos dizer com “feminismo” e por que a luta pela libertação das mulheres importa tanto para nós, que dedicamos nossas vidas a ela: não três horas da tarde de sábado; não uma carta aqui e outra ali; não um “meu deus, não me diga” enraivecido. Nós realmente não achamos nossas vidas triviais. Imagina só. E nós não achamos que os crimes cometidos contra nós sejam menores ou insignificantes. E isso significa que fizemos um progresso fenomenal em entender que somos seres humanos que têm direitos neste planeta; que ninguém pode tirar esses direitos de nós; e que nós fomos lesadas pela subordinação sistemática das mulheres, pelo abuso sexual sistemático a que fomos expostas. E estamos politicamente organizadas para reagir e mudar a sociedade na qual vivemos, desde suas estruturas.

Acho que, enquanto feministas, temos uma maneira de olhar os problemas que outras pessoas parecem não compreender. Para dar nomes aos bois, a direita e a esquerda parecem não entender o que é isso que as feministas estão tentando fazer. Feministas estão tentando destruir uma hierarquia sexual, uma hierarquia racial, uma hierarquia econômica, nas quais mulheres estão sendo prejudicadas, desempoderadas, e nas quais a sociedade celebra a crueldade infligida contra nós, que nos recusa integridade corporal e uma vida digna.

Agora, este não é um problema que a esquerda considera que tem de ser resolvido. Vocês devem ter notado. E não é algo que a direita considere um problema. A direita ainda nem chegou ao ponto de dizer que o problema não importa, diferentemente da esquerda, porque esta última é sempre vanguardista. Como a esquerda é vanguardista, pode ficar lá na frente dizendo “bom, sim, entendemos o problema; ele só não é particularmente importante”. A direita, como os dinossauros que são, simplesmente nega o problema. E nós, mulheres, temos que escolher entre uma coisa e a outra.

Então, feministas olham a sociedade na qual vivemos e tentam entender como vamos combater o poder masculino. E para tentar entender como travaremos esta batalha, temos que entender como ele se organiza, como ele funciona. Como o poder masculino sobrevive? Como resolve suas questões? Como se mantém enquanto sistema de poder?

Ao olhar o poder masculino, olhar todas as suas instituições, tentando entender como funcionam, concluímos que é como colocar areia em seus tanques de gasolina; temos que fazer com que não funcionem. Então tentamos compreender como podemos fazer isso.

Devemos olhar para o papel da direita em manter o poder dos homens sobre as mulheres e olhar para o papel da esquerda em manter o poder masculino: não devemos olhar para o que dizem, mas para o que fazem. Então, deveremos ir além da realidade tal como eles nos apresentam quando falam, e frequentemente falam, de um jeito ou de outro: “gatinhas, a gente sabe o que é melhor pra vocês. Estamos agindo para defender seus melhores interesses”. A direita vai te prometer um marido que – sim, é verdade, você terá de obedecer, mas que vai ter que te amar por obedecer. Agora, há circunstâncias – essas sob as quais você vive – nas quais as mulheres vão considerar que esta não é uma oferta ruim. Porque você corta o número de homens que você deve obedecer, de bilhões para apenas um.

E a esquerda fará o que eles acreditam ser uma ótima proposta, eles dirão: “ei gatinhas – a não ser que eles estejam sendo particularmente progressistas no momento, e então eles dirão ‘vadias’, porque esta é a ideia deles de liberdade – e eles se dirigirão a nós em qualquer tom de voz que esteja na moda entre eles, e eles nos dirão – bom, o que a gente vai fazer é dar a vocês o direito ao aborto, contanto que continuem sexualmente acessíveis para nós. E se vocês embarreirarem esse acesso, se começarem com esse mimimi de um movimento autônomo de mulheres, nós vamos retirar todo apoio que já demos um dia: financeiro, político, social, tudo o que demos um dia para que vocês ganhassem o direito de abortar. Porque se esse direito não significa acesso aos corpos de vocês, gatinhas, então vocês vão ficar sem ele”. E é isso que eles têm feito nos últimos 15 anos.

Então as feministas chegam e dizem: bem, vamos entender como essas pessoas desejam o que desejam. Nós vamos abordar o problema politicamente. Isto significa que vamos tentar isolar e descrever sistemas de exploração que trabalham contra nós, do nosso ponto de vista, enquanto pessoas lesadas por eles. Isto significa que embora estejamos por baixo, e eles por cima, estamos procurando pelas vulnerabilidades deles. E quando as encontramos – e nós as encontramos anatomicamente, inclusive – nós vamos mover todos os nossos músculos, qualquer que seja nossa posição, e nós vamos tirar esse cara, em qualquer uma de suas manifestações coletivas, de cima da gente.

E isto significa que, politicamente, estamos organizando uma resistência política à supremacia masculina. Nós costumávamos falar em fazer revolução. Nós sorrimos e gargalhávamos e estávamos muito deslumbradas. Achávamos que seria fácil. Nós não compreendíamos, por algum motivo, que as pessoas no poder não iam gostar da revolução tanto quanto nós estávamos gostando. Eles pararam de se divertir quando começamos a nos organizar. Bom, eles foram ficando mais e mais chateados quando começaram a ver que eram vulneráveis, que a supremacia masculina não era apenas gigantesca e monolítica, que não tinha sido dada a eles por Deus nem pela natureza. Deus é a direita, a natureza é a esquerda.

E começou a parecer que, se por um lado, uma revolução da noite para o dia não seria possível, uma resistência consistente, séria e organizada às instituições do poder masculino que oprimem as mulheres, isto seria possível. Nós começamos a perceber e eles começaram também.

Então começaram os dias difíceis do movimento de mulheres. As pessoas de quem tentávamos tirar o poder não iam continuar nos atacando das maneiras que eram autorizados a atacar por milhares de anos. Eles iam se articular politicamente para nos refrear. E foi isso que fizeram.

Quando falo sobre resistência, estou falando de resistência politicamente organizada. Não estou falando de uma coisa intermitente. Não estou falando de sentimentos. Não estou falando de sentir, no seu coração, e viver seu dia normalmente, cheia de ideias decentes, boas e maravilhosas. Estou falando de quando você coloca o seu corpo e sua mente na reta e quando se compromete com anos de luta para mudar a sociedade em que vive. Isso não significa apenas mudar os homens que você conhece para que eles tenham boas maneiras – embora isto não seja mau. Faz quinze anos. As maneiras deles podem até ter melhorado consideravelmente. Mas não é isto que faz uma resistência política. Uma resistência política segue em frente noite e dia, clandestina ou abertamente, onde as pessoas podem ver e onde não podem. Passa de uma geração para outra. É ensinada. Encorajada. Celebrada. É inteligente. Experimentada. Comprometida. E um dia vencerá. Vencerá.

Nós encarnamos, também, uma resistência pessoal à dominação masculina. Fazemos isso da maneira como conseguimos. E parte do problema dos últimos anos tem sido sugerir que, tanto uma forma quanto a outra, resistência política ou pessoal, vai ser suficiente, porque feminismo seria um estilo de vida. Você é uma mulher jovem e moderna. Claro que você é feminista. Feminismo não significa isso. Feminismo é a prática política de lutar contra a supremacia masculina, em benefício das mulheres enquanto classe, incluindo todas as mulheres de quem você não gosta, de quem não quer estar perto,incluindo as mulheres que eram suas melhores amigas e com quem você agora não quer mais nenhum contato. Não importa quem são as mulheres individualmente. Todas elas estão igualmente vulneráveis ao estupro, espancamento, como as crianças estão vulneráveis ao incesto. Mulheres mais pobres têm mais vulnerabilidade à prostituição, o que é basicamente uma forma intolerável de exploração numa sociedade igualitária, a sociedade pela qual estamos lutando.

Parte do que fazemos nesta resistência da qual estou falando é a recusa em colaborar com o poder masculino. Recusa em sermos usadas por eles. Recusa em sermos as garotinhas deles. Recusa em colaborar para fazer nossas vidas ficarem um pouquinho mais fáceis. Recusa em colaborar com esse poder mesmo que seja para ganhar uma plataforma para falar nesta sociedade. Um ventríloquo poderia estar movendo seus lábios, se você for uma mulher à frente de um poder masculino. Você não está trabalhando em favor das suas irmãs. Você está trabalhando pros caras. E você está facilitando que eles prejudiquem as mulheres. É muito difícil não colaborar com o poder masculino, porque ele está em todo lugar. Onipresente.

Parte de ter uma resistência feminista ao poder masculino inclui expandir a base da resistência para outras mulheres, mulheres com quem você não tem tanto em comum, mulheres com quem você não tem nada em comum. Fazer proselitismo ativamente, em diálogo com mulheres de muitos pontos de vista diferentes, porque a vida delas tem valor, porque a sua vida também tem. Esse é o porquê.

Nós precisamos romper as barreiras políticas convencionais, as linhas que os homens traçaram para nos dividir. “Nossas meninas estão ali; vamos chamá-las de Democratas, socialistas, vamos chamar do que der na telha. Aquelas meninas estão lá, e são as meninas deles. As meninas do nosso lado não podem falar com as meninas deles”. Bom, se as meninas de qualquer um dos lados falasse com as outras, elas acabariam constatando que estão ferradas do mesmo jeito pelo mesmo tipo de homem.

E aí quando olhamos para a experiência vivida das mulheres – que é o que feministas fazem, e nem a direita, nem a esquerda fazem – o que percebemos? Percebemos que mulheres por todo o espectro político, quaisquer que sejam suas ideologias, são estupradas e que mulheres experimentam espancamento dentro e fora de casamentos. Encontramos um grande número de mulheres adultas que foram vítimas de incesto, descobrimos que o número de vítimas de incesto neste país [EUA] está crescendo [1]. Neste momento, especialistas acreditam que dezesseis mil novos casos de incesto de pais contra filhas – o que é apenas um dos tipos de incesto – ocorram todos os anos.

A experiência real das mulheres inclui a prostituição, a experiência real das mulheres inclui a pornografia. E quando olhamos para a experiência real das mulheres – e quando não aceitamos o blablabla que os homens nos forçam goela abaixo sobre o que nossas vidas supostamente seriam – o que encontramos, por exemplo, quando olhamos a pornografia, é que podemos traçar gerações de mulheres sexualmente abusadas. E encontramos diferentes gerações sendo abusadas: meninas, jovens mulheres, mães e avós. A pornografia não tinha que estar em todas as ruas para funcionar como parte do abuso sexual de mulheres na sociedade. Estou apenas lembrando vocês do que vocês já sabem: que a maior parte dos abusos sexuais acontece em ambiente privado. Acontece, para dizer a verdade, onde não podemos ver. E a conquista impressionante do movimento de mulheres foi dizer “não vamos mais respeitar sua privacidade, seu estuprador”.

As mulheres estão isoladas em seus lares. Não quer dizer que não possam sair; podemos. Mas as coisas acontecem conosco principalmente em nossos lares. O lar é o lugar mais perigoso para mulheres em nossa sociedade. Mais mulheres morrem em seus lares do que em qualquer outro lugar. Uma mulher é espancada nos EUA – casada ou coabitando – a cada dezoito segundos [2]. O lar é um lugar perigoso para mulheres.

E antes do movimento de mulheres, as mulheres que eram estupradas, espancadas, não sabiam que as demais também o eram. Acontecia para ela, sozinha no mundo. Por quê? Porque ela fez alguma coisa; porque ela era alguma coisa errada; porque fez algo errado; porque era má, de algum jeito. O problema – a violência – era efetivamente escondida pela supremacia masculina. O fato é que você podia dar a volta em qualquer quarteirão da cidade e encontrar massas de mulheres que tinham precisamente as mesmas experiências, com precisamente as mesmas violências masculinas, precisamente pelos mesmos motivos. E o motivo – de fato, há apenas um – é que elas são mulheres. É isso. São mulheres. A sociedade está organizada não apenas para punir mulheres como para proteger os homens que punem. É isto que estamos tentando mudar.

Agora, em termos de lidar com a direita e a esquerda e o ódio às mulheres, quero falar com vocês especialmente sobre pornografia e algumas estratégias que a envolvem, onde a esquerda e a direita se unem para resguardá-la, para manter mulheres subordinadas através da pornografia, e manter o abuso sexual que ela causa, protegidos e bem.

A pornografia existia no lar e era usada para o abuso sexual. Estava disponível em grupos exclusivamente masculinos. Muitas de nós, ao crescer (se hoje temos entre 40 e 50 anos) não víamos pornografia. Ela não saturava o nosso ambiente como agora. Como resultado, faltava uma peça quando tentávamos decifrar o abuso sexual. Nunca havia jeito para entendermos como os valores dos estupradores eram compartilhados, como compartilhavam técnicas para abusar das mulheres, ou como a racionalização do abuso era comunicada. Como os homens aprendiam essas coisas? Essas coisas não caíam do céu. Não achamos que caíam. Acho que algumas pessoas pensavam assim: junto aos Dez Mandamentos, veio a pornografia: é assim que se bate na mulher, é assim que se amarra uma mulher.

Mas não, nós não achamos que aconteceu assim. Então: lá estão as mulheres como propriedade privada, possuídas por homens, em casas, isoladas. E para lidar com este problema chamado pornografia temos algo chamado “leis de obscenidade”. E o que essas leis fazem, quando funcionam, é esconder a pornografia de mulheres e crianças. Impedem-nos de ver a pornografia. Não previnem que a pornografia seja usada contra nós por homens que nos abusam. Homens podem acessá-la e usá-la. Mas nós não a vemos, não falamos sobre ela, não nos organizamos a respeito dela, não aprendemos com ela como a supremacia masculina funciona. Não conseguimos fazê-lo. 

Uma das maneiras pelas quais a estrutura social protegeu a supremacia masculina foi a estratégia direitista de usar leis de obscenidade para manter a pornografia em segredo para mulheres e crianças enquanto a disponibilizava para o uso masculino privado, em grupos inteiramente masculinos.

Nós temos essa estranha noção que aparece de vez em quando no movimento de mulheres, e que é uma grande trivialização das nossas vidas; essa noção errada de que existe uma divisão fenomenologicamente real do mundo entre mulheres boas e mulheres más. E temos algumas mulheres esquerdistas orgulhosíssimas de serem reconhecidas, percebidas e consideradas enquanto más. Malvadonas. A realidade, porém, é que você pode fazer tudo neste mundo para ser uma mulher boa mas quando você está no privado, em casa, com seu marido privado que você atraiu através de sua conformidade com o que se estipulou como “uma boa mulher”, quando ele começa a bater em você, ele te bate porque você é má. E a premissa que subjaz à sociedade é de que todas as mulheres são más, que temos uma natureza que é má e que, portanto, merecemos punição. E você pode ser a mais malvadona mulher da esquerda – o que, na esquerda, equivale a ser uma mulher boa – e quando o esquerdista começa a bater em você, ele te bate porque você é uma mulher, porque você é má enquanto mulher, não enquanto má esquerdista; você é má porque você é mulher e merece ser punida.

A manifestação desse princípio pode ser observada nas instituições. Peço que o considerem em relação à pornografia, pois nela não existe nada que puna suficientemente uma mulher por ser mulher. A natureza mesma do ser mulher é extrair prazer sexual de sua punição. Você não tem que pedir pra ser transformada numa menina malvada. Você vive sob a supremacia masculina, você é uma. Você é mulher: o que há de odioso em você – em você, que te define – é a razão pela qual homens te machucam. É a razão pela qual eles não dizem “estou batendo em um ser humano, estou machucando um ser humano”. Eles dizem “estou punindo uma vagabunda, estou punindo uma puta”. Eles dizem o que a pornografia diz: “Você gosta disso, né. Há algo em você que se satisfaz com isso”.

Então, quando você busca ajuda, pensando que é uma pessoa que não gosta de ser machucada, o psicólogo diz: “Há algo em você que gostou, né?”. Você diz “Nossa, não. Eu não gostei”. E ele diz “Bom, você não está sendo honesta consigo própria e certamente não conhece a si mesma muito bem”. E você vai ao seu yogi, e pode contar, ele vai te dizer a mesma coisa. É um pouco desencorajador, não? Mesmo os vegetarianos acham que se você é uma mulher, você é má.

Supostamente, temos essa natureza que clama pelo abuso. Pornografia é sobre nos punir a ponto de nos aniquilar por sermos mulheres e tanto esquerda quanto direita têm um papel a cumprir na proteção da pornografia. Eles atuam em harmonia para que sejamos punidas. Esta batalha pública entre direita e esquerda é, do nosso ponto de vista, uma distração. Cada um dos lados tem um papel em nos manter por baixo. E o que importa é sabermos qual parte cabe a cada um deles.

O que acontece quando “leis de obscenidade” são implementadas é que juízes de direita – essas pessoas autoritárias que supostamente odeiam pornografia mais do que tudo neste mundo (acreditar nisso é comprar gato por lebre) – estabelecem uma fórmula legal que protege a pornografia. Ao definir obscenidade, eles estabelecem a fórmula que pornógrafos usarão para proteger a pornografia uma vez publicada. A Suprema Corte afirma “faça isso assim e assado, dessa maneira e daquela. Enquanto você tiver isto, isto e aquilo, a gente não põe a mão em vocês”.

Nessa hora, aparecem os esquerdistas, escritores de vanguarda, que se juntam ao coro e dizem “então está bem, vamos produzir um material socialmente redentor que vai estar de acordo com as fórmulas que os direitistas elaboraram”. E, aqui e ali, um escritor direitista vai fazer algo também. William Buckley ou qualquer um. Ele não recusa dinheiro; feministas recusam dinheiro. Pessoas que não recusam dinheiro não são feministas.

Assim, temos esse estupendo contrato social entre direita e esquerda – eles, que fingem estar lutando um contra o outro o tempo todo – que, na verdade, podem colocar no papel qualquer quantidade de exploração do ódio às mulheres, tortura, crueldade e selvageria em suas revistas, bastando embrulhá-la com um aviso de que sim, a publicação está de acordo com os padrões estabelecidos pela Suprema Corte. Basta isso. Eles nem precisam ser plenamente alfabetizados para fazê-lo. Eles, os homens de direita e os homens de esquerda, fazem isso em conjunto. E se você se deixar distrair pela briguinha de masculinidades que eles estão sempre travando, você não verá o fato de que, quando se trata de elaborar este produto chamado pornografia, eles estão de acordo.

O ódio às mulheres contido na pornografia não importa para nenhum dos lados. O ódio às mulheres não é tóxico – para usar uma palavra da moda [3] – nem à direita, nem à esquerda, e isto se refere tanto a mulheres sendo usadas como bichinhos de estimação, como coelhinhos e gatinhas, ou mulheres sendo torturadas. Os caras estão de bem com tudo isso. De ambos os lados.

A maneira pela qual os pornógrafos tocam seus negócios de fato tem a ver com a administração municipal em território nacional. Nós temos prefeituras em cidades por todo o país – compostas por Democratas e Republicanos – que estão tomando decisões inacreditáveis sobre nossas vidas todos os dias. A maior parte de nós é nariz-em-pé demais para prestar atenção nessas coisas. Nós temos ideologias sobre as quais pensar. Nós temos pautas políticas maiores para abocanhar. Enquanto isso, eles estão dando pedaços das cidades aos pornógrafos, naquelas prefeiturazinhas pequenas que não significam nada para nós.

Então você tem os políticos locais que se levantam, como de costume, contra a pornografia, à direita e à esquerda. Os liberais estão chocados – simplesmente chocados – mas precisam defender a pornografia. Eles precisam. Por quê? Quando perguntamos, eles mudam de assunto. O zoneamento é a permissão legal para explorar e traficar mulheres. É isso o que zoneamento significa. O zoneamento não impede a pornografia, apenas a restringe a um bairro específico. A maneira como os pornógrafos conseguem vasto poder municipal é que eles comparecem às reuniões de zoneamento. Eles vão, os advogados deles vão. Eles descobrem quais partes de quais cidades são destinadas para o desenvolvimento da cidade, quer seja no centro comercial, um projeto de moradias ou o projeto de um shopping. Eles vão e compram terra. Eles mantêm a terra refém até que as leis da cidade os favoreçam. Então eles conseguem vender o produto deles – que é o ódio às mulheres – em partes da cidade oficialmente autorizadas. E quais são as partes da cidade que eles ganham? Os lugares com menores concentrações de pessoas brancas, ou com brancos pobres.

Por exemplo, Minneapolis é uma cidade cuja população é 96% branca e 4% racializada, majoritariamente povos originários e negros e negras. Como explicar que 100% da pornografia é produzida nesta última área? Quero dizer que, se a pornografia estivesse caindo do céu, não seria assim.

É isso que acontece. Os lugares onde a pornografia é produzida são economicamente devastados. Negócios legítimos vão embora. Homens e todas as partes da cidade vêm, durante a noite, comprar pornografia e caçar mulheres. Crimes violentos contra mulheres e crianças crescem nesses bairros. Ninguém sai de outros bairros para visitar estes, a não ser que queiram pornografia. Logo temos uma nova forma de segregação espacial na cidade criada pelos efeitos sociais da pornografia. Temos um aumento de violência contra mulheres e crianças.

Então, esquerda e direita cooperam de maneira clandestina. Temos os Republicanos, que às vezes são Democratas, falando dos valores da propriedade. Eles vão proteger o valor da propriedade. Mas quem esses valores protegem? Protegem brancos ricos. É por isso que a pornografia vai parar onde vai parar. E então a esquerda se levanta, furiosa, e fala ‘como vocês podem fazer isso, queremos equidade econômica, não queremos devastação econômica aqui’. A esquerda não faz nada, porque enquanto a direita está defendendo a propriedade, a esquerda está defendendo o discurso.

Temos, agora, em várias municipalidades, uma nova forma de segregação criada pela pornografia. Novas áreas de danos econômicos criados pela pornografia. E temos um novo desespero para as pessoas que vivem ali.

Qual é o papel do Estado nisso tudo? As pessoas gostam de falar do papel do Estado. É abençoadamente abstrato. É como um teste de Rorschach, você pode dizer o que quiser. Ninguém sabe se está certo ou errado. O que eu gostaria de dizer, portanto, é que podemos olhar para um Estado, em particular, este sob o qual vivemos. Podemos olhar atentamente para como ele funciona e como veio a existir.

Algo que parece estar claro é que nem a direita, nem a esquerda, acredita que o papel do Estado é criar justiça econômica ou sexual. Isto parece nítido. Igualdade não é mais um objetivo da esquerda, se isso implicar mulheres. A esquerda desautorizou a igualdade enquanto objetivo, e para a direita, isto sequer foi um objetivo.

E esta é a realidade, e imploro para que vocês pensem nisso quando escutarem sobre a Primeira Emenda. Imploro para pensarem como a Constituição foi manufaturada para proteger a escravidão como instituição; manufaturada para não impedir a escravidão, para não interferir, para não danificar a compra e venda de seres humanos. Não é uma surpresa que o Estado regulado por esta Constituição seja profundamente insensível a crimes de compra e venda de seres humanos.

E eu devo lembrá-los que os Pais Fundadores eram – muitos deles – donos de escravos. Mas especialmente James Madison, que manufaturou a Primeira Emenda, não apenas possuía escravos, como se gabava de gastar doze ou treze dólares anuais para mantê-los vivos, ao passo que lucrava 257 dólares por ano em cima de cada escravo que possuía.

A Primeira Emenda não tem nada a ver com a proteção de direitos das pessoas que foram historicamente gado neste país. E não é uma surpresa que agora a Primeira Emenda esteja protegendo pessoas que compram e vendem seres humanos: A Primeira Emenda está protegendo os pornógrafos. E nos dizem que a liberdade de expressão deles fortalece a nossa. Veja só, eles pegam uma mulher, dez mulheres, trinta mulheres, colocam mordaças em nossas bocas, penduram a gente em algum lugar, e nossa liberdade de expressão ficou maior! Isso desafia a compreensão, mas eles juram de pés juntos que é verdade. Eu sigo dizendo que não é.

Por favor, entendam que agora vivemos em um país onde as cortes estão ativamente protegendo a pornografia e os negócios pornográficos. Quando a lei municipal de direitos civis foi aprovada em Indianapolis, a cidade foi processada uma hora depois, simplesmente por tê-la aprovado. Ela nunca foi usada. A cidade foi processada pela aprovação.

O primeiro juiz, numa corte federal do distrito, era uma juíza apontada por Reagan, uma mulher, uma mulher de direita. Em sua decisão, ela disse que a discriminação sexual não pode pesar mais que a Primeira Emenda. Esta é a posição da direita. A Primeira Emenda é mais importante do que qualquer dano infligido às mulheres. Esta primeira decisão foi apelada. Outro juiz apontado por Reagan, Frank Easterbrook, escreveu o apelo da corte que derrubou a lei municipal. Ele disse que a pornografia faz, de fato, tudo que dizemos que ela faz. Que promove dano e estupro. Ele disse que a pornografia leva a menores salários para as mulheres, que é uma afronta às mulheres, um insulto, uma injúria. Então disse que tudo isto atesta o poder da pornografia como discurso. A possibilidade de a pornografia machucar mulheres é a razão mesma pela qual precisa ser protegida. Um direitista, libertariano, apontado por Reagan.

Sendo assim, e sua teoria diz que a direita é contra a pornografia e usará quaisquer meios para impedi-la de existir, me parece que a realidade te força a mudar tua teoria, pois essa teoria está errada. Tanto direita quanto esquerda concordam que a mulher pendurada em algum lugar é discurso masculino. Discurso de alguém. Vocês entendem que, uma vez transformadas em discurso, viramos propriedade masculina enquanto discurso na era da tecnologia? Uma vez tecnologizadas, somos legalmente seu gado.

Supostamente, a esquerda não está nem aí para o livre mercado. Quero dizer: o livre mercado não é uma invenção da esquerda, certo? Quero dizer, o livre mercado significa vender o que se pode vender, você vende um monte, você aumenta os preços e lucra tanto quanto pode. E o mercado te diz o que é popular, o que não é, o que você pode ou não pode fazer. E se um monte de gente morrer porque eles não valem muito, esse é o custo, porque o maior valor reside na competição do livre mercado.

Talvez você já tenha ouvido a esquerda falar do livre mercado das ideias. Você não deve apenas vender porcos ou gado ou cebolas ou maçãs ou carros, no livre mercado. Existe um livre mercado de ideias. Neste mercado, as ideias competem. E as ideias boas vencem as ruins.

Você talvez pense como eu pensava, que as ideias são inefáveis, não uma commodity. Digo, você não pode pegar ideias no ar e colocá-las no mercado, vendê-las e dizer ‘pesa tanto, então vou vender por tal valor’. O que constatamos é que, se você analisar de quais ideias a esquerda está falando, eles estão falando de mulheres. Eles querem dizer que mulheres estão sendo objetificadas na pornografia, sendo usadas, exploradas. Esse é o tal ‘livre mercado das ideias’. E as ideias são estranhamente parecidas com a gente. Nós somos as ideias, e os caras têm um ‘livre mercado’ para nós. Eles efetivamente têm.

A verdade é que a opressão é uma realidade política. É um estado de arranjos de poder no qual algumas pessoas estão por baixo, e elas são exploradas e usadas pelas pessoas que estão por cima, ou que estão em cima delas. Neste país, onde tudo tem que ser psicologizado, e a seguir usado por sociólogos, nós não falamos de opressão como uma realidade política. Em vez disso, falamos de pessoas como vítimas. Dizemos que Fulana ou Ciclana foi vitimizada. Fulana foi vítima de estupro. É uma palavra sem problema algum. Verdadeira. Se você foi estuprada, foi vitimizada. Pode apostar. Você foi a vítima. Não significa que seja metafisicamente uma vítima, e seu Ser, como se fosse uma parte intrínseca de sua essência e existência. Ser uma vítima significa que alguém te machucou. Eles prejudicaram você.

E se isso acontece com você sistematicamente por você ter nascido mulher, isso significa que você vive em um sistema político que usa a dor e a humilhação para te controlar e prejudicar. Uma das coisas que nos aconteceram é que um monte de gente nos disse que somos vítimas porque nos sentimos assim. Nós sentimos isso, é um estado de espírito, é uma reação emocional desproporcional. Nós sentimos isso. Não é algo que nos aconteceu; em vez disso, nós estamos num estado de espírito ruim. E as feministas somos responsáveis por esse estado de espírito, porque fazemos com que mulheres se sintam vitimizadas.

Quando apontamos que um estupro acontece a cada três minutos [nos EUA] [4] , que uma mulher apanha a cada dezoito segundos, e dez bilhões de dólares são gastos para assistir esses estupros, por diversão, dólares gastos para vê-las sendo exploradas e objetificadas por diversão, e se você não se sente um pouco lesada, um pouco diminuída, me parece que você não apenas é uma vítima, como já está meio morta, totalmente anestesiada e é verdadeira tola. 

A exploração é real e identificável, e lutar contra ela te deixa forte, e não o contrário. A violação sexual é real, e é intolerável, lutar contra ela te faz forte, e não fraca. E a direita como a esquerda – tanto faz se é a Phyllis Schlafly dando palestra sobre como você não teria sido assediada se tivesse sido virtuosa, ou a esquerda explicando que você deveria celebrar sua sexualidade, esquecendo sobre estupro, deixando isso pra lá, pra não trazer bad vibes, não se vitimizando – ambos querem mulheres aceitando o status quo, para viver no status quo e não se organizarem politicamente na resistência sobre a qual eu falei antes. Porque o primeiro passo em resistir à exploração é reconhecê-la, vê-la, sabe-la, e não mentir sobre onde ela aperta o seu calo.

O segundo passo é se importar o suficiente com outras mulheres. Se hoje você está bem, e ontem você estava bem, mas a sua irmã, a que está pendurada em uma árvore, não estiver bem, você vai lá cortar a corda.

O feminismo é a oposição ao ódio às mulheres para, assim, construir uma sociedade realmente igualitária. E não pode haver qualquer movimento de mulheres enraizado na defesa política do ódio às mulheres. Aqueles que acham tudo bem odiar as mulheres – não são feministas. Não são. Aqueles que acham tudo bem de vez em quando, aqui e ali, onde eles gostam, onde eles têm prazer – especialmente prazer sexual – com o ódio às mulheres, não são feministas também. E as pessoas que acham o ódio às mulheres terrível em certos lugares, mas tudo bem na pornografia, porque pornografia causa orgasmos, essas pessoas não são feministas. Pornografia causa orgasmos em pessoas que odeiam mulheres – com certeza. E pessoas que odeiam tanto as mulheres que acreditam que sua exploração seja discurso ou ideia não são feministas. Pessoas que acreditam que mulheres não são exatamente humanas, tão humanas quanto eles, ou que as mulheres na pornografia não são tão humanas quanto eles, não são feministas. Qualquer um que defenda aqueles que odeiam as mulheres, que produza ódio às mulheres, que produzam pornografia, que celebrem ódio às mulheres no sexo, essas pessoas não são feministas.

Eu gostaria de ver este movimento retornar ao que chamo de feminismo primitivo. É simples. Muito simples. Significa que quando algo fere mulheres, feministas se colocam contra isso. O ódio às mulheres prejudica as mulheres. Pornografia é ódio às mulheres. Pornografia prejudica as mulheres. Feministas são contra a pornografia, e não a favor.

DWORKIN, Andrea. “Woman-Hating Right and Left”. IN: LEIDHOLDT, D. and RAYMOND, J. The Sexual Liberals and their Attack on Feminism. New York: Teachers College Columbia University, 1990. Tradução por @taticafeminista.


Notas:

[1] No Brasil, 40% dos casos de pedofilia são cometidos pelos pais. (https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/maio/ministerio-divulga-dados-de-violencia-se xual-contra-criancas-e-adolescentes)

[2] No Brasil, em 2020, foram espancadas 17 milhões de mulheres, o que equivale a 8 mulheres por minuto. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

[3] No original, “ofender” foi a palavra usada por Dworkin. Mesmo que “tóxico” e “ofender” não sejam sinônimos, nem mesmo estejam na mesma classe gramatical, o adjetivo “tóxico” tem sido usado frequentemente para designar o que se podem considerar comportamentos desagradáveis, ofensivos ou violentos. E, claro, nem a direita nem a esquerda acham que a pornografia seja “tóxica”.

[4] Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dez minutos uma mulher foi estuprada no Brasil em 2021.